31.12.14

Diario de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 31-12-2014

Não me preocupa muito acabar 2014 sozinho e sem dinheiro: não há razão nenhuma para que o fim do ano seja diferente do resto dele. E se comparar este com o anterior vejo que estes doze meses foram aquilo que prometeram. Recuperação.

Há um ano estava no Mindelo, sem um chavo no bolso e com uma tripulação de merda (um armador doente mental, um cobardolas nojento, uma gaja que não comia senão coisas cruas e não se lavava com sabão havia mais de três anos. Só se safava um jovem catalão educado, articulado e culto).

Este ano não tenho dinheiro mas sei que o vou ter assim que resolver os problemas burocráticos que a legislação francesa impõe; tenho um trabalho pelo menos por mais uns dias – e provavelmente resolverei a burocracia a tempo de continuar a trabalhar para aquela empresa –; e se estou sozinho é porque não faço esforços especiais para não estar.

Enganei-me a avaliar um gajo que em troca me enganou em alguns milhares de dólares; e não voltei para Portugal, como queria, também por uma questão de dinheiro. Tive alguns problemas de saúde, mas estão resolvidos. Parece-me pouco para estragar um ano que na verdade foi bom nas coisas importantes: o trabalho, as amizades, o futuro.

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São seis da tarde. Acabo de comer o “especial fim-de-ano” do Pollo Loco, que em breve fechará. O Lagoonies também fechou. Ambos até sexta-feira. Pouco me resta para além de ir para a cama e começar uma tradução que já devia estar pronta. Mas antes disso compro uma garrafa de vinho no chinês, aberto como habitualmente até às nove (segundo me disseram não liga às festas ocidentais: só respeita os feriados chineses).

Parece-me bem: a vida de cada um não está necessariamente no fuso horário onde vive.

……..
Amanhã vai ser o primeiro dia sem trabalho desde terça-feira passada. Enfim, trabalho físico: vou tentar fazer pelo menos um terço da tradução. As condições são ideais: Lagoonies fechado, pouquíssimo dinheiro no bolso e ninguém para me distrair. Ou atrair, talvez.

……..
J. quer vender um dinghy velho e pediu-me para o pintar. Apliquei-me – é a primeira vez que pinto um RIB e queria que o resultado ficasse bom -. Ficou e ele já não o quer vender. A próxima tarefa vai ser instalar uma bomba de fundo no C.. Segunda-feira vai para a água e fico com um sítio para viver, pelo menos enquanto J. não decidir ir fazer uma viagem pelas ilhas. Já não navega há muito tempo e tem vontade de ir passear um bocado.

Está com setenta e oito anos. Não vai fazer muitas mais, penso. Quando o comparo (ele e, verdade seja dita, mais dois ou três) aos armadores com quem naveguei ou para quem trabalhei estes últimos anos fico optimista. A roda gira, a maré muda, o vento ronda.

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E depois há pequenos prazeres que não deixam de o ser por serem pequenos: o Ernesto foi para Miami e estou sozinho no quarto. Parece - isto está nos pequenos prazeres porque ainda não confirmei - que ter tido malária imuniza contra a chikungunya. O Fernão Mendes Pinto avança - mais um que a confirmar-se muda imediatamente de categoria -.

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Boa noite e bom ano, Don Vivo.

Presentes estratégicos

Esta história da linha de aviação Bragança - Portimão, com paragem em Vila Real, Viseu e Cascais subvencionada pelo Estado é mais uma prova, infelizmente redundante, da impossibilidade de mudar os países.

As nações - todas, sem excepção - estão organizadas para que as pessoas que detêm o poder, qualquer tipo de poder: económico, político, social o mantenham e perpetuem num estado de calma e tranquilidade.

Nalgumas, para atingir esse objectivo é necessário partilhar o poder com o povo: é o caso das democracias do Norte da Europa, dos Estados Unidos, Canadá. Noutras, basta dar-lhe frigoríficos ou, uns anos mais tarde, uma linha aérea.

Claro que no caso dos aviões não é bem o povo quem vai beneficiar; isto é mais um favor de uma parte da "elite" a outra parte de si própria.

Um presente embrulhado, claro, em "visão estratégica".

A qual será paga quando os palermas dos "visionários" já cá não estarão por pessoas que nunca dela beneficiarão.

Definição

A banalidade é uma câmara-de-ar que é preciso furar todos os dias, infelizmente.

Coincidência, tempo

Um tempo que se define como ausência de frio é o mesmo que se define como ausência de horas. Não sei se é coincidência.

Perguntas, mitologias

Cada vez que vejo a imagem de um unicórnio pergunto-me se é mitológico porque só foi enganado uma vez.

Números

2014 acaba. Foi melhor do que 2013, o que em si está longe de ser uma proeza. Satisfaz-me é saber que vai ser muito pior do que 2015.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 30-12-2014

À primeira vista dir-se-ia que o ecossistema está montado: dormir na Little Crew House, comer na colombiana (Pollo Loco, se por acaso algum leitor passar por estes lados), ouvir música, escrever e beber no Lagoonies, trabalhar. Hoje tive uma ajuda. William apareceu de manhã no estaleiro e perguntou-me se tinha trabalho para ele. Disse-lhe que não: trabalho para ele significa menos trabalho para mim.

Mas o homem estava visivelmente aflito. Ficou ali a ver-me pintar as obras vivas do C., com este "olhar infinito" de que J. me falou. É um olhar que não tem foco, como se estivessem a olhar para o tempo, e não para um ponto qualquer físico. Senti-me a comer um banquete ao lado de um faminto e não resisti, obviamente. Trabalhou bem, mereceu o meio-dia que ganhou. De qualquer forma, fazer pintura de fundos não é nem de longe o meu trabalho favorito.

Achei piada porque torceu o nariz quando lhe paguei. Era pouco. "É o que eu ganho, William". Imagino a confusão naquela cabeça: brancos a ganhar o que muitos locais recusam? No fim lá percebeu, agradeceu-me e perguntou-me se tinha mais trabalho para ele.

Não tenho, mas aposto que amanhã vai estar no estaleiro. É teimoso, e não há melhor qualidade do que a que se mistura com um defeito tão intimamente como a teimosia.

Talvez seja um bom critério para avaliar qualidades: as que estão a um fio de ser defeitos são as boas.

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Começo também a conhecer melhor o meu colega de quarto, um equatoriano a quem o patrão acaba de propor um trabalho aqui na ilha. Vive em Miami, é especialista em frio, veio para cá só para dar apoio ao princípio da época e há tanto trabalho que a empresa quer que fique.

É jovem, acha Miami "um stress" e quer vir para St. Maarten. Amanhã fico sozinho no quarto: vai a Miami vender o carro e rescindir o contrato com o senhorio. Volta na primeira semana de Janeiro.

Com sorte estarei a viver no C., que vai para a água dia cinco. Com mais sorte ainda estarei a navegar.

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Ausência de frio, ausência de calor. O clima desta ilha é a forma agradável da ausência. Há outras, suponho. Infelizmente interessam-me pouco.

Na verdade poucas são as coisas que me interessam muito.

30.12.14

Ano Novo

Um corpo na cama e uma cabeça na vida. Se possível na mesma pessoa.

Horários, vida

Uma das coisas que gosto nas Caraíbas é que os horários são feitos para gajos como eu: ainda não são dez horas da noite e o Lagoonies já está a fechar. É tarde, mas a qualidade da música explica e justifica. A festa continua, claro, alhures. Mas só para quem quer. Quem não quer paga e vai para a cama.

Exausto, como se tivesse vivido.

Por conseguinte

Tenho as mãos, o esqueleto e a pele num estado lamentável. Espero que a próxima namorada perceba que não é por ter andado a brincar.

Enfim, não é verdade: espero que a próxima namorada perceba, simplesmente. Já seria muito.

Cósmico, cómico

Deve haver uma razão, mas eu não sei qual é, pela qual o meu trabalho é reconhecido fora de Portugal e não o é no país onde eu gostaria de viver.

Hesito entre erro cósmico e erro cómico, sabendo que tendo mais para este último.

Pensar, agradecer

Pensa talvez na noite que te espera, na cama vazia, na lua quase cheia, nas estrelas, aos milhares. Ou não penses. Pensar é um erro: não faz amigos e os inimigos que traz não o merecem. Pensar é como os bons barcos: raramente merecem os donos. Dança, bebe, boxeia a vida ou fode-a, bebe-a, come-a, vive-a.

Mas não penses. Agradece. É a melhor maneira de pensar.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 29-12-2014 - II

São nove da noite, a música no Lagoonies acaba. É curioso encontrar-me aqui: foi o primeiro sítio que me fez gostar de St. Maarten e me fez pensar que isto também é Caraíbas e não apenas uma versão tropicalizada do Algarve.

Mudou de dono, de gerência, de barmaid - a brasileira que aqui trabalhava é das poucas pessoas que acho insubstituíveis - mas o espírito mantém-se.

É verdade que o espírito tem custos e regra geral vou comer à colombiana do outro lado da rua. Mas depois é aqui que bebo rum punch até ter sono. A Little Crew House (juro que nunca mais lhe chamarei outra coisa) fica no primeiro andar.

O resto não sei, e pouco me interessa.

Idade, música

- Tu não tens idade.
- Tenho. A da música que oiço.

Dançar, quase-retrato

Dança como se estivesse a boxear a vida. É a única coisa na qual ele pensa que se deve bater.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 29-12-2014

A maré sobe, a maré baixa.

Felizmente não me posso queixar: pelo menos tenho trabalho.

Não me apetece contar histórias tristes, conto uma bonita. Mesmo não sendo a primeira vez. Mas enfim, o Don Vivo, coitado, faz hoje onze anos. Pode permitir-se algumas repetições.

Ou em 2004 ou em 2006 saí de Cascais para as Canárias num Centurion 43, um barco magnífico. O armador perguntou-me quanto queria ganhar, eu disse-lhe. Ele respondeu "Isso é um salário de skipper, e eu preciso de um tripulante. O skipper sou eu. Pago-te xis". Eu aceitei, claro. Os meus problemas com dinheiro não datam de hoje, e há muito que tenho os de ego resolvidos.

Ainda não tínhamos chegado a Sagres e caíu-nos um Sudoeste em cima. A depressão era cavada, empatou por ali e o resultado foi um arraial de porrada que durou quatro ou cinco dias. Por arraial de porrada quero dizer arraial de porrada: trinta trinta e cinco nós pela proa, um barco demasiado carregado, dois gajos a bordo.

J., o armador nunca tinha apanhado uma coisa daquelas. Eu já, algumas. Discutimos algumas vezes sobre o que fazer. Ao fim de dois dias ele disse-me "contratei-te como marinheiro, mas tu sabes muito mais disto do que eu. A partir de hoje tu és o skipper e eu pago-te como tal desde Cascais".


Alguns anos mais tarde aterrei em St. Martin sem um chavo. Telefonei-lhe (ele vive aqui) e perguntei-lhe se me podia ajudar a arranjar um trabalho. Convidou-me para almoçar, expliquei-lhe que estava sem um tostão, e ele disse-me"Tenho um trabalho para ti no C., em Antigua".

Comprou um bilhete de avião e nessa tarde eu estava em Antigua, com três mil e quinhentos dólares no bolso. "Fazes as reparações e ficas com o que sobrar". Ando há anos a explicar-lhe que me sobrou dinheiro demais para o trabalho que fiz e que quero reembolsá-lo. Não responde, sequer.


Hoje fui trabalhar para o C. de novo. Foi "cicloné" (um neologismo, mesmo em francês que me atrai, vá lá saber-se porquê). A coisa foi muito mais complicada do que ambos pensávamos inicialmente.

Expliquei-lhe que faria o trabalho por metade do preço, para compensar. Nem me respondeu, como de costume. E pagou-me, como é hábito nos americanos, ao fim do dia de trabalho.

Não gosto nem desgosto de americanos. Gosto de pessoas. J. é uma das pessoas, poucas, que respeito neste meio.

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Onze anos de Don Vivo. Onze anos de vida.

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De maneira é isto: regressei à Little Crew House, estou no Lagoonies a ouvir rock e blues do melhor, fui jantar à colombiana porque é mais barato e paguei três dólares por um duche, porque saí do C. imundo e não me apetecia ir aos duches da Crew House. Amanhã às oito da manhã estarei no C. O meu cinto apertou mais um furo. Daqui por duas ou três semanas poderei trabalhar de novo na Dream Yachts. Questão de papéis e contas bancárias: merdas que os burocratas inventam para justificar o seu salário.

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Nada que um rum punch ou dois não resolvam. Nada que estar vivo não resolva. Nada que um barco, sol e vento e boa música não resolvam.

27.12.14

Terror

O dilema é simples: trabalhar para a empresa que tão gentilmente me acolhe no seio implica número de segurança social, conta bancária, residência, impostos e uma série de coisas que não tenho há alguns anos.

Coisas essas que não me fazem falta nenhuma.

Eles querem que eu tenha isso tudo: "Tu es sympa et tu bosses bien". Verbatim, e dito pelo pessoa mais antipática que jamais encontrei neste negócio. Eu queria estabilizar, mas assim de repente isto parece-me demasiado precoce. Não sei.

Não saber é um suave eufemismo. Aterroriza-me está muito mais perto da verdade.

26.12.14

Fantasmas

Se alguém me perguntasse o que fiz hoje não saberia dizer. "Não parar" é vago como descrição.

Dias como fantasmas: não se vêem, mas sentem-se.

Conselho

Embebeda-te devagar, como se estivesses a foder a vida. É a tua vez. Ela já te fodeu o suficiente, e durante muito tempo.

Pessoas, estereótipos

Dou-me mal com classes sociais, brancos, pretos, gordos, maricas, bêbedos, drogados. Só me dou bem com pessoas. Por uma razão qualquer não me entendo com estereótipos.

25.12.14

Loyauté

Il en est de la loyauté comme de l'amour. Celui qui ne sait pas être loyal à soi-même ne saura jamais être loyal à autrui.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 25-12-2014

O médico pode dizer o que quiser (verdade seja dita eu não lhe contei tudo; se tudo fosse grave ele tê-lo-ia descoberto, de qualquer forma); mas chego ao fim dos dias e sinto-os passar.

Forçoso é reconhecer que não foi apenas o trabalho: celebrei o emprego, o Natal, estar vivo e feliz. Dois dias seguidos de celebrações pagam-se. Hoje com muitas horas de sono.

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O qual dia começou com uma cena adorável e provavelmente só possível nas Caraíbas: o condutor do bus (no roiginal porque não são autocarros, mas aquilo a que em Portugal chamamos minivans, creio) estava hílare. Alguém lhe tinha pago a viagem com um dólar rasgado ao meio. O homem, perdido de riso, explicava que lhe tinham dado a nota dobrada (é muito frequente) e ele não tinha, naturalmente, visto.

Aquilo fazia-o rir a bandeiras despregadas. E com ele todo o bus, que naturalmente inventava razões e fazia comentários. A hipótese mas votada foi, claro, que era para fazer os cinquenta cêntimos (alguns trajectos custam um dólar e meio).

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E depois foi por aí fora. Um cliente cujo barco garrou, um tipo perdido de fumo cujo barco se atravessou na ponte e estava tão pedrado que não se apercebeu que o motor não estava a funcionar quando o fui ajudar a sair dali, uma francesa histérica (nem sempre é um pleonasmo, francês histérico),

Acabei eram seis da tarde e, para completar a prenda de Natal que foi encontrar este trabalho, poderei muito provavelmente deixar a Shitty Crew House amanhã.

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Hoje foi um dia louco. Espero que venham muitos mais assim. A carcaça que se desenrasque.

24.12.14

Diário de Bordos - Cole Bay, St, Maarten, Antilhas Holandesas, 24-12-2014

Estou tão cansado que nem forças tenho para beber o rum punch que o Matthieu sabe, finalmente, preparar como eu gosto.

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Hoje o dia começou com as manobras, como estava previsto. Ao fim de duas horas e meia o director da empresa pediu-me para ir ao escritório. "Preciso de falar contigo. Podes vir ao escritório, por favor?"

Já não faço manobras há algum tempo. As primeiras não foram tão fluidas e bonitas e limpas como eu gosto de as fazer. Não estava muito confiante.

Era para me dar mais trabalho. Vou às BVI buscar um barco, trazê-lo para aqui, embarcar com clientes, levá-los às BVI... Enfim, trabalho até dia 2 de Janeiro. Ou seja: se passar mais esta prova "A stew é brasileira; é uma chata. "Não tens camarote para dormir". "O salário é baixo" (isso já sabia. Mas como por enquanto não sei quanto ganho pouco me preocupa). "O barco está uma merda".

No fundo é mais um exame. "A minha função na empresa é elevar o nível".

Não é difícil. O nível da empresa é baixo. É uma empresa grande. Tão grande que posso sonhar com um trabalho em terra um dia. Quero deixar o mar, mas não completamente. Como uma namorada de quem nos tornamos amigos.

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Gosto do que faço. É inegável, e é uma sorte, uma dádiva. Hoje, depois das manobras, passei o dia a fazer manutenção: de mudar lâmpadas a mudar fogões, apertar parafusos, fazer check-ups a barcos, envergar velas e ensinar locais não parei.

Nunca serei rico: interesso-me mais pelo que faço do que pelo que recebo.

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Vai ser um Natal solit+ario e feliz. Que belíssima combinação.

Amabilidade e filha da putice

A filha da putice é sempre a mesma, igual a si própria. O que separa um filho da puta de outro é a consciência que cada um tem da sua condição. Um filho da puta que se sabe filho da puta não deixa de o ser. Torna-se, simplesmente, um filho da puta amável.

Enfim, não tão simplesmente como isso.

Liberdade, justiça

Liberdade e felicidade não são sinónimos, facto que mais não faz do que demonstrar, uma vez mais, que a vida não é justa.

Concurso

O dinheiro acaba, a esperança não.

E esta acaba sempre por ter razão.

Paralelos

"Arbeit macht frei".

Wein auch.

23.12.14

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 23-12-2014

É preciso imaginar um céu azul que oscila entre o violeta e o branco. O dia acaba. Os cumulus ainda são brancos nas margens mas já são cinzento escuro por baixo. O vento cai, a água lamenta-o, a profusão das luzes da noite faz-nos ver que talvez, no fundo, a luz do dia seja monótona.

Matthieu, o jovem empregado do Lagoonies já sabe fazer o rum punch como eu gosto.

Amanhã tenho trabalho.

A Lua é uma vírgula, em crescente.

Também tenho trabalho para dois ou três dias entre o Natal e o Ano Novo.

Violeta escuro. As núvens deixaram de ter luz: são apenas sombras.

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Hoje fui fazer um exame médico. O médico que me examinou diz que tenho uma condição física invejável "para a idade que tem". Peço-lhe que diga isso aos meus potenciais empregadores e lembro-me de uma pessoa que me dizia "tu não tens idade".

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Amanhã vou passar o dia a manobrar barcos. O senhor que me contratou pergunta-me "Estás à vontade com manobras?" "São a minha alegria e o meu orgulho". Gosto de correr riscos. A Marina de Fort Royale é apertada e com vento uma seca.

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Hoje não posso dormir no trawler. R. tem a namorada a bordo.. Regresso à Shitty Crew House. "Mesmo quarto, mesma cama", diz-me C., o gerente da coisa. Deve ter adivinhado que preciso de estabilidade.

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Não há luar: a Lua mal se ilumina a si própria.

Maude

I

Ontem fui almoçar com Maude e o namorado. Maude é a minha mulher. Somos casados há dezasseis anos. O rapaz é bastante mais novo do que nós. Ela tem quarenta e três e eu mais dois. Ele deve ter vinte e poucos. É pintor e expõe as obras no metro. Aparentemente foi assim que se conheceram. Maude sempre gostou de arte e de artistas. Ignoro o que a levou a casar-se com um piloto de aviões.

Gostei do rapaz. Tem o olhar mortiço e profundo dos criadores que criam e fala igualmente devagar, como se cada frase fosse um marco na sabedoria da humanidade e devesse ficar registada. Chama-se Jules, ou Julien, não me lembro bem. Tenho uma péssima memória para nomes. Talvez seja desinteresse, no fundo. Ou arrogância. Não sei.

Fomos almoçar a uma daquelas esplanadas do Campo Pequeno. Maude levava os óculos escuros redondos, que lhe cobrem metade da face e a tornam parecida com Janis Joplin. O rapaz ia com o uniforme de artista. Falou pouco. Eu estava com a farda de voo – tinha acabado de chegar e achei pena trocar de roupa. Assim sempre dei ao miúdo mais uma razão para se rir de mim. Os artistas não gostam de fardas. Excepto as deles, claro, mas este ainda é demasiado jovem para saber que está fardado. Pensa que está vestido–. Ele não sabe que eu sei. Maude sabe, porque Maude sabe tudo o que eu sei. Nunca falamos nos seus amantes. Nem nas minhas, mas são muito menos do que os dela, penso. Não os conheço todos. Desta vez aceitei ir almoçar porque Maude comprou uma ou duas telas ao rapaz e queria que eu o conhecesse. Também conheci o músico e o actor. Imagino que tenha havido mais, mas não os encontrei. O músico era simpático. Tocava bem – no metro, claro –. Talvez tivesse sido melhor comprar um carro à Maude antes de me aparecer com a fauna toda dos túneis em casa.

Há muito tempo que o amor entre Maude e mim foi substituído por uma amizade profunda, sexuada, cheia de prazer e vazia de paixão. A única condição é eu não saber. É-me indiferente que toda a gente saiba desde que ninguém me possa vir dizer que fui enganado.

O almoço foi agradável. O rapaz é frugal, Maude estava radiante e eu aproveitei para falar do clima, um tema que me aborrece mais do que as horas de sono da minha primeira empregada. Jules - ou Julien? – é culto, tem conversa (se bem um pouco lenta para o meu gosto) e não estava nem demasiado à vontade nem encavacado. Enquanto falávamos pensava que o rapaz me devia estar grato: dava-lhe uma mulher soberba e algumas razões para pensar que fazia bem em enganar-me com ela.

"Sabe estar, não achas?" resumiu Maude depois do almoço, já a caminho de casa.

........
Maude está sentada na borda da cama, pernas encolhidas, mamas esmagadas contra os joelhos. Pinta as unhas dos pés.

Quando acabar vai deitar-se de costas, coxas afastadas, pés em leque perfeito, simétricos, a arejar. Com a mão direita começará a masturbar-se. A mão esquerda ficará pousada no lençol, entre nós. Pouco a pouco vai suspirar; os suspiros aumentarão de intensidade; eu deixarei o livro que estou a ler e voltar-me-ei. Ela pegar-me-á na mão direita, pô-la-á no seu ventre e dir-me-á "Põe a foice em seara alheia", ou coisa que o valha. Maude consegue erotizar a mais anódina das expressões.

Em breve as nossas mãos estarão juntas; a sua mão esquerda estará algures no meu ventre. Eu continuarei deitado de costas; Maude esmagará a minha mão contra o seu monte-de-vénus, redondo e proeminente, de pentelheira farta. Começarei a entesar-me.

……
Está deitado de costas, pau feito a apontar para o tecto, quase vertical. Sento-me em cima dele, puxo-lhe a pila para a frente e enterro-a em mim. Aponto para o meu umbigo e digo-lhe Até aqui. Até aqui. Até aqui. Ponho as pernas por cima do peito dele. Gosto quando ele me mordisca os dedos dos pés enquanto o sinto no meu ventre. Até aqui. Já me vim uma vez. Vir-me-ei uma segunda e outra e outra.

Ele pega-me nos tornozelos, afasta-me ligeiramente as pernas, puxa-me para a frente e para trás. Sinto-lhe os tomates nas nádegas. Sei que isso o magoa um pouco e que ele conta com essa dor para atrasar o orgasmo.

Gosto de saber que ele me olha para a pentelheira, que vê o membro enterrado em mim até aos copos, que me vê feliz como se fosse a primeira vez. Não é. É melhor.

Diz-me "Ajuda o senhor Bispo" e eu obedeço. Com a mão direita masturbo-me de novo. Com a esquerda acaricio-me os seios. Viramo-nos de lado.

Ele gosta de acabar assim, os meus tornozelos nas mãos fechadas, para trás e para a frente e para trás e para a frente não cada vez mais depressa mas cada vez mais fundo, cada vez mais fundo, cada vez mais até aqui.

Sai depressa de mim. Não é como Jules, que gosta de se deixar ficar e de o tirar quando já está mole.

Amo-o, mas ele não sabe. Pensa que sinto por ele o que ele sente por mim: amizade.

Não é verdade. Amo-o.

II
Já alguma se apaixonaram por alguém que à partida não tem nada em comum convosco? Nada em comum com vocês ou aquilo que procuram no outro? Foi isso que me aconteceu com ele. Sempre gostei de artistas, de uma vida desorganizada, sem outras expectativas que não fossem criar, gozar, aprender, conhecer "pessoas interessantes" (as aspas são consequência destes dezasseis anos com ele, claro. O seu cepticismo contaminou-me. "Pessoas interessantes só existem nas cabeças de pessoas que as têm vazias. Toda a gente é interessante", dizia-me). Queria um homem ao meu lado sempre. Pensava que as minhas ideias se transformariam milagrosamente em livros, contos, letras de canções, pinturas, fotografias; sem trabalho, sem esforço, por obra e graça da inspiração e do talento.

Conheci-o num jantar. Era um jovem piloto com um sentido de humor demolidor, que defendia sozinho as suas ideias contra todos os presentes, educadamente, com um sorriso e uma resposta lapidar àquilo que visivelmente lhe parecia uma antologia de tonterias.

Não me lembro qual o tema de discussão desse primeiro jantar. A cena repetiu-se várias vezes, até ele se cansar e não falar se não do tempo e de aviões – duas coisas que, dizia, o apaixonavam. "Principalmente o tempo, a sua constante mudança, a sua imprevisibilidade" –.

Foi contra vontade que me apaixonei por ele. Era um homem decente, provavelmente o mais decente que jamais conheci. "Decente? Pior do que isso só ser cornudo", disse-me um dia. "Pensava que ser cornudo te deixava indiferente". "Deixa. É isso: não há nada pior do que ser decente".

Mas sim, era um homem decente. Oferecia-me flores, trazia-me constantemente prendas – joalharia, roupa – das suas viagens, amava-me maravilhosamente e, sobretudo, nunca me fazia perguntas. Um dia fiz-lho notar. "O que quiseres que eu saiba dizes; o que não quiseres eu invento", respondeu.

Demorei muito tempo a habituar-me a essa liberdade. Nos primeiros anos da nossa vida comum – vivemos três anos juntos, antes de nos casarmos – só pensava em deixá-lo. E casei-me cheia de dúvidas. Nunca o tinha enganado, se bem enganar não seja o termo adequado.

Um dia falámos no tema. Oh, muito por alto e indirectamente, de raspão, como se não fosse nada com ele, ou comigo. Nessa altura estávamos casados havia dois anos, se tanto. Mas tínhamos passado por muitas coisas juntos: uma separação curta e dolorosa para os dois, uma gravidez falhada para mim – que de resto me fez saber que nunca poderia vir a ter filhos e podia deixar a pílula – a morte da minha mãe, um acidente em que ele esteve envolvido e no qual poderia ter morrido.

É demasiado, para cinco anos de vida comum. Não precisava de um marido a dizer-me que podia fazer o que quisesse, desde que ele não soubesse. Um marido que naquele dia eu amava um pouco mais do que alguns anos antes; um marido ao qual pouco a pouco, devagar, me tinha habituado; que eu nunca tinha enganado. Porque viria ele agora com essa conversa, a propósito de um filme, ou de um livro, ou de uma coscuvilhice, não me lembro? Mas aquilo não foi bem uma conversa. Foi mais uma informação, como se estivéssemos numa estação de comboios e um altifalante dissesse que o próximo comboio ia chegar atrasado.

Não me lembro do que lhe respondi.

A primeira vez que tive um caso foi uns largos meses depois. O meu marido – já conseguia usar esta expressão sem sentir um arrepio – estava fora, num voo para o Brasil. Encontrei António numa festa. Escrevia, tinha muita graça, não tinha um chavo, e era péssimo na cama. Repararam que disse "tive um caso". Com António descobri que não estava a enganar o homem que, sim, amava. Informações só superficialmente contraditórias. E com as quais vivo desde então.

Aprendera, finalmente, aquilo que o meu marido me dizia havia anos: não se deve misturar o amor com mais nada. Como a água, que se pode misturar com tudo mas é melhor quando é pura.

António era brusco na cama, vinha-se depressa, parecia que está a fazer amor sozinho. Pouco me importa: não é por falta de bom sexo que fodia com ele. Era por não me faltar nada.

III
Um gajo pode ser bom naturalmente, por obra e graça da natureza, por ser anjinho; ou porque já foi mau: fez demasiadas asneiras, demasiados erros, maldades e aprendeu. Estou longe de ser o gajo decente que todos pensam que sou. No qual me transformei depois de ter feito muita merda. Não posso dizer que tenha sido de propósito. Não foi. Comecei simplesmente a empatizar com os outros, a perceber que as minhas acções tinham consequências, a sofrer demasiadas vezes as maldades de que ia sendo vítima. Pouco a pouco – o processo foi gradual, lento, por vezes imperceptível – transformei-me num "homem bom" (aspas porque repito o que milhares de vezes me disseram. Tu és um homem bom. You are a good man.Eres un hombre bueno. Tu es un chic tipe. Disseram-mo em todo o lado, em todas as línguas). Ando há cinco anos com Isabel. Ao princípio era suposto ser uma dessas relações “picada de mosca”, insensível, sem consequências, um banal affaire entre um piloto e uma hospedeira: queca em Nova Iorque, passeio no Rio, compras em S. Francisco. Mas um dia pedi para voar de chave com ela (significa fazer sistematicamente voos em conjunto com outro tripulante) e desde aí perdi o controlo. Passo mais tempo com Isabel do que com Maude. Penso nela mais vezes, toco-lhe e falo-lhe e rio-me com ela mais do que o faço com Maude. Se alguém me convida para um jantar e diz "Traga a sua mulher" é em Isabel que penso, não em Maude.

Maude... Quando penso no que este nome me fez sonhar e no pesadelo que hoje se tornou. Odeio tudo o que ele evoca para mim, a começar na minha cobardia, a continuar pela minha duplicidade, a acabar nas memórias que tenho dos tempos em que a amava.

Como cheguei aqui? Como posso não amar a pessoa que tanto amei? Como posso mentir-lhe? Não é como. É porque. Como eu sei. Porque não.

IV.
O vento predominante na costa portuguesa durante o verão é o norte.

A leste de Portugal o centro da Península Ibérica é seco, pouco arborizado. A terra aquece e com ela o ar. Este como tudo o que é quente sobe e a pressão atmosférica baixa. É assim que começam todas as depressões térmicas: ar quente a subir. A oeste está o anticiclone dos Açores. É provocado por ar frio que vem do Norte e desce porque está mais frio do que o ar que o rodeia.

Em torno de um anticiclone o ar gira no sentido dos ponteiros de relógio. Em torno de uma depressão gira no sentido oposto.

Portugal fica exactamente no ponto de encontro destes dois fluxos de ar opostos, antagónicos. É por isso que temos a Nortada em Portugal, e que à noite ela cai e durante o dia vai refrescando.

V
“Lisboa, 04-12-20…"

Meu querido,

Desculpa começar assim.

A Isabel morreu hoje, num acidente de automóvel. E eu vou deixar-te. Não me atirarei, como ela, da estrada abaixo nessa serra de Sintra da qual, disse-me ela – um pouco inutilmente – vocês tanto gostavam.

Hoje bateu-me à porta eram onze da manhã. Fui abrir. Estava muito calma, sorridente, mas não sabia como começar. Visivelmente não tinha pensado bem o que dizer.
– Bom dia. Chamo-me Isabel. Sou a… a… a… Tinha uma relação com o seu marido.
– Tinha? Já não tem? Entre.
– Tenho… Isto é, não tenho… Não sei. Gostava de ir almoçar consigo, se não se importa.
– Não me importo nada, mas não quer beber qualquer coisa? Ainda é cedo para almoçarmos.
– …
– Entre, Isabel. Há anos que sei que ele não me é fiel. Eu tão pouco, de resto. Mas até aqui tenho sido eu a apresentar-lhe os meus amantes. Ele nunca me apresentou nenhuma das suas… relações. – Fiz uma pausa antes de relações. Perdoar-me-ás, espero.
– Obrigado.

Ela bebeu um copo de vinho branco e eu um café. Antes de nos separarmos – disse-me que me levaria no seu carro, mas depois teria de vir de comboio porque tinha um compromisso logo ao princípio da tarde – pediu-me o número de telefone, para o caso de ser preciso. Dei-lho, ela ligou-me, eu respondi. Ficámos com os números uma da outra. Combinámos encontrar-nos à uma e meia num restaurante de Colares.

Está – estava, desculpa – contigo há cinco anos. Sentia-se muito ridícula por precisar de me contar estas coisas todas. Não lhe disse que não precisava de me contar nada. Visivelmente não tinha preparado um discurso. Quando cheguei ao restaurante ela já lá estava. Comemos um ensopado de borrego a meias. Pensei que se lá estivesses seria o que pedirias também. Estavas, claro.

Falou-me dela, só dela; ou quase só. Da sua infância difícil, de não acreditar que a relação contigo fosse durar, de quão culpada se sentia por te amar quando sabia que tinhas uma mulher “maravilhosa” (cito-a, como sabes). De não aguentar mais “esse amor”.

– Compreendo-a, Isabel. Ele é um homem decente, não é?
– É. O homem mais decente que já conheci.
– Vocè sabe que ele detesta que digam isso?
– Sei. Diz que ser decente não vale o esforço que custa. Que é uma patetice.

O ensopado estava excelente. Imaginava-te à mesa – não, via-te –. Antes de combinarmos o restaurante em Colares sugeri-lhe a esplanada do Jardim da Estrela, mas ela disse que tinha o tal compromisso e queria estar à vontade com o tempo.

Parece estúpido dizer isto agora, nestas circunstâncias, mas o almoço foi bom. Ela era adorável, bonita, inteligente (sei que preferirias a ordem inversa). Lutou muito, “contra tudo, todos e sobretudo eu própria” para conseguir ter uma vida “normal”. Entre a vida “normal” e a vida dela estava eu, claro. “Ainda bem que trouxe o meu carro”, pensei. Uma injustiça que agora lamento.

Não sofrerei tanto como tu com esta morte. Mas sofro bastante. “A vida não nos pertence inteira”, disseste-me tantas vezes. Exprimia-se bem, claramente, com lógica e sequência, sorrindo como se tudo aquilo fosse uma brincadeira, uma ilusão, a história de uma amiga que conhecera vagamente.

Voltei para casa. Ela calculou bem o timing: a policía ligou-me menos de uma hora depois de eu chegar. O meu número era o único que estava no seu telefone, que ela tinha tido o cuidado de pôr numa caixa, bem protegido, para resistir à queda do carro. Imagino que tenha sido a única parte que ela estudou antes. Não tinha documentos nenhuns com ela.

Desculpa-me por favor deixar-te nestas circunstâncias. Não posso fazer nada. Sabes que te amei, que te estou grata por estes anos todos de prazer e felicidade e amor que me deste. É infantil, dirás, fazer sofrer quem nos ama. É. Mas só os adultos conseguem fazer sofrer quem gosta de nós porque gosta de nós. Estou-te grata por me teres ensinado o que é ser livre. Por teres feito de mim a mulher livre que hoje sou. A aprendizagem foi difícil. Penso – ou será espero? – que em breve encontrarás uma outra Isabel, uma outra Maude.

Com afecto, ternura, apego, carinho,

Um abraço da

Maude”

VI
Relembro esta história numa ilha do Oeste do Canadá, onde vivo com Maweral, uma jovem Filipina que encontrei num porto qualquer dos Estados Unidos. Maweral cozinha, lava a roupa, limpa a casa e faz amor com devoção e silêncio. Tenho um barco chamado HADES. Quando chegou Maweral não sabia o significado. Um dia perguntou-me e eu respondi-lhe “Nada de especial. É um rio que todos temos à porta”. Pouco tempo depois de chegarmos à ilha disse-me “Sei o que é Hades”. Olhei-a surpreso – pouco falávamos para além das coisas práticas do dia a dia –. Estava a fazer o almoço. Muito pequenina, com cabelos pretos como o mar numa noite sem lua e sem vento. Ensinei-lhe português, que ela fala baixo, lentamente. “Lembra-te: a tua vida não te pertence inteira”.

St. Martin, 23-12-2014


Para a T. com afecto, ternura, apego, carinho e amizade,

22.12.14

Feliz Natal



Por esta altura o macaquinho da fotografia está com alguns dezasseis anos.

Os votos de Festas Felizes a todas e todos os leitores do Don Vivo - e por extensão aos do Facebook também - são de hoje.

De sempre.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 22-12-2014

O dia começou mal e não melhorou. Mas podia ter piorado e pelo menos não piorou. Falta-me uma démarche para acabar esta fase da procura de emprego, cada vez mais difícil. Idade e falta de qualificações formais. A meu favor a experiência e os contactos. A ver quem ganha.

Agora começa a pior fase: a corrida entre um telefonema ou um e-mail e o fim do dinheiro. É uma espera chata, dolorosa. Ainda por cima a meta aproximou-se porque os armadores do trawler vêm aí inesperadamente e o Amel tem um charter para breve - isso já sabia -. O resultado da corrida vai ser definido pelo C. ou por uma da meia dúzia de companhias que contactei.

Não é tanto não saber lidar com o imprevisto; é mais estar um bocadinho farto dele.

........
Felizmente o quadro presta-se pouco ao pessimismo: à minha frente a laguna, barcos, o sol que se põe como que empurrado pelos alísios, os santos alísios. A música é boa e não está alta, os cigarros que o stress destes últimos tempos infelizmente recrutaram como aliados não são caros e o rum, cuja hora está quase a chegar tão-pouco.

Mais tarde ou mais cedo alguma coisa aparecerá. Não é de longe a primeira vez - e no fundo de mim mesmo espero que não seja a última - que o meu horizonte temporal está reduzido a um dia ou pouco mais.

.......
St. Martin é uma ilha à volta de um mar. Como certas vidas.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 21-12-2014

A cada hóspede da Little Crew House são dadas quatro chaves: portão principal, porta do quarto, cozinha e duches. Os duches e a cozinha são maus, mas precisam de chave "por causa das pessoas que não estão na pousada".

Hoje é a última noite que lá fico. Amanhã tenho a escolha entre um Amel, um trawler e, se for para a água na terça o meu velho conhecido C., no qual fiz uma viagem e uma amizade memoráveis.

Costumo dizer que sou um estrangeiro onde quer que esteja, mas não é verdade.

........
O Amel e o trawler estão entregues a G. um brasileiro e português cuja família viveu em Lourenço Marques. O pai era director de uma empresa de petróleo. Foi para o Brasil depois da revolução "com a roupa que [tínhamos] no corpo"e fez uma fortuna. G. tem cinquenta e quatro anos. Veio para St. Martin para o baptizado de um afilhado mas não quer voltar para o Brasil. Os barcos pertencem a amigos dele que lhos deram para que ele tomasse conta deles aqui.

Entretanto vai fazendo uns trabalhos aqui e ali - mais para se manter ocupado do que por precisar de trabalhar, parece-me -. Cruzámo-nos a atravessar a rua para ir ao chinês. Cumprimentou-me em português, não porque me conhecesse mas porque não fala inglês. É uma simpatia, adorável como só os brasileiros sabem ser. Mesmo assim preferia que o C. fosse para a água. Quero estar sozinho. Assim que encontrar trabalho nunca mais terei um momento de solidão. Além disso o C. vai para Marigot, no lado francês.

Há vários tipos de solidão, exactamente como os silêncios são muito diferentes uns dos outros. Estou feliz com aquela a que finalmente cheguei. Ou veio a mim, não sei.

........
Hoje é domingo, os lolos estão fechados. Tive de vir comer ao Yacht Club. Parece que ainda estou em Galveston. Comida de plástico - consegui o prodígio de comer uma jerk chicken que não sabia rigorosamente a nada - empregadas a perguntar de cinco em cinco minutos "está tudo bem with you, sir?" e, no fim, uma conta desproporcionada à qual vai ser preciso adicionar a gorjeta.

Vou começar a trabalhar aqui, mas assim que puder mudo-me para o sul, para as minhas Caraíbas: St. Vincent, Grenadines, Union Island, Deux Pitons, Bequia.

Bequia.

21.12.14

Cegueira

Ouvir um imbecil expor a sua imbecilidade ajuda a perceber o que é a cegueira.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 20-12-2014

"And Anticlea came, whom I beat off, and then Tiresias Theban,
Holding his golden wand, knew me and spoke first:
'A second time? why? man of ill star,
'Facing the sunless dead and this joyless region?
'Stand from the fosse, leave me my bloody bever
'For soothsay.'
               And I stepped back,
And he strong with the blood, said then: 'Odysseus
'Shalt return through spiteful Neptune, over dark seas,
'Lose all companions.' Then Anticlea came,
...
and he sailed, by Sirens and thence outward and away
And unto Circe."

Ezra Pound, in "Selected Cantos of Ezra Pound", Faber and Faber Limited, London, 1967

Não são precisas grandes explicações. Nunca li Pound com olhos de ler. No princípio do ano comprei este pequeno volume. Começo-o agora e sai-me isto. Há um tempo certo para tudo. Podemos comprimi-lo, como fez o London, que vivia num dia o que os outros vivem num mês. Ou esticá-lo, como eu (toutes proportions gardées, claro).

Não posso dizer "No meu tempo...". É uma dádiva.

20.12.14

Diário de Bordos - St. Martin, Antilhas Francesas, e St. Maarten, Antilhas Holandesas, 18 a 20-12-2014

Vamos começar pelo princípio: vou pagar caro esta sucessão de viagens de avião agradáveis, com espaço para as pernas e para dormir.

........
E agora?

Estou num lolo chamado Chez Coco. Não é o meu favorito mas é o único que está aberto. E tem karaoke, coisa que particularmente detesto.

A rapariga do Arawhak ofereceu-me o segundo ti'punch. À saída do aeroporto encontrei um táxi que me trouxe por um preço correcto. É o vice-presidente da associação de táxis. Pediu-me que se algum táxi me levasse mais de vinte dólares para me levar do aeroporto a Marigot lhe telefonasse.

O Centr'hotel tem quartos.

"Não sou grande fan de karaoke", digo à rapariga do Chez Coco.
"És fan de quê? De escrever?" responde com um sorriso rasgado.
"Tens vinho aberto?"
"Se não tiver abro-o para ti".

Estou nas ilhas.

O dono do Arawhak lembra-se de mim. Recebe-me com um sorriso e um aperto de mão franco, forte, aberto.

........
Cortei o cabelo, fiz cartões de visita, comprei pólos brancos e adaptadores para as tomadas, tenho um número de telefone local.

Não está demasiado calor.

E agora?

..........
Os duches da My Little Guest House são uma merda. Toda a My Little Guest House é uma merda, de resto. Mas custa metade do preço do Centr'hotel (ou seja, é caríssima. Tem muito menos de metade da qualidade).

Gosto do nome. Podia chamar-se My Shitty Crew House, por exemplo. Ou My Lousy Crew House.

E posso cozinhar.

Se bem hoje ainda tenha ido jantar à tasca da colombiana, do outro lado da rua. Mas já tenho pequeno-almoço para amanhã. E todas as refeições serão feitas e comidas na My Shitty Kitchen House.

Vou dormir num quarto colectivo. Não ter dinheiro é uma viagem no tempo.

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A Little Crew House fica na Lagoon Marina. por baixo tem um café / bar / restaurante chamado Lagoonies. Há três anos trabalhava aqui uma brasileira linda como se quisesse provar que a evolução por vezes acerta. Que por vezes há um bocadinho de sentido no acaso.

Agora pertence a um francês e só lá trabalham franceses e uma miúda que não é francesa e me põe a mão nas costas cada vez que me pergunta se quero alguma coisa. Pergunta vezes de mais. Hoje [sexta-feira] tem música ao vivo. Um bom guitarrista, uma cantora, um baixo e um bateria assim assim. Estou à espera que acabe para me ir deitar. Tocam demasiado alto e tenho os ouvidos aos gritos. Querer dormir com este barulho é como ir à praia e não querer ficar cheio de areia.

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St. Martin deve ser um maravilhoso caso para se estudar a convivência de duas culturas diferentes. Holandeses e franceses partilham a ilha desde 1648. Nunca houve fronteiras dignas desse nome - sempre se circulou livremente entre a "parte francesa" e a "parte holandesa". O dialecto local é comum. A ilha é vista como uma cidade, da qual as aldeias ou aglomerados são os bairros, independentemente de estarem de um ou do outro lado da linha.


Mas as diferenças são grandes, espantosas. Quem conhece a França reconhece-a na parte francesa. O memsmo não se passa com a Holanda e a parte holandesa, muito mais caótica, vibrante, suja, rica, pobre.

Em St. Martin come-se melhor. Em St. Maarten mais variado. Os negócios estão do lado holandês. A qualidade de vida do lado francês. Os holandeses interferem muito pouco no governo da ilha. Os franceses começaram agora uma tímida, muito tímida tentativa de descentralização - que a administração local aproveitou para criar um imposto, claro (que de resto se compreende. Estes territórios viviam à custa de transferências da "metrópole", daí a qualidade de vida) .

É um pouco como ter dois jardins lado a lado: um à francesa e outro à inglesa.

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A mistura de chateado e excitado com a qual vim para aqui começa a esbater-se. Fica a excitação, a luta, a adrenalina, o desafio.

Barcos, armadores

"Os bons barcos raramente têm os donos que merecem" diz-me L., meu vizinho em Galveston.

Detesto confirmar estas ideias pessimistas,  estas visões cínicas da realidade.

17.12.14

Limites

Os limites da palavra são os mesmos do que os do silêncio.

Diário de Bordos - Galveston, Texas, Estados Unidos, 16-12-2014

O motor de arranque chegou com dois dias de atraso, só. O motor arrancou à primeira; não foi preciso mudar ou limpar filtros. A caixa funcionou - mal, mas funcionou -; o T. L. libertou-me mais cedo do que eu esperava.

Amanhã parto de Galveston. Poucas saudades levarei comigo: uma bicicleta de titânio e carbono que não só me fazia lamentar chegar aos destinos mas também, bastas vezes, me fez passá-los. Uma barmaid que desconhece Alexanders, Talisker e provavelmente outras coisas que não perguntei mas é linda de se morrer especado à frente dela. E - sobretudo - uma embarcação sublime cujos armadores pensam que eu estive a preparar para ser vendida mas na verdade estive a preparar para morrer (tentei fazê-la digna, pelo menos: vai limpa como nunca esteve e com uma série de sistemas a funcionar).

É um barco lindo de se viver por ele. Vai ficar na água uma eternidade, finda a qual - todas as eternidades têm um fim - os armadores vão pensar que tê-lo em terra é mais barato. Ali vai ficar a apodrecer até que um atrasado mental ou um marinheiro (não é um pleonasmo, embora pareça) veja nele um bom negócio (no primeiro caso) ou uma coisa linda, linda, linda (no segundo, e é qu oe impede o pleonasmo).

Aí será comprada por uma ninharia e maltratada, por uma fortuna.

........
Não vou para onde queria. Vou para onde posso. Quero mudar de vida, mas a vida não quer que eu a mude. Ao contrário das mulheres e do dinheiro o mar pega-se a mim como se, sem ele, eu não respirasse ou transpirasse. Ou pensasse. Ou vivesse.

Amanhã à noite estarei em St. Martin.

Devo dizer que a perspectiva de mudar de vida depois de uma época nas Caraíbas não me desagrada inteiramente. Nestes últimos dois anos fiz duas viagens: uma travessia do Atlântico problemática e  uma viagem de San Francisco a Panamá que serviu para compensar, ab ante, tudo o que seguiria.

Não chega. Preciso de acordar por baixo dos Deux Pitons, beber runs no meu amigo Lúcifer em Bequia, comer as accras do Comme à la Maison e o boudin créole do vizinho na Martinique, o philly steak da Sandra em Antigua, mergulhar nas Tobago Cays, fumar charros em Union Island na tasca do meu amigo rasta, beber rum punch no Robert em Mayreau ou no Mad Mongoose em Falmouth Harbour.

Preciso, enfim, de recompor o passado, antes de começar um futuro.

Um verso de Brel que li recentemente: "Il nous fallut bien du talent pour être vieux sans être adultes".

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Último jantar em Galveston. Vim ao Stuttgarten. Amanhã à noite estarei no Arawak a beber um ti' punch e pensarei que o mundo é sempre "mais pequeno do que o viajante que nele viaja".

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Amanhã esperam-me três horas no aeroporto de Miami. Ainda haverá o café mexicano? Ainda terá as margaritas gigantes?

Porque é que o meu mundo é tão pequeno?

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Há uma série de coisas que não fiz em Galveston: não andei na montanha russa (tem um loop); não visitei o submarino do museu naval e não comi um bom chilli. Preciso de razões mais fortes para cá voltar.

16.12.14

Banalidades de base

Quanto mais excepcional uma pessoa se vê ou se dá a ver, quanto mais especial se julga, mais vulgar e banal se descobre ao fim de meia dúzia de conversas. Ou menos.

15.12.14

Paráfrase

Aquilo que não pode ser compreendido não deve ser dito.

14.12.14

Genes, neardenthal

Não percebo muito bem o recente debate sobre a possível remanescência de genes do neardenthal no homo sapiens. Conheço tantos neardenthal puro-sangue que me admiro muito mais com a sobrevivência dos genes sapiens.

13.12.14

Diário de Bordos - Galveston, Texas, Estados Unidos, 12-12-2014

Nada mais há a fazer se não esperar. É a pior coisa do mundo, esperar. Aqui tem várias circunstâncias agravantes: esperar sem saber até quando; em Galveston, cidade que quanto mais conheço mais me desgosta; e sem receber, porque a culpa é minha, só minha e não dos meus (de resto adoráveis) patrões.

De modo aqui estou, a contar os cents e a pensar no que farei quando regressar a Portugal. Estou ansioso - mudar de vida é ansiógeno, por muito que o queiramos e esperemos.

Enquanto espero oiço Joe Cocker, um senhor que devia ter ouvido mais há muito tempo e não é só You are so beautiful ou With a little help from my friends (de resto canções muito bonitas, de passagem seja dito. E que prefiro de longe cantadas por ele).



In America you'll get food to eat
Won't have to run through the jungle
And scuff up your feet
You'll just sing about Jesus and drink wine all day
It's great to be an American

Ain't no lions or tigers-ain't no mamba snake
Just the sweet watermelon and the buckwheat cake
Ev'rybody is as happy as a man can be
Climb aboard, little wog-sail away with me

Sail away-sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay
Sail away-sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay

In America every man is free
To take care of his home and his family
You'll be as happy as a monkey in a monkey tree
You're all gonna be an American

Sail away-sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay
Sail away-sail away
We will cross the mighty ocean into Charleston Bay

........
Há muito quem pense que os barcos fazem barulho, ou barulhos se preferirem. Não é bem verdade. Os barcos conversam - entre si quando não têm ninguém a bordo, com os tripulantes quando os têm -.

É importante ouvi-los, do mais inocente murmúrio às irritantes queixas das adriças nos mastros. Eles não falam por acaso.

........
Galveston tem duas categorias de habitantes: os BOI e os IBA. Born on the Island e Islander by adoption. Não há limites para o chauvinismo nem reduto que lhe esteja imune.

Quase - retrato

Não tem onde cair doente, quanto mais morto.

11.12.14

Pacto

Fiz um pacto com a tristeza. Ela deixa de me perseguir e eu de a procurar.

Inimigo interior

As ideias preconcebidas são os piores inimigos que se pode ter. 

Não podemos viver sem elas, mas provocam nove em cada dez erros que cometemos.

8.12.14

Raiva, despeito

Vistos de fora a raiva e o despeito podem confundir-se.

De dentro também.

6.12.14

Nas tintas, em sentido lato

Um gajo sabe que qualquer coisa está errada quando não se lembra do último gin tónico que bebeu; e qualquer coisa certa quando se está nas tintas para o que o Facebook vai fazer com os dados que dele recolher: não vai com eles ganhar para pagar os milissegundos que levar a compilá-los. (Gosto deste verbo. compilar. Se pudesse usá-lo-ia mais vezes). São planos diferentes, claro. Do corpo ao bolso vai um abismo. O qual agora se tenta preencher com mais vinho e menos gin tónico, com mais FB e menos do que quer que fosse antes dele.

No fundo um gajo está-se nas tintas e pensa na anedota do cavalo que está a ser vendido. Quando o vendedor o solta no prado para que o comprador o veja galopar o cavalo espeta-se em todas as árvores que lhe aparecem pela frente. "Este cavalo é cego", protesta o potencial futuro dono. "Não. O cavalo não é cego. Está-se nas tintas, somente (he just doesn't give a fuck, no original)".

Um gajo não tem árvores à frente. Tem ausências. Mas está-se nas tintas.

Um gajo é livre, outra vez. Que importam as árvores, as ausências, o raio que o parta ou a puta que a pariu? Pouco.

"Pouco" é a essência da liberdade: se alguém a pudesse espremer sairia "pouco": dinheiro, tempo a perder com o muito dos outros, pouca roupa, paciência, pouco com que preocupar-se. Pouco.

A liberdade é um conjunto de poucos que adicionados fazem "tudo".

O calor voltou a Galveston; o trabalho prolongou-se por mais uns poucos dias; pouco há a dizer. E menos ainda que fazer. Um gajo está-se nas tintas. A ausência de cabelo, por exemplo. Hoje leu num jornal qualquer que a melhor maneira de disfarçar uma receding hairline [como raio se diz isto em português?] é andar com o cabelo muito curto. Mas um gajo quer acordar todas as manhãs e pensar "tenho de ir cortar o cabelo" e deitar-se todas as noites sem sequer pensar na hairline, quanto mais se ela está a recuar, avançar ou estável.

Também há presenças, naturalmente: a barriga, por exemplo. Que se foda a barriga.

Estar-se nas tintas é a versão civilizada de querer que se foda (e mais ainda de estar a cagar-se). Não são intercambiáveis: a civilização não se troca por nada, e a opacidade de estar-se nas tintas tão pouco.

Um gajo trabalha, é reconhecido e apreciado no seu trabalho, que é das poucas coisas para as quais um gajo não se está nas tintas. Para o resto está, tudo: presenças, ausências e assim-assins. Felizmente é recíproco: as tintas estão-se para um gajo.

É assim que um gajo navega num mar de tintas, as que se fodam e as outras. Num mar de liberdade, que um dia chegará ao fim. Mas como amanhã não é a véspera desse dia não é depois de amanhã que um gajo deixa de se estar nas tintas.

O trabalho prolongou-se, a música continua excelente, o açúcar que se foda, E a vida? pergunta alguém. A vida está-se nas tintas para um gajo, e um gajo para ela. Não passa disto: uma mistura de presenças, ausências, vinho tinto, boa música, trabalho, hairlines a recuar, e a certeza banal de que ninguém sabe nem sonha de que será amanhã feito. Em sentido lato, amanhã.


4.12.14

Diário de Bordos - Galveston, Texas, Estados Unidos, 22-11 a 04-12-2014

Estou cansado, exausto; e não tenho computador, ainda. Quando preciso de um vou à biblioteca municipal de Galveston, que tem quarenta para uso público - e gratuito -. Mas é por fatias de hora e meia, e uma parte desse tempo é passada a trabalhar, outra a percorrer o livro das caras, outra a ler e responder a mails, outra a divagar... Perdi o meu telefone - enfim, perdi-o e perdi-me - na noite da prisão de Sócrates. Agora ando com um minúsculo, que me obriga a escrever três vezes cada palavra.

Fica pouco tempo para o blogue, coitado.

Verdade seja dita: pouco há a contar. O trabalho absorve-me os dias, o sono as noites. Entre os dois, pequeno-almoço e almoço rápidos e jantar em terra, quase sempre na Stuttgarten Tavern. Ou no Stork Club, um restaurante local, agradável, sem mais. Ou no Fuddruckers, de que já aqui falei e onde devia ir mais vezes.

Agora descobri outro canto, e encanto; o Mod Coffee House. Como é uma Coffee House a água é um bocadinho mais escura do que nos outros sítios e tem um ligeiro acréscimo de sabor. Não muito, claro, que aquilo está longe de ser café. Mas enfim, o local é agradável e tem uma atmosfera de café: pessoas a conversar, trabalhar, estudar, escrever, ler, boa música e - infelizmente, que raramente lhes resisto - óptimos biscoitos.

Como sempre um, por vezes dois para punir o meu corpo das malandrices que ele me faz: o cansaço, a incapacidade de gerir correctamente o açúcar no sangue, a miopia, o tinitus e essas coisas todas.

O frio voltou, a indecisão também, a solidão continua. Tudo isto mudará, mais tarde ou mais cedo. Com excepção do tempo, que gostaria mudasse já, o resto pode esperar.

........
Tudo tem um fim, menos as viagens: as que hoje faço são a continuação da que me levou a dar uma volta ao mundo em 1976? Provavelmente.

E tudo tem um princípio; menos a dor, claro. É uma aluvião, a dor. Sedimenta, consolida-se e ao fim de uma vida vamos a ver e foi ela que fez o leito pelo qual o rio correu. Já a felicidade não: vai com as águas, não pousa, nunca fica muito tempo no mesmo sítio.

........
Sei pouco da história de Galveston. Foi criada no início do século XIX no que era então a República do Texas. Está na trilha dos ciclones. Em 1900 um deles matou oito mil pessoas. E do presente tão-pouco sei grande coisa. Cidade turística, portuária, hospitalar e balneária, agora fora de época.

Tem uma universidade - cujos alunos são de resto uma boa parte da clientela do café Mod -. Não sei se vota à direita se à esquerda. É uma ilha, maior do que parece: no outro dia tentei dar-lhe a volta de bicicleta e não cheguei nem a um terço.

"A época da solha está quase a acabar?" pergunta um jornalista no jornal local. "Tudo leva a crer que não", responde: "o organismo que gere o parque nacional (uma grande parte da ilha está num parque, ou coisa que o valha) prolongou o limite da captura de duas solhas por pessoa até dia quatorze". É preciso dizer que a pesca recreativa é uma actividade vital para a população. A marina está sempre cheia de pescadores e de solhas acabadas de pescar; há lojas de isco e artigos de pesca em tudo quanto é canto; o jornal menciona frequentemente o tema.

Recentemente perguntei à rapariga do Stork qual a atracção turística de Galveston, para além, claro está, da praia. "Pode andar-se com bebidas na rua", responde, ao fim de bastante tempo de reflexão.

A cidade é bonita. E monótona. John, um dos donos do Stuttgarten diz-me que isto não são os Estados Unidos. "As pessoas deixam o cérebro do lado de lá da ponte quando a atravessam". É da Geórgia, mas viveu "em todo o lado", Trabalhou num navio de cruzeiros. Conhece Lisboa, o Estoril, Cascais. Está aqui apenas para ir à escola náutica, quer progredir na carreira e "chegar a comandante".

É o tipo mais simpático que aqui encontrei, juntamente com Ben, o mecânico que ontem veio a bordo. "A ética de trabalho aqui é..." John faz uma careta, desfaz, refaz e conclui "horrível". Vai-se embora assim que acabar o curso.

E eu logo que o trabalho acabe. Já não faltava muito, quase nada, mas agora apareceu outra porcaria para resolver. Mais um dia ou dois.

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O bar 21 tem Laphroaig a sete dólares e a barmaid mais bonita de Galveston, do Texas e do Universo, para cortar caminho. A rapariga tem classe, mais classe do que idade. Nasceu com ela. Já vem de trás. Aquilo é a refinação de muitos ciclos de DNA.

O bar é bonito, a música boa e calma (excepto aos fins-de-semana) e a barmaid - perdoem-me a insistência - linda como um dia de sol nas Baleares. Mas as televisões - duas! - estragam tudo. Somos perseguidos pela merda da televisão. Não se pode dar um passo sem que ela, ou elas se espequem à nossa frente como uma namorada mal escolhida.

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Ontem foi o primeiro dia de folga desde que cheguei. Refiro-me a uma folga explícita, formal, assumida e voluntária. A do sábado a seguir à prisão de Sócrates não responde a nenhum desses critérios. É bom, mas pouco. Uma tarde não chega. Precisava pelo menos de mais um dia, mas não vai ser possível.

Por isso faço durar o Laphroaig, enquanto oiço - impossível não ouvir - uma conversa entre dois clientes. Um está à minha direita e só faz pergunats e o outro, acompanhado pela namorada, à esquerda e só responde. Este vai ficar desempregado. Tinha um bar, mas vai ter de o fechar não percebi bem porquê. Mas entretanto parece que se alistou na Marinha. É médico ou enfermeiro, tal como a mulher, de resto. Tento não ouvir muito, vou escrevendo e olhando para a televisão ou para a barmaid, quando ela não pode ver quer a miro como se a criação fosse o museu do Louvre e ela a Gioconda.

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Aos fins-de-semana Galveston humaniza-se. Enche-se de gente ("de Houston, vêm aqui passar o fim-de-semana" diz-me a tal rapariga do Stork Club) e os carros ganham condutores humanos: buzinam, aceleram... Deixam de ser conduzidos por robots.

São os únicos dias desagráveis. Os outros? Meramente chatos.