28.2.25
Leveza, amor e outras rábulas
Diário de Bordos - Comboio Lisboa - Porto, Portugal, 28-02-2025
Saio de casa do V. e a chuva não era sequer de molha-tolos. Mal chegava a molha-tolinhos, de maneira vim por essa Almirante Reis abaixo e só parei na Confeitaria Nacional para uma bica e um pastel de nata. Cada vez mais me sinto em Lisboa como um turista. Pouco a pouco a cidade afasta-se de mim - ou afasta-me, isso resta por esclarecer. Ele é buzinadelas, ele é obras, ele é gente e mais gente, ele é ruas com pavimentos mais adequados a bicicletas de montanha do que burras urbanas como a minha, ele é esta desafeição que pouco a pouco me entra pelos poros todos da pele. Claro que pode sempre contra-argumentar-se com o Roda Viva, pequena pérola nos limites de Alfama, ou com o Arcos de Paris, ou com a Confeitaria Nacional, resistente e linda como sempre; pode sempre argumentar-se com um montão de coisas porque a nossa ligação a uma cidade não se resume a restaurantes, é feita de pessoas e de paisagens, de memórias, de vidas. Enfim, isto não é um tratado sobre a pertença e muito menos sobre o desenraizamento. É sobre este sentimento estranho de me sentir turista na cidade que sempre amei e aonde nunca vivi muito tempo, talvez a contradição mais perene da minha vida: amor e distância andam juntos em mim desde a adolescência.
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Faço uma pausa no Porto sem nenhuma razão muito forte mas com bastantes fraquinhas - pelo menos em termos de expectativas. A energia e o optimismo - a certeza, por assim dizer - que punha em tudo desvaneceu-se, substituídos por um abulismo consciente, voluntário. O que for será; mover as bolas na mesa de bilhar com pequenas e espaçadas tacadas. Cépticas, sobretudo. Os buracos na mesa mexem-se, qualquer pessoa com mais de cinquenta anos sabe-o. E se não sabe devia saber.
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No comboio há duas pessoas nas minhas redondezas a falar ao telefone. O que eu lamento a falta de carruagens «silenciosas», como há (ou havia) em França. Por que raio de carga de água não se levantam e vão falar para o espaço aonde não há ninguém? Se calhar, não são apenas carruagens «silenciosas» que faltam.
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Desta vez não tive sorte e não consegui mudar para primeira classe. O revisor não estava muito contente com a ideia mas lá acabou por ir «verificar» e não havia lugares. Escrevo um bocadinho apertado e rodeado de senhoras (enfim, duas) a falar ao telefone. Paciência, como dizia o Job, coitado.
(Cont.)
26.2.25
Sem ti, caminho
Sem ti é fria a noite e mais frios ainda os dias são.
É longo o caminho que temos pela frente e pouco o tempo que nos resta.
Reflexão, período
A ideia é afinal bastante razoável: a vida continua. O passado serve para nos ensinar, não para nos fazer desistir. Ou seja: o passado serve para nos fazer insistir. É uma escola.
Ver no passado a mola que nos impulsiona mais longe no futuro. Em cada erro uma espiral. No fundo, a perfeição é a soma dos erros que cometemos até ontem. Hoje não conta: estamos em período de reflexão.
Diário de Bordos - Comboio Caminha - Lisboa, Portugal, 26-02-2025
Vir a Lisboa não me excita particularmente. É como uma viagem de trabalho a um sítio aonde tenho amigos. Movimentações das placas tectónicas dos afectos, sem dúvida.
22.2.25
Diário de Bordos - Aeroporto de Madrid, Espanha, 22-02-2025
Último dia desta meteórica estadia em Palma. Mixed feelings é pouco para descrever o que sinto. Gostaria de ter ficado mais tempo para mostrar mais à L.: mais tramuntana, mais Malorca, mais Palma. Gostaria de ter mais certezas quanto aos trabalhos de que espero a resposta. Estou ansioso por ter a minha casa em Caminha, por ver os meus netos, por... por... por... por tudo e mais alguma coisa, incluindo a adrenalina da ansiedade. Esperamos no aeroporto, um dos poucos sítios aonde a ansiedade é substituída por desolação pura e simples. São todos iguais, sobretudo quando os conhecemos como os conheço - agora o de Madrid, há pouco o de Palma. Em breve estaremos no do Porto, mas aí é a alegria que nos espera: estaremos perto. Vamos de aeroporto para aeroporto, de emoções para emoções, de medos para alegrias e destas de volta aos medos. Oscilo entre estar farto de mim e querer ver os meus netos crescer, entre querer uma casa e ter muitas, aonde quer que vá: «a pátria é um acampamento no deserto», diz Cioran citando um provérbio árabe, hesito entre pensar que faço o que quero e quero porque faço. Quatro horas no aeroporto de Madrid para poupar alguns euros, não sei bem quantos mas sei que prefiro quatro horas de espera - tenho-as - a não sei quantos euros - não os tenho. Prefiro aquilo que tenho àquilo que não como prefiro aquilo que sou ao que poderia ter sido. Prefiro aeroportos que não sejam centros comerciais a centros comerciais com portas de embarque associadas. Fui fumar um cigarro à «zona de fumadores» e perguntei-me quando haverá zonas para injecções de heroína, cocaína e outras drogas. Heroína do afeganistão, cocaína colombiana, hasch marroquino a preços de aeroporto... Enfim: antes esperar do que desesperar, já que estamos em maré de trocas. Antes ter uma casa para os meus livros do que tê-los em caixas.
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Regresso a Caminha com quase tudo o que tinha em Palma, bicicleta incluída - se bem esta vá por outros meios. Chega para a semana. Aqui - ali, Palma - ficam os livros e pouco mais. Em breve se juntarão aos outros. Três casas - Lisboa, Palma e Caminha - transformam-se, pouco a pouco, numa só. É como navegar num banco de nevoeiro, não é? Não, não é. É como navegar para um banco de nevoeiro.
20.2.25
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-02-2025
Regresso a Palma e como sempre fico sem palavras - excepto possivelmente para desejar ao gajo que me roubou a máquina que torre no fogo do inferno para sempre, e isto digo de dez em dez minutos.
A luz de Palma no Inverno é como a cidade: envolvente, suave, terna, carinhosa. Palma é uma cidade para amar e ser amado e hoje sou-o duplamente: esta cidade ama-me tanto qanto eu a amo.
O Antiquari fechou, aparentemente para sempre (vade retro!). O Fidel, o Jaume, o Mise en Place estão fechados para férias. Ontem jantámos no Sa Ronda. Ovos com rabo de toro, precedidos por um palo sifonado no Cliff (o Pep voltou e até sorriu quando lhe desejei as boas vindas). Hoje a ronda continua: l'Olivar, almoço no Morey, café no Miniones, re-café no Bosch. Está calor - vinte e un graus é calor, se bem não excessivo - a luz amortece o ruído, as mulheres continuam lindas e eu pergunto-me até que ponto posso fractalizar (?) a paz. Assim de repente e sem pensar diria: até ao nível atómico. Aposto que os átomos em mim estão em repouso, a girar mais lentamente em torno dos seus núcleos, como eu ando devagar à roda do tempo.
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Aperitivo no Moltabarra e jantar no 7 Machos. Amanhã vamos à Catedral. Ainda não tenho notícias de Barcelona. A paz foi sol de pouca dura. Alugámos uma bicicleta para a L. e temos percorrido a pedalar essas ruas sinuosas e familiares como todos os passados. Reencontro com indizível alegria a BH Glasgow Vintage e agora procuro forma de a levar para Portugal. O dinheiro está para as engrenagens da vida como WD-40 para dobradiças de uma porta que teima em não fechar.
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Para quem precise de almoçar em Barcelona perto da Plaza Catalunya: Restaurante Txapela. Comida basca no seu melhor, serviço impecável, quadro e preço agradáveis.
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A ausência de tele-Trump-visão é a cereja que encima o bolo de Palma.
17.2.25
Como a Lua
Naquela noite era questão de florestas, de palavras, de estar perdido e de nelas procurar refúgio. Nelas florestas ou nelas palavras? Estar perdido é isso, não saber aonde se refugiar, se na noite se na luminosa claridade de um ecrã todo branco. Termos como tristeza, melancolia, depressão são refúgios fáceis mas frágeis. Ao menor sopro esvaem-se em memórias. Transformam-se, por assim dizer e deixam-te de novo nu. Seria preciso uma muralha de palavras, com ameias, arqueiros, flechas, um fosso cheio de água à volta. Sabias que a função dos fossos cheios de água era impedir os assaltantes de penetrar no castelo por meio de túneis? Ou seja: por meio de palavras subterrâneas? Nem rastejantes, sequer. Só as aéreas te servem, as leves, voadoras, palavras que vêem longe porque altas vivem, como a Lua do outro.
Noite, promessa
Espero a chegada do sono com a mesma paciência com que espero num aeroporto, enre dois aviões. O sono não passa do avião que me leva de um dia para o seguinte, a vigília esse aeroporto, com a vantagem de te ter ao meu lado, de poder ouvir-te e tocar-te e sentir-te, piloto do avião que me faz ter vontade de te ver amanhã, sem pressa, de acordar a teu lado, de te ver e sentir de novo amanhã, meu amor, meu voo, meu voto, minha promessa de amanhã, sem pressa.
15.2.25
A noite, talvez
Deixas que a noite desenrole perante ti o seu tapete negro mas quem o percorre é ela, negra como o Inverno, como o frio que erradamente e há tanto tempo associas ao branco e hoje ao negro, um longo tapete que perante ti te espera e de que não vês o fim, senão talvez que voltará a ser branco um dia e quente noutro.
Talvez.
14.2.25
Definição - privacidade
Àquilo a que chamamos privacidade dá a evolução o nome de fragilidade. No fundo, a privacidade não passa de uma cortina atrás da qual escondemos os nossos momentos de vulnerabilidade.
12.2.25
Diário de Bordos - Caminha, Alto Minho, Portugal, 12-02-2025
Uno, unidade são as palavras destes dias. Escamoteio a idade, não é para aqui chamada e pergunto-me a que unidade me refiro. Não existe unidade. O que há é unidades, esse infinito conjunto de pequenas coisas que nos define. Hoje cozinhei bastante. Fiz um escabeche para os carapaus fritos de ontem, fritei beringelas às fatias e nabo às rodelas finas. Tudo isto com muito azeite: a melhor cozinheira é a mais azeiteira, dizem os nosso vizinhos. Comprei feijão da Argentina e arrependi-me pouco depois, mas já era tarde para o trocar por feijão nacional. «É menos duro e coze mais depressa», disse-ne o senhor no mercado. Esqueci-me de comparar os preços, claro. Não sei porque me deixei ir na cantiga do homem. Prefiro produtos locais, o mais perto possível de onde estou mas não tenho explicação para essa preferência. Nada tem a ver com a salvação do planeta. Ele safa-se muito bem sem mim, obrigado. É uma das unidades, suponho. As beringelas é uma receita italiana, o escabeche árabe, os nabos não sei, o hummus que vou fazer amanhã é do Médio Oriente. Outra unidade. De manhã fui ao mercado, de tarde dormi e cozinhei. À noite escrevo e penso na unidade, neste ser uno que não sou. Sou muitos unos. Somos todos, claro. Já o Lartéguy dizia que todo o homem é uma guerra civil. São muitas, todas misturadas, uma embrulhada. Não gosto do Trump mas ainda gostava menos da outra. Unidade dividida. Este mundo chateia-me. A Ucrânia não devia perder a guerra, o Trump não devia ter nascido, Reagan e Tatcher deviam ter tido filhos. Hoje li um texto (um post) de um conservador exultante com a chegada de Trump ao poder. Amanhã responder-lhe-ei, se a unidade e o uno me tiverem deixado. Não sei. Hoje fez menos frio. Tive de tirar a camisola para voltar para casa. Gosto tanto desta subida... A vida não pode ser só descidas. Ando a ver até onde chego em segunda. O objectivo é acrescentar dois metros a cada vez. Ou cinco, vá. Dois é pouco. Dez. Não sei. Os que forem. Espero ansioso a chegada da BH, mas ainda não é amanhã a véspera desse dia. Primeiro tenho de ir trabalhar a San Sebastián, no país basco espanhol e só depois poderei mandar vir as coisas de Palma. O que lá tiver ficado que agora quando voltarmos de lá já traremos muita coisa. Terça vou a Barcelona (na verdade é a Port Ginesta, fica entre Barcelona e Sitges) e daí seguimos para Palma. São as Primaveras a chegar, as duas, uma real outra metafórica. Unidades. Cada dia que passo aqui acho isto mais bonito e gosto mais das pessoas. A Coluer tem-se aguentado, mais coisa menos coisa. Eu também. Uno. Inteiro. Partilhado. Unidade.
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Um dia perguntei a uma senhora se queria dormir comigo. Foi uma pergunta muito factual, muito simples, sem salamaleques nem tentativas prévias de sedução. A senhora era a secretária da S., então minha mulher. Vivia por cima de Lausanne, numa casa muito bonita, com um enorme jardim aonde o marido, que era muçulmano, plantava peras a partir das quais fazia a melhor aguardente de peras que me foi dado beber. Eu tinha lá ido dormir, já não sei porquê. Provavelmente por causa de um trabalho qualquer. Também não me lembro do nome da senhora. Uns anos depois foi fazer um curso qualquer e tornou-se directora de uma instituição social. Deixou de ser secretária. Tinha imensa piada. Quando disse ao pai - protestante - que se ia casar com um muçulmano ele respondeu:
- Antes isso. Pior seria se fosse católico.
O marido dela estava na Argélia, suponho. Era chauffeur de táxi. Nunca bebera nem uma gota da maravilhosa aguardente de peras que fazia, o que só demonstra os malefícios da intransigência e do fanatismo. As peras cresciam dentro de garrafas. Quando chovia interrompia o trabalho e ia a casa pô-las com o gargalo para baixo. Tinha sido dono de uma tipografia, mas com o advento do digital faliu. Acabámos de jantar - era uma cozinheira maravilhosa - e eu disse-lhe:
- Vou deitar-me. Queres vir comigo?
Respondeu que não, obrigada e a coisa ficou por ali.
Quando cheguei a casa a S. pergunto-me se era verdade que tinha desafiado a outra e eu disse-lhe que sim.
- Mas foi só por gentileza, por boa educação. Sabia que ela ia dizer que não - acrescentei.
Desatou a rir-se, eu também (mas menos. Acredito na importância da delicadeza e da educação) e fomos deitar-nos.
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Melancolia é uma palavra mais bonita do que depressão, apesar de ter mais letras e mais sílabas.
Isto admitindo que designam a mesma coisa, ou uma coisa parecida.
Se houvesse justiça...
A minha fé absoluta na liberdade de expressão fica abalada quando leio ou oiço "ofertar", "vivenciar" e "experienciar".
Não é caso para pena de morte, mas merece pelo menos uma pena igual à de quem envenena o espaço público ou dá de comer aos pombos da cidade.
Justificação de cepticismos injustos
Aventuras semióticas
O conceito que ontem procurava tem um substantivo e um adjectivo nas não tem um verbo. É de situações como esta que nasceu o termo averbar: negar a uma palavra a possibilidade de agir.
Cama, palavras
Sabem aquela canção da Simone (chama-se Pedaço de Mim, creio que a letra é do Chico Buarque e é linda de se morrer) que fala da saudade e diz que é o pior tormento, pior do que o esquecimento, pior do que tudo e mais alguma coisa? Pois eu conheço um tormento pior. Pior do que ter sede e não ter uma cerveja no frigorífico, pior do que ter fome, pior do que amar e não ser correspondido. É procurar por uma palavra que tenho debaixo de mim - enfim, debaixo da língua, ali ao alcance dos dedos que a esperam freneticamente, estacionados no teclado do computador - e me foge, a sacana. Hoje aconteceu-me outra vez. Acontece-me todos os dias, com maior ou menor intensidade, maior ou menor duração. Desta vez foi aterrador. Procurei a partir de sinónimos - esses não escapam, estão todos lá, a mangar comigo - procurei a partir da definição, chateei amigos e nada.
Foi preciso vir deitar-me para que ela me aparecesse, feita virgem sorridente em cima de uma oliveira ou azinheira ou coisa que o valha. A cama, essa grande fornecedora de palavras desaparecidas, de frases perfeitas, de ideias luminosas e planos infalíveis devolveu-ma intacta, tal e qual eu a procurava.
E ainda há quem seja contra os telefones portáteis na mesa de cabeceira.
11.2.25
Ou tão pouco, vá lá saber-se
Oiço música medieval, bebo um rum cubano, escrevo num computador «americano» (aspas porque provavelmente veio da China) e penso na minha relação com a modernidade. Logo a seguir penso que o post começa com uma mentira: ando a pensar nisto há semanas. A modernidade terá talvez não o monopólio da mistura - essa nasceu com a humanidade - mas tem de certeza o da facilidade com que a mistura se produz. Não é por acaso que um dos meus jantares temáticos, cujo tema foi a modernidade, teve como menu uma série de pratos de fusão, do princípio ao fim. Menu e música, de resto.
Bom, voltemos ao tema. Detesto a modernidade, ela detesta-me e mantemos uma relação da qual nenhum de nós consegue escapar. Não é só o GPS que me prende a ela, se bem seja uma das amarras mais fortes, se não mesmo a mais forte. Nem a fusão rum/música medieval/computador/casa confortável/telefone portátil/livro de poesia de Nuno Júdice/e-mais-sei-lá-que-mais. É sobretudo esta falta de vontade de pôr em prática a vontade de não a viver. Ela não merece tanto.
Ou tão pouco, vá lá saber-se.
10.2.25
O romantismo, a álgebra e o infinito entram num post
Para a álgebra do romantismo, um mais um é igual a um, dois menos um igual a zero, um mais zero igual a zero. O infinito, não sendo um conceito algébrico (peço aos meus leitores matemáticos que me corrijam se estou enganado) não é mencionado na álgebra romântica mas sendo um conceito filosófico está subjacente a tudo o que os românticos diziam ou pensavam.
Podres de razão.
9.2.25
Crónica (lenta)
A ideia chegou-me via um post de Desidério Peixoto (nomeio porque é um pseudónimo) no FB. Apetece-me escrever sobre coisas simples, sobre o cacau em pó que comprei na Casa Chinesa do Porto mas as ramificações levam-me para a África do Sul, para bordo do M/T ALTAIR, aonde o Miguel me preparava uma mistura de café e cacau à qual juntava brandy e com isso me curava as ressacas quotidianas; dali passo directamente para hoje, para a elaboração do cacau, que deve ser espesso e levar pouco açúcar, o mínimo possível e lembro-me das discussões teológicas do século XVII para saber se o cacau era um líquido ou um sólido, tema importante porque determinava se podia ser comido nos dias de jejum ou não. Mexo devagarinho o cacau, ao qual juntei um pau de canela, açúcar mascavado e antecipo com prazer o prazer que terei ao bebê-lo, misturado com um bocadinho de leite, bebido devagar como foi cozinhado. Cada vez cozinho mais devagar, só uso lume forte se preciso de selar uma peça de carne rapidamente e depois vai directamente para lume fraco, para tempos longos, deixar que seja o tempo a cozinhar, o tempo e a memória aos quais se juntam os diferentes prazeres, os da espera e os do palato, os antigos e os novos, tudo isto acompanhado pelo piano mágico de Mal Waldron, pelo baixo de Charlie Haden, por música barroca tocada à guitarra, por um vinho quente bebido devagar, como foi feito: devagar. Uma lenta mistura, como lento é este domingo frio e chuvoso, cinzento e constipado, os lenços de papel voam e apercebo-me de que são eles a única coisa rápida do dia. No mar não me constipo, não sei porquê. É tão grande, a quantidade de coisas de que ignoro a razão mas agora dou-me ao luxo de as ignorar devagarinho, é a melhor forma de não saber qualquer coisa. O espaço da ignorância é demasiado grande para ser percorrido a correr, corre-se o risco de nos cansarmos antes de lhe chegar ao fim. O cacau acabou - foi ao pequeno-almoço - o vinho quente está a acabar - é a sobremesa do almoço - e esta mescla não tarda dispersa-se pela tarde de domingo, dedicada ao Desidério e às coisas simples como o cacau da Casa Chinesa, o vinho quente, o Missouri Sky ou, sobretudo, a lenta jouissance da ignorância.
8.2.25
Filosofia na alcova
Preocupam-me mais os sentidos na vida do que o sentido da vida. Tal como a esperança, que mais parece a minhoca que o pescador põe no anzol para capturar o peixe (mas esse peixe somos nós). Mais vale estar de esperanças do que ter esperança, apesar de isto só se aplicar à parte fértil da população feminina. Enfim, é um jogo de palavras.
A vida não tem sentido nenhum, com a óbvia excepção daquele que cada um de nós lhe dá. Não é a vida. É a nossa vida que tem um sentido. A esperança para nada serve, ao lado daquilo que temos de fazer para dar sentido à nossa vida.
Não é a esperança, é aquilo que fazes, com esperança ou sem ela. Não é a vida, é aquilo que dela ou com ela fazes.
(Ou com elas.)
7.2.25
Evocação, luz, Júdice
6.2.25
Diário de Bordos - Caminha, Portugal, 06-02-2025
O caminho de Santiago (O Caminho, para os entendidos) está outra vez na moda. Não há dia que não veja passar um gajo de mochila às costas. Às vezes andam aos pares.
Um dia fá-lo-ei, eu também. De avião.
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Por falar em aviões. Subi ao Monte de Santa Tecla, na margem espanhola do rio, para ver os baixios. Serviu de pouco, porque está de maré morta e apesar de ser baixa-mar ainda havia muita água. É preciso esperar quinze dias.
A vista é deslumbrante. Lembrei-me de quando ia com o meu Pai inspeccionar as barras dos rios da Zambézia. Enfim, ele inspeccionava. Eu ia à pendura.
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Poupamos quase quarenta cêntimos por litro indo a bancas em Espanha. Ainda há quem seja contra a União Europeia? Eu não sou.
5.2.25
Uma, muitas, a mesma
Regresso à vida entre dois países, à vida de construção do ecossistema, à vida de dar corpo a uma ideia. Tudo é novo, tudo cheira a novidade e tudo foi já vivido, como o cheiro da terra depois de cada chuvada: é o mesmo e é diferente.
Abençoados sejam o tempo e a sua circularidade, abençoada seja esta vida que me poupa ter de esperar pela próxima para ser múltipla.
4.2.25
Reclamação contra a não-renovação da carteira profissional de Elisabete Tavares
Enquanto consumidor de notícias, cabe-me escolher quem mas fornece. Os corporativismos - de que reconhecidamente a nossa sociedade é prenhe - não têm muito que os recomende. Essa insuficiência é em condições normais pouco visível. Todos nos habituámos a conviver com ordens disto e daquilo e foi preciso uma Covid para que a nocividade da ordem dos Médicos (para citar um exemplo) tenha vindo à luz do dia.
A CCPJ - um organismo de que até há bem pouco tempo eu desconhecia a existência - veio agora provar que a autoridade moral das ordens para definir quem pode e quem não pode fazer parte delas é reduzida. Nula, por assim dizer. Inexistente. Com que autoridade recusam V. Exas a Elisabete Tavares a «carteira» profissional? Não me refiro à autoridade legal. Provavelmente tê-la-ão mas sim à já mencionada autoridade moral.
Que a sociedade portuguesa está meio putrefacta é um facto ilustrado pelo, entre muitos outros exemplos, estado lamentável a que a nossa comunicação social chegou. Com, apercebemo-nos agora, a cumplicidade activa de corpos sociais como a CCPJ, que expele uma das melhores jornalistas portuguesas por... porquê? Bem, por ser uma das melhores jornalistas portuguesas.
(Leitor e subscritor do Página Um)
3.2.25
Diário de Bordos - Caminha, Portugal, 03-02-2025
No fundo é da construção de um novo ecossistema que se trata e por isso é tão jubilatório. Ideia associada à de que a passagem será longa, desta vez. A de que "sou de onde estou" reganhou toda a força que nos últimos anos perdeu.
Ao Buraco - a cabidela estava uma delícia e doeu-me ter de deixar metade - juntaram-se a Casa Chineza, a Sanzala e uma oficina de bicicletas com um nome esquisito que é a mais antiga do Porto. Existe, diz a tabuleta, desde 1944. É minúscula e está cheia de burras, faz-me lembrar a loja do santo Ivo em Palma.
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A Coluer adapta-se às ruas do Porto e lá se vai safando. Os problemas com a corrente só se manifestam nas velocidades altas e como aquilo é só subidas - não há descidas no Porto. As ruas sobem mas não descem - tudo correu bem.
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Comprei cacau e café da Indonésia e do Burundi, este a metade do preço do da loja de Viana do Castelo. A diferença de preço compensa largamente a diferença de duração da viagem de comboio. Viana fica para outros meios ambientes. Café, cacau e chá pertencem ao do Porto.
Às portas da morte
Sou o orgulhoso possuidor de duas gripes anuais nos anos normais e uma nos bons. Zero gripes só me aconteceu naqueles períodos em que não tive invernos, o que, ironias à parte, não é tão bom como pode parecer. Uma vez, num desses anos fui a Genebra em Março ou Abril e a primeira coisa que fiz foi ir a uma montanha aonde havia uns restos de neve. Não me engripei mas regressei com prazer às primeiras vezes que vi neve, ao largo do Japão e depois durante um interminável Inverno em Nakhodka.
As minhas gripes ocorrem normalmente no princípio e no fim do Inverno, naqueles períodos em que ainda é mas já não é Outono, ou já é mas ainda não é Primavera. São gripes simpáticas, pesadas, honestas que se tratam com três ou quatro dias de cama, uma quantidade copiosa de chá preto com rum branco numa proporção de metade metade (sou pela mestiçagem) e algumas terapias farmacêuticas, dependendo estas da pessoa que me está a "tratar".
Há quem troce dos efeitos que uma gripe tem num homem. São pessoas insensíveis, essas. Um homem não "parece" que está a morrer. Um homem morre com uma gripe. Um homem desvanece-se, deixa de ser, desfaz-se em suor e fica sujeito às ordens e ao sarcasmo de uma senhora (geralmente, no meu caso. Nós homens não sabemos "tratar" gripes alheias). Uma gripe está para a parte masculina da humanidade como a mudança de casca para uma lagosta: é um período de fragilidade intensa a que se segue uma ressurreição.
Hoje creio ter escapado tangencialmente a uma dessas maleitas precoce. É a natureza a avisar-me, na sua bondade: prepara-te e avia-te, Luisinho. Não tarda estarás às portas da morte, que te acolherão com a hospitalidade do costume e te expelirão de regresso à vida real alguns dias depois, com a acrimónia de sempre.
2.2.25
Ainda é cedo. Está quase
De Fevereiro vê-se Março a olho nu.
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Chegou Fevereiro. É o Inverno a fazer uma vénia de despedida, muito rápida porque está aflito para fazer xixi. Pede a Março que venha para o palco. Março acede. Traz a Primavera no bolso, mas ainda é cedo para a mostrar.
Não sonhas, sequer
De costas para o muro, com o pelotão de fuzilamento à frente, conseguiu fugir trepando a parede com a ajuda de dois balões de hélio que se lhe vieram amarrar aos ombros. Um terceiro esvaziara-se nos soldados, levando-lhes as balas que estavam dentro das armas.
- Estás a sonhar com ladrões - dissera-lhe A.
- E tu não sonhas, sequer - respondera.
A indomável verdade é que os balões o elevaram nos ares. Quando se viu livre das inexistentes balas deixou-se cair. Aterrou na cama de A., que o acolheu de braços e olhos abertos.
- Tem sido assim desde que a adolescência me deixou, sozinho e nu, face aos soldados todos do mundo. Salvo in extremis por três balões de gás. Às vezes quatro: reservo um para os sonhos.
A. não o levou a sério, claro. Este mundo não é para quem acredita no poder salvífico dos gases mais leves do que o ar.
Ou dos sonhos, pesados que sejam.