30.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025

Uma das senhoras etíopes está doente há uns dias. Como não se queixava muito pensei que era enjoo, perguntei-lhe se queria comrimidos para o dito, respondeu que não e pronto, a coisa ficou por aí. Hoje ia entrar de quarto às três da manhã e vejo-a sair da casa de banho num estado de meter medo a um médico legista. Entretanto o cunhado e a irmã também acordaram e ee volta-se para mim e diz: talvez seja preciso chamar um médico quando chegarmos. Estávamos então a quase trezentas milhas de St. Lucia e a minha vontade de esperar dia e meio ou mais não era, por assim dizer, muita. Perguntei-lhe se os comprimidos que lhe tinha dado na véspera tinham tido algum efeito. O primeiro Buscopan sim, o segundo não - ou melhor, piorou. A senhora não tem febre, fala quase ininteligivelmente, transpirava abundantemente e eu começo a ver a vida andar a ré a toda a força. Perguntei-lhes se conheciam algum médico etíope que se pudesse chamar por Whatsapp, a resposta foi sim. Pouco depois liguei a um amigo americano que vive na Suíça e confirmou a terapia proposta pela médica etíope: água com açúcar e um bocadinho de sal. Provavelmente a senhora está com uma gastroenterite e, acrescentou, isso «é muito contagioso». 

Espero que não. A sê-lo, já a teríamos todos apanhado. De maneira é isto: motorsailing para Rodney Bay Marina. ETA amanhã às três ou quatro da tarde. Entretanto a senhora está mais calma, dorme no salão, vai bebendo regularmente água com açúcar e um bocadinho de sal e eu prometo que nunca mais vou dizer que não a um Starlink a bordo.

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Os preconceitos ou vêm comprazo de validade ou resvalam para a estupidez. Digo eu, que sou bastante ambivalente com as minhas ideias preconcebidas: agarro-me a elas com unhas e dentes e troco-as por outras mal se me apresenta uma razão suficientemente forte para justificar a troca. Hoje, foi a vez do «Não!» ao Starlink. Verdade seja dita: já há algum tempo andava a pensar nisso. Afinal, sempre tivemos meios de comunicação a bordo, desde as bandeiras do Código Internacional de Sinais até aos rádios de ondas curtas. O VHF mantém-se, mas aqui não serviria de muito.  Seja como for: vê-los a trocar mensagens com a médica etíope e poder falar com o D. que está em Lausanne compensam largamente o que me aborrece estar tão dependente do FB mesmo no mar. A culpa é minha e não do Elon Musk, a quem estou infinitamente grato.

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Outra lição: refrescar os meus conhecimentos de primeiros socorros. Não me passou pela cabeça que aquilo poderia ser uma gastroenterite - é, quase de certeza - e estava completamente às aranhas. Tive alguns bons reflexos - a primeira coisa com a qual me preocupei foi a desidratação, por exemplo -, dei-lhe Buscopan (infelizmente a senhora é sensível aos efeitos secundários e tive de parar) mas aborrece-me ter feito isso um pouco por reflexo, às apalpadelas (salvo seja, claro).

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Mais uma lição: a gestão criteriosa que fiz do combustível permite-me ir agora a quase duas mil - e quando passar o que tenho nos jerrycans para os tanques espero poder subir um bocadinho. 

29.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 28-11-2025

Dormi como há muito tempo não dormia e quando acordei fui lá fora ver aonde param as modas. A noite está linda, enluarada, sem sinais de squalls, com o vento pouco abaixo dos vinte,  a velocidade entre os seis e os oito, o bote no rumo, as baterias em ordem - vou precisar de as carregar mas só daqui a um bocado, quando já estiver de quarto. Até lá, deixa ir que vai bem.

Comecei por pensar "que merda de dia a acabar tão bem" e apercebi-me logo de que estava enganado. O dia foi porreiro: conseguimos evitar todos os aguaceiros (não que tivéssemos tido muito mérito nisso...), andámos bem, fizemos meia dúzia de horas de motor e fizemos jus ao que pensei a cada um que nos passava ao lado: estamos na avenida da boa-sorte.

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A continuar assim, não toco nos duzentos e sessenta litros* de gasóleo que ainda tenho nos jerrycans, provando uma vez mais a minha tese segundo a qual "navega-se com o combustível dos tanques".

Isto dito, vem-me à memória a travessia deste Maio, cuja quantidade absurda de bidons me permitiu cortar quase a direito até à Horta e arrumo a tese debaixo do tapete com um acrescento: "quando se pode".

(* - O D. usou vinte litros porque precisou de substituir o balde que se perdeu e improvisou com um jerrycan cortado so meio.)

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De modo daqui a três quartos de hora entro de quarto e inauguro o antepenúltimo dia da viagem. Cujo fim é vem vindo: estou cansado.

E preciso de uma cerveja. Lembram-se: "uma cerveja, um duche e uma mulher, por esta ordem, se faz favor"? Dos dois últimos não sinto muito a falta, graças ao dessalinizador e à idade, que tanta serenidade me trouxe. Mas de uma cerveja a sério... ah! Daria por ela reino e meio. Estas cervejas sem álcool são intragáveis e ainda fazem pior. Dão vontade do produto real.

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Esta história da ausência de cerveja comprovou outra coisa que já sabia: a minha ausência de inveja é estrutural. Não me incomoda nada ver a P. e o J. beberem uma lata ou duas, às refeições e fora delas. Não estão abrangidos pela lei seca - "a menos que exagerem", o que não foi o caso - e embarcaram uma quantidade correcta. Creio que o stock lhes acabou hoje.

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Afinal vou passar no Marin mais tempo do que pensava. Deo gratias.

28.11.25

Diário de Bordos, aonde se fala de squalls e outras coisas, 27-11-2025 / II

A navegação nas Caraíbas sofre de duas pragas, desculpem-me a repetição,  já aqui falei disto uma vez há cerca de duzentos anos. Uma é a burocracia,  da qual tive recentemente um cheirinho, mesmo em alto mar, modernité oblige. A outra são os squalls. Em francês: grains. Em espanhol: chubasco ou chaparrón. Em português: creio que a tradução correcta é aguaceiro mas não tenho a certeza. O Deepl e o Google dão-me tempestade, borrasca. Estão errados. Paciência. Um squall é uma mini-tempestade súbita, com um aumento brusco da força e direcção do vento, acompanhada por chuva violenta. Em linguagem simples e corriqueira, um squall é uma merda. Em primeiro lugar porque tem um movimento próprio. O vento que gera pode chegar a fazer noventa graus com o vento sinóptico - o que dá frequentemente origem a cambadelas desastrosas. Em segundo lugar porque é imprevisível: um gajo pensa que ele vai para sul e o sacana muda de direcção com a agilidade de uma gazela perseguida por um leão. Às vezes alinham-se uns a seguir aos outros e fazem uma parede de trovoada, chuva, relâmpagos e raios que pode durar horas ou dias - já me aconteceu por duas vezes, uma entre Grenada e a Martinique  - passei o dia todo com uma dessas paredes a quatro ou cinco milhas por estibordo e só me caíram um ou dois em cima ao fim da tarde, quando ia a entrar em Bequia para descansar, obrigado à regulação francesa que não pemite navegação em solitário mais de uma certa quantidade de horas, não me lembro de quantas. (Isto não se aplica ãs regatas em solitário,  obviamente nem aos trajectos privados). Outra vez foi entre Providência e St. Martin. Três dias com uma assustadora muralha de raios, trovões, squalls e relâmpagos bem mais longe mas muito piores. Felizmente não apanhei nenhum. 

Hoje, agora, um "aguaceiro" (aspas porque duvido) acaba de me passar uma rasia. Só que não consigo perceber se vêm mais ou não. A norte o horizonte está bastante escuro e fechado mas não vejo mais sinais de badanal. Pela proa está assim assim (e muito bonito, com a Lua em Crescente, horizontal, a iluminar desigualmente as nuvens, espalhadas por várias altitudes e o mar, esse sim, uma estrada prateada muito bem delineada).

Ou seja: uma noite de standby, que é a expressão inglesa para uma noite de merdaSem o amantilho não posso rizar - poder posso, mas só depois do fim do último caso - de maneira enrolei a genoa toda, sempre me dá mais margem de manobra e aqui vou, a olhar alternadamente para o céu, para o horizonte e para o telefone aonde escrevo, vestido com o casaco Henri Lloyd que começa a perder a impermeabilidade, tal como as calças que não tarda vão à vida (ou seja, para o lixo, raio de expressão), substituidas por umas Gill compradas em Gibraltar e que ainda não precisei de pôr porque o squall do outro dia veio repentinamente demais e não me deu tempo para as estrear. 

O céu a norte começa a limpar e vou desenrolar a genoa. 

Não vou nada. Vou cantar laudas por ter escapado a um e olhar para a beleza do céu, com as nuvens caoticamente delineadas pela meia Lua que não tarda mais de três quartos de hora se põe e vai deixar a noite sem pingo de luz.

27.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 27-11-2025

Espero a chegada do sono e a das palavras. Vêm frequentemente juntos. Já de vento não vale a pena esperar muito mais: entre quinze e dezoito nós, a fazer um rumo bastante correcto e com tudo a funcionar bem; tudo sendo velas, motores, dessalinizadora e grupo electrogéneo. Chegamos segunda-feira. Só não sei a que horas.

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Nestes barcos, o distinguo entre tripulação e passageiros é fluido. Intuitivamente, sei que somos dois tripulantes - o D. e eu - e seis passageiros- a P., o J. e os quatro etíopes. Destes, três não fazem quartos (o outro tem dois anos) mas tratam do interior. Lavam pratos e passam o aspirador. O D. faz tudo - cozinha (excelentemente), faz quartos e trata de tudo a bordo. Falta-lhe um pouco de qualquer coisa mas compensa bem com a vontade de aprender e a vontade de fazer.  Tem um dente de prata (ou prateado) que lhe dá um aspecto horrível quando abre a boca mas como é voluntarioso e eficaz a coisa passa.

Eu faço o resto, que parece pouco e é muito. Não me posso queixar, pelo menos até agora. Vou batendo na madeira para que isto continue assim. Temos de fazer quase quatrocentos litros de água por dia, carregar baterias meia dúzia de horas - um parque de novecentos a/h de lítio com alternadores e carregador de origem não vai longe - e navegar no inevitável caos que foi a arrumação das provisões: compras feitas pelo escritório, enganos do supermercado nas entregas, confusão com o número de pessoas a bordo de cada barco (somos quatro, três catas e um monocasco). O resultado é que as coisas não foram arrumadas. Foram postas ao calhas e aonde havia lugar. Além disso, temos uma quantidade infinita de algumas coisas e outras estão a acabar.

O meu inabalável optimismo resume tudo bastante bem: tens comida, água, combustível, vento, motores, velas e uma excelente tripulação. Que queres mais? Nada, claro, excepto chegar depressa para dar um abraço ao meu filho T. e beber uma cerveja.

Com álcool, que as sem são pecado mortal.

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PS - não chega bem a quatrocentos litros por dia mas anda lá perto. É aterrador. Cinquenta litros por dia e por pessoa!

Há muito que desisti de formar marinheiros. (E beneficio disso: um duche por dia, loiça lavada com água doce na cozinha ou na máquina de lavar (!), lavagens de roupa quotidianas (eles. Eu vou na segunda e é um pau por uma pedra. Há que manter vivas as tradições familiares). Claro que me irrita passar o dia a ouvir o grupo ou os motores - uso-os alternadamente para carregar as baterias, por razões longas demais para explicar aqui. 

Além disso, tenho um duche à espera.

26.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Mindelo e St. Lucia, 26-11-2025

Só entrava de quarto às três da manhã, mas às duas o J. veio chamar-me: o alarme das baterias estava a tocar. Ainda não sabe pôr o motor a trabalhar e prefiro de longe que continue sem saber. Mas a coisa apimentou-se porque o spi não parava de bater, impossível estabilizá-lo. Decidi arreá-lo, o D. também estava acordado e pela primeira vez nesta viagem e em muito muito tempo mandei um grito. É raríssimo gritar porque é contraproducente mas desta vez não quis conter-me. Estavam vinte nós de vento, eu agarrado ao spi que já estava dentro da meia, peço ao D. para folgar a adriça e o gajo engana-se e folga um rizo. O spi não vinha para baixo, claro e eu a ver-me dentro de água e lá saiu um berro. O rapaz amuou, coitadinho; fiquei preocupadíssimo. Às seis entrou ele de quarto e pus as coisas em pratos limpos. Diplomaticamente, claro. Nunca é tarde para se aprender as lições que o meu Pai me tentou ensinar anos e anos e eu não ouvia.

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De modo agora vamos sem spi, só com a genoa e cada vez que olho para fora chateio-me. O P. D. dizia, quando me via afinar os panos que se «pode tirar um homem das regatas mas não se pode tirar as regatas de um homem». Não tem nada a ver com regatas, P. Tem a ver com ser marinheiro e não uma pessoa que anda em barcos.

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Isto dito, o dia está lindo, o cancelas aguenta-se, o aprivisionamento - feito pelo pessoal de terra e não por nós em cada barco - revela as suas falhas. Felizmente já só faltam cinco dias para me aprivisionar correctamente em accras, boudin créole e ti'punch.

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O vento vai e vem o vento e é um chato, há que dizer a verdade, mas dentro da chateza tem pelo menos tido a amabilidade de não se ir embora de todo, anda aqui entre os quinze e os vinte, entre NE e E e o cancelas que quer é sopas e descanso lá vai, entre os seis e os oito nós, ora para norte do rumo ora para sul, sem spi que é o que me encanita mais. O ETA segunda-feira é cada vez mais provável, vamos a ver o que faz o senhor Eolo, às vezes tão tolo.

25.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 25-11-2025

Não me lembro rigorosamente nada de onde estava, o que vi ou o que pensei no dia vinte e cinco de Novembro de mil novecentos e setenta e cinco. Tenho uma muito vaga memória de uma conversa com o meu primo P., que era fotógrafo do Diário de Notícias, em que ele me disse ou que ia ou tinha ido para o RALIS fotografar - mas o mais provável é isto ter sido depois. (O P. era um fotógrafo fantástico, aqui fica registado.)

De maneira vivo o meu vinte e cinco de Novembro de hoje: enviar o spi e tratar de papelada (obrigado Starlink) de manhã, navegação e manobra à tarde - fizemos a primeira cambadela correcta da viagem - e agora dormir. Estamos a andar bem e lá para domingo ou segunda-feira chegamos a St. Lucia. 

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(Cont.)

Método e consequência

Olhar para as ideias como aquilo que são: poliedros. Avaliá-las bem por todos os lados, ver como e até onde reflectem a luz. Escolher uma face e só depois adoptá-la, com um ponto de interrogação no fim. Nunca transformar uma ideia em certeza mas defendê-la como se o fosse. Maltratar as ideias, saber até onde resistem, amassá-las como se delas se fizesse pão. 

Faz e quanto mais tempo resistir mais dura fica.

24.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 24-11-2025

Hoje tivemos o primeiro squall da temporada. Na parte vento foi fraquito, ficou-se pelos vinte e poucos nós; mas na chuva compensou. Há meses que não via chuvas destas. Quem é que precisa de um dessalinizador com uma espécie de Victoria Falls a cair-lhe em cima durante uma hora?

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Esta noite ou amanhã de manhã chegamos a metade da viagem. Em distância. Em tempo espero já ter passado. 

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Um dos meus passageiros é um miúdo de dois anos. Tem-se comportado admiravelmente. Ou, parafraseando a minha querida filha de há trinta anos, «tem desempenhado admiravelmente a sua profissão de miúdo». O original tem mais piada: «Tu fais très mal ton métier de mère", largou ela à mãe - que ainda por cima é psicóloga infantil.

Os etíopes são um povo do caraças, essa é que é essa. 

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O vento voltou. Vinte nós pela alheta de estibordo. Não vamos muito depressa, qu'isto é um camião e o mar está um bocado desencontrado mas pelo menos avançamos.

23.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 23-11-2025

Hoje partiu-se o amantilho e pescámos um bonito. Por esta ordem. O amantilho não é dramático, é só chato quando for preciso arrear a grande. Já o bonito não se pode dizer que seja o meu peixe favorito. Muito longe disso. Mas enfim, é melhor do que nada. Este é o terceiro.

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Dramático é a porra da falta de vento. Hoje ainda apareceu umas horas, mas já estou a motor outra vez. Vou com os dois, ao diabo a poupança. De qualquer forma à chegada haverá corrente de ar de certeza. Vou lá chegar em Dezembro, tempo dos Christmas Winds e quero despachar-me, estou com saudades do meu filho T., das accras de morue e do boudin créole do mercado, do ti'punch de todo o lado, do bar do hotel l'impératrice e por aí fora.

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Só me resta esperar que não se parta mais nada. E que entre vento. Ontem já era tarde.

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Fiz pão, pela primeira vez no cancelas. Ficou bom, um pouco a cair para o insosso mas nada do outro mundo. Com manteiga da Bretanha nem se notaria.

22.11.25

Aprendizagens

Em Arrecife comprei uma colectânea de correspondência de Cioran que comecei agora a folhear. Dela parto para a minha descoberta do senhor, pelas mãos do M. R e continuo pelos caminhos a que ele me levou: o jazz, o situacionismo, a The Economist e tanto mais. Isto leva-me ao mar e ao J. de C. (a partícula é imprescindível). Depois, alguns anos depois, com a S. aprendi a ser eu.

Posso não ter jeito para muita coisa, mas para escolher com quem aprender tive de certeza.

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 22-11-2025 / II

Ele há dias assim, dias em que a merda do vento não entra, a porra do motor não se cala, a tripulação não tripula e eu vou por aqui a arrastar-me a cinco nós e a quinze graus do rumo na esperança de amanhãs que cantam, futuros ventosos e outras tretas que tais. Valha-me o D., que está a preparar um puré de batata para comer com os bonitos que apanhámos ontem, são pequenos mas chegam para todos. Sonho com o dia em que possa fazer isto com amigos, verdadeiros amigos, pessoas com quem se possa conversar. Ou melhor: com quem me apeteça conversar. Pessoas como o Nuno ou o Bruno, porra, aonde é que estão vocês quando eu mais preciso? Ou a Ana, há tanta gente por esse mundo com daria tudo para estar aqui agora.

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É que ainda por cima não posso queixar-me, cúmulo do desespero: o kalimero que em mim habita não pode manifestar-se por falta de razões. Ausência de perfeição não é sinónimo de desgraça.

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(Continuação)

A Lua apareceu, finalmente, muito branca, do tamanho de umaunha mal cortada. O vento subiu um bocadinho, entra tímidamente,  à socapa. Pelo menos deu para enviar a genoa e parar a máquina. Claro que o rumo se ressentiu. Estou outra vez a quinze graus dele.

É um equilíbrio entre dois parâmetros: o SOG, em português velocidade no fundo e o VMG, velocity made good (näo conheço o equivalente  na nossa língua e agradeço a quem mo ensinar). Velocidade no fundo é fácil: a velocidade à qual eu avanço em relação ao fundo do mar, regra geral diferente da velocidade na água por causa de correntes e outras derivas. O VMG é a velocidade à qual em avanço em relação ao objectivo. Quando a proa coincide com o rumo o VMG é igual ao SOG e eu sou um homem feliz. Não é o caso agora. O meu rumo é duzentos e setenta - Oeste - e o vento é Esnordeste. Ou seja, está-me praticamente na popa. Para aumentar o meu SOG devo orçar, mas não demais porque senão lá vai o VMG pelo cano. Uma embarcação de vela é um bicho esquisito que não navega com o vento na proa mas tão pouco gosta dele pela popa arrazada. Há que pô-lo na alheta, ou seja a cerca de cento e sessenta graus da proa, mais coisa menos grau.

Para explicar isto tudo bem explicado seria necessário introduzir os conceitos de vento real e vento aparente.  Fica para depois, pode ser? Agora tenho uma mini-Lua e meia dúzia de estrelas para ver.

Posso contudo lembrar aos meus generosos e tolerantes leitores que para um marinheiro a distância mais curta entre dois pontos raramente é um linha recta. O que ajuda a explicar muitas coisas.

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St Lucia, 22-11-2025

Não há Lua: a noite está escura como o fundo de uma gruta; não há nuvens: o tecto da gruta está cheio de buracos, milhares deles; não há vento: a perfeição não existe. O problema agora reside em saber quando o terei. Com sorte, domingo. Continuo a pôr sul no meu rumo, doses pequenas,  uma dúzia de graus. A esta velocidade, mais é inútil: quando lá chegar já ele se foi (isto é mentira, eu sei. Daquele tipo "O meu tio da América")... Vejo mais vezes as previsões do que uma freira se benze quando passa à frente de um bordel. Vai para sul, jovem. Vai para sul. Enfim.

A verdade é que são quase quatro da manhã e Orion já está de pernas para o ar. Estou a sul que chegue, ó capataz disto tudo. Sirius está por cma das três marias. O céu começa a limpar-se das estrelas mais fraquinhas, coitadas. Só lhe vejo um pequeno sector, por causa do bimini. Os barcos deviam ser descapotáveis como alguns automóveis. É uma pena ter de me levantar e andar três metros para ver o que se passa a norte. A Polar não deve estar visível. 

Não está e a Ursa Maior vê-se mal. Volto para o meu lugar. Prefiro olhar para este negro absoluto que tenho pela proa, que a luz do telefone torna ainda mais negro. O absoluto não existe.

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Era preciso virar o cinto do avesso mas em Palma o meu sapateiro precisava de uma semana e dez euros. Como é o único cinto que tenho e preciso dele, graças a Deus e ao Trulicity, declinei. Em La Linea o sapateiro que fica à frente da livraria precisava de dois euros e meio e devolvia-mo no dia seguinte. Aceitei.

Quando chegar à Martinique terei de comprar um novo, coisa que me aborrece porque este agora está bom. Bastar-me-ia ter menos dez ou quinze centímetros de tour de taille. Não há sapateiros como os nossos. É o que sabemos fazer: sapateiros, futebolistas e emigrantes. E costureiras, claro, daquelas que ainda sabem virar os colarinhos às camisas. 

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O capataz disto tudo bem podia enviar-me um bocadinho mais de vento em vez de sapateiros que me fodem o cinto. E pôr-me a trabalhar num setenta pés, já agora. 

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Ontem tomei um comprimido para a dor no braço. Passou e não voltou (ainda, claro). O Sul e a química resolvem quase tudo.

21.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e S. Lucia, 21-11-2025

Todos os dias nos faltam dez dias para chegarmos porque todos os dias há cada vez menos vento. A estimativa é minha. O GPS acha que são mais. Mas o GPS não percebe nada de previsões meteorológicas e menos ainda de optimismo. Para ele só conta o aqui e agora. Nem tem memória de travessias passadas nem é capaz de se projectar no futuro. Eu tenho essas duas qualidades, às quais se vem juntar um prodigioso optimismo, capaz de transformar qualquer realidade num conto de fadas.

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E de transformar um spi inteiro num spi rasgado. Pouco e reparável mas rasgado. A homofonia em "e reparável" é propositada, pelo menos até chegarmos a terra. O Ernst em Cole Bay trata daquilo em minutos. Já eu não estou seguro da minha "reparação", que consistiu em pespegar-lhes tape de vela. Vá lá que ao menos é de spi.

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Enfureci-me comigo e com o meu optimismo desenfreado mas hoje passaram-me as fúrias: nem para um spi tenho vento. Vou com a grande e o motor de estibordo à fantástica velocidade de cinco nós. 

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Porquê o motor de estibordo, perguntarão os mais interessados? Porque a) com dois motores não faço o dobro da velocidade mas gasto o dobro do combustível; b) o gerador é alimentado pelo tanque de bombordo, que por conseguinte tem sempre menos gasóleo. Ora, se há coisa de que um marinheiro gosta é de simetria.

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A carcaça reclama por causa dos esforços físicos destes últimos dias. Usa o velho método DADA: dói aqui, dói ali. Por muito grato que eu esteja à sacana - e estou - sou obrigado a ignorá-la. Quando muito, um comprimido ou dois. Se ela pensa que me vai fazer parar, está a sonhar com ladrões. Tens olhos na cara, não tens? Então olha à tua volta e pensa na quantidade de DADA de que vais precisar para me fazer abandonar isto. E nas noites. E em tudo. Vamos ao comprimido e pára de me chatear.

19.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 19-11-2025 / II

Primeiro problema sério resolvido: uma retrete entupida que afinal não estava entupida. Era do interruptor. Duas horas de trabalho, com a ajuda do senhor etíope e do técnico da empresa. Felizmente tinha a bordo um interruptor desses dos molinetes eléctricos que agora sofreu um rebaixamento de classe e foi para a casa de banho. 

Mais uma vez se prova que a sofisticação a bordo das embarcações é um erro. Estas retretes - que são de água doce, outra abominação - têm de origem um interruptor alimentado por duas placas electrónicas, uma das quais alimenta um solenóide que acciona a bomba da água limpa. É possível fazer mais complicado? Claro que sim. Congratulemos portanto os engenheiros da Catana por se terem ficado por aqui. 

Acontece que o sistema original deixou de funcionar e foi substituído por um interruptor desses baratos. Neste caso, pode dizer-se "por um interruptor de merda". Foi este que agora avariou.

Agora, resta esperar que mais nenhum avarie. Faltam-nos dez dias para chegar e as casas de banho que temos - a saber, quatro - fazem falta e não tenho mais interruptores de reserva.

Perguntar-me-ão os mais curiosos: porquê água doce? Resposta: porque tem menos cheiro do que a água do mar. Num iate, seja ele super ou mega, a coisa compreende-se. Todos os sistemas são redundantes, têm dois ou três geradores, duas ou três dessalinizadoras, maquinistas e clientes que pagam isso tudo.

Num quarenta e seis pés é uma simples estupidez.

Mas pronto, é o que há. 

PS - Não foi o primeiro. Foi o segundo. O spi na água e a carga de trabalho que provocou inauguraram a série. 

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 19-11-2025

O vento tropeçou nas previsões e deu um trambolhão enorme. Vou com doze / treze reais que a esta velocidade se traduzem em sete ou oito aparentes. A retranca faz barulho, o spi faz barulho e o barco não anda. Se o andamento fosse proporcional ao ruído estaria a voar. Infelizmente não é. 

Ou melhor, é: inversamente proporcional.

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A família etíope vai-se amarinhando (isto é um galicismo, eu sei, M. M.) Como todos os etíopes com quem contactei até hoje, estes são adoráveis. Tenho pena pelo miúdo, que passa a vida agarrado a um ecrã e faz birras quando quer um e näo o tem. Birras essas prontamente acedidas.

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Com mais uns nozitos de vento estaria no paraíso. Assim também estou.

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Afinal vamos desembarcar a família em St. Lucia e não em Barbados. Hallelujah!

16.11.25

Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 16-11-2025 / II

O dia todo passado a subir e a descer do mastro. Está demasiado vento e da primeira vez levou-me a guia; depois tentei pôr a adriça lá em cima mas o buraco do moitão é demasiado estreito; finalmente, já era quase noite - manda a verdade dizer que dormi uma sesta, curta mas sesta - pus mais uma guia amarrada à primeira, a coisa ia que nem ginjas até que ficaram as duas presas no interior do mastro, porque este se está a mexer demais. Resultado: tenho uma guia no mastro que não corre o risco de ser levada pelo vento e que só amanhã saberei se conseguirei libertar do que quer que seja que a está a prender. Quero ir-me embora amanhã - sendo que ainda estou à espera de saber se levo uma família de etíopes, a coisa está difícil, coitados, são adoráveis mas precisam de um visa até para ir à casa de banho e querem ir para o México... Enfim, passemos. Quero ir-me embora amanhã e se não tiver a adriça do spi dentro do mastro vou com ela por fora, que é o que devia ter feito logo de início.

(Para quem não sabe: uma adriça é um cabo que serve para içar uma vela. Como a do spi se partiu, é preciso passar primeiro pelo mastro um cabo mais fino - uma guia.) 

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A P. A. decidiu que afinal não se importa de navegar com um miúdo de três anos e voltou para o cancelas. Hoje, para celebrar, vai pagar o jantar a todos, «num sítio bom» (aspas porque cito). «Não contes comigo para dizer que não», respondi. É preciso dizer que até agora tenho comido bastante bem aqui no Mindelo. Ontem fomos à Casa Café Mindelo, que foi uma maravilha. Já o preço é igual ao da Europa, mas que se há-de fazer? Ao meio-dia comi uma cachupa excelente numa tascazinha - uma «lanchonete» - por um preço quase simbólico. Simbólico? Simbólico talvez mas a vontade de comer em «lanchonetes» já não me assiste. Pois vamos jantar a um sítio chulo, P.  

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Ou seja: acabámos na Café Mindelo porque os outros ou estavam cheios ou fechados. Mas o restaurante cumpriu: o pica-pau estava excelente, o serviço é para cima de muito simpático e se não fosse a música demasiado alta teria nota cem em cem. Acontece que isso da música muito alto é pecha local e de nada serve pedir-se para se a pôr mais baixo.

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Estou exausto, essa é que é essa. Apago a luz, ponho o telefone de lado e não consigo adormecer porque o cansaço me está a sair por todos os poros, suponho.

Ou espero, não sei. Às vezes é difícil ver a diferença. 

À atenção dos sucessivos governos portugueses

"Si de los gobiernos quitamos la justicia, ¿en qué se convierten sino en bandas de ladrones a grande escala?"

Santo Agostinho, in La Ciudad de Dios, ed. Tecnos, Madrid 2010.

Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 16-11-2025

Está um badanal do caraças, este mastro é alto para burro, passei a manhã toda a subir e a descer e ainda não tenho a adriça de spi resolvida. Resultado: o D. fez um almoço e vim dormir a sesta. Acrescento que estou fundeado e não atracado. Acrescento que não me apetece nada voltar lá acima mas ainda me apetece menos ir sem o spi. Resultado do resultado: vou ler umas passagens da Cidade de Deus, dormir, comprar fio de coser velas, acabar a porra da adriça e jantar. 

É um plano como outro qualquer e tem iguais probabilidades de ser completado. Ou seja, poucas. 

Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 15-11-2025

Eu bem sei que isto é um lugar-comum, mas há qualquer coisa nesta cidade que nos leva sem sombra de hesitação a pensar que o tempo se esqueceu do Mindelo. Não sei se é as ruas calcetadas, se a arquitectura ainda cheia de casas "antigas", se a permanente simpatia - doçura é o termo adequado  - das pessoas.

"O Mindelo é bom" seria um óptimo slogan, si tant est que um slogan pode ser simultaneamente verdadeiro e eficaz.

14.11.25

Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 14-11-2025 / II

Exala destas ruas, destes passeios, destas árvores uma estranha calma, apesar do tráfico. Não sei se é sugestão se é mesmo real, mas mal um gajo põe um pé fora da marina transforma-se. (A marina, essa, é igual a todas as marinas do mundo.) Será da simpatia das pessoas, que disparam sorrisos mais depressa do que o Lucky Luke sacava do seu revólver? Será da temperatura, deste calor temperado pelos benditos alísios? Não sei. Sei que percebo do coração quem quer que seja que tenha vontade de viver aqui (sem ganhar daqui, claro).

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A cachupa do Nautilus não me convenceu e amanhã vamos experimentar outra. Parece que sábado é o dia certo. Cachupa para mim era a do Domingos do Tambarina, que já foi, é a vida, pata que pôs a vida.

(Da qual gosto muito, pelo menos da parte que me tocou, de passagem seja dito.)

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(Cont.?)

Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 14-11-2025

O meu Pai tinha razão: "Luís, nunca vás a Cabo Verde. Se lá fores, nunca mais de lá sais." Poderia passar o resto dos meus dias aqui, na Columbinha, a ouvir música, ver dançar e beber cerveja. Ocasionalmente danço, mas é pouco. Eu só sei dançar sozinho. Mas sei apreciar o resto e isso chega-me. Nasci para viver nos trópicos, por mais que deseje o frio. Nasci para viver no mar. Nasci para ver esta gente dançar e lamentar não ser capaz de fazer o mesmo, tão fácil. Sou feito de emoções, fragilidades, lágrimas e noites como estas: mistura de misturas.

Nasci para ser o que sou: marinheiro em terra, marinheiro no mar, marinheiro em Cabo Verde e em breve na Martinique. Marinheiro na Lua, marinheiro neste mundo no qual me fundo como se fosse feito de aço. Não sou. 

Quando muito, aço mole.

13.11.25

Classificação

As três melhores partes de vida no mar são, por ordem:

1 - Chegar a um porto;

2 - Estar no mar;

3 - Largar de um porto.

(A ordem é a cronológica inversa, claro.)

Diário de Bordos - No mar, perto de Cabo Verde, 13-11-2025

Claro que tenho a latitude - dezassete graus não deixam margem de manobra à dúvida. Mas uma coisa é a teoria, a "frieza dos números" e outra fazer o quarto das quatro da manhã em pólo e calções,  pelo menos na primeira metade. Depois, é precido acrescentar umas mangas compridas e sonhar com as noites que aí vêm. 

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Daqui a menos de meia dúzia de horas chegamos ao Mindelo. Há uns anos passei lá um fim do ano. Gostei da cidade e das pessoas, a escala foi agradável apesar de as circunstâncias não terem sido as melhores. 

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Vejo o clarão do Mindelo. O farol Fontes Pereira de Melo em Santo Antão começa a dar sinais de vida. Hoje vou almoçar a terra e beber cerveja e vinho e aguardente e essas coisas todas que no mar não posso. E ainda há quem diga que o mar é monótono. Não é. Nem o mar nem a terra.

11.11.25

Diário de Bordos - no mar, entre Lanzarote e o Mindelo, 11-11-2025

A Lua sai da água, deitada mas jà lavadinha, toda limpa. Se não tem cuidado ainda choca com Júpiter, que está ali a guardar os Gémeos. O céu está limpo, ao contrário de mim, cheio de dores musculares a baterem-me à porta. Amanhã - hoje, já passam três minutos da meia-noite - vai ser lindo. E ainda há quem seja a favor do exercício físico. Estas dores estão para o abuso dos músculos como a ressaca para o do álcool. O dia faz um arco, como a minha querida Oríon: começa com um spi na água e acaba com o corpo a reclamar. Oríon também reclama: sabe que devia estar na minha proa para eu a poder ver sem ter de me virar todo e provocar um motim muscular generalizado.

A luz da Lua, apesar de ainda estar fraquinha, já apagou as estrelas menos resistentes (à dor? Não. À luz) e Sirius brilha isolada e imponente. Júpiter também resiste.  Castor e Pollux empalideceram muito mas continuam a zelar por nós, marinheiros. O cancelas lá vai andando a vento Yanmar que o outro está a desvanecer-se, coitado. E eu não tarda muito estarei de quarto em baixo, deitado, a pensar em Calasso e nas Núpcias de Cadmo e Harmonia, a coisa mais bonita que li sobre a mitologia.

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A propósito do uso de termos náuticos, objecto de debate interno desde que este blogue existe (ou seja, há quase vinte e dois anos): como todos os acidentes tem várias causas. Por um lado, o DV é uma conversa diacrónica de mim comigo e eu falo assim. Por outro, se há uma coisa que me entristece em Portugal - há inúmeras - é o desaparecimento do vocabulário náutico do nosso léxico. Em Inglaterra e em França as pessoas, mesmo não navegantes, têm uma noção de alguns termos náuticos. No nosso país isso desapareceu. Acresce que há sempre o simpático Google, agora com a muleta da inteligência caseira. Em última análise, quem quiser pode perguntar-me. Estar de quarto em baixo, por exemplo, significa não estar de quarto. Quando se está, diz-se que se está de quarto em cima, naturalmente. Gosto particularmente do uso da afirmativa em vez da negativa. "Estar de quarto em baixo" é mais bonito do que "Não estar de quarto", não é? É. 

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O vento cai, a grande reclama - diz que lhe dói estar ali em cima, pendurada no mastro, a não fazer nada - e tudo indica que daqui a pouco vou ter de a arrear. Não é para já. Por enquanto ainda ajuda.

10.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre as Canárias e Cabo Verde, 10-11-2025

A tourada acabou às seis da manhã e são oito e meia. Já posso escrever qualquer coisa, espero. Às quatro e um quarto o J. vem chamar-me: "o spi caiu". Estava a dormir no salão porque... enfim, porque e em menos de um minuto estava no convés. É preciso começar por dizer que o spi é um parasailor, daqueles que têm umas aletas que se abrem quando vem uma rajada. O tecido é duas vezes mais pesado do que o dos spis normais. Acresce que tem uma campânula para o abafar antes de ser arreado - os ingleses chamam sock a este método, que tem méritos em caso de tripulações reduzidas ou inexperientes, casos da minha. O spi é enorme. Não deve andar longe dos cem metros quadrados.

Era isto que estava agora na água, parcialmente debaixo dos cascos. Precisámos de quase duas horas, o marinheiro e eu, para o pôr a bordo. Uma hora  quarenta e cinco minutos, para ser exacto, de trabalho insano. A próxima vez que me lembrar da minha falta de força física lembrar-me-ei deste episódio e terei vergonha, como agora tenho, de todas as vezes que pedi ajuda "por não ter força". Ainda tenho.

O que já não tenho são os reflexos que dantes tinha. Aquilo podia ter sido feito mais depressa se eu tivesse feito logo o que deve ser feito: largado os cabos todos menos um e deixar o pano flutuar. Sinal de velhice ou de falta de treino? Prefiro esta àquela: um gajo que forneceu aquele esforço todo pode ser velho mas não deve pensar que isso o incapacita.

Ou seja: posso deixar de me ciliciar os neurónios? Obrigado. 

9.11.25

PTSD, PTSD

Por vezes pergunto-me se a minha vida não passa de uma sequência de PTSD. Salto de um para outro com a elegância de um saltador à vara.

Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Mindelo, 09-11-2025

Números, adjectivos, vida.

Força quatro ou cinco pela alheta, amurado a bombordo, sete nós no fundo, frio por enquanto suportável (näo tenho termómetro, este vai de adjectivo), Lua em minguante quase a chegar ao quarto, visibilidade boa, nebulosidade cinco (em oito, para quem não sabe e quer saber) sobretudo cumulus ou já estratificados ou em vias disso, mar de pequena vaga, proa ligeramente a sul do rumo porque não posso ou näo quero arribar mais. Acabamos de fazer sete horas a motor porque não havia vento mas agora voltou, entrou norte como estava previsto. E entrei eu de quarto, igualmente previsto: esperam-me duas horas e meia disto (se o vento leu a previsão. Se näo leu, a noite muda e eu com ela). Não dormira praticamente nada desde a largada mas agora desforrei-me: quase sete horas de sono interrompidas apenas duas vezes para vir à ponte, ver como estava a primeira, apagar o motor e ajustar os trapos a segunda. Quando sair de quarto continuarei a desforra.

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O bote já de si é um tamanco e vai carregado, o que explica a pouca velocidade e a muita água que arrasto pela popa. Fui calçar um par de meias e vestir o casaco de mar. Há algumas dezenas de anos (poucas) tive aquilo a que em francês se chama veste de quart. É um casacão não necessariamente impermeável - a sua função é aquecer. Este que me vem à memória tinha uma folha de alumínio no meio das diferentes camadas de tecido. Dizer que era quente é dizer pouco. Foi a melhor coisinha que me passou pelo corpo e o aqueceu. Nunca mais encontrei nada parecido. Ainda durou uns bons anos. Penso nele cada vez que estou de quarto à noite e tenho frio.

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O quarto continua: fui lá abaixo fazer café, não encontrei e fiz cacau, que me deixou mal disposto. O vento rondou a nordeste e tive de cambar. Uma das poucas coisas de que gosto no Bali é o sistema de escotas da grande. Transforma qualquer cambadela qualquer que seja o vento numa cerimónia de chá das cinco para senhoras da alta sociedade. Continuo mal disposto. Ou o cacau é manhoso ou bebi-o demasiado depressa, a pensar que tinha de cambar e a perguntar-me se no Mindelo encontrarei uma loja de café decente. Nunca se sabe. Em Barbate há uma. E em Arrecife há uma livraria. Tal como no Pico, Deus meu, quem pensaria encontrar uma livraria decente no Pico? Ainda por cima é também editora e vai publicar o meu próximo livro, Não Sei. Avenida da Liberdade, n° 1, De Passagem, Não Sei. A sequência soa bem, não soa?

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A má disposição não passa. Raio do quarto começou tão bem e agora isto. Orço um bocadinho, caço o estai e penso que quem olha para as derrotas dos veleiros deve achar que não sabemos para onde vamos. Sabemos e não é para onde nos leva o vento. É para onde queremos ir.

8.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Gran Canária rumo ao Mindelo, 08-11-2025

Arrecife, capital da ilha de Lanzarote, foi uma agradável surpresa. Ontem (enfim, anteontem, já passa da meia-noite) voltei lá. Tinha de deixar uma pessoa no aeroporto e recolher outra duas horas e meia mais tarde. Aproveitei para ir a um chandler - não tinha o que eu queria - comprei um livro  om textos sobre Calasso e passei duas deliciosas horas sozinho a ler. Tenho de recuperar a capacidade que dantes tinha de me isolar, de estar sozinho com um livro e uma cerveja ou um copo de vinho. Ando sempre cheio de gente à volta - näo é por acaso que escrevo cada vez mais no telefone, à noite na cama.

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Conseguí finalmente largar da marina Rubicon. Foi preciso dar um murro na mesa, dois gritos ao telefone e bater com o pé mas lá me pagaram o que tinham a pagar.

Esta empresa quer melhorar a horrível reputação que tem, mais do que justificadamente mas ainda não descobriu que pagar a tempo e horas seria uma estratégia eficaz. Acresce que nem sequer é por desonestidade. É simples desorganização - que de simples não tem nada, a falta de ordem, planeamento (e conhecimento, já agora) são alucinantes. Não há qualquer espécie de comunicação,  nem interior nem exterior. 

Têm uma qualidade - a senhora que (des)organiza isto tudo é bastante gira. Outra: e simpática.

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Passo entre Lanzarote e Gran Canária. Estou com vontade de Las Palmas e pergunto-me se teria preferido a descoberta de Arrecife ou o reconhecimento da capital do arquipélago, cidade de que tanto gosto e aonde há tanto tempo não vou. A resposta é imediata: Las Palmas. Quanto mais não fosse porque ali a marina é na cidade e não como Rubicon, no meio de nada e ao lado de um buraco de turistas. Ou seja: seria preciso reformular a questão: se pudesse escolher, teria preferido ficar na marina de Arrecife ou na outra? Não sei. Teria de descobrir uma livraria em Las Palmas equivalente à El Puente. Vermuterias e restaurantes há a granel. Não seria preciso procurar muito.

De qualquer forma a questão é ociosa. Não podia escolher, não sei quando voltarei e menos ainda se serei eu a decidir a escala.

Será Las Palmas, claro.

6.11.25

Diário de bordos - Marina Rubicon, Playa Blanca, Lanzarote, Canárias

A livraria El Puente, em Arrecife, Lanzarote, Canárias é a versão local da livraria Snob em Lisboa: uma maravilhosa selecção de livros e um livreiro simpático, eficaz e conhecedor. Entra-se e em cinco minutos tem-se vontade de comprar os livros todos. Consegui limitar-me a três (o que me valeu ter recebido mais duas plaquetes, a escolher entre várias. Trouxe uma antologia de Nietzsche e outra de Cervantes). Encontrei finalmente a Cidade de Deus, de Santo Agostinho e descobri uma colectânea de cartas de Cioran. Resisti a uma série de textos em torno de Calasso, que é daquelas coisas que me enfurecem e enchem de orgulho simultaneamente.

(Sería injusto não incluir nesta comparação a livraria Palavra de Viajante, em Lisboa. Ao contrário do que se seria levado a pensar é uma livraria especializada em temas de viagem e também tem essa horrível qualidade de submeter quem lá entra a uma pressão enorme: como sair dali sem ter comprado tudo o que está exposto? Como não invejar a livreira, que deve ter lido pelo menos três quartos daqueles livros e sabe falar deles com propriedade? Como não agradecer a seja a quem for que manda nisto não ter acabado com livrarias maravilhosas, daquelas que tornam o acto de transferência de dinheiro do nosso bolso para o delas uma infinita fonte de prazer e esperança?)

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À frente da livraria há uma vermuteria  chamada Strava (ou coisa que o valha) cujo vermute de grifo é bastante aceitável; ao lado fica o restaurante uruguaio Barbacana, que recomendo vigorosamente.  Se eu tivesse de escolher um sítio para viver em Arrecife seria ali, naquela rua, naquele canto.

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Arrecife encantou-me tanto quanto Playa Blanca me repugnou. Não consigo perceber o que vêem naquilo os milhares de turistas que lhe pejam as ruas e de caminho enchem os ouvidos de quem calha passar-lhes perto com aquele horrível inglês do estuário, rasca, eles sem camisa, cobertos de tatuagens, acompanhados por mulheres gordas, feias e igualmente tatuadas (e felizmente com camisa). Às lojas de  bugigangas seguem-se bares feios e a estes lojas de roupa feia. Depois, o ciclo recomeça: bugigangas, bares, roupa. Tudo isto alheio ao mais pequeno toque de beleza ou sensibilidade. 

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Hoje vêm mergulhadores limpar-me o casco e amanhã largo para o Mindelo. Qualquer dia morro mas até lá ainda há muito que viver, muitas milhas por navegar e muitos livros para comprar e netos para ver crescer.

4.11.25

Diário de Bordos - No mar, ao largo de Lanzarote, 03 e 04-11-2025

03-11-2025

Estou quase a chegar; a Lua está quase cheia, o mar quase sem vagas, o vento quase a zeros, a noite quase sem frio. O CdC - uma mistura de camião TIR de quarenta toneladas (?) e uma residência de luxo - avança quase depressa. Para terminar esta série, eu estou quase ansioso por chegar, ver se ponho estas porcarias todas em ordem. Ou quase em ordem, vá lá. A única que não aceita quases é a parte da massa. É verdade que não é nenhuma fortuna mas o guito é meu e quero-o do meu lado. A perspectiva de ir para o Panamá parece-me cada vez mais longínqua - o que de resto calha bem porque a ideia que me levou a Caminha deu um ténue sinal de vida.

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Em números bastante redondos estou a cinquenta milhas do waypoint (cabo Ancones, se por acaso) e a setenta da marina Rubicon, aonde conto chegar por volta das oito ou nove da manhã. Três dias de motor e um de vela, mas este valeu por todos os outros: vinte nós pela popa quase arrasada, umas dezenas de milhas a mais porque não dava para ir em rumo directo, duas ou três refeições memoráveis - quem tem um bom deckhand tem tudo. Até os passageiros ficaram suportáveis (ele sempre foi, verdade seja dita).

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04-11-2025

Venho à ponte para a passagem do waypont e consequente mudança de rumo. É o género de coisas que gosto de ser eu a fazer. O deckhand é bom mas não está muito familiarizado com o Raymarine. Que estivesse...

Passamos à frente de Arrecife, a capital da ilha. É bom ver as luzes de terra mas uma boa aterragem já não tem o sabor que tinha dantes, quando se navegava com sextante e com estima. Então sim, chegar aonde queríamos era emocionante. Agora basta carregar em meia dúzia de botões e pronto, signore. Salvo avaria que nos devolva ao lugar de condutor (vade retro, Satanás) somos tanto passageiros como chauffeurs.

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O vento vem de terra e traz-lhe o cheiro. Cada uma tem o seu. Para mim, só há um: o do cabo da Roca quando se vem de norte e se guina para o Raso. Enfim, dois: o do Algarve. Os outros são ersatz de cheiro a terra. Com a possível excepção do da Córsega, anisado e limpo, à força de bombas nas construções que eles não querem. O método deixa a desejar mas resulta. Não é só o cheiro que delas beneficia. A vista também. 

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O vento caiu completamente. Dois nós, diz-me o simpático Ray. E dizem-me os olhos e a pele e as orelhas, talvez menos precisos e menos confortáveis do que aquela mistura de cabos eléctricos e processadores mas suficientes para o efeito. Continuo a navegar à antiga: a electrónica serve para confirmar o que os sentidos e o corpo me dizem. Excepto obviamente o GPS. Quem mo tira tira-me tudo. Saber instantânea, precisa e permanentemente aonde estou, a que velocidade e rumo vou e a que distância estou do porto ou do waypoint não tem preço. 

2.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre La Linea de la Concepción e Lanzarote, 02-11-2025

Estava uma vaga larga, alta e regular de oeste que agora foi substituída por um mar desordenado, desconchavado. O vento vai mudar. Vai entrar norte, diziam-me antes o ECMWF e o GFS e diz agora o mar. Só que a acreditar neste será mais cedo do que os modelos predizem. Acordo a meio da noite de um sono igual ao mar: agitado, chato e sobretudo frustante. É chato reconhecer que dormia melhor quando dormia no salão, vestido e encolhido para caber no sofá. Pego ao acaso um dos livros que comprei em La Linea, uma compilação de artigos e textos de Pasolini. O primeiro acaba assim: "A grandeza mas também as limitações da palavra é tornar serenos os sentimentos." (Traduzo à letra do espanhol e não gosto nada do resultado mas agora fica assim). Depois pego no telefone - obrigado, senhor Musk, já nem o mar me tira o FB - e vejo um texto de A. C. Z., uma senhora que não conheço senão do que dela leio - e de um almoço, há muito tempo - no qual fala de uma coisa que me interessa bastante, as diferentes personagens e inteligências que coabitam em nós (e de caminho me confirma que a senhora tem um tocante sentido de humor, qualidade sine qua non). Vai tudo para o mesmo caldeirão, a serenidade dos sentimentos - a frase é verdadeira mas em duas metades, como uma laranja cortada ao meio - o cérebro compartimentado que só o humor e às vezes o amor tornam compreensíveis, o mar aos bocados que agita esta cancela do céu na qual navego para Lanzarote (é o nome do bote), o sono, a inquietação de saber os clientes na ponte de quarto, a Lua em Crescente que não tarda está cheia, falta menos de meia dúzia de dias, o frio que não há maneira de se ir embora mas já começa a dar sinais. 

Sentimentos serenos? Sim, mas só pela palavra.

(Para o V. P., com um abraço de iguais nas diferenças.)

1.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Gibraltar e Lanzarote, 01-11-2025

Duzentos e quinze = BTW = COG. Tenho finalmente sul no meu rumo. Amanhã a noite estará menos fria, aposto; e a Lua um bocadinho maior (este não aposto porque sei de ciência certa que ganho). O mar continuará tão sem vento como hoje, que se não fosse a ondulação pareceria uma banheira (também não aposto porque não sei).  

A Lua foi para casa e as estrelas vêem-se claramente. Orion, Sirius, Gémeos com Júpiter ao lado por bombordo; as luzes de Tânger e dos seus arredores pela popa. À proa um buraco negro: há nebulosidade e restos de luar. O meu CdC lá vai avançando a pouco mais de seis nós, ver se consigo chegar a Lanzarote sem usar os duzentos litros de gasóleo que tenho nos jerrycans

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O quarto chega ao fim. Oríon quase no meu zénite, Júpiter resplandecente e feliz ao lado dos Gémeos, a Ursa Maior na popa, meia dúzia de navios a oeste, todos claros, um sopro de vento a entrar, uma noite movimentada a terminar. Pescadores numa patera vieram ter connosco para nos avisar de uma rede que estava no nosso caminho. Um outro veleiro ja lá tinha ficado (mas depois safou-se - isto fiquei a saber pelo VHF, não pelos pescadores). Meia hora de emoções. Os passageiros vão ter histórias para contar. 

Por mim, apenas penso no sono que me espera. Vou dormir no camarote, pela primeira vez nesta viagem no mar. Até aqui tenho dormido no salão. 

(Cont.)