30.8.24

Diário de Bordos - Giardini Naxos, Sicília, Itália, 30/08/2024

[O que se segue foi escrito antes de me ter apercebido de que me esqueci das injecções a bordo. A raiva e o desespero que se seguiram - e ainda não se dissiparam - são enormes.]

A decisão é difícil mas tem de ser: volto a pé para o hotel. São vinte minutos a andar mas em troca como uma sobremesa. Esta história dos vinte euros que perdi devido à habitual mistura de negligência e distracção enfurece-me apesar de saber que a reacção é desproporcionada - o dinheiro veio da massa que o D. me deu para o jantar e para os transportes até Palermo (outra asneira, mas esta não particularmente grave. Só chata). Era um extra, por assim dizer. Porém a verdade é que ando hiper-sensível. A massa que sobra chega perfeitamente para tudo [chegava, agora vai ser bastante insuficiente] mas o meu amor por mim, que nunca foi grande coisa, está cada vez mais estralhaçado.

O restaurante Al Fangio, aonde vim jantar, é bom e não excessivamente caro. Foi-me recomendado pelo chauffeur de táxi que me trouxe do porto para o hotel. É frequentado por italianos e estranho esta ausência de línguas exógenas. Penso na sobremesa, no táxi, nos vinte euros, ponho tudo dentro de copo de jogar aos dados, deito para a mesa e sai sobremesa.  Gelado de limão, delicioso, que acompanhei devidamente por alguns limoncello, o melhor que já bebi, só equiparável ao da mulher do Hugo, em Palma. A verdade é que me queixo frequentemente de um dos inconvenientes deste meu trabalho ser andar pouco. Tenho aqui uma boa oportunidade de compensar essa falta. (Na verdade, duas porque também fui a pé para o restaurante.)

A viagem correu bem, sem incidentes. Uma Ferretti 720 novinha em folha, tripulação porreira, bom tempo, uma costa bonita quando estava à vista. Bebo os limoncello e penso «poderia passar o resto da minha vida a fazer isto» sem na realidade me aperceber a que me refiro: à bebida ou a esta vida?

.........
Isto até ter descoberto que deixei as injecções a bordo. Fico demasiado furioso para sequer conseguir dormir. Como é que é possível? Porque não fiz uma nota no telefone (ultimamente tem funcionado)? E agora? Agora é a) Chatear o D., que já tem os proprietários a bordo e tem muito com que se ocupar; b) Mudar os planos de transporte para Palermo (ou seja, pagar muito mais caro porque muito provavelmente terei de ir de táxi até Catania; c) Esperar que o D. não se tenha ido embora, ontem o barco rolava imenso no fundeadouro e a maioria dos proprietários não gosta (não compram barcos. Compram casas que flutuam).

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Vou atravessar a metade norte da Sicília de autocarro. Ao menos isso. Penso na Goliarda Sapienza, no Patton, no Princípe, no C. M. F., que escreveu algumas páginas lindas sobre Palermo. A ver - agora sim, literalmente. (Não percebo de onde saiu a mania de usar este termo a torto e a direito, mas agora é legítimo: a ver).

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O D. já não está no porto. Vou para a viagem sem o maldito dulaglutido. Merda!!! para esta cabeça de merda.

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(Catania)

O bar aonde espero pelo autocarro chama-se Sapienza, o que não posso deixar de interpretar como sendo um bom augúrio. Tudo o que tenha uma relação, por ténue que seja, com aquela génia só pode ser bom.

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Discrepâncias 

Giardini Naxos - Catania
Táxi: 130 euros;
Autocarro: 4,50 euros;

Catania - Palermo
Táxi: 500 - 600 euros;
Autocarro: 14 euros.

27.8.24

Refúgios - redifusão e actualização

Talvez devido às nossas origens animais, temos tendência a ver um refúgio como um lugar físico, uma paisagem, uma casa, uma gruta. Não é necessariamente assim: podemos por exemplo refugiar-nos na música (particularmente na de uma cantora de jazz chamada Jeanne Lee; na música medieval e mística de Hildegarde von Bingen; na 5ª sinfonia de Mahler; ou em tantas outras). Podemos também refugiar-nos no álcool, especialmente no vinho ou no whisky, numa tentativa camusiana - isto é, inútil mas necessária - de afogar os demónios; podemos refugiar-nos nos livros, num corpo feminino (desde que esse corpo tenha uma alma, porque um corpo sem alma não é um refúgio, é um poço, é como cair a um poço). Muitos de nós refugiam-se na solidão: não é um bom refúgio, para mim. É o lugar da memória, da abjecção (“Solo una cosa no hay: es el olvido./ Diós, que crió el metal, crió la escória / y cifra, en su profética memória / las lunas que seran, y las que han sido”, dizia esse outro gande refúgio argentino.
 
A depressão é um refúgio, também; o pior e o melhor deles: o mais doloroso, mais cruel, mais indescritivelmente maldoso mas também o mais eficaz, porque nos isola de metade do mundo, do prazer, da felicidade e só nos deixa a miséria. A depressão é como ter que andar com uma fractura exposta que não se vê, não se vêem as feridas dilaceradas, não se vêem as carnes rasgadas, não se vê o sangue, não se pode cortar o mal pela raiz sem cortar o mal tout court, nem a raiz. A amizade tão-pouco é um bom refúgio: não depende só de nós e num bom refúgio devemos ser autónomos, por definição. Sozinhos.

(Alguém dizia que a liberdade é a possibilidade de cada um escolher as suas própias prisões; um refúgio devia ser a versão optimista de uma prisão - como se houvesse versões optimistas do que quer que fosse...)

Mas enfim, devo reconhecer que tenho um refúgio secreto em Portugal e que esse refúgio é um lugar físico: é o mar; em especial aquele pedaço de mar que vai do Cabo da Roca ao Cabo Raso, do qual nunca me canso, no qual nunca me canso. Gosto do contraste entre as linhas verticais do cabo (que não são bem verticais, são oblíquas e um pouco grosseiras, como se estivesse a chover rocha) e a curva graciosa e horizontal da praia. Gosto do Guincho a pé, a cavalo ou de bicicleta, de carro ou de avião. Gosto de passar o Raso quando venho a navegar do norte porque é quando se começa a cheirar a terra e a serra de Sintra tem um cheiro bonito, a pinhais e a maquis – um pouco como o da Córsega, mas mais bonito, porque esta é a minha terra e o cheiro vem carregado de passado; o da Córsega só tem presente. Gosto de estar no mar a olhar para a terra e na terra a olhar para o mar. Gosto do Guincho nos dias de vento, que são muitos e nos dias sem vento, que são mágicos. Gosto do Guincho aos domingos, nos dias de procissão automóvel e às segundas-feiras à noite, quando não há ninguém para ver o facho luminoso do farol apontar para a América, para o mundo. Isto apesar de não gostar de praia. Mas o Guincho e aquela zona da qual ele é a alma, se não o centro, não é só uma praia: e ainda bem, porque como praia deixa um pouco a desejar, não é?, com aquelas correntes, a água glacial, as rochas, as ondas desencontradas, o vento.

Gosto daquele bocadinho de mar porque nele me refugio desde a infância e os refúgios da infância nunca mais nos abandonam, sejam eles uma paisagem ou uma cabana nas árvores. Gosto daquele bocadinho de mar: é nele que gostaria de me refugiar, um dia. Para sempre.

26.8.24

Diário de Bordos - Comboio para Cesenatico, Itália, 26-08-2024

O aeroporto de Eindhoven é daqueles que eu gosto: a coisa mais parecida com uma estação de comboios que um aeroporto pode ser. Um gajo está sentado no café e vê a cidade viver: carros a passar, famílias com carrinhos de bebé, uma furgoneta  da DHL (ou outra do género, não me lembro).

No walk-through - não tarda até os campos de aviação de aldeia terão um - repeti a façanha do Fahrenheit.  Eles chateiam-me com aquela porcaria toda e mil ziguezagues e eu vingo-me borrifando-me com Fahrenheit,  a única água de colónia que usei durante anos (em terra, claro. A bordo não há perfumes). Desta vez fi-lo em Palma e depois em Eindhoven. O último frasco disto que comprei ficou num aeroporto qualquer, creio que o de Lisboa. Era um frasco enorme comprado na free shop de Colón, o único que conheço digno desse nome. O frasco era grande, custou-me um terço do preço que pagaria normalmente, durou-me mais de um ano para acabar ingloriamente naqueles recipientes para onde os senhores dos filtros deitam o que não podemos levar na cabine. Ainda lhe implorei que ao menos ficasse ele com a porcaria da água de colónia, mas disse-me que não podia e deitou-o fora. Vá lá que já não tinha muito, mas aquilo magoou-me e nunca mais comprei. Agora rapino os walk through, quando me lembro (é raro, mas acontece. Às vezes até a dobrar).

Por falar em funcionários dos filtros de segurança dos aeroportos: hoje, ainda em Eindhoven, um deles felicitou-me pelo chapéu novo. "Your beautiful hat, Sir, etc." Gosto muito de ver as minhas opiniões partilhadas. Quem é que quer ser único ou original? Eu não. Só me pergunto até quando o chapéu será "novo"? Afinal, basta-me designar por Panamá o que comprei em Lisboa por um preço aberrante para os distinguir. Um Panamá e um chapéu. 

Que de resto vem a propósito porque Colón fica no Panamá, como toda a gente sabe. Isto anda tudo ligado e o mundo é um penico.

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Estou esfomeado e cheio de sono. Hoje ainda durmo num hotel. Só embarcamos amanhã, não sei porquê. Isto de ter italianos a organizar o que quer que seja traz-me sempre à memória a história do céu e do inferno. Um dia conto-a (outra vez).

Na verdade o que me apetecia mesmo era passar a noite em Bolonha, mas o raio do avião chegou à hora. Só se atrasam quando não devem.

25.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-08-2024

(Sim, continua mas num prato separado. Não me apetece comida fria.)

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Para quem duvida dos meus dotes financeiros: hoje poupei substancialmente mais do que ontem na gorja, que foi igual. Truques:

a) Bebi menos cerveja enquanto esperava (em Porto Adriano basta olhar para um copo vazio para se começar a pagar);

b) Em vez de chamar um táxi fui para a paragem dos autocarros com aquela velha máxima presente: «autocarro? Táxi? Apanho o que passar primeiro» (as probabilidades de que fosse um autocarro eram nulas, mas isso fica para outro dia);

c) O táxi apareceu cerca de um minuto depois de eu ter chegado à paragem. Entrei e entabulei uma conversa sobre o preço;

d) Uma vez chegados a Palma dei uma gorjeta mais pequena.

Estas tácticas permitiram-me ganhar cinco euros sobre o táxi de ontem e dez sobre a gorja. Se isto não é uma epopeia financeira não sei o que é.

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Mas não se pense que a coisa fica por aqui. Expliquei ao Google que queria um restaurante italiano (estava a morrer por uma lasanha e um copo de Chianti) e barato. Mandou-me para um sítio chamado Como en Casa. Passo vários pormernores (o velho conjunto pudor / vergonha) mas informo que paguei vinte e três euros e cinquenta cêntimos port um riquíssimo jantar. Se isto não é poupança... O restaurante Como en Casa entra já para o pódio dos meus restaurantes. Um dia farei uma crítica mais completa. Agora oiço a Karaindrou, bebo um copo de rum e penso na sorte que é um gajo poder fazer misturas destas: Karaindrou, rum Flor de Caña, um soberbo spag bolo (não havia lasanha), tudo isto numa cidade maravilhosa depois de uma tarde no mar e antes de um voo para Itália, aonde vou poder comer e beber tudo aquilo por que anseio, que é muito mais do que lasanha. Sem esquecer a BH Glasgow Vintage, que me leva de um lado para o outro com uma paciência infinita.

A saber: polenta. Coniglio alle olive, Chianti, Barolo, se um dia me der para o tolo (salvo seja). Grappa decente. Será que o Salverio ainda é vivo? Será que é desta que vou a Palermo?

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Porque é que a Eleni Karaindrou faz música tão boa? Porque tenho tanta vontade de ir para a Grécia? (Enfim, para Atenas? ou melhor: para Keramikos?)

Diário de Bordos - Porto Adriano, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-08-2024

Saiu-me outra vez uma Frauscher 41 na rifa. "A mesma, de cor diferente", explica-me B., a encantadora senhora que me dá os contratos e me paga, duas qualidades que aprecio enormemente. Sobretudo quando a senhora é bonita. Não estraga nada, antes pelo contrário. 

Hoje está de ventosga de norte. Não chega a badanal - graças a Deus - mas anda lá perto. Não há muitas opções aonde os levar. A ver o que eles querem.

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Uso a eDreams há muitos anos e de uma maneira geral estou suficientemente satisfeito para não procurar outras plataformas. Não é portanto por causa desta reserva que vou mudar. Mas lá que é intrigante é:

O voo é de Palma para Bolonha, admitidamente um pouco à última da hora (não se pode dizer que é uma novidade, mas passemos). A primeira reserva é anulada e reembolsada. A segunda passa, mas - para ir direito ao assunto: vou de Palna para Eindhoven e dali para Bolonha com a mesma companhia - Transavia - e com duas reservas diferentes. A eDreams fez o primeiro segmento por intermédio de outra agência. Ou seja: tenho de pagar dois suplementos de bagagem (ou melhor, quem os paga vai ter de pagar), tenho dois PNR e isto para viajar com a mesma transportadora. Telefonei à Transavia porque não me encontrava no meio desta confusão e agora sim, começa a parte gira (atalhando muito): para a bagagem / check in de um dos segmentos devo grafar o meu apelido em caixa alta (SERPA). Para o outro, só a inicial em maiúscula (Serpa).

Quem acredita que as empresas são monstros frios de racionalidade pura devia rever esta perspectiva. 

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Uma hora de espera. Merda dos autocarros não há maneira de acertarem os horários com os das reservas.

(Cont.?)

24.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-08-2024

Devia concentrar-me no essencial e deixar o periférico para depois, eu sei. Ou para nunca. Mas tudo se mistura nesta pobre cabeça nestes dias, parece que vivo numa daquelas máquinas de misturar cimento que estão (ou estavam) à entrada das obras. Lembram-se? Era um cilindro mais para o cónico que rodava sem parar com um barulho infernal e tinha um volante que de vez em quando um operário manejava e o tal cilindro inclinava-se e vomitava cimento para um carrinho de rodas. Não sei se o cimento são as minhas ideias e eu o operário. Pouco importa. Passemos à essência das coisas:

- A gorja do dia deu para pagar o táxi de Porto Adriano para Palma e o que sobrou foi consumido em cervejas ab ante, enquanto esperava o dito táxi (que tive de chamar três vezes, de passagem se diga). Ainda por cima penso que o gajo me enganou, mas desta vez não me chateio, o gajo enganou-me honestamente, não sei como explicar isto;

- O Jaume tem uma marca nova de hierbas. Novas é uma maneira de dizer: é Muntaner, que já conheço do excelente vermute que faz. Aparentemente lançaram-se às hierbas. Abençoados sejam;

- Ainda no Jaume: três divindades nórdícas daquelas que nos fazem pensar em «embalar a trouxa e zarpar» rumo ao sol da meia-noite, aqueles sacanas daqueles nórdicos tiveram que levar com o clima que têm para pagar tudo o resto;

- Antes do Jaume: um gelado de lichi no Claudio. E não é só o gelado. O gajo faz tudo ao contrário do que eu lhe digo: serve-me antes da fila toda, põe-me duas bolas enormes (uma de lichi e outra de pistaccio) e cobra-me metade «porque as bolas eram pequenas». Já nem reclamo. Limito-me a pensar que um dia vou ter de pagar isto tudo, tanto mais que:

- Ao Claudio antecedeu um jantar no Gustar, cujos pormenores passo por vergonha e pudor.

No Jaume a mesa à minha frente fala de Glenn Gould mas eu não oiço: segunda vou para Bologna e daí para Cesenatico buscar uma lancha para «Messina ou Palermo ou... não sei», diz-me o gajo que me contratou, que de caminho me pediu para ser eu a comprar o bilhete para Bolonha, coisa que me apressei a fazer porque ando doido por uma boa pratada de polenta e no meio disto tudo penso na gorja, no táxi e digo-me que pelo menos não toquei no salário e de qualquer forma amanhã há mais, seja Deus louvado, se bem seja só meio dia e o salário mais baixo, claro.

Isto mistura-se tudo.

E no fim em vez de cimento saem dias, noites e vida.

Vida diluída em mar, cerveja, vinho, hierbas, rum, uma lancha absolutamente sublime (Frauscher 41, se por acaso), um táxi que me trouxe pelo caminho mais confortável para me levar cinco euros a mais, carne de se cortar com o garfo e mais uma série de coisas que escondo (outra vez) por vergonha e pudor, não vá o diabo tecê-las. E agora a música de Hildegarde von Bingen, nunca é demais citá-la. Não há acção de graças completa sem ela. Hesito em deitar-me: custa-me apagar a luz sobre um dia destes.

Isto mistura-se tudo.

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O corpo pede-me mezcal e eu dou-lhe hierbas. Como é que ele não há-de reclamar?

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Estou quase naquela idade em que o amor e a amizade não se distinguem. É como aqueles filmes em que um gajo percebe a história mas leva anos a perceber-lhe o sentido.

23.8.24

Diário de Bordos ' Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-08-2024

Dia redondo, sem ponta por onde se lhe pegue. Não tem princípio nem fim, escorrega-me da mão como garrafas de vinho na boca de um bêbedo. Deixa-se beber mas não deixa traços.

Que bom tudo isto ser mentira!

Na verdade o dia acabou bem, mas não tão bem que valha a pena falar dele. Amanhã tenho um charter, daqueles que eu gosto: barco a motor, oito horas de trabalho. Talvezes: a mesma coisa no domingo, mais um transporte de três dias de uma motora de vinte e dois metros, tudo isto antes de ir para a Holanda. De confirmado, só amanhã. É pouco? É. Mas chega.

Como se estivesse num interminável escorrega e só avançasse aos soluços. Os dias deixam de ser redondos. São ovais. Têm a forma de um coração. Piscam-me o olho e de repente abrem-me as pernas, escancaradas. Benditos sejam.

Gostaria de lhes cantar laudas, a esses dias que ora me sorriem ora me fazem manguitos e eu continuo a amar porque através deles é com a vida que me deito, todas as noites.

Fui finalmente comprar analgésicos. Paracetamol. Fui à farmácia aonde não me deixam entrar com a bicicleta, o que é uma excepção. Normalmente só entro em lojas que aceitam a burra. A cem metros há uma, mas prefiro esta. A minha farmácia em Lisboa deixa entrar a bicicleta. A pergunta é: será que o Paracetamol mil é suficiente para eu dormir? Até agora tudo leva a supor que sim, mad ainda só tomei dois 

Resposta definitiva amanhã. 

.........

Há cada vez mais portugueses nas ruas. Consequência dos voos directos, suponho. Hoje - ou terá sido ontem? Estas dúvidas que me atormentam... - vi um grupo na rua. A rapariga tinha uma t-shirt que dizia Benfica. Era nova, vinte e poucos. Facilmente reconhecível como portuguesa: meia perna e rabo e meio. Quando envelhecer vai ficar bonita, uma bola vestida de preto e buço.  Terá de encontrar outro clube, suponho. Hoje no Mercadona vi outro grupo, mais jovem, bonito e menos futebolístico, pelo menos na aparência. Gosto de ouvir portugueses porque me muda dos alemães. Acho uma pena só falarem de futebol, mas isso é outra história. Pelo menos falam, não grunhem. É um grande avanço civilizacional.  Passaram da fase macacos à de homo sapiens graças ao futebol. Se não fosse a bola ainda andariam a quatro. 

"Deixei de usar roupas luxuosas"

"Deixei de usar roupas luxuosas
E passei a cobrir-me com um pano grosseiro
Refreei os meus desejos
Quero quebrar todas as cadeias
Mas outras cadeias se formam
Poucos são os que encontram
O caminho"

Kabir, in O nome daquele que não tem nome, trad. Jorge de Sousa Braga, ed. Assírio e Alvim, 2016

22.8.24

Subvenções, feitios

Do que eu gosto nas pessoas: estou na Babel a folhear livros e a beber um vermute (Muntaner, se por acaso). Vejo um livro de poemas sobre Palma mas está em catalão e vou perguntar ao José Luis se existe uma versão em espanhol.

- Não. Para espanhol não há subvenções. 

Depois dizem que ele tem mau feitio. O que eu gosto do mau feitio!

Esquartejamento

É o dia que escorrega em ti ou tu que nele deslizas? O calor que dia a dia baixa imperceptivelmente, décimo de grau aqui, outro ali? "Era depois da morte ou era antes da morte?" pergunta Ruy Belo e eu respondo "Claramente antes" apesar de não ter a certeza. A morte e a vida confundem-se tanto, não é? Pelo menos na vontade, que no dia a dia não sei, estão mais separadas, mais identificadas. "Isto é  vida." "Isto é morte." 

Falta porém o assim-assim. "Isto não é vida nem é morte." Será qualquer coisa de intermédio? Tédio, como dizia o outro? Uma ponte, daqui para lado nenhum? Uma ponte sem pilares?

Vamos fazer um cálculo: peso oitenta e cinco quilos. O rum está a dois metros. A tampa do frigorífico pesa dois quilos, talvez menos [confirmar]. Quantos quilojoules de energia gasto para ir buscar um copo de rum? Vale a pena gastar essa energia toda?

"Terei eu casa onde reter tudo isto
Ou serei sempre somente esta instabilidade?" pergunta Ruy Belo, outra vez ele - não é de estranhar, o livro é o mesmo, às vezes escrevo e leio ao mesmo tempo, há que ir às fontes - e acabei por tratar das alpergatas em vez de me servir um copo de rum. Subtraio quilowatts ou adiciono-os? O Ruy Belo não diz nada a respeito de rum e alpergatas e eu só vejo uma ligação muito ténue entre eles: mover oitenta e cinco quilos, imagine-se o peso que eu já perdi. Resultado: ler e escrever ao mesmo tempo emagrece.

"Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu - eu e os meus irmãos  - sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, sem rédeas nem caminho determinado antes da grande aventura."

Ruy Belo, outra vez. In Homem de Palavra(s).

São quatro da tarde. Daqui a pouco o valor atinge o seu pico. Eu disperso-me: é preciso pintar o poço e acabar o leme, escolher letras, medir armários,  acabar o lazybag. Fazer a inspecção para o registo. Um barco é uma mulher: tem memória, vocabulário e rum no frigorífico. 

Na Idade Média havia uma tortura que consistia em puxar cada um dos membros em direcções opostas. Chamava-se esquartejamento. Era feita com cavalos ou com máquinas. 

Dispenso os cavalos e as máquinas. Sou esquartejado todos os dias. 

21.8.24

Tu repeles. Eu não

Acho indecente e injusto que o verbo repelir não tenha a primeira pessoa do singular do presente do indicativo.

E se falássemos do tempo?

 E se falássemos do tempo, para variar? Já a meio da noite tenho de me tapar, já por vezes a burra anda mais depressa (outras não. Aquilo tem vida própria), já nem todos os dias preciso de dois duches, a conta da lavandaria vai aumentar. O Sol está bem avançado no seu caminho para sul apesar de fingir que ainda por cá anda, é um truque de que ele gosta muito, na Primavera é o contrário, anda cá por cima e parece colado ao trópico, como se este o agarrasse como agora parece agarrá-lo o outro trópico. A térmica continua, essa, porque durante o dia o calor aperta e à noite ele diminui mas não tarda amainará também. Em breve vou para o fresco, para águas que adoro, com marés, correntes, noites frias, rochas. Pelo menos são mais previsíveis do que estas. Deixo o «meu» P. ainda por acabar, faz-me frio nas costas, arrepios, isto não é uma carroça com dois cavalos. É um cavalo com duas carroças.


Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-08-2024

Desde há anos que passo todos os dias ou quase - e às vezes várias vezes por dia - à frente do bar Glop's. Nunca lá entrara, até anteontem. Já lá voltei duas vezes. Não se pode dizer que seja um bar bonito - é mesmo feiote - mas tem pelo menos duas vantagens: a) tem ar condicionado e b) não tem turistas. Mais um para a lista das descobertas / redescobertas.

Entretanto, na mesma rua vejo que o Weyler's reabriu, agora com o nome de Bendita. Já a frutaria Royale continua a mesma: está para as frutarias como a charcuteria La Crème para as charcuterias.

Escrevo na Bodega Belver, aonde venho tomar a minha vacina pró-Palma (a ideia de que as vacinas são sempre anti-qualquer coisa é falsa). Conteúdo da vacina: palo da marca Garrot sifonado, a beleza do local, a calma (é cedo) mai-la simpatia do Cliff. É uma vacina poderosa e eficaz, que tento tomar todos os dias.

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O rum Santa Teresa foi substituído por um Flor de Caña 5 anos, que a doze euros e noventa e cinco cêntimos é provavelmente a melhor relação qualidade preço de toda a Europa. O El Corte Inglés tem destas coisas, por vezes. Incompreensíveis mas que devemos aceitar como uma dádiva, uma prova de que o pessoal do marketing só quer o nosso bem.

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Hoje enverguei finalmente a genoa. Dia grande, dia de festa. Comprei uma tablete de chocolate Lindt para acompanhar o rum, mais logo, não vá dar-se o caso de o 7 Machos estar cheio e sem o Alex.

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Os jornais continuam a dar importância aos mortos que recuperam do BAYESIAN, em vez de esperarem até se saber porque é que o barco virou tão depressa, que é o que realmente interessa. As massas alimentam-se de merda, coisa que os jornais lhes servem com prazer. E muito provavelmente com uma incapacidade total de servirem outra coisa.

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Abro o chocolate e o rum Flor de Caña e penso imediatamente na queridíssima M. da P. Vejo-lhe o olhar reprovador como se ela estivesse sentada à minha frente, o sorriso doce, suave, aquela mulher é um prodígio da bondade, é a bondade feita carne e alma e apetece-me escrever-lhe só para lhe dizer: «Não te preocupes, M. Tomo os comprimidos religiosamente, injecto-me todos os sábados, meço a glicemia de tempos a tempos (umas três vezes por mês, vá). Está tudo nos conformes, neste ponto particular a carcaça está de parabéns, é nos outros que ela me trai mas eu deixo-a a falar sozinha, não lhe ligo excepto quando as dores exageram e saltam dela para fora mas até agora não me queixo, têm-se mantido no curral, cada uma no sítio que lhe compete: os dois ombros, o joelho, até a cabeça parece querer começar a funcionar, vê lá tu.»

O bem que um chocolate com mousse de laranja faz! Sobretudo se misturado com rum.

(Cont.? Não tenho a certeza.)

Ascendências, descendentes

Uma das coisas que me leva por vezes a acreditar na aristocracia é que os criadores de cavalos e de cães também atribuem muita importância à ascendência dos animais.

Divagações, pieguices

A liberdade e o amor são duas coisas absolutamente contraditórias e contudo balizavam-lhe a existência. Oscilava de uma para outra como um "bêbedo num coro de meia-noite". Por isso, quando olhava para trás o caminho lhe parecia tão sinuoso.

"Não percebo", dizia-se muitas vezes. "A liberdade e o amor são duas prisões. A minha vida deveria ter sido rectilínea como o voo da flecha em direcção ao alvo."

"E não foi", concluía. Na verdade, fora um caminho que ele percorrera sozinho, mesmo quando acompanhado. "O único amor verdadeiro é o que permite a solidão. Tal como a solidão verdadeira é a que aceita o amor."

"Não há liberdade", repetia-se sem parar. "Há liberdades. Liberdade é poderes escolher as tuas prisões. Escolheste essas duas e misturaste-as com outras. Amaste e foste amado.  Nunca deixaste de estar só e nunca deixaste de ser livre. Escolheste as melhores prisões que a vida tem."

"Escolhi? Ou foram elas que me escolheram?"

20.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-08-2024 / II

O altifalante desapareceu, o rum Santa Teresa acabou, o computador faz ruídos esquisitos e a minha «inabilidade fatal» (Rimbaud, se por acaso), espremida por todos os lados, salta da garrafa como ketchup e suja tudo à minha volta. O altifalante é uma surpresa, claro. O rum não. É resultado da preguiça, da nonchalance, da negligência, de uma série de coisas que qualquer protestante (qualquer calvinista) consideraria um pecado. Poder-se-lhe-ia apontar que beber rum também é um pecado e portanto uma mão lava a outra. Ou coisa que o valha.

O dia foi bom, mau e assim-assim: não sei se se pode pedir muito mais.

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Ontem fui buscar o Libro mediterrâneo de los muertos, de María Ángeles Pérez López (credo, María, tantos acentos). Ofereci o primeiro exemplar que comprei ao A. C., mas este é daqueles que precisa de ser substituído. Atingi um nível qualquer de compras na Biblioteca de Babel. a) Não tive de pagar e b) ainda tenho treze euros de crédito. Para além destas boas notícias, o José Luís tem agora bom vermute.

..........
«...

La tumba no es el mar sino el langaje.
Si somos creaturas del océano, si el água no conoce límite o frontera o edicto suficiente para expulsar a nadie, si no hay orilla o branquias suficientes que arrojen la placenta en la que fuímos, ¿en qué momento nos volvemos terra? ¿En el momento mismo de morir? ¿Por eso diremos enterrar, aunque se hable de enterrar en el agua, del mar como una losa transparente?

....» 

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Adenda
O ruído não vem do computador. Vem da ventoinha. Salto quântico na esperança, essa maldita que não me larga.

Fora da caixa

- É preciso pensar fora da caixa!
- Isso é para meninos. Experimenta viver fora da caixa.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-08-2024

A teimosia é muitas vezes vista como um defeito - e com razão. Convém porém não a confundir com a persistência, a qualidade que lhe está associada. A linha que as separa é muito fininha, quase não se vê. Só se distingue claramente a posteriori. O que de resto acontece com todos os defeitos e qualidades associadas. Resumindo: pedi ao David que procurasse de novo a porra do feeder e ele encontrou-o em dois minutos. Prometi-lhe uma cerveja - além da conta, claro - e gritei silenciosamente a plenos pulmões: Hallelujah! Allah uAqbar! Seja Deus louvado! Foi um grito que ressoou em todas as células da carcaça.

Infelizmente logo a seguir apanhei uma marretada valente. É preciso um certo estofo para resistir a esta montanha russa de emoções, não é? É.

19.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-08-2024 / II

Jantei a bordo nas a carcaça anda há semanas a pedir-me que lhe dê um mezcal e hoje fiz-lhe a vontade. Ou melhor: tentei. O 7 Machos estava cheio e o Alex não estava (lá. Cheio não sei). Fui-me embora e andei a bater à porta de vária capelinhas até acabar no Madre, plaza Patins. Novidade absoluta. Nessa praça só conheço o Sa Caravana, que está fechado para férias. O Madre propõe Matusalem 15 anos a menos de cinco euros o chupito e Cacique a menos de quatro. Escolho este. Não ando com paciência para runs a armar ao pingarelho. Nem para mim tenho paciência, quanto mais.

A senhora da mesa à minha frente é seca de carnes, fuma e tem a voz espessa de quem bebe, fuma e vive. Acertei no poiso.

Falam muito, ela mais do que o parceiro, que está de costas e fala baixinho. É como se fosse transparente. Transparência essa que me trespassa o sono, muito a esta hora.

Tento chamar a empregada, mas tenho de me levantar. Para quem acaba de passar três ou quatro meses na Martinica não é nada.

Neles?

Deixa que os dias passem por ti como estas nuvens que agora ocultam o Sol e logo o destapam: sem deixar marcas. É esse o dia ideal: não aprendeste nada e nada esqueceste. Não tocaste e não foste tocado. Da tua passagem pela Terra nada sofreu. Nem tu, sequer: sais intacto como as nuvens que taparam o Sol e logo o destaparam.

Estende-te por essa cidade fora, navega esse mar - é todo o mesmo, é só um. Limita-se a mudar de nome como a luz muda - ama essa mulher que um dia construíste na tua cabeça e se calhar nunca viste nem muito menos tocaste. [Já.]

Escreve, lê, fotografa, bebe, navega, ama: talvez haja outras formas de viver no mundo, mas quem se importa com isso? Calharam-te estas, foi o que a rifa te deu. Isso, um chapéu bonito, uma bicicleta, dois filhos, netos... Os dias passam como nuvens e neles - deles? - ficam estas marcas. 

Neles? 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-08-2024

Hoje é segunda-feira e até quarta de manhã já sei que vai ser esta luta entre ter vontade de comer, enjoar só de pensar em comida e não saber aonde fazê-los (enjoar e comer). Desta vez resolvi o problema logo de manhã, ainda antes de sair de bordo: vou à Bodega Morey, que não tarda ganha a categoria «primeiro nome» (Octávio). A ideia era preceder o almoço de uma horita no Mise en Place (ex-Daniela) a escrever, mas estava cheio a abarrotar e vim logo para aqui. Para além de um casal de alemães que almoça como se estivesse no país deles (é meio-dia e um quarto!) estou sozinho, o vermute é bom, o Octávio recebeu-me com a alegria habitual, o prato do dia é canelloni de marisco (acho que vou para as raciones), a Típika está fechada - ou seja, poupo dinheiro em postais e outras bugigangas - o vermute é excelente... Nâo é o vermute, estúpido. É a música.

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O dia começa com o post de uma senhora, numa página dedicada a assuntos do mar, que diz que vai «ancorar» não sei aonde. A maioria das pessoas que anda em barcos acha desnecessário aprender o vocabulário marítimo. Ou então elas sabem que não são marinheiros e não o usam para não passarem pelo que não são. Os sentimentos que o post induz são múltiplos, contraditórios e vão longe. Penso, por exemplo, no meu Pai que levou dois anos a deixar de dizer que ia atracar, que era preciso guinar a bombordo ou que ia fazer marcha a ré - quando conduzia o automóvel familiar e falasse com quem falasse. Nos jantares segurava o prato da sopa na mão, só o pousando quando percebia que quem lhe estava a dar pontapés debaixo da mesa era a minha Mãe e não a vizinha. Por pouco não assinalava as «guinadas» do carro com os respectivos sinais sonoros (um curto para estibordo, dois para bombordo e três para marcha a ré, se por acaso houver curiosos a ler isto).

A verdade é que me horroriza ver termos como ancorar, janelas, paredes, cordas e muitos outros usados a respeito de um barco e pergunto-me se este horror é exclusivamente pedantismo ou se tem outras raízes. Quando chego a um país tento aprender a sua língua e não vejo razão para que os «elefantes» (é assim que os franceses chamam a quem não navega, por causa do barulho que faz ao andar num convés) não façam o mesmo quando vão para bordo de uma embarcação. Cada profissão tem o seu léxico e mesmo não querendo eu atribuir poderes mágicos às palavras - não os têm - acho que o mínimo é aprendê-lo. Ninguém passa a ser marinheiro por dizer fundear em vez de ancorar, mas talvez seja um bom começo.

Para lá do pedantismo, da pertença e dessas coisas, há outro aspecto a considerar: se lamentamos - e com razão - o desaparecimento de línguas, porque não fazer um esforço para manter todo um léxico que além de tudo ainda tem razão de ser? A cultura não é feita só de quadros de Picasso em casa. O vocabulário marítimo, num «país de marinheiros» como Portugal (aspas porque é irónico) faz ou devia fazer parte do saber colectivo. É uma pena que os termos náuticos tenham saído tão completamente da nossa memória que já nem quando devem ser usados o são.

Linhas

A linha que separa a loucura da estupidez é muito fina.

18.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-08-2024

Penso: «Pouco a pouco, reaproprio-me Palma» e logo a pergunta que assombra todas as relações vem-me ao espírito: «Tu reaproprias-te Palma ou é ela que se reapossa de ti como se tivesses acabado de chegar?» Quem ama, quem é amado, quem manda quando se ama e se é retribuído? Venho ao Born 8. Deve ser a terceira ou quarta vez. Peço um vermute, esse sim é a primeira vez que o provo: Quintinye, um vermute francês que fica algures entre o agradável e o bom, leve e saboroso. Não vale é o preço que custa - nem o Born 8 vale o que pedem pelos preços, mas isso compreende-se O Paseig des Born não é para tesos.

Almoço: mais uma descoberta, mais uma semi-decepção: Trattoria Amayó, «descoberta» no Google Maps.

Antes do jantar: Ginger, também no Paseig des Born, «cocktail bar, fresco y natural». Para já, não falo nem dos cocktails nem da frescura, mas de que o serviço é muito assim-assim, é. Entre o assim e o assim, para ser mais preciso. Também só têm Quintinye e peço um Negroni, pior do que o vermute sozinho não fica de certeza.

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O raio da bicicleta anda cada vez mais devagar.

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O Negroni está francamente bom. Já nem reclamo contra a maldita palhinha: limito-me a usá-la para mexer a bebida e ponho-a de lado.

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O Ginger é bem mais bonito do que o Born 8, apesar de ter a música alta de mais. Mas tem ar condicionado, a música está alta mas não é horrorosa - é só medíocre - e um Negroni destes aposto que põe a burra a galopar por essas ruas fora.

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A empregada do Born 8 era estonteante. Deve ser venezuelana ou colombiana. Se eu fosse exagerado diria que aquilo foi um desafio que a evolução se pôs a si própria - até onde aconsegue ir para fazer mulheres bem feitas (este blog não cai em vulgaridades e acha que bom é o milho, não as senhoras e que o milho não deve ser usado para comparações e de qualquer maneira não passaria pela cabeça de ninguém - nem de um canibal - pôr aquela jovem senhora num churrasco a assar como se fosse uma maçaroca).

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Sacana do Negroni está bom . É feito com o tal vermute Quintinye, o que só comprova - como se fosse preciso - que a minha intuição raramente me engana. Já enganar-se, engana-se muitas vezes, mas isso é outra história.

16.8.24

Corações partidos

A vantagem de um "coração partido" (aspas porque traduzo) é que podemos passear entre os estilhaços, explorá-los todos, um a um e assim ficarmos a conhecê-lo melhor do que se estivesse inteiro.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-08-2024

Os meus esforços para ir a sítios "novos" (aspas porque não são novos. São só menos frequentados) continuam. Hoje com uma pequena variante: vim à charcutería selecta La Crème, que merece nomes e apodos e em vez de comer a habitual e magnífica sandes de presunto comi um fatia de pâté au poivre (a tradução é minha. Estava em espanhol) e uma de queijo San Simón fumado - tem a forma do Provolone fumado mas não lhe chega aos calcanhares, como de resto a senhora teve a gentileza de me avisar -, bebi uma quantidade razoável, nos dois sentidos do termo, de vinho tinto e fui iluminado por uma ideia.

Se uma senhora quer seduzir ou manter o homem que ama o método mais seguro e tradicional passa pelo estômago - isto é uma simples hipótese de trabalho - não deverá uma cidade fazer o mesmo? Isto é: Fidel, Joan, Xisco, La Crème, Pep e tantos outros não serão simplesmente braços de um desses deuses hindus enviados por Palma para me aprisionar aqui e me acorrentar pelo estômago (ou pelas papilas gustativas, mais exactamente)? Sendo que estas ruas, estas praças, estes prédios também reservaram uns braços. 

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Estou sentado sozinho na mesa única da la Crème. Ao meu lado está a BH Glasgow Vintage. Revivo o meu espanto quando descobri que aqui a esmagadora maioria das lojas acha perfeitamente natural que se entre com a burra pela mão. Ao princípio era um dos meus critérios de escolha de lojas, mas deixou de o ser: quase todas deixam. 

(Cont.)

15.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-08-2024

Chegada a Palma, chegada a casa. A primeira coisa que noto é a temperatura: vinte e três graus, segundo o comandante do avião (e eu acredito). É a fronteira do frio, para mim. Menos do que isso vence mangas compridas e calças. Felizmente amanhã sobem de novo e voltam aos trinta, aonde deveriam andar sempre e em todo o lado, se Deus existisse. (Isto não é inteiramente verdade mas não estou a fazer uma prelecção sobre a metafísica das temperaturas atmosféricas). Depois houve o episódio dos táxis vs. autocarros. Há muito tempo que não vejo uma fila para os táxis tão longa. A do autocarro - não é propriamente uma bicha, é um magote - idem. Volto para os táxis - na verdade aquilo avança bastante depressa - e lá vim, confortável como a idade exige (e ao arrepio do status social, mas isso é outra história).

O P. estava bem. Na verdade aqui em Palma houve pouco mais de trinta nós, força que ele já suportou galhardamente, e mesmo essa durante muito pouco tempo. 

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Jantar no Bar Coto, a solução de facilidade. Têm um caril tailandês que costumava ser bom. Desta vez não foi. Perguntei se mudaram de cozinheiro e a miúda disse-me que não. Deve ser partida da memória, respondo-lhe. Mas tem a vantagem de ser perto, barato e geralmente bom, três qualidades apreciáveis. Além de que com esta quantidade de gente esperar que uma cantina do tipo do Coto prepara comida com o nível habitual é sonhar com ladrões ou com génios dentro de lâmpadas.

Venho para bordo, troco a garrafa de vermute pela de rum, começo com a Anette Peacock e logo passo para o Keith Jarrett - Köln, claro - e deixo-me embalar pelo cansaço, pela memória da D. que tanto gostava deste disco, pelos ruídos do pontão, pelo balançar do P. Isto é: deslizo gentil e suavemente para o meu estado habitual de felicidade melancólica ou melancolia feliz. O feeder do enrolador caiu à água e vai ser praticamente impossível recuperá-lo - o mergulhador já tentou, mas agora tenho de lhe dizer para insistir e com estas vagas ele vai dizer-me que não vale a pena e eu sei que ele tem razão e isto revolta-me de uma revolta profunda, violenta, tectónica, tsunâmica. Vai ser preciso esperar por Setembro para ver se encontramos um igual, mas o modelo é antiquérrimo e... Bebe mais um rum, Luís, bebe um rum e ouve a música e esquece o feeder e lembra-te de que o P. não sofreu com este tempo e que um dia tudo estará no seu lugar e de vez em quando a M. tem ataques de razão, é só uma questão de apanhar a Lua no sítio certo.

Dá-lhe, Keith. Dá-lhe. Esmurra-me esse piano e bufa-lhe para cima que não há melancolia que resista ou felicidade que se deixe vencer.

Por fim, DANA

Ainda meia dúzia de palavras a respeito do temporal nas Baleares. Espero que sejam as últimas:


Quando eu era miúdo a minha Mãe introduzia na oração da noite uma especificamente dedicada aos marinheiros. Isto mesmo quando o meu Pai já estava em terra - começou quando Ele ainda andava no mar - e reforçado por uma chamada de atenção quando estava mau tempo - fosse localmente fosse lá fora, quando Ela sabia.


Não me lembro dos termos da oração, claro. Já lá vai mais de uma época ou duas. Mas isto marcou-me. 


Não que eu morra de amores pelas pessoas que andam em barcos. Ainda o ano passado um cliente acusou-me de desprezar os amadores e a verdade é que não sendo verdade não é totalmente mentira. Não os desprezo, é tudo.


Mas - e aqui reside o cerne da minha fúria - nós, marinheiros, sabemos uma coisa que essas pessoas não sabem: somos o elo mais fraco da cadeia. Não temos o direito de criticar os outros, igualmente frágeis.


Talvez até mais do que nós, marinheiros.


PS: DANA é o acrónimo de Depresión Aislada de Nivel Alto.

Diário de Bordos - Valência, Espanha, 15-08-2024

Estou sentado numa cervejariazita de bairro de Valência. Acabei de almoçar, pus as fotografias de ontem no Instagram e no FB, preparo-me para beber um vermute caseiro. O almoço não foi mau, antes pelo contrário: alcachofras com presunto, duas gyozas de porco com laranja bastante apreciáveis, uma fatia de melão. Entretido com as fotografias e a máquina e o Instagram levanto os olhos e vejo mesmo à minha frente um par de pernas que chega ao céu. A priori parecem-me nuas mas como não acredito em milagres olho melhor. A rapariga tem calças da cor da pele? Não, as pernas vão desnudas até àquilo que me parece ser as orelhas e não são. São as nalgas, que continua ainda lá para cima, como se o meu olhar tivesse de apanhar um elevador.

Eu gosto de ver um par de pernas bonito. Só não tenho a certeza de que uma cervejariazita de bairro seja o sítio apropriado. E no fundo, no fundo só precisava de ter menos quarenta anos (eu, não ela).

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Regresso a Palma a pensar no raio do azar que tive: esta viagem coincidiu com a merda de depressão nas Baleares e não consegui tirar aquilo da cabeça, pelo menos até saber que o «meu» P. e a malta amiga estava bem. 

Não consigo porém deixar de ficar furioso com a merda dos comentários dos «navegantes» (aspas porque não passam de pessoas que andam em barcos e de navegantes não têm nem a sombra do cheiro). Tal como detesto quando vejo comentários sardónicos a respeito de encalhes ou acidentes diversos. Em primeiro lugar, aquilo pode acontecer-te a ti, no dia em que decidires finalmente sair do bar do clube; em segundo, não fales se o que disseres não servir para transmitir informação. Os teus comentários não interessam nem a um canguru perdido na Groenlândia.

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Pequena nota de viagem: o vermute caseiro da cervejaria Moonlight é esplêndido, o pessoal simpatiquíssimo e a comida excelente. Agradeço ao acaso, à sorte e ao señor Placido da Blablacar, que me deixou nas imediações.

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CONT.

Os aeroportos começam a misturar-se-me nas diferentes memórias que deles tenho. O de Valência, por exemplo, tão simpático, tão pequenino. Cheguei cedo demais para o meu voo, mas isso está a transformar-se num hábito e já nem reclamo contra mim próprio (pelo menos até chegar a um café e pedir um copo de vinho tinto, mas isso é outra história).

Hoje cheguei, passei os filtros, não me esqueci de tirar o computador do saco, não me esqueci de pôr a camisa fora dos calções para os seguranças não verem o cinto - se o virem dizem-me para o tirar, se não o virem não dizem. (Em todo o lado.)  E depois é isto, simultaneamente:
a) O voo está três horas - três horas! - atrasado; e
b) Um copo de vinho neste café custa sete euros e está quente.

E ainda há quem tenha inveja da minha vida.

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1 - Cheguei demasiado cedo ao aeroporto, isto considerando o horário normal do voo;
2 - O qual voo está atrasado três horas;
3 - O aeroporto está cheio pelas costuras;
4 - No café aonde havia um bom lugar para me sentar um copo de vinho tinto e quente custa sete euros;
5 - Poder-se-á aplicar aos aeroportos aquele velho dito: "Deixai toda a esperança, vós que entrais"? Pode e deve-se.

(Não sei se Dante escreveu ditos, mas deve ter dito.)

A pergunta que me invade os dois neurónios que me restam é: por que raio de carga de água a Air Europe não me disse isto enquanto eu ainda estava na cervejaria Moonlight, aonde o excelente vermute custa três euros e cinquenta cêntimos? (Se calhar disse e eu não vi...)

13.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-08-2024

Pequenas notas sobre a vida urbana em Palma, dignas de nota. (Quanto mais não seja, para os pinguins austrais.)

Ontem falei com o señor Tomeu Arbona, o tal arqueólogo da gastronomia local, ou coisa que o valha. O senhor é uma simpatia, o que por um lado demonstra que nem todos os maiorquinos são antipáticos (coisa que já toda a gente sabe) e por outro prova outra coisa que toda a gente devia saber: as generalizações levam-nos muitas vezes a becos que dão para vastos jardins. Tomeu explicou-me que a massa da ensaimada não precisa de fermentar dois dias - um chega - e quando me viu a comer uma ensaimada «individual» (aspas porque cito) deu-me a provar uma enorme ensaimada, uma trança de ensaimada. É o dia da noite. Ou seja: a partir de agora pede-se uma porção de ensaimada e não uma individual. (O que não deixa de levantar algumas questões interessantes.)

Estou a dar uma volta à minha Palma: vou a sítios que ou já conhecia e não frequentava (o Fornet de la Soca é um exemplo, mas há outros), uso percursos diferentes dos habituais - é um pouco como os meus princípios em Palma, com um bocadinho de batota - tudo isto intersticiado por visitas às «âncoras»: hoje jantei no bar Rita, comi o habitual (inevitável é mais adequado) gelado no Claudio e vim escrever disparates e beber rum ao Antiquari. Não se pode dizer que seja como andar perdido, que não é. É redescobrir uma cidade que adoro, é como convidar uma velho amor para jantar, é como dizer ao tempo que ele pode tudo mas eu também: posso mesmo fazê-lo andar para trás. (Ele ri-se, o tempo, mas ri-se baixinho e discretamente.)

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O «meu» P. pregou-me mais uma partida das dele. Fiquei abananado - acho que vou mudar o termo para Apandanado, é mais justo - mas já absorvi o choque. Isto é uma guerra entre mim e ele. Perde o que desistir primeiro. Como não serei eu....

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Amanhã vou a um porto perto de Múrcia para ver um barco e daí, provavelmente, a Ayamonte ver outro. O primeiro é um Nauticat, marca pela qual sempre nutri mixed feelings. O outro um Elvstrom, marca que faz parte das Marilyn Monroe do meu coração náutico. As pessoas que invejam a minha vida - há muitas - invejam-na pelas razões erradas.

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Continuo cansado. A BH Glasgow Vintage arrasta-se penosamente por estas ruas de que tanto gosta. O grande objectivo do momento é poder atribuir este cansaço ao calor.

Há outros objectivos, mais pequenos mas não são dignos de nota.

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Digno de nota é eu estar a escrever no Antiquari, aonde escrevia quando pela primeira vez cheguei a Palma, vai para doze anos ou mais. O tempo que se ria. O último a rir ri melhor.

12.8.24

Memórias despidas

E agora, que da memória o amor se foi, que fazer destas recordações assim despidas da roupa que as fez nascer, tão despidas como tantas vezes te vi? Que dizer-te, agora que «amo-te» não cabe? «Lembro-te»? Alguma vez te esqueceria, alguma vez te esquecerei? Não, claro.

Mas voltarei a dizer-te amo-te, um dia, quando as memórias tiverem frio e quiserem vestir-se.

11.8.24

O prometido é devido - Antonio Moresco, Los comienzos

(Não traduzo. Em primeiro lugar porque sou um péssimo tradutor; em segundo, porque não me apetece; em terceiro, porque toda a gente percebe espanhol.)

        «En cambio, yo estaba cómodo en aquel silencio.
     Nos despertaba antes del amanecer una oración que flotaba en los dormitorios aún oscuros, y muchos se quedaban con los ojos muy abiertos y la cabeza un poco lebantada de la almohada, en eso ligero mareo que se produce al pasar de golpe del sueño al silencio. Volvía a cerrar los ojos un instante, como si quisiera dar marcha atrás y pasar del silencio al sueño, antes de abrirlos otra vez en el dormitorio aún aturdido. Alguien habia empezado a ponerse los pantalones debajo de las mantas, moviendo brazos y piernas como un molino, sin hacer ruido, arqueando con esfuerzo la espalda hasta formar un puente con la coluna vertebral.
     Yo también me vestía debajo de las mantas, sin prisa; sacaba los pies de la cama, me ponía los calcetines, abría el cajón de la mesilla de chapa y, después de destapar la lata de betún, mojaba la punta del cepillo, metía una mano en el zapato y empiezaba a untar la crema. Alargaba la operación infinitamente para captar el instante en que el betún se extendía hasta desaparecer, perdía consistencia y solo quedaba una luz reluciente, desprovista de cuerpo y de color.
     Me entretenía con este y otros juegos de la eternidad.»

Antonio Moresco, in Los comienzos (incipit), ed. Impedimenta, 2023, Madrid.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-08-2024

A livraria está fechada, como previra. Fica para amanhã. De qualquer forma já fiz o luto da massa, não tenho sequer a certeza de que tenha ficado lá, não sei para onde foram os euros do troco do livro. Venho ao café que fca da outro lado da entrada, o café CaixaForum - tanto o café como a livraria ficam no edifício assim chamado, o braço cultural do banco La Caixa. Usufruo do conforto, da vista, do tratamento por señor em vez do irritante tuteio ou do pedante caballero, do ar condicionado - é cedo mas a «terceira vaga» não perdoa. Peço um americano. A marca é Illy, que é boa mas não é a minha preferida. Qual é essa? Não sei. Aqui em Palma o meu café favorito é o da Molienda, porque é pouco torrado, mas na verdade estou-me nas tintas e espero que os meus leitores também.

Palma vista daqui é bonita, esta zona é linda, sinto-me como se estivesse dentro de um aquário na sala de um palácio a olhar para fora, a sala está quase vazia mas começa agora a animar-se, passo a passo. Já não há «noite» em Palma, nem aqui nem em lado nenhum, boémia zero bem-estar dos vizinhos um, querem cidades mortas e a luz do domingo de manhã fica assim, suave, transparente, quase melancólica.

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Saio do Caixa e venho devagarinho pela Rambla. Penso no que tenho aqui que não tenho em Lisboa, no que tenho em Lisboa que não tenho aqui, no que tem Genebra que nenhuma das outras tem e pouco a pouco pedalada a pedalada rendo-me à evidência: a única coisa que Lisboa tem que as outras não têm é a língua. Mas sem a nossa língua somos seres incompletos. 

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Mais um gajo lindo na rifa (salvo seja). Este tem os olhos azuis como o outro e os maxilares em forma de cubo. Uma bomba de testosterona. Falta-lhe o sorriso iluminante. Deu-me uma grande ajuda para envergar e depois dobrar a grande. Terá mais trabalho a bordo do «meu» P., se entretanto não encontrar um barco que lhe pague a sério. É pouco provável mas sonhar não custa.

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L., o day worker sul-africano que me faz alguns trabalhos a bordo tem até quinta-feira para encontrar um barco que o possa «tirar» da UE. Estas estúpidas leis da imigração deviam ser repensadas. Para além do facto simples (e discutível) de que uma pessoa deve poder viver aonde quer e não só aonde pode, a verdade é que a Europa devia pagar a gajos como este para imigrarem. Não expulsá-los.

A Europa tem muitas culpas no cartório no que toca a países africanos. (Admitidamente, isto não se aplica à África do Sul, mas isso fica para depois). Demos-lhes as independências sabendo a catástrofe que seria, fechámos os olhos e para os manter fechados inundámo-los de dinheiro que todos sabíamos no que seria usado, deixámo-los degradarem-se e não fizemos nada e aqora fechamos-lhes as portas? Há dias houve aqui mais uma «operação policial» para prender vendedores ambulantes. Na sua maioria são senegaleses, vítimas de horrorosas redes de tráfico humano. Porque é que para ganhar honestamente a sua vida um homem tem de se pôr nas mãos desses bandidos?

Abrimos a torneira do dinheiro e com ele lavámos as mãos e as consciências.

10.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-08-2024

Comprei um livro, o que em si é uma coisa banal. Compro um - ou mais - quase todos os dias.  Mas é este é especial. Começa assim:  "Em contrapartida, eu estava cómodo naquele silêncio." Chama-se Los Comienzos e o autor é Antonio Moresco. Nunca tinha ouvido falar nem de um nem de outro. Agora estou a escrever no telefone, mas quando tiver o computador transcrevo todo o incipit. É impossível não conhecer um livro assim. 

Em contrapartida, estou convencido de que o paguei com uma nota de cem e deixei o troco na livraria. Quase setenta euros. Bem vindos ao mundo encantado do Luisinho Serpa. Quando voltei à livraria já tinha fechado. Creio que amanhã estará aberta, mas não tenho a certeza. Aborrece-me muito, esta minha distracção. [ADENDA: Afinal tinha pago o livro com o montante certo.]

Vim folhear os Começos à Lorién, apetecia-me uma cerveja. Agora não sei o que fazer. Vou delegar na burra, ela que decida. Tenho os alforges cheios de compras e ou vou para bordo deixá-los - e provavelmente deixar-me - ou vou comer qualquer coisa para não acordar esfomeado a meio da noite.

Na mesa ao lado da minha sentou-se uma miúda dos seus trinta que não é linda linda. É só bonita. Mas tem uma coisa que muitas belezas não têm: é o tipo de mulher com quem eu queria namorar quando tinha a idade dela. (Hoje não quero, claro. Deus me livre.)

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Boas notícias do lado da carcaça. Tudo não pode correr mal ao mesmo tempo. Deus delegou no Diabo uma grande parte do Seu trabalho mas guardou umas pontinhas. Por mais que se aplique, o Diabo nunca consegue pôr a mão em tudo. As garras.

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Está muito calor e a cidade está vazia. As pessoas preferem ir para as praias, coisa que eu parcialmente compreendo: um dos componentes das praias é o mar (excepto quando são fluviais, claro) e estar dentro de água com estas temperaturas e as correspondentes aquáticas é agradável. Falo por experiência própria, apesar de raramente tomar banho quando tenho clientes a bordo. Mas isso só é suportável um momento. Depois torna-se monótono e maçador. É de resto por isso que alguém inventou os barcos: para evitar os inconvenientes da outra metade das praias, que são muitos. A areia, as pessoas, as bolas, as toalhas, a areia - ou pedras, quando não há areia - a longa distância entre o mar e o xiringuito (em Espanha. No resto do mundo seria a longa distância entre o mar e o bar da praia), a areia.

¡Vaya! Agradeço silenciosamente às pessoas que me deixam a cidade vazia e me dão a oportunidade de comprar uma empanada de cordeiro e ervilhas no Fornet de la Soca e comê-la no Bocalto, mesmo ao lado, acompanhado por um vermute Muntaner (já quase a resvalar para o segundo). O Fornet de la Soca pertence a um senhor que se vende como «arqueólogo da gastronomia local» ou coisa que o valha. É um dos sítios mais bonitos de Palma, entre o Paseig des Born e a Rambla, muito mais bonito do que qualquer praia salvo excepções, como as do Parque Nacional Manuel António, uma outra em Bocas del Toro cujo nome não recordo e mais duas ou três. O mundo está cheio de excepções.

Neste quadro o vermute adquire qualidades que noutros sítios não tem. É por isso que raramente acredito nos críticos de comida ou de bebida (incluindo os de croquetes e chamuças): isto está tudo ligado, a objectividade não existe senão na cabeça disfuncional da maioria dos jornalistas actuais. Não muito longe daqui fica La Rosa, que já foi uma grande casa e hoje se deveria chamar The Rose (o empregado do Bocalto está de acordo comigo, o que só comprova, como se necessário fosse, a justeza das minhas opiniões). Antigamente teria ido ao Rosa tirar teimas mas agora não vou.

Pode argumentar-se que dezassete euros por um copo de vinho tinto e dois vermutes é caro, mas a questão não é essa. É: deve-se? Não. não deve. Não deve fazer-se nada que não tenha um efeito sobre o que a acção se exerce. Reclamar contra os preços em Palma é como reclamar contra «a terceira vaga (de calor, recordo)». Reclamar pode-se, claro. Não há quem não o faça. O que não impede o calor de se instalar como se estivesse em casa, depois de um lauto jantar, refugiado num whisky e num bom livro enquanto os miúdos se pegam na sala ao lado. 

9.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-08-2024

Da Colômbia só conheço Cartagena de las Índias e o restaurante Sabor Criollo, em Palma. Recomendo ambos. As arepas e a simpatia são iguais nos dois lados e o restaurante tem uma ligeira vantagem: está ao alcance da minha bicicleta. Não é preciso meter-me num avião. 

Ou num barco, que vontade não me falta. 

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Hoje lembrei-me - ou melhor, fui lembrado - de que tenho sorte de ter uma amiga chamada Maria. Digo o nome porque é bonito, tão bonito como ela é. A Maria é médica e vai fazer aquilo que o SNS não pode ou não quer fazer: olhar para os resultados das minha análises, exames e ecografia (é só uma) e traduzir-me-los, que daquilo não percebo nem as vírgulas. 

Amizade, amor, ternura, bondade, fraternidade, altruísmo substituem qualquer SNS, incluindo o melhor do mundo. E não me venham com histórias: todos temos uma Maria nas nossas vidas.

Quem não tem devia ter. O SNS não tem, por exemplo. Devia ter. Não uma, mas milhares delas.

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Posso estar enganado. Estou muitas vezes. Mas diabos me mordam se amanhã o "meu" P. não der mais um salto para a frente. Preciso tanto como ele, de passagem se diga.

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De todos os sentimentos, aquele que mais amo é o amor. É o mais completo e versátil e satisfatório de todos. Não precisa sequer de ser retribuído. Basta-lhe existir...

Corto aqui. Execro pieguices. Obrigado Maria.

8.8.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-08-2024 / II

Venho almoçar ao Pep, metade por preguiça - está ao lado do P. - , metade porque é bom, metade porque tem ar condicionado e metade - a última - porque o gajo está uma simpatia. 

São muitas metades, eu sei mas não me importo. A matemática é uma ditadura e há que resistir-lhe, desobedecer-lhe, opor-lhe as palavras. Vem-me à memória aquela frase do Lacan que vi ontem no FB (nunca consegui ler dele mais de dois parágrafos seguidos ou três alternados): «Se um homem que pensa que é um rei é maluco, um rei que pensa que é rei também o é.» Hesitaria em aplicar esta ideia à matemática, mas não deixa de ser tentadora.

Enfim, tudo isto porque estou cansado, estou cansado de estar cansado, cansado de dizer que estou cansado e por aí fora, numa cansativa e infinita espiral que só daqui a pouco parará, quando for dormir a sesta, apesar do calor. É «a terceira vaga», dizem os jornais, para quem a verdade não é de todo uma ditadura e que gostam de a adornar com fórmulas. Julgam que isso os ajuda a vender, apesar de essa mesma realidade os desmentir quotidianamente. Claro que podem sempre dizer que se se limitassem à verdade venderiam ainda menos, mas eu não acredito. Ou então venderiam, mas pelo menos poderiam andar na rua de cabeça levantada, que hoje não podem. Ou não devem.

.........

O «meu» P. deu hoje um grande passo em frente. Como sempre, o que deveria ter levado um mês já vai quase em três. A cada passo parece que estou a levantar ferro e que a corrente está presa numa rocha e é preciso chamar uma armada de mergulhadores mas eles ou não estão ou não respondem ao telefone ou estão doentes ou a estudar ou o raio que os parta. Como se o rochedo do Sísifo resvalasse mas não até ao fundo, a cada descida fica um bocadinho mais alto, mais perto do cimo. Pouco, mas mais alto.

(Cont.?)

Figos, D. H. Lawrence

Figs

The proper way to eat a fig, in society,
Is to split it in four, holding it by the stump,
And open it, so that it is a glittering, rosy, moist, honied, heavy-petalled four-petalled flower.

Then you throw away the skin
Which is just like a four-sepalled calyx,
After you have taken off the blossom with your lips.

But the vulgar way
Is just to put your mouth to the crack, and take out the flesh in one bite.

Every fruit has its secret.

The fig is a very secretive fruit.
As you see it standing growing, you feel at once it is symbolic:
And it seems male.
But when you come to know it better, you agree with the Romans, it is female.

The Italians vulgarly say, it stands for the female part; the fig-fruit:
The fissure, the yoni,
The wonderful moist conductivity towards the centre.

Involved,
Inturned,
The flowering all inward and womb-fibrilled;
And but one orifice.

The fig, the horse-shoe, the squash-blossom.
Symbols.

There was a flower that flowered inward, womb-ward;
Now there is a fruit like a ripe womb.

It was always a secret.
That’s how it should be, the female should always be secret.

There never was any standing aloft and unfolded on a bough
Like other flowers, in a revelation of petals;
Silver-pink peach, venetian green glass of medlars and sorb-apples,
Shallow wine-cups on short, bulging stems
Openly pledging heaven:
Here’s to the thorn in flower! Here is to Utterance!
The brave, adventurous rosaceæ.

Folded upon itself, and secret unutterable,
And milky-sapped, sap that curdles milk and makes ricotta,
Sap that smells strange on your fingers, that even goats won’t taste it;
Folded upon itself, enclosed like any Mohammedan woman,
Its nakedness all within-walls, its flowering forever unseen,
One small way of access only, and this close-curtained from the light;
Fig, fruit of the female mystery, covert and inward,
Mediterranean fruit, with your covert nakedness,
Where everything happens invisible, flowering and fertilisation, and fruiting
In the inwardness of your you, that eye will never see
Till it’s finished, and you’re over-ripe, and you burst to give up your ghost.

Till the drop of ripeness exudes,
And the year is over.

And then the fig has kept her secret long enough.
So it explodes, and you see through the fissure the scarlet.
And the fig is finished, the year is over.

That’s how the fig dies, showing her crimson through the purple slit
Like a wound, the exposure of her secret, on the open day.
Like a prostitute, the bursten fig, making a show of her secret.

That’s how women die too.

The year is fallen over-ripe,
The year of our women.
The year of our women is fallen over-ripe.
The secret is laid bare.
And rottenness soon sets in.
The year of our women is fallen over-ripe.

When Eve once knew in her mind that she was naked
She quickly sewed fig-leaves, and sewed the same for the man.
She’d been naked all her days before,
But till then, till that apple of knowledge, she hadn’t had the fact on her mind.

She got the fact on her mind, and quickly sewed fig-leaves.
And women have been sewing ever since.
But now they stitch to adorn the bursten fig, not to cover it.
They have their nakedness more than ever on their mind,
And they won’t let us forget it.

Now, the secret
Becomes an affirmation through moist, scarlet lips
That laugh at the Lord’s indignation.

What then, good Lord! cry the women.
We have kept our secret long enough.
We are a ripe fig.
Let us burst into affirmation.

They forget, ripe figs won’t keep.
Ripe figs won’t keep.

Honey-white figs of the north, black figs with scarlet inside, of the south.
Ripe figs won’t keep, won’t keep in any clime.
What then, when women the world over have all bursten into self-assertion?
And bursten figs won’t keep?