As razões pelas quais não (ou raramente) entro em debates na blogosfera são várias. Algumas são facilmente confessáveis: não tenho a bagagem teórica , por exemplo, da maioria das pessoas que dizem coisas que acho contestáveis; e muito menos a prática retórica. Outras são-no menos.
Contudo, por vezes não consigo, ou não quero, conter-me; apetece-me dizer qualquer coisa. E faço-o, claro. Ninguém vai preso por falta de bagagem teórica ou de inteligência, e não insulto ninguém exprimindo uma opinião à qual faltam esses importantíssimos ingredientes – excepto eventualmente o seu excelso ego, para o que há muitos e bons remédios.
Os temas, ou as pessoas, que me fazem ter vontade de não respeitar a decisão de entrar em debates são poucos: a raiva de
Palmira Silva contra a Igreja Católica, as causas que defende como se tivesse sido mandatada pelo deus da verdade (ou provocada pelo diabo da mentira); uma ou outra observação de um socialista que me parece omitir uma parte substancial da coisa da qual fala. Muito raramente contesto, por exemplo, um imbecil comunista, ou da direita reacças, nacionalista, anti-semita: não vela a pena. Em sete anos de blogosfera devem contar-se pelos dedos de uma mão os debates nos quais participei.
Recentemente, contudo, provoquei dois (vou já buscar o cilício: não posso sequer invocar o rum como motivo dessa insistência na asneira). A razão, tal como a vida, está alhures: o espanto, a admiração, a surpresa, a incompreensão, o facto de me sentir intrigado. Provoquei os dois debates (um público e o outro privado) com mesma pessoa, pela mesma razão: não perceber e querer perceber (não me parece que seja um motivo muito errado, de passagem seja dito, mas isso é outra história).
Agora escrevo estas linhas para tentar pôr ordem nas coisas que aprendi com esses debates – que foram, na minha perspectiva, mais diálogos do que debates.
Uma das coisas que me surpreendia nos escritos de Palmira Silva é a sua raiva contra aquilo que ela designa como ICAR. Eu não sou católico, nem sequer crente; aquilo que o Papa diz e faz é-me profundamente indiferente, e aquilo que as pessoas que acreditam no Papa dizem e fazem também – pelo menos até começarem a pôr bombas nos aviões ou mandarem doentes mentais suicidar-se. Mas como amanhã não é, previsivelmente, a véspera desse dia, vou, reconheço, prestando cada vez menos atenção ao que diz o Papa, onde vai, o que faz e porquê. Palmira Silva, que é tão agnóstica como eu, não: não deve haver um dia (vá, dois) em que não haja um post da senhora contra a igreja, o Papa ou as camisas-de-vénus que o Papa, aparentemente, não quer que os fiéis dele usem (se bem seja conhecida, há séculos, a indiferença dos fiéis dos papas por aquilo que eles dizem; mas isso é outra história).
Um dia enchi-me de coragem e mandei uma mensagem a Palmira Silva perguntando-lhe – a título meramente pessoal e de curiosidade – de onde lhe vinha tão forte e tão permanente raiva contra a igreja. A resposta dela começou com “Vocês, os crentes” e eu vi logo que tinha perdido o debate. Pois se eu, não sendo crente, era apodado de tal logo
ab initio, de que seria chamado quando dissesse o que penso?
Um outro desses diálogos ocorreu hoje no Facebook, e era a propósito de uma manifestação que vai haver amanhã contra a homeopatia. A situação aqui é semelhante. Eu não acredito na homeopatia, acho aquilo uma treta sem fim – mas pergunto-me por que raio de carga de água as pessoas que acreditam não o hão-de poder fazer em paz? Afinal de contas a homeopatia não é mais, nem menos, treta do que muitas outras coisas, do socialismo à psicanálise, passando pela acupunctura. Mais uma vez saí do debate esmagado, acusado de pensamento mágico e de não ver a necessidade de combater a mentira.
É por isso que vou tentar, neste post, pôr ordem nas minhas ideias a respeito das causas e dos debates. Assim resistirei melhor, suponho, à tentação de falar.
A primeira coisa que me fascina nos “activistas” é isso mesmo: a actividade. Os activistas sentem-se na obrigação de defender a verdade e combater a mentira. Não sei porquê, nem quem os mandatou para tal. Por que raio de carga de água se sentem na obrigação de manifestar os senhores e senhoras que amanhã o vão fazer contra a homeopatia? O que os motiva? O bem público? Mas a homeopatia não faz mal a ninguém - excepto eventualmente aos seus adeptos, mas isso não é razão suficiente para meia dúzia (ou meio mihão) de pessoas o irem gritar no jardim. A atitude dos paladinos da verdade faz-me pensar numa pessoa que, num café, ouvisse um vizinho noutra mesa encomendar qualquer coisa de que ela não gosta; e, sem para tal ter sido solicitada, vai a correr dizer ao cliente "olhe que o prato que você encomendou não é bom (ou é caro de mais para o que é, ou seja o que for)”. Eu aceito que seja feito de boa vontade, e que até pode ser útil; mas detestaria ver alguém intrometer-se na minha escolha (a menos que fosse o José Quitério, claro).
Outra coisa que me deixa totalmente confuso é a escolha das causas. Porquê umas e não outras? Porquê a homeopatia e não a astrologia? Eu acredito que há causas que devem ser defendidas – mas acho que essas causas, antes de serem defendidas devem ser avaliadas, estudadas, e só depois, se for caso disso, defendidas. Por exemplo: a excisão feminina. Essa é uma causa pela qual se deve lutar, quanto a mim: ninguém ganha com a mutilação feminina (excepto as senhoras que a praticam, mas para essas podia arranjar-se uma outra fonte de rendimento sem dificuldade de maior, creio), é uma prática bárbara, cruel, inútil. Já, por exemplo, o trabalho infantil é menos líquido. Hoje, como consequência da adesão de milhões de consumidores à luta contra o trabalho infantil, as ruas das cidades do terceiro mundo estão cheias de miiúdos que, para substituir o dinheiro que ganhavam nas fábricas, são obrigados a prostituir-se. E as crianças sempre trabalharam, e trabalharam e estudaram, sem que daí lhes adviesse muito mal. Proibi-las de trabalhar teve consequências muito mais terríveis para elas do que, por exemplo, conciliar trabalho e estudo.
A validade de uma causa mede-se, também, pelas suas consequências – as directas e as perversas. É por isso que eu, na minha ingenuidade e boa-fé, acho que se deve estudar bem um assunto antes de o defender ou combater. E deve haver critérios mais ou menos objectivos: uma determinada prática é voluntária? A quem pode prejudicar? Quais as consequências se se conseguir erradicá-la? E assim por diante.
A impressão que tenho é que os activistas, os paladinos da verdade, os dizimadores da mentira, não escolhem bem as causas. Ou então escolhem-nas mal, o que vem a dar no mesmo.
Uma outra coisa que me intriga é a atitude dogmática dos activistas. Até aos anos 80, um anticomunista era um ser primário, idiota, cuja única aspiração na vida era explorar os fracos e oprimidos e defender os capitalistas. Não podia haver outra razão para se ser anticomunista. Hoje, uma pessoa que emite uma dúvida sobre a eficácia, sei lá, do salário mínimo, das leis de protecção do emprego ou das leis da renda (esta está a deixar de ser consensual, finalmente; mas ainda há dez anos contestar a lei das rendas era o mesmo que colocar um painel nas costas a dizer “eu defendo que todos os inquilinos devem ir dormir para a rua”) é imediatamente acusada de querer que todos os “trabalhadores” vão para o desemprego, ou que as pessoas comecem a ser pagas com côdeas de pão seco.
O mesmo se passava, por exemplo, com o multiculturalismo: ninguém imagina a quantidade de horas que passei a rebater, com colegas de trabalho que não tinham sequer a desculpa de não saberem, atitudes do género “não há nada a fazer, é a cultura deles e temos que a respeitar”. (Muitas vezes não é sequer a “cultura deles”, são práticas recentes impostas pela guerra, pela fome ou por outra coisa qualquer, mas isso fica para outra ocasião). Verdade seja dita que esses debates só tinham lugar com colegas recentes. O que andavam no humanitário há muito tempo já não eram relativistas. Deve haver uma razão para isso, pensei – afinal, perder uma atitude paternalista para com os outros povos é quase como perder a virgindade: já não se pode voltar atrás.
É claro que uma pessoa pode defender a inexistência de um salário mínimo porque acha que é melhor para os empregados com poucas qualificações; mas isso é impossível debater (e devo reconhecer que a direita muitas vezes se deixou arrastar. Foi preciso o Giscard dizer a Mitterand que ele não tinha o monopólio da compaixão para que alguns olhos se abrissem à direita). Mas isso é uma coisa que os activistas não conseguem debater – se eu disser alguém que a lei laboral é perniciosa, esse alguém vai pensar que eu estou a dizer “perniciosa para os patrões”. Não é: é perniciosa para os empregados. Mas isso não é “ouvível”, perdoem-me neologismo bárbaro, pela maior parte da esquerda blogosférica. E devia poder dizer-se que determinadas práticas são inaceitáveis, ponto final parágrafo – para além da excisão, que essa é mais ou menos consensual.
É por isso que eu acho tristes os debates entre blogs. Não são debates. É uma cacofonia de surdos a acusar os outros de serem surdos, o que é no mínimo paradoxal.
O pior é que os “activistas” - que frequentemente escolhem mal as causas que defendem, não as estudam correctamente (muitas vezes) e que são, de uma forma geral, intolerantes a quem não pensa como eles – os activistas, dizia, afirmam estar a defender a ciência, o progresso (e claro, a “verdade”). É provavelmente isso que explica – e justifica, a seus olhos – a sua actividade: a luta pelo bem, pela verdade e contra a mentira faz parte do “código genético da esquerda”.
O argumento seria recebível, mas na minha opinião cai por terra quando vejo que muitos desses auto-proclamados exterminadores da falsidade são pró-Socrátes. Como é que pessoas vítimas da cegueira partidária, que vêem o mundo através de óculos cor-de-rosa e se protegem da realidade com uma espessa gabardine ideológica querem que os levem a sério quando dizem que estão a lutar contra a mentira? Por Deus, eles não vêem o PS de hoje, o regime de amiguismo e incompetência, o descalabro que provocou no país, o regabofe que é a norma geral da vida pública em Portugal, e querem ir para a rua lutar contra a homeopatia? Por amor de Deus!
Por mim, continuo a defender um (creio) saudável cepticismo, banhado em empirismo – isto é: ver as coisas e pensar que elas não são tudo o que vemos. Bem sei que é uma atitude à la Mr. Smith, falha de acuidade intelectual e de bagagem teórica. Mas faz menos mal, aposto, do que querer fazer o bem a todo o preço.
Isto dito, é óbvio que se as pessoas querem ir manifestar-se contra a homeopatia têm todo o direito de o fazer; como de manifestar-se contra o sol, o vento ou o sal na água do mar. Mas não deixa, na minha infundada opinião, de ser um bocadinho pateta.