31.12.09

Bênção

A festa está a correr bem. As pessoas vieram em maior número do que o previsto e trouxeram muitos pratos excelentes, variados, inesperados (ad perpetuam rei memoriam destaco uns panados de veado, cozinhados pelo caçador do dito cujo; uma sopa de míscaros que estava muito perto do divino, qualquer que seja a concepção que dele se tenha; e um polvo guisado à micaelense, idem); a música é a da nossa faixa etária; a atmosfera agradável, quase familiar. Estou sozinho, e pergunto-me se tenho vontade de pôr em prática os meus dotes de sociabilidade, se não. A maioria das vezes não tenho. Hoje, penso nas pessoas com quem gostaria de partilhar este momento e duas ou três emergem; nenhuma delas está aqui.

Qualquer coisa me diz que vou, uma vez mais, passar por tímido. É uma bênção, a timidez.

"O beijo"

É o título de uma fotografia que não fiz (verdade seja dita que se a tivesse feito, intitular-se-ia "Cascais, Dezembro de 2009"). Cenário: praia da Duquesa, fim de um dia de mau tempo. O pior da frente já passou; o céu já tem muito azul - que a esta hora se transforma rapidamente em rosa escuro, acinzentado. A maré está decerto a baixar, e deixa na praia uma faixa brilhante, irregular, na qual se repousam as gaivotas e reflectem os inúmeros tons de luz, desde o cinzento escuro do edifício do hotel até ao branco que é a mistura de tudo o mais. As linhas que delimitam esta faixa húmida, brilhante, de formas irregulares ora se afastam uma da outra, ora se aproximam, simetricamente, como duas linhas de um gráfico de valores inversamente proporcionais.

Um dos "vales" da linha superior - a que está mais longe do mar - é por vezes beijado pela vaga, que fez um "pico" para o encontrar, lhe tocar; o beijo é o momento em que os três se encontram: a espuma das vagas; a linha que separa a faixa de humidade na areia da areia seca; e o meu olhar, que se pergunta de onde vem tanta beleza, e para onde vai.

Pena de morte

Há casos em que a pena de morte se justifica. "China: Comboio mais rápido do mundo bloqueado três horas... por um fumador"

[Este não é um deles, mas quase].

Instinto paternal

Acordo ortográfico - um understatement

Uma pequena nota qui n'a rien a voir: há pouco escrevi "inevitavelmente", "desnecessariamente", "lamentavelmente" no mesmo post. Ainda estranho, e lamento, a falta dos acentos graves nos advérbios de modo formados a partir de adjectivos. Não sei se isto significa o que quer que seja, mas aqui fica. Para rimar.

Idealismo equivocado

Às vezes perguntava-se se ela pensava nele tanto como ele nela. Um dia descobriu que sim, e ficou surpreendido.

Lamentável, inevitável

Numa crónica de Pedro Lomba li hoje que a vida de um homem não fica completa se não conhecer a guerra, o amor e a pobreza (não garanto a ordem dos factores, mas é irrelevante). Antes de mais nada: prefiro esses parâmetros aos habituais "livro, árvore e filho" do provérbio árabe.

Passei por todas as situações do provérbio que Pedro Lomba cita. Pergunto-me se tive de me envergonhar em qualquer uma delas: a resposta é sim, lamentavelmente. Ou será "inevitavelmente"?

Já fui cobarde, mentiroso e cruel, desnecessariamente cruel. As únicas coisas das quais me posso orgulhar são não ter sido cobarde na guerra - inequivocamente; nem mentiroso na pobreza - discutível, mas defensavelmente. Não chega.

30.12.09

Pensando melhor - críticas

Não há críticas impiedosas. Há críticas - escolha o seu paradigma - justas / injustas; construtivas / destrutivas; sãs / doentias; justificadas / injustificadas; legítimas / ilegítimas. Uma vez do bom lado da clivagem, todas as críticas devem (ou podem) ser impiedosas, ferozes, violentas.

PS - e frontais, cela va sans dire.

PPS - Amizade é o que nos permite suportar as críticas que vêm do lado errado. Ou melhor: sobreviver-lhes.

Retratos possíveis

Um homem para quem ex-namorada é um oxímoro.

Aprendemos

Um dos editoriais do Público (link não disponível) de hoje fala dos estádios de futebol construídos para o Euro 2004 - já há 4 câmaras municipais que os querem vender, demolir ou por qualquer outra forma ver-se livres deles. E termina perguntando se "teremos aprendido a lição?". A resposta é um "sim!" claro e inequívoco: vamos fazer TGVs.

29.12.09

O casamento e o mundo exterior; ou: má-fé

Os homosexuais não param de falar no casamento; porra, há um mundo exterior. Que propõem para o défice orçamental, para o TGV, para as idiotices da nossa política exterior, para o ensino (oooops, sorry, isto eu sei), para a Justiça, para a ampliação do terminal de contentores de Alcântara, para o resto? Há um país à volta deles (e delas, claro) e a única coisa que os interessa é o casamento.

Parlamento

Aniversário

Há alguns dias celebrei os cinco mil posts deste blog. Hoje é o dia do seu sexto aniversário. E, provavelmente - não as contei - da sua milionésima surpresa. A maior delas todas é ter durado tanto tempo e haver vontade para mais. E depois (na realidade, antes, muito antes) é a surpresa de todas as pessoas que conheci através, ou por causa do Don Vivo.

É a essas pessoas, todas, que dedico os posts que foram e os que estão para vir; é a essas pessoas que agradeço as visitas quotidianas, os comentários, a generosidade e a tolerância com que me lêem, ou leram.

Um obrigado muito especial à Fugidia (infelizmente não se pode revelar o seu nome) do Esconderijo; à Luísa, do Nocturno (que não conheço pessoalmente, mas é como se); à Isabel, uma das mais talentosas fotógrafas que tenho o privilégio de conhecer, do 4 Caprichos e um café. A Isabel fotografa como eu gostaria de o fazer, o que me alegra muito mais do que entristece, porque não sou dado a invejas, felizmente. À Ana Gomes Ferreira, do A Vida dos meus Dias, a quem tanto tenho a agradecer.

Outros - muitos, tantos - encontros não estão aqui mencionados: nalguns casos porque se lhes seguiram desencontros; noutros, porque sim. Todos me marcaram, todos fazem parte desta infinita lista de surpresas. Mais do que um blogue, o DV revelou-se uma formidável ponte entre mim e o mundo (creio que já por aqui o disse, mas posso repeti-lo).

Há, porém, três pessoas que conheci devido ao Don Vivo e gostaria de destacar, porque dos blogues saltaram para a vida profissional, num projecto que me é caro, ao qual dediquei o último mais de um ano da minha vida e ao qual sei vou dedicar ainda mais: a Ana Vidal, então no Porta do Vento e agora no Delito de Opinião, que foi incansável, preciosa e fundamental no lançamento do Mares - Olhares da Língua Portuguesa - a ela se deve, por exemplo, o nome do projecto, e muito mais; à Andrea Carvalho Rosa, do A Ponto, cujos conselhos jurídicos e opiniões gerais têm sido preciosos - para não mencionar o seu formidável sentido de humor, a sua inabalável independência, a sua categoria - em itálico, se faz favor; e - a ordem é cronológica - à Rosa Casimiro, do Blogue de Cheiros, que está a fazer o logótipo da Amar o Mar (a empresa que gere o Mares) - e que desde já é o logótipo mais bonito e mais adequado ao nome de uma empresa que tive o privilégio de utilizar (ou terei :-), quando estiver pronto).

Não menciono neste post as pessoas que conhecia do "outro" mundo e frequentam o sítio - elas sabem que o agradecimento lhes é, claro, extensivo.

O Don Vivo (para quem não sabe, o nome do primeiro barco "a sério" que tive) era um Ne Quid Nimis, construído pelo meu amigo Rafael Rivera (navegador emérito e hoje professor de Francês algures na Polinésia). Com ele naveguei dois anos magníficos nos Açores. Vendi-o mal, porque não sei vender as coisas de que gosto (e as outras tão pouco, mas isso não interessa). Deu o nome a este blog muitos anos depois - e hoje vejo que foi bem dado: nenhum dos dois me sairá da memória, até que a memória os deixe.

(Um obrigado especial ainda a uma pessoa que me pediu um dia para não a linkar. Tem sido um leitor atento do DV, um corrector rigoroso mas generoso dos erros e gralhas e lapsos e ignorâncias que por aqui se intrometem mais vezes do que seria desejável).

Para onde vão os nossos impostos, bis

Alberto Gonçalves, sobre o TGV

28.12.09

Para onde vão os nossos impostos

Acredite-se ou não, a lei portuguesa considera necessário legislar sobre as datas dos saldos. Os nossos deputados não têm mais que fazer?

Entretanto, noutros lados

Posso votar neste senhor?



(Via 31 da Armada)

Empreendedorismo

E ainda dizem que os portugueses são pouco empreendedores, e que é preciso fomentar o empreendedorismo nos jovens.

"Crianças vendem 'Magalhães' a 5 euros nos Açores"

(Via Delito de Opinião)

Variações Goldberg

Via Dias Felizes encontrei esta pérola:

27.12.09

TGV

A CP, com a nova bilhética, conseguiu o prodígio de tornar um sistema electrónico menos flexível do que um sistema tradicional de bilhetes em papel.

É esta empresa que quer fazer um TGV.

Terminal de contentores de Alcântara

Alguém me pode dizer se já há alguma posição oficial do CDS a respeito do contrato de concessão do TCA? Afinal de contas, o CDS foi o primeiro partido (se a memória não me trai) a insurgir-se contra tal aberração. Esta espera é incompreensível - pelo menos para o comum dos mortais, ou eleitor médio.

(Também aqui).

Carta aberta

O provedor do leitor do Público escreveu hoje uma "carta aberta aos jornalistas do Público" (link só para assinantes) na qual diz, entre outras coisas (por exemplo, um ataque a José Manuel Fernandes do qual discordo em absoluto, naturalmente), que o Público deve começar a dedicar mais espaço às coisas que interessam os leitores (por exemplo, crime); e que as fotografias deviam ser mais informativas, e menos gráficas (transcrições de memória).

Espero sinceramente que essas sugestões não sejam seguidas - sabendo que é muito provavelmente o que vai acontecer.

Os votos certos

"Que se fodam e sejam felizes".

A palavra certa

Escumalha.

26.12.09

Egoísmo altruísta

Há momentos na vida de todos em que devemos pensar em nós, e só em nós. Quanto mais não seja porque é melhor para quem nos rodeia.

24.12.09

Conversa de café - Queines

No outro dia li um artigo segundo o qual os problemas de Grécia vinham em parte do novo aeroporto de Atenas e dos Jogos Olímpicos. O que me deixa perplexo e faz pensar que o autor do artigo ou não percebe nada de economia e não sabe que o investimento público é um factor de riqueza; ou acha que os problemas são devidos ao facto de os investimentos não terem sido ainda maiores. Sai um TGV?

Votos



A todas e todos os leitores do Don Vivo, os meus votos sinceros de um Feliz Natal e um óptimo Ano Novo.

23.12.09

De um fôlego

Isto aconteceu tudo muito depressa, conta-se de um fôlego: a cabra da mulher-polícia mandou-me parar (isto é: eu ia a falar ao telefone portátil e sem as mãos no guiador e ela fez-me um sinal a dizer qualquer coisa como "telefone não" e "as mãos no guiador" e eu em resposta juntei os lábios e estiquei-os para fora e fiz como se estivesse a mandar-lhe um beijo e vai daí mandou-me parar. Isto está que já não se pode enviar um beijo a uma gaja. Eu parei, claro, e ela aproximou-se e eu disse-lhe "és tão boa" e apalpei-lhe uma das mamas, para ver se estava ok, e estava. A mulher passou-se de todo. Não se pode dizer a uma gaja "és tão boa" ela vê-se logo com uma ninhada dos zero aos quatro anos, alinhados um por ano e o outro já na barriga e passou-se e arreou-me com o cassetête; e aí eu disse-lhe "desculpe, queria que eu lhe apalpasse as duas, é?" e apalpei as duas - tinha umas mamas boas, duras, pouca usadas - também era nova, diga-se de passagem, trinta menos alguns, poucos - e ia ficando apoplética, vejam bem).

Enfim, a coisa foi indo de mal a pior, só porque era boa. Se fosse um chaço nada disto teria acontecido e eu não estaria agora casado a contar-vos estas porras todas que felizmente se contam de um fôlego. A gaja arreou-me um arraial de porrada daqueles que só visto, ela e os colegas todos dela e eu dizia-lhe "levavas-me ao altar, mulher, ao altar e nem pelo hotel passávamos antes" e catrapum, lá vinha mais uma chuvada deles.

Depois saí da esquadra, sabe Deus como (a gaja tinha dito aos colegas "o gajo está mas é grosso" o que só demonstra a rapidez de raciocínio e a perspicácia dela) e no dia seguinte telefonou-me vejam bem, se fosse um chaço não me teria telefonado aposto. Queria saber "se eu estava bem" e eu foda-se estava ressacado e cheio de nódoas negras e dores e aquelas merdas não sei como é que os médicos lhes chamam, inchaços e o caralho e disse-lhe "como é que queres que eu esteja bem, com o arraial que tu e os teus amigos me arrearam?" e ela disse "mereceste-o" e eu respondi "claro que mereci, mas tu também és muito boa e se não fosses tão boa nada disto teria acontecido" e não tardou um fósforo a gaja estava em minha casa e vai mais um fósforo estava a tratar-me das feridas e depois mais um estava sentada em cima de mim e eu a comê-la, mal me conseguia mexer, reparem onde chegou a cabrice dela.

E meia dúzia de meses depois estávamos casados; engravidou, dizia ela. Acho que sim. Mas lá que ela é boa é e as mamas são duras, ainda, então agora grávida são uma coisa linda de se ver e de se mexer. Eu mexo-lhes, todos os dias. Mas já não levo porrada por causa disso.

Dores

De todas as dores de corno que Deus fez - e Ele sabe bem que muitas foram - a minha favorita é a do Generoso, coitado.

O Generoso quando e quanto tem dá, sem pensar; se tem casa oferece hospitalidade, se vinho partilha-o com qualquer pessoa num raio de cem metros, se tem dinheiro empresta sabendo que nunca mais o verá; e só não dá a mulher a quem a quer porque ela própria se encarrega disso.

Um dia o Generoso encontra-se na rua e não tem - pobre dele - quem se lembre de tudo o que dele recebeu. Chora amargamente baba e ranho, arrepanha-se os cabelos e esbofeteia-se a face. Nada a fazer. É uma dor de corno fodida, a do Generoso, coitado.

SMS

Enviei-lhe um SMS: "Não respondas". Ela não respondeu.

Cursos

"Ela foi fazer um curso de espiritualidade, para ver se pacificava o casamento", disseram-lhe de uma amiga. "Talvez devesse antes fazer um de carnalidade", respondeu.

22.12.09

Pensamento mágico

Tenho andado a dar voltas à cabeça para perceber qual o mecanismo mental das pessoas que, confrontadas com uma situação de estacionamento que impede ou dificulta bastante a passagem de peões (sobretudo idosos e pessoas de mobilidade reduzida), optam por instalar sinalização vertical em vez de meios físicos para impedir o estacionamento.

Isto em Lisboa, uma cidade em que até um marciano conhece o respeito que os automobilistas têm pela sinalização.

A única solução que encontrei, ao fim de muitas voltas e hesitações, é "pensamento mágico". Afastei outras, como "incompetência", "negligência", "marimbismo". Mas ainda não tenho a certeza.

A arrogância e a competição

Ainda não conheci um indivíduo arrogante que suporte a arrogância alheia. A arrogância não gosta de competição.

21.12.09

Perseverança, loucura

Recentemente um amigo mencionou-me a frase de Einstein segundo a qual "loucura é fazer sempre as mesmas coisas e esperar obter resultados diferentes". Depois disso, um excelente artigo no Jornal de Negócios dizia que a perseverança é mais bem vista do que a mudança, mas que se deve distinguir entre persistências positiva e negativa.

É um tema que me preocupa bastante: já tive a minha quota parte de "persistência perniciosa", por um lado; por outro, por cada milhão de vezes que sou acusado de estar sempre a mudar só sou acusado do contrário uma. O equilíbrio é difícil de encontrar, e, para quem está no banho saber qual o momento de sair da água não é fácil.

Claro que se pode pensar que a frase de Einstein foi provavelmente dita num contexto de pesquisa; e que no caso do autor do artigo, mudar de produtos é relativamente fácil. Nem sempre as coisas não são assim tão simples. A linha é difícil de traçar: há vezes em que a perseverança - e a tenacidade, teimosia, obstinação, casmurrice, obsessão a raiar o masoquismo ou a loucura - são necessárias. Outras, ganha-se uma guerra e descobre-se que mais valia tê-la perdido.

E outras ainda ganha-se e só nos resta agradecer àquele sinuoso, difícil, tortuoso, acidentado arco de comportamentos que vai da perseverança à loucura.

Conversa de café - aeroporto de Beja

Bem sei que isto só alembra a quem não tem nada que fazer e passa os dias no café a discutir tudo e mais alguma coisa, desde o preço do robalo até ao galo da vizinha (com argumentos a condizer) mas ninguém acha estranho que primeiro se façam as obras e depois se saiba que não há interessados? Não seria de pensar que o Governo, antes de gastar 33 milhões de euros, tivesse feito um estudo de mercado?

Bem sei que resta sempre a hipótese de vermos ali uma confirmação do impacto vachement positif que o investimento público tem sobre o desenvolvimento; e em breve teremos, talvez (espero que sim) uma megalópole em Beja. E sei também, claro, que há bastos consultores a alimentar, coitados.

Mesmo assim; 33 milhões de euros é uma pipa de massa. Os consultores ter-se-iam contentado com menos (tanto mais que com o TGV é um bodo aos ricos) e para parque de estacionamento talvez não tivessem sido necessárias tantas obras. Quanto à megalópole, a ver vamos, como dizia o ceguinho.

18.12.09

Dream on

Há países em que o Governo corta impostos para estimular o crescimento. Coitados.

A lei da oferta e da procura, latu sensu

A jovem senhora explica, num tom aparentemente neutral, aos dois jovens que a escutam: "há mais homens a querer dormir comigo do que homens com quem eu quero dormir". É impossível não sentir, escondida lá no fundo, uma certa arrogância, uma segurança que nem o tom matter of fact nem o assentimento dos auditores conseguem impedir de transparecer.

Tem vinte anos, talvez; e situa-se, claramente, naquilo que pensa ser o lado favorável da lei da oferta e da procura, latu sensu.

Escuto-a enquanto arrumo e fecho a bicicleta; e recordo perfeitamente uma vez - teria os meus doze anos - em que expus uma teoria semelhante a uma amiga. Devo dizer que nessa altura essa teoria era quotidiana - e dolorosamente - confirmada pela praxis: a quantidade de miúdas que queria ir para a cama comigo (zero) era infinitamente inferior àquela com quem eu queria (todas).

Depois lá fui crescendo e continuei a interessar-me pelo assunto (isto é, pela lei da oferta e da procura); tanto, que um dia tive dúvidas: talvez aquele não seja o lado mais interessante e divertido dessa lei. Nesta área, claro.

Discursus interruptus

Olha, devia talvez dizer-te que. Enfim, talvez seja melhor perguntar-te antes se. De qualquer forma, a verdade é que, e tenho a dizer-te que. Além disso, gostaria que me dissesses o que pensas de; e para quando prevês - só te peço que. Já agora: achas que? Se não: quando?

O quê? Não acredito! Por amor de Deus, pensa bem em tudo o que acabo de não te dizer!

17.12.09

Myrna, uma história breve

Ninguém aguenta um homem infeliz se ele não tiver dinheiro; ou pobre, se não for feliz. Ninguém: nem as mulheres, nem os amigos - para quem é fácil resolver o assunto: basta afastarem-se - nem o próprio, a menos que se refugie na loucura ou no suicídio. (Este, deve dizer-se, é relativamente simples. Já aquela tem duas formas possíveis, e só duas, para ser um refúgio: esquizofrenia - uma espécie de hiper-lucidez; e a esperança - hipo-lucidez; nenhuma das outras patologias, clínicas ou supostas, servirá.)

Não é portanto de estranhar que as mulheres entrem e saiam da minha vida ao ritmo das portas giratórias do respectivo armazém de paciência, ou clarividência; normalmente curto. Sendo triste por não ter dinheiro, e não tendo dinheiro por não saber (e não por não querer) fui perdendo amigos, mulheres, família. Sinto-me na vida como um apresentador de televisão gago: o problema não é a substância, mas a forma; a qual assusta as e os mais valentes, perseverantes ou simplesmente carentes.

Por isso quando Myrna entrou na minha vida pensei que dela sairia tão depressa quanto as outras; o que me entristecia ainda mais, por antecipação: por um lado porque ela era bonita, com uns grandes olhos castanhos encavados na face como se viessem directamente da alma, e por outro porque me estimulava. Não me deixava comprazer-me na minha infelicidade, esponjar-me nela como um indiano no Ganges ou um turista americano no sol de uma praia das Bahamas. Obrigava-me a reagir, a pensar antes de falar, a olhar para o exterior da muralha que a tristeza constrói à nossa volta.

Myrna era alta, magra, tinha os cabelos lisos pelo meio do pescoço e uns olhos - já o disse - que lhe vinham directamente das profundezas; fazia amor como mais nenhuma mulher que tivesse conhecido: como um pneu a esvaziar-se lentamente - e quando dava o suspiro final parecia o último sopro de vento de um dia de vendaval (digo isto sem nenhuma espécie de segundo sentido; era realmente agradável amá-la). Não era propriamente minha namorada, ao contrário do que eu dizia e queria e pensava e desejava: era casada com um idiota qualquer que tinha feito uma fortuna nos barcos à vela, não sei se a vendê-los, a explorá-los ou a navegá-los. Pouco importa: pelo que me contava dele devia realmente ser um estúpido insensível e desinteressante.

Não me mandou passear ao fim de dois meses, nem três. Ficámos juntos (enfim, se "juntos" for o termo adequado) quase dois anos. Vivo num tugúrio que alugo a uma velha infecta: quarto e casa de banho independentes, no centro de Lisboa. Sou, para que saibam, especialista em gafanhotos (ou ortópteros em geral); e tenho um projecto para o qual vivo há anos e anos: fazer uma criação de gafanhotos em Portugal. Escusado será dizer que não consigo, claro. Já não têm conta os financiadores, capitais de risco, business angels, apoios ao investimento que abordei: desde que lhes falo em gafanhotos é com dificuldade que escondem o sorriso, e com uma facilidade desconcertante que me põem a andar.

As pessoas não conhecem o potencial económico dos gafanhotos: desde investigação científica até à exportação com fins culinários (há países nos quais os gafanhotos são tão apreciados como os camarões em Portugal), passando pelos estúdios de cinema, as aplicações de uma colónia de gafanhotos são inúmeras. Enfim, pouco importa. A verdade é que Myrna ficou comigo quase dois anos - eu chamo àquilo que nós vivemos "ficar comigo", "namorar", "andar com". Ela não. Pouco importa. Adiante.

Ontem estava a chover desalmadamente em Lisboa. Estávamos em casa dela: o parvalhão do marido estava algures no Mediterrâneo, ou nas Caraíbas numa regata qualquer, e as filhas (tinha duas, de dez e doze anos) em casa de uma amiga. Chuva, frio, vento: um tempo para tudo menos para gafanhotos, que é a única coisa na qual consigo pensar depois de Myrna. Tínhamos acendido a lareira - o que me parece um erro, por causa do dióxido de carbono, mas enfim: ela não liga peva ao ambiente - e eu bebia um rum desses que o gajo trazia das viagens (não posso com o homem: ainda estou para perceber como raio se consegue interessar investidores e ganhar dinheiro com barcos à vela, e com gafanhotos nada: só se apanham bonés, se me permitem a expressão). Enfim: estávamos em casa dela, eu sentado no sofá grande da sala e ela no pequeno, quando - finalmente (eu já pressentia que isso estava para acontecer, não me perguntem como) - me disse que queria acabar. Acabar. Isto foi ontem, e eu não sei ainda como definir os termos efectivamente utilizados. Acabar, creio.

"A tristeza é contagiosa", disse-me. Foi de resto a única explicação que me deu, depois de me ter pegado no copo de rum e me ter pedido - delicadamente, devo dizer - para me ir embora. "A tristeza é contagiosa".

Eu fui, claro - se há coisa que detesto mais do que uma ruptura é uma ruptura com gritos, lágrimas e ranho. Ainda lhe gritei, já do outro lado da porta: "a felicidade também. Basta amar". Mas ela ou não ouviu, ou não respondeu.

(Para a RC)

16.12.09

5000; números; meta-post; formidável

Este é o cinco milésimo post do Don Vivo. Quinhentos e cinquenta e cinco posts por ano; um e meio por dia (em média, claro). Muitos deles são videos e músicas do Youtube; ou fotografias minhas, de forma geral fracas; outros são textos, fraquitos eles também. De alguns (raros) gosto - normalmente dois ou três anos depois de os ter escrito. A péssima maioria só por cá continua porque nunca consigo ler isto mais de cinco minutos sem me sentir enjoado.

Muito mais do que escrever - mais do que um prazer é uma necessidade, quaisquer que sejam os resultados (sobre os quais não tenho, realmente, ilusões) - este blog foi (é, continuará a ser) um formidável revelador, uma formidável ponte. Para dentro e para fora.

Formidável.

Oops, correcção: 833 posts/ ano; 2,3 / dia. Nunca fui bom em contas, nada a fazer.

Paráfrase

"Couvrez cet arbre qu'il ne saurait voir".

Coragem

Não gosto de causas; mas gosto da coragem.

"Sê homem, usa o hijab":



(Via Segunda Língua, via um post da Dina Lopes Paulo no Facebook).

Nomes, ausência

Chama-lhe o que quiseres; eu não sei o que é, e pouco me importa, para te dizer a verdade. Chama-lhe amor, obsessão, paixão, monomania, ilusão; chama-lhe doença mental, ou outra coisa mais agradável: eu não sei e não quero saber o que é. Estás comigo desde que acordo até que adormeço, e desde que adormeço até que acordo: sonho contigo como se nas minhas sinapses nada mais houvesse do que tu; e durante o dia tenho-te ao meu lado como se a tua ausência fosses tu, sólida e doce. Tu és o ar que respiro e o sangue que o transporta a cada célula do meu corpo; a paisagem e os olhos que a vêem; a palavra e os lábios com que a digo; os dedos, e a pele que percorrem, solitários, cegos e surdos à tua ausência.

Chama-lhe o que quiseres; pouco me importa. Na tua ausência as palavras deixam de ter significados, os dias sentido, as noites razão.

Regionalização

Aquecimento global

Alguém pode pedir aos senhores de Copenhague que se calem, a ver se o calor volta?

15.12.09

Faltas

Parece-me que 18,5 milhões de euros fazem mais falta a Lisboa do que o Zé.

«Lisboa: Câmara chega a acordo com empreiteiro do Túnel do Marquês por 18,5 milhões»

Frio

O frio trespassa-me o corpo e a alma, como flechas afiadas, ou espinhos, se preferires. E com ele vêm as misérias todas: não sabe andar sozinho.

Acaso

Não me leves a mal, mas há muito que deixei de procurar acasos.

Até que enfim

Silêncio, cores

Le calme arrive, finalement. Le silence.

Je ne sais pas si c'est le silence qui est l'absence de bruit, si celui-ci qui est l'absence de l'autre. Je sais que je sens l'absence de l'un, et non pas celle de l'autre.

O branco é a mistura de todas as cores; o preto a ausência delas. Ou seja: o branco é o barulho, o negro é o silêncio. Como relacionar isto com o bem e o mal? Qual é o bem - o branco (o barulho)?

Dúvidas lancinantes que me atormentam o espírito; para não dizer a carne, coitada.

Verité, ronds

Je cherche la verité. Ma verité. Il est difficile de définir la verité, ma vérité; il est donc encore plus difficile de les trouver. On ne saurait trouver ce que l'on ne sait pas définir. On ne saurait définir ce que l'on ne sait pas trouver. La vérité nous fait tourner en rond. Autant donc être ronds, pour trouver la vérité.

14.12.09

Fragmentos

"...le malheur nous rend égocentriques. Commençons donc par où j'aurais dû commencer: comment vas-tu, ton enfant, ton homme? Il nous rend muets, aussi: point n'est plaisant, et encore moins poli, d'en parler. Ne le mentionnons donc pas. Il nous abruti: à force de ne pas vouloir en penser, nous devenons incapables de penser tout court.
..."

"Schumann, uma fantasia" (fragmento)

"Amo aquele que pede o impossível
quando sente a casa desmoronar tijolo a
tijolo
com a leveza de uma pena liberta pleno
voo

...
de um modo apaixonado pede
a vida
e a vida, num último instante, dá-lhe jardins,
deuses e a energia de uma
cidade suspensa

..."

João Miguel Fernandes Jorge, in "Invisíveis correntes", ed. Relógio d'Água, Lisboa, 2004

Humor

Não sei o que é humor, mas sei reconhecer-lhe a qualidade quando me faz rir mesmo não estando de acordo com o que lhe está subjacente. Acontece regularmente com Herrman, e muitas vezes aqui:


Confrangedor

Porque é que sinto quando vejo isto o mesmo que sinto quando oiço um católico explicar-me a Santíssima Trindade, ou um muçulmano falar-me das virtudes da Sharia?




(Via O Insurgente).

A ouvir, absolutamente

"Caderno de Memórias Coloniais", de Isabela Figueiredo (1º clip)



(Via Da Literatura, abençoado).

13.12.09

Dogma

Os efeitos de questionar o dogma não são hoje como eram ontem, felizmente.



(Tirado do Meditação na Pastelaria)

Caminhos

Num jardim de caminhos que se bifurcam ad aeternum, se percorrermos esses caminhos aleatoriamente acabamos por voltar ao ponto de partida, inevitavelmente.

E se não for aleatoriamente também - mas ao outro ponto de partida.

Declínio

"Hide the decline"



(Tirado do With Bubbles, um excelente blog sobre arte e cultura).

12.12.09

Fragmentos

"...il s'agit de résister, de gérer ses forces et son énergie, d'essayer de penser clairement tout en sachant que l'on ne pense jamais clairement dans ces circonstances, de savoir que le but est d'arriver de l'autre côté et non pas d'arriver vite ou fort ou heureux de l'autre côté..."

Irresponsabilidade

Leia-se o artigo de Henrique Neto no Expresso de hoje ("O crime de Alcântara", pág. 22 do caderno Economia, não encontrei o link) e percebe-se imediatamente porque é que o Governo considera "irresponsável" a comissão de inquérito parlamentar ao Magalhães.

Cito o último parágrafo: "Em resumo, todos nós conhecemos de há muito projectos apoiados pelo Estado português que, por uma razão ou por outra, não resultaram como estava previsto. Todavia, não conheço nenhum outro governo que tenha apoiado uma concessão em que o objectivo previsto seja ganhar dinheiro com o insucesso do projecto. Quero, apesar disso, acreditar que possa ainda surgir algum bom senso neste negócio, noemadamente na Assembleia da República, para que a doca de Alcântara e a ética possam ser salvas".

11.12.09

O primeiro

Serviço Público - Blogs

Um blog de fotografia com um registo bastante amplo - retrato (predominante), reportagem, impressionista, paisagem - que me parece bastante meritório e interessante. Os retratos têm por vezes os fundos demasiado nítidos e as personagens demasiado centradas para o meu gosto, mas as personagens são bem escolhidas - obra de alguém que ama as pessoas e as aborda com uma franqueza e uma abertura notáveis. As fotografias de pormenor e as fotografias mais intimistas são uma delícia.

Ora bolas!

Afinal é mentira. Bem me queria parecer. "É uma questão de saúde, minha senhora. Ordens do médico" era bom de mais, como desculpa.

(Via Jugular)

Enganos e enganados

"Amo-te" é uma expressão que engana muito - tanto aqueles que a dizem como os que a ouvem.

La triste chanson de la tristesse

"Mes bras n'obéissent point à ma tête; quel malheur. Pauvre de moi. Je m'en arrache les cheveux, bois des litres de liqueurs diverses, cours comme un fou le long des marges du Tage le soir venu, ingurgite des tonnes d'huile d'olive via des morceaux de pain trempés, mange autant de morue que je peux - rien n'y fait: mes bras n'obéissent point à ma tête. Que suis-je triste d'une si déplorable situation."

Falar, calar

Os homens levam dois anos a aprender a falar e uma vida a aprender a estar calados (e alguns nem ao fim de uma vida o aprendem).

Conversa de café - ou melhor: de Pub

Recentemente li um artigo de Camilo Lourenço no Jornal de Negócios sobre a inauguração nos EUA de um parque eólico da EDP, segundo o qual "entre a apresentação do projecto às autoridades, a sua aprovação e a atribuição do "cash grant" (incentivo fiscal criado pela administração Obama, que devolve 30% do montante investido) demoraram... quatro semanas".

Há alguns anos conheci em Londres, num daqueles pubs a que os londrinos vão depois do trabalho, um senhor que era responsável pela abertura em Portugal da primeira loja do Ikea. Estava desesperado, coitado: queixou-se-me amargamente, durante duas pints pelo menos, do tempo que as autoridades portuguesas levavam a dar respostas, a decidir, etc.

Não lhe disse nada, claro - excepto que sim, também eu sou vítima desse estranho modus faciendi. Ao contrário do que muita gente pensa não é por incompetência que os gestores portugueses demoram tempos infindos a responder - quando respondem, o que só muito raramente fazem.

Há várias razões, e quase todas se prendem com manifestações de poder. Para um gestor português (e zairense, burundês, ruandês, moçambicano, brasileiro do nordeste, para mencionar apenas os que conheço) demorar muito tempo a dar uma resposta serve para mostrar a quem o contactou a diferença de status; e assim é, correctamente, interpretado pela maioria das pessoas.

Nos EUA, Reino Unido, Suiça, Alemanha, Noruega, Suécia, França (numa certa medida - e mencionando, de novo, os que conheço) demorar muito tempo a responder, ou não o fazer de todo, é visto apenas como incompetência, e ou má-educação. Que são o que, no fundo, este abominável comportamento demonstra.

9.12.09

Príncipe Real

Uma carta a enviar, aqui.

Tomates sem cérebro

Já vi, como todos nós, coisas estúpidas e sem sentido feitas pela publicidade. Mas esta supera, quanto a mim, todas as marcas.

Reinserção social

Uma pessoa lê isto (pág. 78) e fica banzada. Começa a duvidar de si própria. No fundo, vivemos todos num país imaginário; talvez porque o país real seja demasiado assustador.

8.12.09

Mentiras confortáveis

O dinheiro é uma companhia agradável: com ele não há solidão que resista, nem tristeza.

Shelter

Leonard Cohen, The stranger song



...

And then leaning on your window sill
he'll say one day you caused his will
to weaken with your love and warmth and shelter
And then taking from his wallet
an old schedule of trains, he'll say
I told you when I came I was a stranger
I told you when I came I was a stranger.

But now another stranger seems
to want you to ignore his dreams
as though they were the burden of some other
O you've seen that man before
his golden arm dispatching cards
but now it's rusted from the elbows to the finger
And he wants to trade the game he plays for shelter
Yes he wants to trade the game he knows for shelter.

...
I told you when I came I was a stranger.

Impostos

Não se poderia criar uma escala separada de impostos para quem é a favor deste disparate? Qualquer coisa como os impostos para a Igreja: o TGV seria pago só por aqueles que acham que é bom.

Farceurs

«On est tous des farceurs», écrit Cioran dans les Syllogismes de l'Amertume. «On survit à nos problèmes». C'est bien ainsi: c'est la farce qui nous maintient en vie, qui nous maintient l'envie. On survivra, encore et encore et encore; la farce continuera. C'est bien ainsi.

7.12.09

Minaretes

Quantas pessoas não gostariam que lhes fosse dada a oportunidade de votar a igreja de Troufa Real?

6.12.09

Maçadas

Eles são a favor dos minaretes, e da integração, e tudo. Mas lá que é uma maçada é, sem dúvida.

"Nove detidos por aplicar lei islâmica em Espanha"

Senhoras e senhores, o senhor Leonard Cohen

Num blog chamado "Coisas Espantosas" encontrei esta pérola. Só por isto já valeu a pena ter voltado a pôr o Sitemeter.

Publicidade desinteressada

Amanhã aqui na Ler Devagar apresentação do novo CD de Danae, cantora caboverdiana nascida em Cuba e com uma voz, e uma sensibilidade, do mundo todo. A sério: não percam.



(Isto nem é bem publicidade. É mais altruísmo):

geada

danae | Vídeos de Música do MySpace

O pasquim e "o boicote da oposição"

A Oposição "boicota". Má! O Governo a querer governar e a oposição vai e ooops, "boicota". Não percebo porque raio de carga de água a oposição não apoia todas as decisões do Governo. Afinal, é para isso que é oposição, ou não é?

Inalou, mas não sabia

O outro, pelo menos, "fumou mas não inalou". Este inalou e não sabia. Não tenho confiança num gajo que fuma um charro sem saber. Na volta vendem-lhe um TGV, ou um terminal de contentores em Alcântara e ele compra sem saber.

Afrodisíaco

"Amo-te" é um poderoso afrodisíaco. Pena tenha tantos efeitos secundários.

Pequenos anúncios

Homem casado a querer parecer solteiro procura senhora solteira querendo parecer casada para relação intensa, significativa, estimulante e mutuamente tolerante.

5.12.09

Mãos, lugares

Posso estar enganado, claro; e aceito opiniões divergentes. Mas não há lugar melhor para um par de mãos do que um par de seios. Nem muito grandes nem muito pequenos; com uma auréola bem desenhada e mamilos que, sob a acção mecânica de alguns dedos (ou todos, vá saber-se) parecem querer explodir e levar-me com eles para a lua.

Não há lugar como esse para descansar as mãos, ou a alma.

Museu

Fui ver o Museu do Oriente. Tive de novo uma impressão rara (aconteceu-me em Londres com alguns Turner e um Mantegna; em Amsterdam com todos os Van Gogh; em Paris com alguns Rembrandt, o Greco e quase todos os Caravaggio): alguns daqueles objectos são meus. Estão no museu temporariamente, por generosidade ou lapso.

Pior ainda: aqueles objectos são eu.

PS - aconteceu-me o mesmo em Buenos Aires, mas com a cidade toda; e apercebo-me agora: talvez Buenos Aires seja a minha cidade, como Lisboa; e só por engano esteja tão longe de mim, e eu dela.

4.12.09

Hipotenusa

É uma palavra bonita, hipotenusa. Hipotenusa do desejo, por exemplo: a linha que subtende o desejo. A linha oposta ao ângulo recto do desejo.

Difuso

Este sentimento difuso de frio: quantas pessoas não têm sequer a sorte de se imaginar no mar?

O que tem de ser

Eu sei: o que tem de ser tem muita força. Muita mais do que uma mulher com dúvidas, ou um homem sem.

Ilha, silêncio

Como se reconhece uma ilha muda num mar de silêncio?

Frio

Está frio, finalmente. Como se te tivesses ido embora e me tivesses deixado nu, à noite num deserto. Como se amanhã não existisse (e não existe, forçoso é reconhecer: amanhã é o que fica para trás a cada passo que damos. Tu, por exemplo, já foste "amanhã"; e hoje não passas de uma forma particularmente silenciosa de "ontem"; uma forma nua de deserto).

Tenho frio; não sei como dizer-to, nu à noite num deserto: não quero que penses que estou a pedir-te seja o que for, ou a queixar-me. Nada disso: tenho frio, é tudo.

Nadar

Não gosto de nadar: não gosto de coisas que se afastam mal as tocamos e se fecham atrás de nós e nos deixam prosseguir como se nada fosse com elas.

Morada

No rés-do-chão não mora ninguém: é para pessoas de passagem. Há uma senhora que mora no primeiro andar esquerdo; outra no primeiro direito (conheço as inquilinas até ao terceiro andar, mais ou menos; talvez quarto: o prédio tem muitos andares, não sei bem quantos). Há muito tempo que não subo mais alto (ou desço mais baixo, ou vou mais atrás). É uma morada estúpida, esta, inextricável, impronunciável, incompreensível, inexplicável.

Palavras, silêncio

As palavras vêm ao pôr-do-sol como corvos: o vinho do almoço, a lembrança da última noite que passámos juntos, o mar de Bequia, um rum bebido algures entre as Grenadines e Grenada, com a praia à vista. Palavras, nada mais do que palavras: um "pôr-do-sol", por exemplo, são três delas, ligadas por hífens; "rum" é uma palavra só (já "noite que passámos juntos" são milhares: as que se dizem e as que não). Uma noite no mar das Caraíbas, numa ilha grega, na Irlanda, num planalto africano, num corpo amado: misturas de ar, cordas vocais e células. Nada mais.

Nas ruas passeiam-se milhares de solidões piores do que as nossas - isto é: mais "solidões", mais solitárias, mais "sem ti". Contigo uma solidão não passa de aparência: moras no silêncio como moras em mim.

"Corvo" também é uma palavra: negra, alada, grasnante - mas palavra. Não sei que fazer com elas, as palavras: grasnam como corvos ao pôr-do-sol, carregadas de hífens e de tempo e de memória, como se a memória fosse mais do que uma palavra. E não é: "memória" é uma palavra, ponto - como aquelas que eu usava para te dizer "amo-te" (palavra, só palavra); "quero-te"; "futuro"; etc..

Somos feitos de palavras; são elas que nos dizem, e não - como ingenuamente pensamos - nós que as dizemos; somos um sopro entre cordas vocais - e essa coisa da alma não passa de uma ilusão auditiva: "alma".

"Tocar-te"; "amo-te"; "a tua pele"; "navegar-te porque és um mar, o mar de «amar»"; "amar-te porque és um mar, o mar de «oceano»"; "amar-te porque és o vento, o vento de «futuro»"; "amar-te porque és o silêncio": palavras, nada mais do que palavras. Como "sentimento": tetrassílabo, grave, substantivo. Ar. Palavra.

Vinho, por exemplo, é uma palavra: tinta, encorpada, adstringente, taninada, equilibrada. Fátima é outra: loira, sorridente, esguia, sensual. Mar: azul, infinita, bela, interminável, envolvente. Amor: tu. Palavras, tudo. Só palavras.

E silêncio, quando te ris e me amas.

2.12.09

Solilóquio

Sr. João, por favor: não volte a dar-me um vinho redondo. Não gosto de vinhos redondos como não gosto de mulheres redondas; mulheres de beber e ir embora. Gosto de mulheres que arranhem, à entrada e à saída; mulheres que deixam um traço, uma cicatriz, um risco. Vinhos, quero dizer.