Espero que isto tenha o eco que merece.
30.11.09
Explicações, debates et al.
Porque é que explicações como esta, que fazem sentido - o que não significa que sejam as melhores opções, claro - e podiam alimentar um debate, só aparecem depois do facto consumado?
"Passagem do tempo"
Esta série seria bem mais animada se o jardim fotografado fosse o Princípe Real.
Poupança
O Governo queixa-se de que com o adiamento da entrada em vigor do novo código contributivo perde 700 milhões de euros. Eu espero que desse montante se possam deduzir os 500 milhões que a ampliação do Terminal de Contentores ia custar.
E com um bocadinho de sorte e de bom senso da parte da oposição o Governo vai ver que ainda acaba a poupar dinheiro.
E com um bocadinho de sorte e de bom senso da parte da oposição o Governo vai ver que ainda acaba a poupar dinheiro.
29.11.09
Conversa de café - Choses qui font rêver
Para além da proibição de construção de minaretes na Suíça estavam em jogo mais votações: uma, cantonal (refiro-me ao cantão de Genève), para a extensão de uma linha férrea entre Genève e a "France voisine" - concretamente, a cidade de Annemasse (ganhou o "sim" à construção); outra, também cantonal, para a construção de um túnel para o tráfico rodoviário por baixo de uma aldeia (ganhou o "sim"); uma, federal, sobre a afectação do imposto sobre o querosene dos aviões (não sei do que se trata, mas na Suíça desde que se toca nos impostos o referendo é obrigatório); e, finalmente, uma iniciativa popular para proibir a Suíça de vender material de guerra ao exterior (ganhou o "não").
Como seria Portugal, se pudéssemos votar o TGV, o aeroporto de Lisboa, os impostos, a CRIL, as árvores do Princípe Real (em Genève aconteceu: a Câmara quis cortar uma dúzia de árvores e houve um referendo local. A Câmara ganhou, mas teve que explicar muito bem, com relatórios de especialistas independentes porque é que era necessário abater as árvores)?
Como seria Portugal, se pudéssemos votar o TGV, o aeroporto de Lisboa, os impostos, a CRIL, as árvores do Princípe Real (em Genève aconteceu: a Câmara quis cortar uma dúzia de árvores e houve um referendo local. A Câmara ganhou, mas teve que explicar muito bem, com relatórios de especialistas independentes porque é que era necessário abater as árvores)?
O Napoleão dos Parques
Não sei se o Zé faz falta ou não, embora tenda mais a crer que não*. Mas lá que as árvores do Princípe Real fazem, disso não tenho dúvidas.
* - Enfim, faz falta à família e aos amigos, como todos nós. Mas à população de Lisboa que não se inscreve nesses dois grupos não faz de certeza.
* - Enfim, faz falta à família e aos amigos, como todos nós. Mas à população de Lisboa que não se inscreve nesses dois grupos não faz de certeza.
Jeux de maux
Est-ce qu'un larmoire est une armoire à larmes?
Est-ce qu'une alarme sans larmes en reste une?
Que reste, d'une larme sans arme - elle?
Est-ce qu'une larme peut être désarmante?
Est-ce qu'une alarme sans larmes en reste une?
Que reste, d'une larme sans arme - elle?
Est-ce qu'une larme peut être désarmante?
Ilha
Às vezes pergunto-me "Será possível ter um bocadinho da tua presença no mar da tua ausência? Uma ilha de ti num oceano sem ti?"
Uma surpresa
Isto é uma surpresa de me deixar sem palavras: "Suíça/Referendo: 57 por cento votam proibição de construção de minaretes - oficial".
Livraria Trama
A Trama celebrou ontem o seu segundo aniversário. Os meus parabéns. Que venham mais vinte.
Pleurer
J'ai envie de pleurer à grosses larmes. Histoire de feindre: que ça sert à quelque chose, qu'il m'en reste encore des larmes, que tu les vois.
Les mots faciles
Écrire n'est guère difficile: il suffit de siffler et les mots viennent, comme des cannards attirés par un leurre en bois. Il viennent, survolent, regardent, méfiants; et finissent toujours par se poser sur la flaque blanche da la page.
Mais ils sont comme les filles trop faciles, ces mots-là: tout le monde s'en sert et personne n'en veut.
Mais ils sont comme les filles trop faciles, ces mots-là: tout le monde s'en sert et personne n'en veut.
Retratos imaginários
Vejo-o muitas vezes, nos cocktails das embaixadas: magro, pequeno, calado, solitário, sempre agarrado a um copo-de-salvação.
Adaptação
Antigamente as senhoras da burguesia que se aborreciam em casa abriam agências de viagem, ou galerias de arte. Os maridos financiavam "o desafio" (ou "a aventura") e não se importavam muito: assim pelo menos elas estavam entretidas e "o desafio" (ou "a aventura") sempre saía mais barato do que um par de cornos artística e sensivelmente colocado por um artista incompreendido, ou pelo homem do leite.
Hoje abrem "lojas gourmet", tascas de dermo-estética ou restaurantes vegetarianos. Apesar do preço de um par de cornos andar pelas ruas da amargura (não é o termo adequado, eu sei) os maridos continuam a não se importar, e a pagar. As mulheres adaptam-se mais depressa à realidade do que os homens.
Hoje abrem "lojas gourmet", tascas de dermo-estética ou restaurantes vegetarianos. Apesar do preço de um par de cornos andar pelas ruas da amargura (não é o termo adequado, eu sei) os maridos continuam a não se importar, e a pagar. As mulheres adaptam-se mais depressa à realidade do que os homens.
Retratos imaginários
A pulsão para magoar era mais forte do que a inteligência, ou a fibra moral (ambas consideráveis). Depois apercebia-se da gratuidade da maldade que havia dito, mas como não tinha estrutura mental para o arrependimento - e muito menos, por maioria de razão, para o manifestar - não dizia nada. Aos poucos foi limitando o seu círculo às pessoas a quem não podia magoar - ricos, poderosos, políticos que não admirava (mas tão-pouco invejava: era demasiado arrogante para ser invejoso). As raras excepções serviam-lhe de fusível, ou de caução íntima. No fundo era infeliz, mas - provavelmente porque era uma grande injustiça - ou não o percebia ou se recusava a aceitá-lo.
28.11.09
Ambição
A ambição é simples - ou melhor, exprime-se simplesmente: "quero escalar o Everest"; "quero dar a volta ao mundo"; "quero ir ao pólo Sul, ou Norte", antes ou mais depressa do que os outros. É simples de explicar.
Deve ser por isso que em Portugal ela é tão mal vista. Nós preferimos as frases complexas: "gostaria de, se não fosse muita maçada, quando, e se, fosse possível - mas francamente, se não for um incómodo - ir a Almada comer caracóis. Se não estiver a chover, claro, e se achar bem. E gostar de caracóis, naturalmente. Mas se não gostar podemos ir a outro lado comer outra coisa".
Deve ser por isso que em Portugal ela é tão mal vista. Nós preferimos as frases complexas: "gostaria de, se não fosse muita maçada, quando, e se, fosse possível - mas francamente, se não for um incómodo - ir a Almada comer caracóis. Se não estiver a chover, claro, e se achar bem. E gostar de caracóis, naturalmente. Mas se não gostar podemos ir a outro lado comer outra coisa".
27.11.09
As mulheres e o amor
As mulheres preferem amar a ser amadas. Enfim, si tant est que "mulheres" existe, claro.
Necrofilia
Deixa-me avisar-te: sou um morto andante. Não te deixes iludir. Amar-me é uma forma de necrofilia.
26.11.09
Mãos
"Um par de mãos para me aconchegar a alma", pedes-me. Não chegam tão longe, as mãos; já é uma sorte chegarem-te à pele, ao ventre, aos seios.
25.11.09
Ternura
Ternura é uma palavra bonita, que designa um sentimento bonito. Não sei porque é que às vezes parece tão assustadora.
Frágil, inutilidades
Não há nada mais inútil do que escrever "Frágil" na bagagem de porão dos aviões. Nada.
Relação
Uma relação começa quando estão resolvidos dois problemas: o desejo e a dúvida.
Resta saber o que é "resolvidos".
Resta saber o que é "resolvidos".
Heróis
Há dias em que me apetece dizer "um herói de Beckett", em vez de "uma personagem de Beckett". Imaginar Murphy, Malone, Molloy, Watt, Mercier, Camier, l'Innommable heróis...
Paixão, ternura
Não sei se a paixão e a ternura são compatíveis. Mas gostava de saber.
E, sobretudo, de o aprender contigo.
E, sobretudo, de o aprender contigo.
24.11.09
Política, etc.
É lastimável que, estando agora o caso dos contentores nas mãos do CDS, não se possa estar à vontade. Aquele projecto não está dependente de uma avaliação da sua bondade (coisa que o CDS foi um dos primeiros partidos a avaliar correctamente - zero), mas das moedas de troca que o PS encontrar.
O dogma e a dúvida
Não alinho em dogmas, não acredito que a maioria tenha sistematicamente razão, fujo da doxa como da peste. O Insurgente (e, acrescento agora, com um pedido de desculpas, o Blasfémias) têm uma série de posts sobre o Climategate que devia ser lido por todos os paladinos do zeitgeist.
Good cop, bad cop
A isto chama-se a estratégia do "Good cop, bad cop". Além de nos tomar por parvos, este governo pensa que ninguém lê livros de polícias e ladrões.
«Constâncio e Teixeira dos Santos divergem sobre impostos»
«Constâncio e Teixeira dos Santos divergem sobre impostos»
Viver, morrer
"Só vale a pena viver para qualquer coisa pela qual valha a pena morrer". Já não me lembro quem disse isto; mas fosse quem fosse, disse uma das frases mais verdadeiras de entre todas as que me habitam a memória.
Serviço Público - Cinema
Um mitómano que fala muito; dois amigos que falam pouco; uma miúda que ainda fala menos e oscila entre eles e todos os homens com quem se cruza; alguns "tarados" (na definição inexacta do mitómano): é este conjunto de personagens que faz um dos mais belos road movies que já vi - e um dos melhores filmes, tout court. A verdade não fala - age; a vida é uma mentira (só há "vida" - diálogos, personagens, acção - nas cenas com o mitómano. Os dois amigos interessam-se por automóveis, ponto). As coisas acabam como começaram: sem quê nem porquê nem como.
Se, como eu, só conhecerem Monte Hellman de nome - e mesmo assim mal; se gostarem de road movies; se gostarem de cinema, tentem não perder este sublime Two lane blacktop ("A estrada não tem fim" - por uma vez, a tradução portuguesa do título não é absurda).
Numa Cinemateca perto de si.
Se, como eu, só conhecerem Monte Hellman de nome - e mesmo assim mal; se gostarem de road movies; se gostarem de cinema, tentem não perder este sublime Two lane blacktop ("A estrada não tem fim" - por uma vez, a tradução portuguesa do título não é absurda).
Numa Cinemateca perto de si.
23.11.09
Qualidade
A alta qualidade dos leitores deste blog - uma assimetria que só realça essa qualidade - fica uma vez mais comprovada [como se fosse preciso]: hoje veio cá ter um leitor por ter procurado no Google "café Fauchon Blue Mountain". Gosto de leitores que sabem o que é bom, mesmo correndo o risco de os desapontar depois.
Sonhos
"Os meus sonhos estão cada vez piores", pensou enquanto fazia a barba. Estava aborrecido porque tinha tido um sonho que envolvia um homem a barbear-se, e só agora percebia que esse homem era ele. E, sobretudo, porque o sonho fora realmente uma porcaria, em termos dramáticos: não se cortava, não se esquecia de barbear metade da cara, não deixava cair a lâmina pela janela - tudo coisas que lhe acontecem regularmente. Era um sonho em que não acontecia nada, um sonho simples, lhano. Tão simples que não se reconhecia.
22.11.09
Serviço público - restaurantes
É possível ter-se o melhor bife de Lisboa, o melhor serviço de Lisboa e uma das melhores atmosferas de Lisboa debaixo do mesmo telhado? É. Chama-se Café Buenos Aires e é nas Escadinhas do Duque.
PS - "Atmosphère, atmosphère. Est-ce que j'ai une gueule d'atmosphère, moi?"
PS - "Atmosphère, atmosphère. Est-ce que j'ai une gueule d'atmosphère, moi?"
21.11.09
É assim
Então é assim. Dois pontos. Pausa (dois tempos). Esses planetas todos não estarão, nunca mais, no sítio certo à hora certa.
20.11.09
Conversa de café - a velocidade das decisões
"Quando António Mexia, CEO da EDP, inaugurou esta semana o parque eólico de Meadow Lake, no Estado de Indiana (EUA), lembrou um pormenor curioso: entre a apresentação do projecto às autoridades, a sua aprovação e a atribuição do "cash grant" (incentivo fiscal criado pela administração Obama, que devolve 30% do montante investido) demoraram... quatro semanas.
Leu bem, caro leitor: quatro semanas. Não foram quatro anos, nem sequer quatro meses. "Four fucking weeks!""
Este artigo de Camilo Lourenço é siderante, claro. Mas já por aqui contei duas pequenas histórias passadas com amigos meus de Genève que também me deixaram sonhador: a de uma arquitecta que achava escandaloso que a Câmara Municipal de Genève levasse seis meses - "seis meses!"; ela quase gritava - para aprovar um projecto; e a de um amigo que vende material ao Estado e me dizia, desolado, que o estado genebrino está a trabalhar cada vez pior: "imagina tu que às vezes demoram duas semanas a dar-me uma resposta". E acrescentava: "Mas eu agora já sei: ao fim de uma semana, telefono-lhes".
Leu bem, caro leitor: quatro semanas. Não foram quatro anos, nem sequer quatro meses. "Four fucking weeks!""
Este artigo de Camilo Lourenço é siderante, claro. Mas já por aqui contei duas pequenas histórias passadas com amigos meus de Genève que também me deixaram sonhador: a de uma arquitecta que achava escandaloso que a Câmara Municipal de Genève levasse seis meses - "seis meses!"; ela quase gritava - para aprovar um projecto; e a de um amigo que vende material ao Estado e me dizia, desolado, que o estado genebrino está a trabalhar cada vez pior: "imagina tu que às vezes demoram duas semanas a dar-me uma resposta". E acrescentava: "Mas eu agora já sei: ao fim de uma semana, telefono-lhes".
19.11.09
Pois
"Telecom: António Mendonça diz que obras públicas não podem ser vistas apenas do ponto de vista do défice".
"As obras públicas têm que ser vistas não apenas do ponto de vista do défice - é claro que o défice é uma restrição - mas a nossa preocupação é colocar o país num patamar de desenvolvimento tecnológico que permita aumentar a sua competitividade e atractividade".
Claro. Aliás quanto maior for o défice maiores são a competitividade e a atractividade do país. Basta olhar à volta.
"As obras públicas têm que ser vistas não apenas do ponto de vista do défice - é claro que o défice é uma restrição - mas a nossa preocupação é colocar o país num patamar de desenvolvimento tecnológico que permita aumentar a sua competitividade e atractividade".
Claro. Aliás quanto maior for o défice maiores são a competitividade e a atractividade do país. Basta olhar à volta.
"Give me" Moore
Fico sempre um bocadinho na dúvida quando leio posts como este; é como dizer a Demi Moore que ela é boa: estão ambos podres de o saber, mas nada vão fazer para mudar.
Francofonia, francofilia
Laurent Gerra imita Léon Zitrone (atenção, riso às lágrimas, à asfixia):
E Johnny Halliday:
E Johnny Halliday:
Jeanne, Reine
E já que estamos com Jeanne Moreau, uma repetição, mais uma.
Jeanne Moreau, J'ai la mémoire qui flanche:
Jeanne Moreau, J'ai la mémoire qui flanche:
Le Tourbillon:
Où vas-tu Mathilda?
Semelhanças, simetrias, zeitgeist
Que se aproxime Francisco Louçã do palerma da pêra (o do PNR) não é estranho à maioria das pessoas, penso. Não deixo é de estranhar que me lembre do nome de um e não do do outro. Poderíamos atribuir tão estranho fenómeno ao zeitgeist; mas não penso que seja o único culpado: afinal, as pessoas de sempre preferiram a mentira escondida à explícita. E se aquilo que um diz, a ser feito, teria efeitos dramáticos, o que o outro faria, mas não diz, teria efeitos ainda piores - e, pior ainda, já conhecidos.
Tudo isto a despropósito: apetecia-me apenas dizer que imigrar é um direito, como emigrar; e que mesmo quando uma é obrigação, a outra, simétrica, continua a ser um direito.
PS - Aqui está um esplêndido exemplo. Como se o estado russo se preocupasse muito com a lei.
Tudo isto a despropósito: apetecia-me apenas dizer que imigrar é um direito, como emigrar; e que mesmo quando uma é obrigação, a outra, simétrica, continua a ser um direito.
PS - Aqui está um esplêndido exemplo. Como se o estado russo se preocupasse muito com a lei.
Serge
Acreditem se quiserem, mas parece que France Gall não percebia o que estava a cantar.
[Não sei porquê, Serge Gainsbourg não me sai da mente, estes dias].
Serge Gainsbourg e Catherine Deneuve, Ces petits riens:
[Não sei porquê, Serge Gainsbourg não me sai da mente, estes dias].
Serge Gainsbourg e Catherine Deneuve, Ces petits riens:
Harley Davidson
Abandonos, ignomínias
"Guiné-Bissau: Governo português abandonou-nos - antigo combatente das Forças Armadas portuguesas"
O governo português [enfim, os governos] há muito abandonou tudo o que não é ele próprio. Compreende-se mal - por muito que se lamente - porque não teria abandonado pessoas que lutaram pelo que era então o seu país.
O governo português [enfim, os governos] há muito abandonou tudo o que não é ele próprio. Compreende-se mal - por muito que se lamente - porque não teria abandonado pessoas que lutaram pelo que era então o seu país.
Escolhas
Se amanhã morresse e me dessem a escolher, não sei quais escolheria: se as tristezas que vivi, se as mulheres. Provavelmente aquelas, que no céu não as há; e estas já o são.
Outras estranhezas
Aqui.
(Enfim, deviam ser estranhezas. Infelizmente já não o são sequer: os portugueses são pessoas razoáveis, que se adaptam às coisas como elas são). Se fossem um bocadinho menos razoáveis, o país seria um paraíso para todos, e não só para alguns.
[O que nos abre interessantes pistas sobre a irrazoabilidade nos países que nós consideramos "civilizados". E sobre o que é ser razoável, e os seus resultados.]
[O que nos abre interessantes pistas sobre a irrazoabilidade nos países que nós consideramos "civilizados". E sobre o que é ser razoável, e os seus resultados.]
18.11.09
Estranho
Quem se quer matar tem à escolha inúmeras formas de morrer; já para quem quer viver a escolha é reduzida: lutar, conformar-se ou enlouqecer.
Estranho é que não haja mais suicídios.
Estranho é que não haja mais suicídios.
Retratos possiveis
Chama-se Paula, tem 40 e poucos anos e o que mais me marca nela é nunca por nunca ser se definir sozinha. Paula não existe sem os outros - outros num sentido muito restrito: família e os poucos amigos próximos.
Paula é incapaz de dizer "estou a jantar": diz "estou a jantar com o meu pai". "Vou ao Porto": "vou ao Porto com o João (o namorado, um estudante de engenharia bastante simpático e quase vinte anos mais novo do que ela)". "Estou em casa": "estou em casa; amanhã chega a Rita (uma amiga que trabalha numa organizaçao internacional)". E assim por diante. Ao princípio parecia-me que ela não existia sem os outros, o que me surpreendia porque conhecia o seu gosto por longos passeios solitários, a pé ou a cavalo (é uma cavaleira fina, intutiva, subtil, que num piscar de olhos põe o mais reticente dos cavalos na mão).
Depois habituei-me: boa companhia, simpática, cordial (e bonita, o que não estraga nada).
- Olá, estás bom? Amanhã chega o meu pai.
- Óptimo, obrigado. Fico muito contente.
- Pois. O João vai agora para o Alentejo. Queres vir almoçar comigo?
Eu já sabia que esse almoço ia ser incluído na próxima conversa telefónica, mas não me importava.
- Vamos.
Levei muito tempo a percebê-la: porque raio uma mulher bonita, profissional reconhecida (tinha uma empresa de orgaização de eventos que facturava mais do que ela queria, e muito mais do que precisava), independente, precisava de estar sempre a referir-se a outrém?
Um dia estava no picadeiro a vê-la montar e a explicação entrou-me pelos olhos. Paula estava espantada com a sua vida, e precisava de ter alguém ao lado (mesmo que só pela menção que lhe fazia) para ter a certeza de que tudo aquilo era real. De certa forma tinha razão: nascida numa família rica, conservadora, de banqueiros e latifundiários, fugira de casa aos dezanove anos para casar com um músico sem cheta. Quinze ou dezasseis anos depois divorciara-se, porque estava farta (embora não o reconhecesse: dizia que ele a enganava, o que só muito parcialmente era verdade); ajudara o marido a tornar-se um nome incontornável na música do nosso país, e pouco mais havia que fazer. Nunca reatara os laços com a família, mas aproveitou-se dos contactos que tinha no meio para criar e desenvolver a tal empresa; um dia conheceu um jovem estudante que lá fora para um trabalho de três ou quatro dias e "alugou-o", como ela dizia. Quando descobriu que o rapaz não se deixava "alugar" apaixonou-se por ele.
Conhecia meio mundo - geográfica e metaforicamente. E estava perpetuamente espantada: conseguira fugir a um destino de "freira, ou equivalente". Mas precisava de alguém: gostava de estar sozinha fisicamente, mas mentalmente era-lhe impossível. No fundo, ao contrário do que ela pensava, não fora ela que vivera a sua vida: vivera-a permanentemente contra ou com alguém. Daí as referências constantes a com quem estava, quem ia ou vinha.
Paula é incapaz de dizer "estou a jantar": diz "estou a jantar com o meu pai". "Vou ao Porto": "vou ao Porto com o João (o namorado, um estudante de engenharia bastante simpático e quase vinte anos mais novo do que ela)". "Estou em casa": "estou em casa; amanhã chega a Rita (uma amiga que trabalha numa organizaçao internacional)". E assim por diante. Ao princípio parecia-me que ela não existia sem os outros, o que me surpreendia porque conhecia o seu gosto por longos passeios solitários, a pé ou a cavalo (é uma cavaleira fina, intutiva, subtil, que num piscar de olhos põe o mais reticente dos cavalos na mão).
Depois habituei-me: boa companhia, simpática, cordial (e bonita, o que não estraga nada).
- Olá, estás bom? Amanhã chega o meu pai.
- Óptimo, obrigado. Fico muito contente.
- Pois. O João vai agora para o Alentejo. Queres vir almoçar comigo?
Eu já sabia que esse almoço ia ser incluído na próxima conversa telefónica, mas não me importava.
- Vamos.
Levei muito tempo a percebê-la: porque raio uma mulher bonita, profissional reconhecida (tinha uma empresa de orgaização de eventos que facturava mais do que ela queria, e muito mais do que precisava), independente, precisava de estar sempre a referir-se a outrém?
Um dia estava no picadeiro a vê-la montar e a explicação entrou-me pelos olhos. Paula estava espantada com a sua vida, e precisava de ter alguém ao lado (mesmo que só pela menção que lhe fazia) para ter a certeza de que tudo aquilo era real. De certa forma tinha razão: nascida numa família rica, conservadora, de banqueiros e latifundiários, fugira de casa aos dezanove anos para casar com um músico sem cheta. Quinze ou dezasseis anos depois divorciara-se, porque estava farta (embora não o reconhecesse: dizia que ele a enganava, o que só muito parcialmente era verdade); ajudara o marido a tornar-se um nome incontornável na música do nosso país, e pouco mais havia que fazer. Nunca reatara os laços com a família, mas aproveitou-se dos contactos que tinha no meio para criar e desenvolver a tal empresa; um dia conheceu um jovem estudante que lá fora para um trabalho de três ou quatro dias e "alugou-o", como ela dizia. Quando descobriu que o rapaz não se deixava "alugar" apaixonou-se por ele.
Conhecia meio mundo - geográfica e metaforicamente. E estava perpetuamente espantada: conseguira fugir a um destino de "freira, ou equivalente". Mas precisava de alguém: gostava de estar sozinha fisicamente, mas mentalmente era-lhe impossível. No fundo, ao contrário do que ela pensava, não fora ela que vivera a sua vida: vivera-a permanentemente contra ou com alguém. Daí as referências constantes a com quem estava, quem ia ou vinha.
"Confiança, prestígio e credibilidade"
Este ministro é colega de um outro que acusou a justiça de "espionagem política", não é?
"Justiça: Ministro Alberto Martins quer reforço da "confiança, prestígio e credibilidade" do sistema judicial "
"Justiça: Ministro Alberto Martins quer reforço da "confiança, prestígio e credibilidade" do sistema judicial "
17.11.09
Kevin Ayers
Hoje descobri que há uma pessoa na blogosfera que conhece, e gosta (ou gostou) de Kevin Ayers. La surprise est de taille, como diria um gaulês qualquer - não me apetece muito explicar porquê.
Aqui fica mais uma:
Kevin Ayers, John Cale e Andy Summers, Howling Man
Aqui fica mais uma:
Kevin Ayers, John Cale e Andy Summers, Howling Man
"L'Innommable"
"...je vais me réveiller, dans le silence, ne plus m'endormir, ce sera moi, ou rêver encore, rêver un silence, un silence de rêve, plein de murmures, je ne sais pas, ce sont des mots, ne jamais me réveiller, ce sont des mots, il n'y a que ça, il faut continuer, c'est tout ce que je sais, ils vont s'arrêter, je connais ça, je les sens qui me lâchent, ce sera le silence, un petit moment, un bon moment, ou ce sera le mien, celui qui dure, qui n'a pas duré, qui dure toujours, ce sera moi, il faut continuer, je ne peut pas continuer, il faut continuer, je vais donc continuer, il faut dire des mots, tant qu'il y en a, il faut les dire, jusqu'à ce qu'ils me trouvent, jusqu'à ce qu'ils me disent, étrange peine, étrange faute, il faut continuer, c'est peut-être déjà fait, ils m'ont peut-être déjà dit, ils m'ont peut-être déjà porté jusqu'au seuil de mon histoire, devant la porte qui s'ouvre sur mon histoire, ça m'étonnerait, si elle s'ouvre, ça va être moi, ça va être le silence, là où je suis, je ne sais pas, je ne le saurai jamais, dans le silence on ne sait pas, il faut continuer, je ne peux pas continuer, je vais continuer."
Samuel Beckett, in L'Innommable, Les Éditions de Minuit, Paris, 2004 (final do livro)
Liberdade de expressão
Anda por aí uma petição contra uma igreja desenhada por Troufa Real, cuja construção começou, aparentemente, ontem. Eu acho a coisa horrorosa, mas não assino petição nenhuma: aquela igreja está para a arquitectura como as palermices de Louçã, ou do idiota de direita (o da pera) estão para a verdade. Tal como defendo que Louçã, ou o outro cujo nome não recordo, devem poder dizer o que querem, penso que a igreja deve ser construída. Não quero uma cidade feita por "guardiães da arquitectura pública", como não quero uma política limitada aos gajos que me parecem suportáveis.
"Morrer é só não ser visto"
Apresentação de um livro com esse título aqui na Ler Devagar. Um introito interminável de José Manuel dos Santos, que conseguiu citar todos os autores da Plêiade e mais alguns; e um discurso tocante da autora. Coincidência: há algum tempo que ando a lembrar-me da piada americana "Life is a bitch; - and then you die"; mas modifiquei-a um bocadinho: "Life is a bitch, and you never die".
PS - o livro parece-me muito bom. É uma colectânea de testemunhos de várias pessoas sobre mortes de próximos. Há de tudo: suicídio, acidente, morte natural, jovem, idosos, doenças. É da Planeta, para quem estiver interessado, e a autora chama-se Inês Barros Baptista.
PS - o livro parece-me muito bom. É uma colectânea de testemunhos de várias pessoas sobre mortes de próximos. Há de tudo: suicídio, acidente, morte natural, jovem, idosos, doenças. É da Planeta, para quem estiver interessado, e a autora chama-se Inês Barros Baptista.
Esperança
A esperança tem duas, e difíceis, missões: a) fazer-nos crer que vem aí uma vida melhor; e b) que será possível conviver com a de hoje, quando a outra chegar.
Devia haver um lugar na frase para colocar "inútil" (ou "inúteis"), que tanta falta faz, ou fazem.
Devia haver um lugar na frase para colocar "inútil" (ou "inúteis"), que tanta falta faz, ou fazem.
Quarteirão
Hoje, graças à Miss Pearls, descobri uma série de posts muito bons no 5 Dias e um blog que vai direitinho para o Reader.
Felicidade
Não acredito muito nessa coisa da felicidade: por trás de cada uma delas (há várias, imagino) deve haver um pecado original, uma ranhura, uma fenda. Ou a felicidade o esquece - e nesse caso é uma omissão mais ou menos grave; ou convive com ele - e torna-se um compromisso, um consenso.
Ora todas as descrições de felicidade que tenho visto a descrevem como plenitude.
Amor, amizade
Um amor acaba: encontra-se outro. Com a amizade isso não acontece. Não se muda de amigos como de amores. Não sei porquê.
Conversa de café - Portugal e a Europa
O Jornal de Negócios de hoje traz um artigo muito interessante de um senhor chamado João Bernardo Soares, Partner da Bain & Company. O título é "Ask not what your country can do for you..." e está dividido em duas partes. Na primeira o autor faz uma descrição do declínio de Portugal relativamente aos outros países europeus:
- Somos o segundo país mais pobre da zona Euro em termos de PIB per capita e em 2010 seremos o mais pobre, pois previsivelmente a Eslovénia, que fez o favor de nos tirar dessa situação em 2009 (quando aderiu ao Euro), vai ultrapassar-nos;
- A Grécia, com quem durante muito tempo nos comparámos e disputávamos os últimos lugares das tabelas, tem neste momento um PIB per capita 44% superior ao português;
- O PIB per capita português passou de 71.6% da média da zona euro para 66,6% (e de 80,8% para 72,3% se em vez de nos referirmos à zona euro nos referirmos à média europeia);
- Em finais de 2008, o valor das empresas portuguesas com mais de 500 milhões de euros de facturação representava 8% do valor total das empresas ibéricas;
Esta primeira parte conclui dizendo que as perspectivas não são animadoras, e que o nosso défice externo vai estabilizar provavelmente acima dos 10%.
A segunda parte do artigo propõe 4 acções "aos nossos gestores, reconhecidos como muito capazes mas que não têm conseguido mudar o rumo macro da Nação" (daí a menção ao célebre discurso de Kennedy).
Qualquer pessoa que tenha vivido mais de seis meses num qualquer país europeu desenvolvido sabe que os portugueses não são diferentes dos outros; aos mesmo estímulos reagimos de formas semelhantes: se nos derem um espaço para andar a pé andamos, se nos multarem por não pararmos nas passadeiras paramos, etc. Não somos nem mais preguiçosos, nem mais incompetentes, nem menos inteligentes do que qualquer outro povo. A explicação para o "estado a que isto chegou" deve procurar-se noutro lado.
Para começar: haverá "estado a que isto chegou"? A resposta é não, claro: sempre (ou pelo menos há muito tempo) fomos os últimos da Europa, e vamos continuar a sê-lo - a diferença é que a "Europa" agora tem mais países, e os nossos referenciais vão ser outros; não me parece uma mudança significativa. Sempre tivemos empresas "pequenas" - salvo poucas honrosas excepções, preferimos ser os maiores do quintal a ser qualquer coisa fora dele. E sempre tivemos gestores, políticos e decisores de reconhecida qualidade. A situação que o autor do artigo descreve não é, portanto, muito diferente da que sempre foi. Pelo menos em termos relativos. Em termos absolutos é evidente, inegável, que estamos hoje melhor do que há 30 anos.
As questões são saber a) porquê, e b) se há remédio.
Começo pela b): não. Já pensei que sim, depois que não, depois que sim outra vez, mas agora penso, estou convicto, tenho a certeza de que não há remédio, e continuaremos a ser os últimos do euro, da Europa, e em breve da OCDE, ou de seja qual for o clube onde nos queiramos integrar. A resposta é "não" não por defeitos próprios, individuais, mas por causa por um lado da forma como nos organizamos colectivamente, e por outro da nossa resposta a essa organização.
Os nossos "gestores reconhecidos como muito capazes" vivem optimamente, em Portugal. Os nossos decisores políticos também (e não mencionem os salários baixos: os benefícios não-financeiros também contam; para além dos que vão auferir quando "deixarem a política" - entre aspas porque não a deixarão, nunca: apenas mudarão de empregador). E quem não está contente e é ambicioso emigra.
Ou seja: a população de Portugal é constituída na sua maioria por pessoas que ou beneficiam (ou pelo menos não sofrem) com a situação ou não lhe exigem mudanças drásticas. Às primeiras, apenas se pede que nos mantenham no clube; não interessa em que lugar. As segundas não estão dispostas a fazer os sacrifícios que sair do último lugar requer - e quando estão, não o fazem em Portugal porque concluíram, acertadamente, que não vale a pena.
Não tem nada a ver com as nossas "qualidades" ou "defeitos", nem com as nossas capacidades ou competências. Os gestores das grandes empresas portuguesas estão roucos de saber o que fazer - e fazem-no, quando vão trabalhar para empresas internacionais. Não têm é razões para o fazer em Portugal. Os gestores, seja em Portugal, na Alemanha ou na Lua são pagos para gerir empresas e gerar lucros para os seus accionistas, e não para "mudar o rumo macro do país". Quem é pago para fazer isso são os políticos. Ora acontece que quem lhes paga ou está contente ou se vai embora.
Os estímulos para mudar são poucos, em ambos os casos - sobretudo quando têm níveis de vida semelhantes aos de qualquer colega "europeu" - ou melhor, até (uma comparação de salários e benefícios extra-salariais das nossas classes políticas, começando nos vereadores das câmaras municipais e respectivos assessores seria elucidativa).
As "quatro acções" de João Bernardo Soares são interessantíssimas - mas têm tantas probabilidades de ser postas em prática (pelo menos de uma forma significativa) como de ser um protestante eleito Papa. Porque elas destinam-se a gerar capital que depois iria para o PIB e daí para as capita. Infelizmente não é esse o capital mais importante em Portugal.
Mais: em muitos casos, alterar o status quo implicaria, para muitas das pessoas dos grupos dirigentes (políticos, gestores, quadros superiores), uma perda de privilégios, poder, dinheiro - em termos absolutos ou em relação ao resto da população. E vê-se mal um grupo social, seja ele de que nacionalidade for tomar decisões que impliquem uma, ou várias, dessas consequências.
- Somos o segundo país mais pobre da zona Euro em termos de PIB per capita e em 2010 seremos o mais pobre, pois previsivelmente a Eslovénia, que fez o favor de nos tirar dessa situação em 2009 (quando aderiu ao Euro), vai ultrapassar-nos;
- A Grécia, com quem durante muito tempo nos comparámos e disputávamos os últimos lugares das tabelas, tem neste momento um PIB per capita 44% superior ao português;
- O PIB per capita português passou de 71.6% da média da zona euro para 66,6% (e de 80,8% para 72,3% se em vez de nos referirmos à zona euro nos referirmos à média europeia);
- Em finais de 2008, o valor das empresas portuguesas com mais de 500 milhões de euros de facturação representava 8% do valor total das empresas ibéricas;
Esta primeira parte conclui dizendo que as perspectivas não são animadoras, e que o nosso défice externo vai estabilizar provavelmente acima dos 10%.
A segunda parte do artigo propõe 4 acções "aos nossos gestores, reconhecidos como muito capazes mas que não têm conseguido mudar o rumo macro da Nação" (daí a menção ao célebre discurso de Kennedy).
Qualquer pessoa que tenha vivido mais de seis meses num qualquer país europeu desenvolvido sabe que os portugueses não são diferentes dos outros; aos mesmo estímulos reagimos de formas semelhantes: se nos derem um espaço para andar a pé andamos, se nos multarem por não pararmos nas passadeiras paramos, etc. Não somos nem mais preguiçosos, nem mais incompetentes, nem menos inteligentes do que qualquer outro povo. A explicação para o "estado a que isto chegou" deve procurar-se noutro lado.
Para começar: haverá "estado a que isto chegou"? A resposta é não, claro: sempre (ou pelo menos há muito tempo) fomos os últimos da Europa, e vamos continuar a sê-lo - a diferença é que a "Europa" agora tem mais países, e os nossos referenciais vão ser outros; não me parece uma mudança significativa. Sempre tivemos empresas "pequenas" - salvo poucas honrosas excepções, preferimos ser os maiores do quintal a ser qualquer coisa fora dele. E sempre tivemos gestores, políticos e decisores de reconhecida qualidade. A situação que o autor do artigo descreve não é, portanto, muito diferente da que sempre foi. Pelo menos em termos relativos. Em termos absolutos é evidente, inegável, que estamos hoje melhor do que há 30 anos.
As questões são saber a) porquê, e b) se há remédio.
Começo pela b): não. Já pensei que sim, depois que não, depois que sim outra vez, mas agora penso, estou convicto, tenho a certeza de que não há remédio, e continuaremos a ser os últimos do euro, da Europa, e em breve da OCDE, ou de seja qual for o clube onde nos queiramos integrar. A resposta é "não" não por defeitos próprios, individuais, mas por causa por um lado da forma como nos organizamos colectivamente, e por outro da nossa resposta a essa organização.
Os nossos "gestores reconhecidos como muito capazes" vivem optimamente, em Portugal. Os nossos decisores políticos também (e não mencionem os salários baixos: os benefícios não-financeiros também contam; para além dos que vão auferir quando "deixarem a política" - entre aspas porque não a deixarão, nunca: apenas mudarão de empregador). E quem não está contente e é ambicioso emigra.
Ou seja: a população de Portugal é constituída na sua maioria por pessoas que ou beneficiam (ou pelo menos não sofrem) com a situação ou não lhe exigem mudanças drásticas. Às primeiras, apenas se pede que nos mantenham no clube; não interessa em que lugar. As segundas não estão dispostas a fazer os sacrifícios que sair do último lugar requer - e quando estão, não o fazem em Portugal porque concluíram, acertadamente, que não vale a pena.
Não tem nada a ver com as nossas "qualidades" ou "defeitos", nem com as nossas capacidades ou competências. Os gestores das grandes empresas portuguesas estão roucos de saber o que fazer - e fazem-no, quando vão trabalhar para empresas internacionais. Não têm é razões para o fazer em Portugal. Os gestores, seja em Portugal, na Alemanha ou na Lua são pagos para gerir empresas e gerar lucros para os seus accionistas, e não para "mudar o rumo macro do país". Quem é pago para fazer isso são os políticos. Ora acontece que quem lhes paga ou está contente ou se vai embora.
Os estímulos para mudar são poucos, em ambos os casos - sobretudo quando têm níveis de vida semelhantes aos de qualquer colega "europeu" - ou melhor, até (uma comparação de salários e benefícios extra-salariais das nossas classes políticas, começando nos vereadores das câmaras municipais e respectivos assessores seria elucidativa).
As "quatro acções" de João Bernardo Soares são interessantíssimas - mas têm tantas probabilidades de ser postas em prática (pelo menos de uma forma significativa) como de ser um protestante eleito Papa. Porque elas destinam-se a gerar capital que depois iria para o PIB e daí para as capita. Infelizmente não é esse o capital mais importante em Portugal.
Mais: em muitos casos, alterar o status quo implicaria, para muitas das pessoas dos grupos dirigentes (políticos, gestores, quadros superiores), uma perda de privilégios, poder, dinheiro - em termos absolutos ou em relação ao resto da população. E vê-se mal um grupo social, seja ele de que nacionalidade for tomar decisões que impliquem uma, ou várias, dessas consequências.
Pequenos contos mortais
A. suicidou-se com uma overdose de heroína que tinha comprado, a custo e ao longo de muito tempo, a um vendedor que lhe garantiram ser "de confiança". É importante, a confiança, nestas coisas.
Deixou uma nota de suicídio que dizia "A morte deve ser vista de uma forma racional. É preferível uma boa morte a uma má vida".
Deixou uma nota de suicídio que dizia "A morte deve ser vista de uma forma racional. É preferível uma boa morte a uma má vida".
16.11.09
Enjoo
Hoje foi o Dia Nacional do Mar. Não consigo perceber porque enjoo tanto, nestas sessões oficiais, cada vez que oiço a palavra "mar"- coisa que não me acontece, vá lá saber-se porquê, quando estou no mar.
A boca e o bolso
Ah, se os gestores e decisores em Portugal abrissem a boca menos e mais o bolso; ou se os abrissem em consonância...
A ausência de vento
"Outro dia em que o mar seja menos tão sem vento" é um verso particularmente feliz de João Miguel Fernandes Jorge. Às vezes gostaria de me lembrar um bocadinho menos dele. Tal como de "a terrível ausência de mar", de Manuel Gusmão.
Cópias
Esperemos que haja tempo - enfim, tempo há; alguém - para fazer uma cópia.
Face Oculta: DIAP de Aveiro não destruiu escutas
Face Oculta: DIAP de Aveiro não destruiu escutas
15.11.09
Apagador, acelerador
Estou contigo como se não tivesse havido ninguém antes de ti, como se não houvesse ninguém depois. O amor é um apagador.
Estou contigo e o tempo passa depressa, como se estivesse à procura de qualquer coisa; à procura da vida. Como se a tivesse encontrado. O amor é um acelerador.
Estou contigo e o tempo passa depressa, como se estivesse à procura de qualquer coisa; à procura da vida. Como se a tivesse encontrado. O amor é um acelerador.
13.11.09
Fragmentos velhos
"Les femmes entraient et sortaient de ma vie au rythme des portes giratoires d'un grand magasin du centre ville".
Mentiras
O Sol faz hoje manchete com o facto de Sócrates ter mentido ao Parlamento a respeito do negócio da TVI. Sinto-me um bocadinho ambivalente: por um lado, não penso que haja ninguém neste país com mais de digamos 8 anos que acredite que Sócrates "desconhecia a compra da TVI pela PT", e desse ponto de vista isto é uma não-notícia. Por outro, é verdade que com a capacidade de se esquivar de que o nosso Primeiro-Ministro tem dado bastas provas, são poucas todas as oportunidades de o confrontar directamente com uma mentira.
12.11.09
Tratado de saber viver para uso de jovens ladrões de peças de bicicleta
Podias pelo menos ter deixado um selim para a troca, não?
Viagens, literatura
Se é verdade, como diz Agustina, que por detrás de cada viagem se esconde uma intenção erótica, pode deduzir-se que toda a literatura de viagens é pornográfica?
Ama-me
"Ama-me! Ama-me!" Repetia tantas vezes a palavra, avenida abaixo, e tão alto, que ela se transformava em "Mama-me, mama-me". Foi assim que soube que tudo aquilo era fingido. Não há nenhum verdadeiro deprimido, ou amante repudiado, que seja capaz de transformar verosimilmente "amar" em "mamar".
Filosofia de bordel
Ontem encontrei-me com um anão na rua das Portas de Sto. Antão. Conhecia-o vagamente de um bordel no Cais do Sodré há nuitos anos. Era lá porteiro (ele; eu era cliente). Cumprimentei-o:
- Ora viva; como está? Há muito tempo que não o via.
- É verdade - respondeu. - Estou bem. Enfim, a tentar reconstituir um ego partido em mil bocados, coisa que ninguém esperaria num anão superficial como sempre fui. E você?
- Óptimo, obrigado. Curioso, porque nunca o vi superficial, e muito menos como tendo fragilidades no ego.
- É, elas estão onde menos se espera. Eu próprio também pensava que sendo superficial como sou, como tento denodadamente ser, não teria problemas desses. Mas olhe, tenho-os. E veja lá que não é nada fácil colar a porra dos bocadinhos de ego que por aí andam espalhados, como pólen sem abelhas.
- A quem o diz, meu caro Anão - (era assim que todos o chamavam, no bordel que ficava ao lado do Bar Hamburgo, de tão saudosa memória - o bar e o bordel, quero dizer). - Sei perfeitamente a dificuldade que é, mesmo para um tipo relativamente normal como eu. Agora imagino para um anão, por muito forte que seja.
- Anão o caralho, sua besta. Ponha-se a andar antes que eu lhe trinque a pila, seu animal.
- E ainda você acha que é superficial, senhor.
- Ora, escondi a superfície nas pregas do cu. Vá, ponha-se a andar, e depressa. Boa noite. Gostei muito de o ver, como sempre.
- Boa noite. Para mim também foi um prazer lembrar os bons velhos tempos da Tiqua e da Melá.
- Ah, a Melá, a Melá.
- Pois, se calhar ela seria uma boa cola para o seu ego fragmentado, não acha, Anão? - (Aqui tirei o meu caro, porque era isso que o chateava).
- Se calhar. Mas broche por broche sempre preferia os da Triz, que eram mais trabalhados, percebe o que eu quero dizer, não percebe?
- Ó se não percebo. Ai Triz, Triz, meretriz de sonho, culta como mais nenhuma, coita como mais ninguém. Bela Triz. Fazia cá uns jogos de palavras...
- De palavras não sei. De boca fazia-os, seu boche de merda. Era você que andava sempre com o Nietszche a tiracolo, não era?
- Sim, era. (Ele era ciumento, via-o agora).
- Pois fique sabendo que eu desde que deixei o bordel fiquei Rousseauiano.
- Rousseauiano? Rousseauiasno, quer você dizer.
- Irracionalista germanófilo!
- Naturalista!
- Venha daí beber uma jeropiga, que estamos em tempo delas.
- Vamos a isso.
- Sabe, agora agencio uma gaja que é materialista. Não acredita na separação entre o espírito e a carne. Tenho que lhe falar dela.
- Ora viva; como está? Há muito tempo que não o via.
- É verdade - respondeu. - Estou bem. Enfim, a tentar reconstituir um ego partido em mil bocados, coisa que ninguém esperaria num anão superficial como sempre fui. E você?
- Óptimo, obrigado. Curioso, porque nunca o vi superficial, e muito menos como tendo fragilidades no ego.
- É, elas estão onde menos se espera. Eu próprio também pensava que sendo superficial como sou, como tento denodadamente ser, não teria problemas desses. Mas olhe, tenho-os. E veja lá que não é nada fácil colar a porra dos bocadinhos de ego que por aí andam espalhados, como pólen sem abelhas.
- A quem o diz, meu caro Anão - (era assim que todos o chamavam, no bordel que ficava ao lado do Bar Hamburgo, de tão saudosa memória - o bar e o bordel, quero dizer). - Sei perfeitamente a dificuldade que é, mesmo para um tipo relativamente normal como eu. Agora imagino para um anão, por muito forte que seja.
- Anão o caralho, sua besta. Ponha-se a andar antes que eu lhe trinque a pila, seu animal.
- E ainda você acha que é superficial, senhor.
- Ora, escondi a superfície nas pregas do cu. Vá, ponha-se a andar, e depressa. Boa noite. Gostei muito de o ver, como sempre.
- Boa noite. Para mim também foi um prazer lembrar os bons velhos tempos da Tiqua e da Melá.
- Ah, a Melá, a Melá.
- Pois, se calhar ela seria uma boa cola para o seu ego fragmentado, não acha, Anão? - (Aqui tirei o meu caro, porque era isso que o chateava).
- Se calhar. Mas broche por broche sempre preferia os da Triz, que eram mais trabalhados, percebe o que eu quero dizer, não percebe?
- Ó se não percebo. Ai Triz, Triz, meretriz de sonho, culta como mais nenhuma, coita como mais ninguém. Bela Triz. Fazia cá uns jogos de palavras...
- De palavras não sei. De boca fazia-os, seu boche de merda. Era você que andava sempre com o Nietszche a tiracolo, não era?
- Sim, era. (Ele era ciumento, via-o agora).
- Pois fique sabendo que eu desde que deixei o bordel fiquei Rousseauiano.
- Rousseauiano? Rousseauiasno, quer você dizer.
- Irracionalista germanófilo!
- Naturalista!
- Venha daí beber uma jeropiga, que estamos em tempo delas.
- Vamos a isso.
- Sabe, agora agencio uma gaja que é materialista. Não acredita na separação entre o espírito e a carne. Tenho que lhe falar dela.
Ler Por Aí
Vai começar uma colaboração entre o site Ler Por Aí e o Don Vivo. Mantenham-se atentos (ma non troppo, por agora: a primeira manifestação será dia 28 de Janeiro).
11.11.09
Rite Clubz
O Ritz Clube está à venda. Se fosse rico comprava-o, eu também.
No dia (enfim, na noite) em que o descobri cheguei a casa às 6 da manhã. O meu Pai estava a tomar o pequeno almoço; sentei-me com ele e desafiei-o, do alto dos meus 18 anos:
No dia (enfim, na noite) em que o descobri cheguei a casa às 6 da manhã. O meu Pai estava a tomar o pequeno almoço; sentei-me com ele e desafiei-o, do alto dos meus 18 anos:
- Hoje conheci um sítio que nem tu, com essa mania toda de que conheces Lisboa, conheces. É uma maravilha, único.
- Qual é?
- O Ritz Clube. Fica ali ao pé dos Restauradores.
- Ainda é a senhora loira que faz o strip-tease?
Refúgios
Há dois tipos de refúgio recorrentes: o passado e o futuro. O presente não poderia ser uma opção, de vez em quando?
Depravação, devassidão, solipsismo
Se me dessem a escolher entre dissolver-me num barril de whisky ou num barril de mulheres preferiria o primeiro.
10.11.09
"A minha pessoa"
Alguém me sabe dizer porque é que se lê tantas vezes "a minha pessoa" em vez de "comigo", ou "a mim"? Parece-me de um mau gosto atroz, uma indescritível foleirada.
Très grande velocidade
Um artigo a ler:
"Já nem a SNCF, a CP francesa, quer mais o TGV. Em Julho alterou a última e antiga encomenda da linha para Nice. No mais, cancelou o TGV, optou por 60 composições tipo light-fast-train, que chega aos 160km/h, e, o que é o mais importante, acelera e trava com rapidez. O que importa numa viagem não é a velocidade máxima mas sim a média. Esta é ditada pela aceleração e pela travagem, pelo número de vezes que o comboio pára e pelas curvas.
A meta não é transportar 220 pessoas de um ponto a outro, o que o avião faz até por menos dinheiro. O objectivo é interligar os recursos de um país, espalhados pelas riquezas naturais e humanas das cidades situadas ao longo da via. É para potenciar estes recursos que se fazem obras públicas.
Em Espanha, o cidadão que não usa a RAVE paga 1,1 mil milhões em subsídios para manter as linhas. A Inglaterra cancelou os planos do TGV entre Londres e Manchester. A própria Alstom já testou o AGV, similar ao Alfa, substituto do TGV. Desde 1998 o TGV tenta entrar na Austrália e não consegue. O mesmo na Suécia, Argentina, Brasil, EUA. Por que não adoptar o que todos os países estão a fazer ferrovias mistas e Light-Alfa, que chega aos 250 km/h, pendular, mais baixo e moderno para passageiros; e carga em carruagens leves em high-strength-steel, nos horários entre os rápidos de passageiros e durante a noite. Se houver algum troço de linha com muitos comboios simultáneos, considerar a terceira via, como já se faz, por exemplo, na Suécia, por uns cinco quilómetros antes e após as grandes estações, para que os rápidos lá possam disparar, enquanto os lentos aceleram ou travam nos carris tradicionais. O moderno sistema de sinalização já o permite. Querem meter goela abaixo o velho TGV em Portugal? É este o preço por termos um português na UE? Ler mais detalhes no livro "Como Sair da Crise"."
(Daqui, via aqui)
A meta não é transportar 220 pessoas de um ponto a outro, o que o avião faz até por menos dinheiro. O objectivo é interligar os recursos de um país, espalhados pelas riquezas naturais e humanas das cidades situadas ao longo da via. É para potenciar estes recursos que se fazem obras públicas.
Em Espanha, o cidadão que não usa a RAVE paga 1,1 mil milhões em subsídios para manter as linhas. A Inglaterra cancelou os planos do TGV entre Londres e Manchester. A própria Alstom já testou o AGV, similar ao Alfa, substituto do TGV. Desde 1998 o TGV tenta entrar na Austrália e não consegue. O mesmo na Suécia, Argentina, Brasil, EUA. Por que não adoptar o que todos os países estão a fazer ferrovias mistas e Light-Alfa, que chega aos 250 km/h, pendular, mais baixo e moderno para passageiros; e carga em carruagens leves em high-strength-steel, nos horários entre os rápidos de passageiros e durante a noite. Se houver algum troço de linha com muitos comboios simultáneos, considerar a terceira via, como já se faz, por exemplo, na Suécia, por uns cinco quilómetros antes e após as grandes estações, para que os rápidos lá possam disparar, enquanto os lentos aceleram ou travam nos carris tradicionais. O moderno sistema de sinalização já o permite. Querem meter goela abaixo o velho TGV em Portugal? É este o preço por termos um português na UE? Ler mais detalhes no livro "Como Sair da Crise"."
(Daqui, via aqui)
Biografias possíveis
A decisão foi tomada: ou ela ia ao fundo ou a verdade vinha ao de cima. Mas o pessimismo habitual daquilo que vulgarmente designamos por vida decidiu outra coisa: acabou por morrer atropelada, pouco depois.
Mais estado, melhor estado
As pessoas que defendem "Mais estado" na economia devem estar felizes da vida: as empresas envolvidas na "Face Oculta" são todas públicas.
Uns que vão decerto defender, de unhas e dentes, a intervenção do estado na economia são os quadros dos bancos de investimento. Aliás, eu sempre suspeitei de que no fundo são todos uns esquerdistas disfarçados, esses banqueiros.
Oxalá chova cá
Há naturalmente uma componente cultural na loucura. Uma vez naveguei com um primeiro-piloto que, a cada porto, enviava uma carta ao Presidente dos EUA (na altura dava pelo nome de Reagan) porque segundo ele a CIA punha, em cada recém-nascido do mundo, um chip com o qual o controlava - o recém-nascido, quero dizer. Ele escrevia ao POTUS a pedir que lhe tirassem o tal chip.
Isto é claramente identificado como loucura, porque nós sabemos quem é a CIA, o Reagan, etc. Mas se em vez de ser branco e europeu o senhor fosse, sei lá, sul-americano e índio; e em vez de invocar a CIA se queixasse do deus Oxalá-chova-cá, como saberíamos nós distinguir a esquizofrenia de uma fé qualquer?
Isto é claramente identificado como loucura, porque nós sabemos quem é a CIA, o Reagan, etc. Mas se em vez de ser branco e europeu o senhor fosse, sei lá, sul-americano e índio; e em vez de invocar a CIA se queixasse do deus Oxalá-chova-cá, como saberíamos nós distinguir a esquizofrenia de uma fé qualquer?
9.11.09
Memória
Não me lembro do que ia dizer; um dos muitos momentos felizes deste blog (acontece com certa, mas insuficiente, frequência.)
Só porque
Desvaloriza-se muitas vezes amar alguém "só" porque esse alguém nos ama. "Só"? Não deve haver razão mais nobre para gostar seja de quem for do que essa.
Não é uma questão de gratidão; é de auto-estima. Alguém gosta de nós mais do que nós próprios? Seja louvado, e amado.
Não é uma questão de gratidão; é de auto-estima. Alguém gosta de nós mais do que nós próprios? Seja louvado, e amado.
Família, amizade
De entre os mitos que o romantismo nos trouxe o que mais rir me faz é o da família. Por mim troco duas famílias por uma amizade. O sarilho é que não sei por que hei-de trocar a amizade.
Um post tocante
Aqui. Uma pessoa pode não estar de acordo com as conclusões; mas as premissas são tocantes. Mais um preconceito que se esboroa, seja Deus louvado.
8.11.09
Conversa de café - corrupção
"Enquanto não se começarem a dar passos claros no caminho de tornar a máquina do Estado independente, verdadeiramente independente, das estruturas partidárias - à semelhança dos países anglo-saxónicos - e de tornar o Estado completamente livre dos polvos financeiros e das grandes empresas do regime (juro, querido leitor, que não tenho o punho erguido), toda a conversa sobre a corrupção não passará de um mero floreado. Com mais ou menos pinta, mas sempre floreado."
E antes disso: enquanto não se reformar a burocracia e a legislação que a suporta.
E antes disso: enquanto não se reformar a burocracia e a legislação que a suporta.
Pois, o Salazar foi um azar
"Portuguese newspapers still suffer from the legacy of state control of the media during the five-decade dictatorship that ended in 1974."
Este tipo de opiniões faz-me invariavelmente pensar na explicação dos países africanos para o subdesenvolvimento: o colonialismo, está bem de ver. Acabou há mais de 40 anos, mas os efeitos far-se-ão sentir até ao fim dos tempos, coitados.
Este tipo de opiniões faz-me invariavelmente pensar na explicação dos países africanos para o subdesenvolvimento: o colonialismo, está bem de ver. Acabou há mais de 40 anos, mas os efeitos far-se-ão sentir até ao fim dos tempos, coitados.
6.11.09
Aquecimento global
Isto é a prova inequívoca da tragédia que aí vem: 14 anos!
(Se o aquecimento global é assim, eu queria dois, se faz favor)
(Se o aquecimento global é assim, eu queria dois, se faz favor)
Coisas verdadeiramente importantes
Yves Parlier na TJV. Todos aqueles que se interessam, ainda que muito vagamente, por estas coisas (são milhões, eu sei) deviam colocar um link no site da Transat Jacques-Vabre.
5.11.09
Destruição criativa
Um blogue que vai direitinho para o reader: Destruição Criativa.
(Lamento não poder dizer de onde vem, por lapso involuntário).
(Lamento não poder dizer de onde vem, por lapso involuntário).
Errado
Um beijo errado na pessoa errada no momento errado pode ter consequências piores do que aquelas que pensamos possíveis.
4.11.09
Luísa - versão integral
I
O pôr-do-sol é o melhor momento para se largar de um porto, qualquer marinheiro vo-lo dirá. Já para começar um conto é menos propício: quantos não abrem com “o sol estava a desaparecer no horizonte e iluminava-lhe os cabelos com uma luz dourada, etc., etc.”? Ou: “a noite chegava e com ela a dúvida / a angústia / a solidão”?
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa.
Chama-se Luísa, sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores) que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: «nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas».
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, «que», explicava ela, «é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira». E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. «Ser bem-educado», dizia-lhes muitas vezes, «não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las»; ou: «temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria». Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: «ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro».
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz «não, acho que sou mais como Snooks Eaglin». Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma e os motivos que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
II
Luísa é uma médica de 38 anos. Está sentada ao pôr-do-sol no alto de uma falésia nas Azenhas do Mar. Tem dois filhos, um casamento a que atribui tanta importância como a que atribui à cor dos vestidos que leva para o trabalho: pouca, raramente; e nenhuma, a esmagadora maioria dos dias; e vários amantes. Desses, o seu favorito é Ricardo, um pianista cego que conheceu num concerto. Luísa acredita na liberdade, na independência, na soberania do individuo e passou uma vida – enfim, “pelo menos até agora” – a lutar por elas e a inculcá-las no espírito dos filhos – Pedro, de 13 anos e, e... - como hei-de chamar-lhe? Alexandra? Gosto do nome: é bonito, evoca grandes feitos e grandes feitios. Fica Alexandra – Alexandra, de 11.
Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.
Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: «fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone». «Não os fechei, idiota»).
Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. «É mais», pensa, «do que dão muitos amores».
O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso: Luísa tem pelo dinheiro um respeito que ele não tem, mas não depende nem se interessa por ele. Como muitos outros, o homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais simples das prisões, a menos complexa das liberdades.
Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.
Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa, e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela, conhece-a menos do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes.
Há muito tempo que António se adaptou a esta situação e não sente tristeza. Tem um círculo social do qual Luísa se excluiu totalmente, o que lhe permite engatar tudo o que lhe passe ao alcance do bolso e tenha menos de dois terços da sua idade ("um dia será metade", diz não sei se com apreensão se com orgulho). Não gosto de António, nada; e gosto muito de Luísa - é bem visível. Mas isso fica para depois. Por agora só há uma pergunta importante: o que faz Luísa no alto da falésia? O que vai acontecer a seguir?
Luísa está apaixonada por Ricardo, mas não pode, ou não quer, reconhecê-lo; e ele por ela, mas não sabe dizê-lo. Seria a primeira vez, para ambos. "Numa relação amorosa sabe-se como se entra, e não como se sai; e quando é ao contrário é pior: não se sabe como se entra mas sabe-se que acaba invariavelmente com lágrimas, baba e ranho, e choro. Num abismo, ao menos, sabemos como entramos e como acabamos: esmagados contra as rochas, que ficam cobertas de sangue e pedaços de carne. Para gáudio dos caranguejos, que se refastelam com o inesperado festim. Não sei se será melhor". Luísa olhava para baixo e a imagem não a atraía particularmente - excepto talvez a ideia que as vagas acabariam por tudo limpar. "Nada fica de nada. O mar limpa tudo; e se não for o mar é o tempo".
Mas é estúpido - aqui intervenho eu - suicidar-se nestas circunstâncias. Espero que Luísa não decida saltar, só porque está, ao 38 anos, confrontada com uma situação que sempre recusou, até hoje com sucesso. Ela deve pensar no resto: na profissão, da qual gosta e na qual se reconhece ("fazer bem a alguém que nem sequer se conhece e de quem não podemos, ou devemos, gostar"); nos filhos ("é estranho, como consegui estabelecer estes laços com eles, sem nada ter feito para isso"); em Ricardo ("como reagiria, se eu saltasse? Diria qualquer coisa como "coitada, esqueceu-se do pára-quedas", ou "estaria a olhar para longe e não viu o que lhe estava à frente do nariz?" e continuaria a tocar? Não creio"). Além de que olhar para um abismo real não é, nem de longe, a mesma coisa do que olhar para um abismo metafórico. E neste, pelo menos, tem-se algum prazer, enquanto se cai.
III
Começo por agradecer ao autor ter-me dado a conhecer alguns pormenores desse fim de tarde. Mas devo dizer que o texto está pejado de erros, omissões e pelo menos uma tolice monumental: nunca por nunca ser pela cabeça de minha Mãe passaria a ideia de suicídio, por muito apelativa que lhe fosse – e seria com certeza – a imagem dos caranguejos a refastelarem-se com a sua carne e o seu sangue. E a de que o Mar e o tempo limpariam tudo. Caranguejos antropófagos, mar e tempo: um conjunto que ela acharia irresistível – mas daí a pensar em matar-se há um passo no qual o autor se perdeu.
Lembro-me bem do que aconteceu nesse dia depois de a Mãe ter chegado a casa: houve uma discussão enorme entre ela e o Pai, o que era raro (já não se davam ao trabalho de discutir) porque a Mãe lhe disse que tinha atirado fora a carteira Vuitton que ele lhe oferecera no princípio do casamento; e que com ela tinham ido o «telefone “topo de gama”, os óculos “topo de gama” e toda a “merda topo de merda que me ofereceste e que eu não quero ver mais, nunca mais». Foi também nesse dia que decidiram divorciar-se. O Pedro e eu ouvimo-los tratar dos pormenores como se estivessem a combinar o menu de um jantar. Ou menos ainda: a Mãe disse ao Pai que não queria nada dele e que só levaria os objectos que ela própria tinha comprado. E que quando arranjasse casa veria como fazer connosco. O Pedro estava contente, mas eu mal continha o choro.
Ao contrário do que o autor faz crer, a minha Mãe era extremamente rígida com a nossa educação: passava a vida a dizer-nos para fechar a boca, ou tirar os cotovelos de cima da mesa, as mãos de debaixo da mesa, dizer obrigado, fazer isto, não fazer aquilo. Se ela queria ensinar-nos a libertar-nos das regras era pela via do excesso.
E o Pai não é tão mau como ele o descreve. Por baixo daquela fachada espaventosa há um homem sensível, com sentimentos que só não expunha mais porque a Mãe os ridicularizaria inapelavelmente. Não é muito culto, é certo. Mas gosta de nós; e tinha com o dinheiro uma relação mais saudável do que a Mãe: com a sua aversão a tudo o que lhe cheirasse a “servidão” – uso aspas porque para a Mãe nada havia que não fosse um passo para a escravidão absoluta – ela dizia que o dinheiro só liberta se se tiver muito, ou nenhum; e que ela por ela mais vale ter muito. Zangava-se (enfim, ela raramente se zangava. Gozava) com o Pai por causa das compras estapafúrdias que ele fazia. “Hummm, mais uma grade na porta. Felizmente é Hermès”, por exemplo, quando o pai lhe ofereceu um carré Hermes (ele não percebia que objectos ou coisas pelas quais as outras mulheres venderiam a família deixavam a Mãe indiferente). “Mais vale uma grade Hermès do que uma Roskoff”, retorquia-lhe. “Uma grade é uma grade, meu caro; mas obrigada, de qualquer forma” – aquele “obrigada” era dito com uma entoação que me arrepiava.
Naquele dia decidiram que se separavam. A perspectiva de ficar com o Pai assustava-me: eu era (ainda sou) muito insegura – obrigada ao autor pelos “feitos e feitios” – e a ideia de ter que conviver com Pai era-me difícil. Nem eu nem o Pedro podíamos adivinhar que ela iria para casa do Ricardo – nós já o tínhamos visto, de vez em quando, com ela; mas não sabíamos, claro, que se conheciam e amavam.
Agora a Filipa vive com o Pai, e a Mãe com o Ricardo. A Filipa é simpática, carinhosa, doce. Acho que é a pessoa indicada para o Pai.
IV
A minha irmã tem, coitada, uma irreprimível tendência para a asneira. Acha-se insegura; deve ser por isso que hoje – faz 18 anos – se inscreveu como voluntária nos Médecins sans Frontières. Andava a falar nisso há algum tempo. Eu bem tentei fazer-lhe ver que é uma tolice. Mas ela – a insegura – fez ouvidos de mercador. Quer ir para medicina, quando voltar. O Pai propôs-lhe um estágio no clube de futebol, em vez de África, para onde ela pediu para ser enviada (deve pensar que o humanitário é uma agência de viagens). A Mãe e o Ricardo só lhe perguntaram se tinha a certeza, e aconselharam-na a usar camisas-de-vénus; «sempre, ouviste? Sempre». E a ter cuidado, claro.
A Filipa anda a ajudar o pai a dilapidar o que lhe resta de dinheiro. Felizmente tem muito, e a Mãe já o obrigou a dar-nos o suficiente para não termos que nos preocupar. Continua com o consultório e o hospital; mas desinteressou-se dos amantes: «o Ricardo chega-me». Continua a mesma: independente, soberana, livre. Fui para casa deles pouco depois de a Filipa ter saído. A Alexandra ficou em casa do meu pai. A Mãe sempre nos ensinou a escolher – e sempre respeitou as nossas escolhas. Eu estou a fazer Direito. Quero ser advogado – há médicos que cheguem na família.
V
Luísa está sentada nas falésias; subitamente levanta-se e atira a carteira ao mar. Fica a ver os objectos caírem, lentamente, num silêncio denso, cor de sangue. Vai para o carro. «Não sei o que é o amor, mas sei o que ele não deve ser».
Lisboa, 04/11/2009
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa.
Chama-se Luísa, sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores) que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: «nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas».
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, «que», explicava ela, «é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira». E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. «Ser bem-educado», dizia-lhes muitas vezes, «não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las»; ou: «temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria». Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: «ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro».
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz «não, acho que sou mais como Snooks Eaglin». Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma e os motivos que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
II
Luísa é uma médica de 38 anos. Está sentada ao pôr-do-sol no alto de uma falésia nas Azenhas do Mar. Tem dois filhos, um casamento a que atribui tanta importância como a que atribui à cor dos vestidos que leva para o trabalho: pouca, raramente; e nenhuma, a esmagadora maioria dos dias; e vários amantes. Desses, o seu favorito é Ricardo, um pianista cego que conheceu num concerto. Luísa acredita na liberdade, na independência, na soberania do individuo e passou uma vida – enfim, “pelo menos até agora” – a lutar por elas e a inculcá-las no espírito dos filhos – Pedro, de 13 anos e, e... - como hei-de chamar-lhe? Alexandra? Gosto do nome: é bonito, evoca grandes feitos e grandes feitios. Fica Alexandra – Alexandra, de 11.
Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.
Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: «fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone». «Não os fechei, idiota»).
Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. «É mais», pensa, «do que dão muitos amores».
O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso: Luísa tem pelo dinheiro um respeito que ele não tem, mas não depende nem se interessa por ele. Como muitos outros, o homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais simples das prisões, a menos complexa das liberdades.
Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.
Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa, e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela, conhece-a menos do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes.
Há muito tempo que António se adaptou a esta situação e não sente tristeza. Tem um círculo social do qual Luísa se excluiu totalmente, o que lhe permite engatar tudo o que lhe passe ao alcance do bolso e tenha menos de dois terços da sua idade ("um dia será metade", diz não sei se com apreensão se com orgulho). Não gosto de António, nada; e gosto muito de Luísa - é bem visível. Mas isso fica para depois. Por agora só há uma pergunta importante: o que faz Luísa no alto da falésia? O que vai acontecer a seguir?
Luísa está apaixonada por Ricardo, mas não pode, ou não quer, reconhecê-lo; e ele por ela, mas não sabe dizê-lo. Seria a primeira vez, para ambos. "Numa relação amorosa sabe-se como se entra, e não como se sai; e quando é ao contrário é pior: não se sabe como se entra mas sabe-se que acaba invariavelmente com lágrimas, baba e ranho, e choro. Num abismo, ao menos, sabemos como entramos e como acabamos: esmagados contra as rochas, que ficam cobertas de sangue e pedaços de carne. Para gáudio dos caranguejos, que se refastelam com o inesperado festim. Não sei se será melhor". Luísa olhava para baixo e a imagem não a atraía particularmente - excepto talvez a ideia que as vagas acabariam por tudo limpar. "Nada fica de nada. O mar limpa tudo; e se não for o mar é o tempo".
Mas é estúpido - aqui intervenho eu - suicidar-se nestas circunstâncias. Espero que Luísa não decida saltar, só porque está, ao 38 anos, confrontada com uma situação que sempre recusou, até hoje com sucesso. Ela deve pensar no resto: na profissão, da qual gosta e na qual se reconhece ("fazer bem a alguém que nem sequer se conhece e de quem não podemos, ou devemos, gostar"); nos filhos ("é estranho, como consegui estabelecer estes laços com eles, sem nada ter feito para isso"); em Ricardo ("como reagiria, se eu saltasse? Diria qualquer coisa como "coitada, esqueceu-se do pára-quedas", ou "estaria a olhar para longe e não viu o que lhe estava à frente do nariz?" e continuaria a tocar? Não creio"). Além de que olhar para um abismo real não é, nem de longe, a mesma coisa do que olhar para um abismo metafórico. E neste, pelo menos, tem-se algum prazer, enquanto se cai.
III
Começo por agradecer ao autor ter-me dado a conhecer alguns pormenores desse fim de tarde. Mas devo dizer que o texto está pejado de erros, omissões e pelo menos uma tolice monumental: nunca por nunca ser pela cabeça de minha Mãe passaria a ideia de suicídio, por muito apelativa que lhe fosse – e seria com certeza – a imagem dos caranguejos a refastelarem-se com a sua carne e o seu sangue. E a de que o Mar e o tempo limpariam tudo. Caranguejos antropófagos, mar e tempo: um conjunto que ela acharia irresistível – mas daí a pensar em matar-se há um passo no qual o autor se perdeu.
Lembro-me bem do que aconteceu nesse dia depois de a Mãe ter chegado a casa: houve uma discussão enorme entre ela e o Pai, o que era raro (já não se davam ao trabalho de discutir) porque a Mãe lhe disse que tinha atirado fora a carteira Vuitton que ele lhe oferecera no princípio do casamento; e que com ela tinham ido o «telefone “topo de gama”, os óculos “topo de gama” e toda a “merda topo de merda que me ofereceste e que eu não quero ver mais, nunca mais». Foi também nesse dia que decidiram divorciar-se. O Pedro e eu ouvimo-los tratar dos pormenores como se estivessem a combinar o menu de um jantar. Ou menos ainda: a Mãe disse ao Pai que não queria nada dele e que só levaria os objectos que ela própria tinha comprado. E que quando arranjasse casa veria como fazer connosco. O Pedro estava contente, mas eu mal continha o choro.
Ao contrário do que o autor faz crer, a minha Mãe era extremamente rígida com a nossa educação: passava a vida a dizer-nos para fechar a boca, ou tirar os cotovelos de cima da mesa, as mãos de debaixo da mesa, dizer obrigado, fazer isto, não fazer aquilo. Se ela queria ensinar-nos a libertar-nos das regras era pela via do excesso.
E o Pai não é tão mau como ele o descreve. Por baixo daquela fachada espaventosa há um homem sensível, com sentimentos que só não expunha mais porque a Mãe os ridicularizaria inapelavelmente. Não é muito culto, é certo. Mas gosta de nós; e tinha com o dinheiro uma relação mais saudável do que a Mãe: com a sua aversão a tudo o que lhe cheirasse a “servidão” – uso aspas porque para a Mãe nada havia que não fosse um passo para a escravidão absoluta – ela dizia que o dinheiro só liberta se se tiver muito, ou nenhum; e que ela por ela mais vale ter muito. Zangava-se (enfim, ela raramente se zangava. Gozava) com o Pai por causa das compras estapafúrdias que ele fazia. “Hummm, mais uma grade na porta. Felizmente é Hermès”, por exemplo, quando o pai lhe ofereceu um carré Hermes (ele não percebia que objectos ou coisas pelas quais as outras mulheres venderiam a família deixavam a Mãe indiferente). “Mais vale uma grade Hermès do que uma Roskoff”, retorquia-lhe. “Uma grade é uma grade, meu caro; mas obrigada, de qualquer forma” – aquele “obrigada” era dito com uma entoação que me arrepiava.
Naquele dia decidiram que se separavam. A perspectiva de ficar com o Pai assustava-me: eu era (ainda sou) muito insegura – obrigada ao autor pelos “feitos e feitios” – e a ideia de ter que conviver com Pai era-me difícil. Nem eu nem o Pedro podíamos adivinhar que ela iria para casa do Ricardo – nós já o tínhamos visto, de vez em quando, com ela; mas não sabíamos, claro, que se conheciam e amavam.
Agora a Filipa vive com o Pai, e a Mãe com o Ricardo. A Filipa é simpática, carinhosa, doce. Acho que é a pessoa indicada para o Pai.
IV
A minha irmã tem, coitada, uma irreprimível tendência para a asneira. Acha-se insegura; deve ser por isso que hoje – faz 18 anos – se inscreveu como voluntária nos Médecins sans Frontières. Andava a falar nisso há algum tempo. Eu bem tentei fazer-lhe ver que é uma tolice. Mas ela – a insegura – fez ouvidos de mercador. Quer ir para medicina, quando voltar. O Pai propôs-lhe um estágio no clube de futebol, em vez de África, para onde ela pediu para ser enviada (deve pensar que o humanitário é uma agência de viagens). A Mãe e o Ricardo só lhe perguntaram se tinha a certeza, e aconselharam-na a usar camisas-de-vénus; «sempre, ouviste? Sempre». E a ter cuidado, claro.
A Filipa anda a ajudar o pai a dilapidar o que lhe resta de dinheiro. Felizmente tem muito, e a Mãe já o obrigou a dar-nos o suficiente para não termos que nos preocupar. Continua com o consultório e o hospital; mas desinteressou-se dos amantes: «o Ricardo chega-me». Continua a mesma: independente, soberana, livre. Fui para casa deles pouco depois de a Filipa ter saído. A Alexandra ficou em casa do meu pai. A Mãe sempre nos ensinou a escolher – e sempre respeitou as nossas escolhas. Eu estou a fazer Direito. Quero ser advogado – há médicos que cheguem na família.
V
Luísa está sentada nas falésias; subitamente levanta-se e atira a carteira ao mar. Fica a ver os objectos caírem, lentamente, num silêncio denso, cor de sangue. Vai para o carro. «Não sei o que é o amor, mas sei o que ele não deve ser».
Lisboa, 04/11/2009
Conversa de café
"Portugal vai voltar a divergir com a UE". Claro que isto pouco interessa na grande ordem das coisas; e é totalmente irrelevante para quem não frequenta o mundo das conversas de café. Mas lá que é chato para a maioria dos portugueses é, coitados.
3.11.09
Luísa (cont.)
Luísa é uma médica de 38 anos. Está sentada ao pôr-do-sol no alto de uma falésia nas Azenhas do Mar. Tem dois filhos, um casamento a que atribui tanta importância como a que atribui à cor dos vestidos que leva para o trabalho: pouca, raramente, e nenhuma, a esmagadora maioria dos dias; e vários amantes. Desses, o seu favorito é Ricardo, um pianista cego que conheceu num concerto. Luísa acredita na liberdade, na independência, na soberania do individuo e passou uma vida – enfim, “pelo menos até agora” – a lutar por elas e a inculcá-las no espírito dos filhos – Pedro, de 13 anos e, e... - como hei-de chamar-lhe? Alexandra, pode ser? Gosto do nome: é bonito, evoca grandes feitos e grandes feitios. Fica Alexandra – Alexandra, de 11.
Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.
Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: “fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone”. “Não os fechei, idiota”).
Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. "É mais", pensa, "do que dão muitos amores".
O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso. Como muitos outros, aquele homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais suave das prisões, a menos difícil das liberdades.
Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.
Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes: quem não sabe nadar tanto se afoga em meio metro de água como em alto mar.
Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.
Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: “fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone”. “Não os fechei, idiota”).
Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. "É mais", pensa, "do que dão muitos amores".
O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso. Como muitos outros, aquele homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais suave das prisões, a menos difícil das liberdades.
Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.
Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes: quem não sabe nadar tanto se afoga em meio metro de água como em alto mar.
Há muito tempo que António se adaptou a esta situação e não sente tristeza. Tem um círculo social do qual Luísa se excluiu totalmente, o que lhe permite engatar tudo o que lhe passe ao alcance do bolso e tenha menos de dois terços da sua idade ("um dia será metade", diz não sei se com apreensão se com orgulho). Não gosto de António, nada; e gosto muito de Luísa - é bem visível. Mas isso fica para depois.
Por agora só há uma pergunta importante: o que faz Luísa no alto da falésia? O que vai acontecer a seguir?
Luísa está apaixonada por Ricardo, mas não pode, ou não quer, reconhecê-lo; e ele por ela, mas não sabe dizê-lo. Seria a primeira vez, para ambos.
"Numa relação amorosa sabe-se como se entra, e não como se sai; e quando é ao contrário é pior: não se sabe como se entra mas sabe-se que acaba invariavelmente com lágrimas, baba e ranho, e choro. Num abismo, ao menos, sabemos como entramos e como acabamos: esmagados contra as rochas, que ficam cobertas de sangue e pedaços de carne. Para gáudio dos caranguejos, que se refastelam com o inesperado festim. Não sei se será melhor". Luísa olhava para baixo e a imagem não a atraía particularmente - excepto talvez a ideia que as vagas acabariam por tudo limpar. "Nada fica de nada. O mar limpa tudo; e se não for o mar é o tempo".
Mas é estúpido - aqui intervenho eu - suicidar-se nestas circunstâncias. Espero que Luísa não decida saltar, só porque está, ao 38 anos, confrontada com uma situação que sempre recusou, até hoje com sucesso. Ela deve pensar no resto: na profissão, da qual gosta e na qual se reconhece ("fazer bem a alguém que nem sequer se conhece e de quem não podemos, ou devemos, gostar"); nos filhos ("é estranho, como consegui estabelecer estes laços com eles, sem nada ter feito para isso"); em Ricardo ("como reagiria, se eu saltasse? Diria qualquer coisa como "coitada, esqueceu-se do pára-quedas", ou "estaria a olhar para longe e não viu o que lhe estava à frente do nariz?" e continuaria a tocar? Não creio"). Além de que olhar para um abismo real não é, nem de longe, a mesma coisa do que olhar para um abismo metafórico. E neste, pelo menos, tem-se algum prazer, enquanto se cai.
Objecção contra o vegetarianismo
A Humanidade passou milénios e milénios a aprender a caçar. Para quê dilapidar agora esse esforço?
Serviço Público - Vinhos
Castelo Rodrigo 2005 DOC, Touriga nacional, Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo.
Um excelente vinho português, como cada vez se fazem menos: encorpado, taninado, saboroso, denso. O contra-rótulo é bilingue, o que me levou a supor que seria possível encontrá-lo pelo menos em Lisboa. Aparentemente é o caso, mas a senhora a quem telefonei hoje não sabia onde. Espero ter essa informação amanhã.
E já que estamos a falar de vinhos portugueses (e não de vinhos de Portugal) fica mais esta referência: Quinta do Perdigão. O Rosé é de se cair para o lado, o Reserva 2005 idem e até o entrada de gama é sublime. Um amigo suíço (mas, parafraseando alguém, que tem a sorte de viver em Portugal) dizia-me recentemente: "O problema com esse vinho é que deixei de conseguir beber outros. Tive que parar, se não transformava-me em mono-vinho".
Um excelente vinho português, como cada vez se fazem menos: encorpado, taninado, saboroso, denso. O contra-rótulo é bilingue, o que me levou a supor que seria possível encontrá-lo pelo menos em Lisboa. Aparentemente é o caso, mas a senhora a quem telefonei hoje não sabia onde. Espero ter essa informação amanhã.
E já que estamos a falar de vinhos portugueses (e não de vinhos de Portugal) fica mais esta referência: Quinta do Perdigão. O Rosé é de se cair para o lado, o Reserva 2005 idem e até o entrada de gama é sublime. Um amigo suíço (mas, parafraseando alguém, que tem a sorte de viver em Portugal) dizia-me recentemente: "O problema com esse vinho é que deixei de conseguir beber outros. Tive que parar, se não transformava-me em mono-vinho".
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Variações sobre um tema
Hoje andei à procura de um tema qualquer apropriado ao recente dia de Todos-os-Santos, mas não encontrei. Só me vieram à mente coisas (ou melhor, mariquices) com vida:
"Ninguém devia morrer antes de ter vivido";
"É a vida que dá sentido à morte, e não o contrário";
"- Viveu para a Obra, mas morreu antes de a completar.
-Ou seja: uma obra de merda e uma vida idem".
"Ninguém devia morrer antes de ter vivido";
"É a vida que dá sentido à morte, e não o contrário";
"- Viveu para a Obra, mas morreu antes de a completar.
-Ou seja: uma obra de merda e uma vida idem".
Luísa
O pôr-do-sol é o melhor momento para se largar de um porto, qualquer marinheiro vo-lo dirá. Já para começar um conto é menos propício: quantos não abrem com “o sol estava a desaparecer no horizonte e iluminava-lhe os cabelos com uma luz dourada, etc., etc.”? Ou: “a noite chegava e com ela a dúvida / a angústia / a solidão”?
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa. Vá, fica Luísa.
Sabemos agora que a senhora sentada num muro ao pôr-do-sol, face ao mar e ao poente se chama Luísa. Sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores), que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: “nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas”.
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, “que”, explicava ela, “é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira”. E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem, se bem alguns suspeitem da existência de outros; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. “Ser bem-educado”, dizia-lhes muitas vezes, “não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las”; ou: “temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria”. Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: “ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro”.
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz "não, acho que sou mais como Snooks Eaglin". Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
(cont.)
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa. Vá, fica Luísa.
Sabemos agora que a senhora sentada num muro ao pôr-do-sol, face ao mar e ao poente se chama Luísa. Sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores), que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: “nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas”.
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, “que”, explicava ela, “é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira”. E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem, se bem alguns suspeitem da existência de outros; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. “Ser bem-educado”, dizia-lhes muitas vezes, “não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las”; ou: “temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria”. Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: “ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro”.
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz "não, acho que sou mais como Snooks Eaglin". Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
(cont.)
2.11.09
Definição
"Os franceses", dizia-me hoje um jovem artista luso-francês, "são como os gays: têm os defeitos dos homens e os defeitos das mulheres, e nenhuma das respectivas qualidades".
(E acrescentava "eu sou francês, mas tenho a sorte de ter uma educação portuguesa").
(E acrescentava "eu sou francês, mas tenho a sorte de ter uma educação portuguesa").
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