30.6.11

Dessedução

Os mecanismos da sedução são extremamente monótonos. Um gajo lê os anúncios no jornal, ou na net, e verifica que não neste mundo homens (ou mulheres) feias, desinteressantes, pobres, etc.

Como seria o mundo se em vez de se fazer a corte, se fizesse a descorte? Por exemplo, se uma mulher dissesse "sou feia, gorda, pobre e incapaz de gerar ou gerir dinheiro, ainda menos de ser fiel a um homem por muito que o ame, não gosto de ler, não sei cozinhar e nada me aborrece mais do que as tarefas domésticas (excepto o sexo)"?

Correntezas

O Pedro Correia incluiu-me nesta lista e eu agradeço-lhe (se bem, caro Pedro, o snobismo e o enjoo não sejam as únicas razões que levam as pessoas a não participar em correntes...)

1. Existe um livro que relerias várias vezes?

Há muitos. Quase todos. Numa desordem terrível, alguns dos que reli várias vezes são: "Sozinho à volta do Mundo", "Memoires d'Hadrien", "Mystères", "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance", "Lord Jim", "Waiting for Godot", "O Velho e o Mar", "Tortilla Flat", "Por Quem os Sinos Dobram", "Ratos e Homens". "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água", "Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso" (uma novela de "Os Velhos Marinheiros", tal como o "Quincas"). "Aleph", "Ficções", "The Sea Wolf", "Heart of Darkness", "O Americano Tranquilo", "Cabra Cega", "Bilhar às Nove e Meia", "Alexandra Alpha".


2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?

"A la Recherche du Temps Perdu" (na língua em que não o li, já que os outros vão naquela em que foram lidos a primeira vez). Não é propriamente do livro que nunca consegui chegar ao fim, é do 1º capítulo. Quase tudo o que comecei da Virginia Woolf.


3. Se escolhesses um livro para ler no resto da tua vida, qual seria?

Um que nunca tivesse lido.


4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

Quase todos os que não li.


5. Que livro leste cuja “cena final” jamais conseguiste esquecer?

"O Velho e o Mar", "To Build a Fire" (não é um livro, é um conto), "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance", "Lord Jim", "Heart of Darkness".


6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

Tudo, literalmente tudo, dos Cinco a Sven Hassel e Eric Maria Remarque, Os Sete, Heinrich Böll, Verne. Só não lia banda desenhada: o meu pai não deixava.


7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?

"Ulisses", "Moby Dick".


8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Todos os que estão na resposta à primeira pergunta, mais "Under the Volcano", "The Human Stain" e quase tudo o que li de Roth, "The World According to Garp", "O Que Diz Molero", "Aparição", "O Estrangeiro", "O Mito de Sísifo", "A Peste", "Typhoon", "The Nigger of the Narcissus", "A Besta na Selva", "A Sibila" e "As Fúrias", "Os Irmãos Karamazov", uma série deles do Stefan Zweig, "Uma Noite em Lisboa" e "A Oeste Nada de Novo", outra série deles do Böll, "O Fio da Navalha", alguns de John dos Passos e outros do D. H. Lawrence, quase tudo o que Roal Dahl escreveu para adultos, "A Bend in the River", "Huckleberry Finn" e "Tom Sawyer", Ian McEwan (sobretudo, mas não só, "Atonement"), Wodehouse, "Dubliners", Jules Verne, O'Henry, "El Viaje de los Siete Demonios", Antonio Tabucchi, "O Pavilhão dos Cancerosos" e "Um Dia na Vida de Ivan Denisovich", "An American Dream" (este, quando o tentei reler pareceu-me chato como a potassa, mas a primeira vez que o li gostei bastante). Woody Allen, quase tanto como dos filmes. Uma descoberta magnífica e recente: "Passage to Juneau: a Sea and its Meanings".

(Acrescento: "Any Human Heart", um soberbo fresco do Séc. XX).

Agatha Christie, Raymond Chandler, Rex Stout, Conan Doyle.

Praticamente tudo o que li de Fernando Pessoa, Nuno Júdice, Ramos Rosa, Pedro Tamen, Drummond De Andrade.

(Tudo na desordem).

9. Que livro estás a ler?

Vou começar (oooops) "O Café Debaixo do Mar".


10. Indica dez amigos para responderem a este inquérito.

São poucos, e todos aqueles de que me lembro já foram, de certeza, solicitados. Tatiana? Luísa? Lourenço? Isabel? Ana?

29.6.11

Choque liberal

Mais notícias da frente do choque liberal.

"Governo quer criar "sistema independente de recrutamento" para o Estado"

"Governo vai cortar nas remunerações dos gestores públicos"

(Os mais desfavorecidos vão sofrer; é por isso que algumas pessoas de esquerda estão preocupadas).

Tout va bien, madame la Marquise

Basta ler este post para se perceber os malefícios do choque liberal.

Meu Deus, o que para aí vem!

Um choque liberal! Vamos correr para os abrigos, já.

Enfim, já sobrevivemos a choques tecnológicos, a choques socialistas, socráticos, da Universidade Independente, do Freeport, a choques de histórias mal contadas, de TGV, a choques de Terminal de Contentores de Alcântara, de regabofe, a choques de leis feitas com os pés, de impostos que sobem sem parar, a choques de dinheiro a rodos pelas janelas e às portas dos amigos - talvez o choque liberal não seja assim tão mau, afinal de contas.

28.6.11

Definição

Liberdade não é tanto ser o que se é, como ser o que se quer ser.

Mudar Portugal

A verdadeira questão é: daqui a cem anos Eça será tão actual como é hoje?

Obrigado. Não

A mulher era um chaço como eu nunca vi. O quarto não tinha cama de casal: eram duas camas de uma pessoa lado a lado, com um rebordo de madeira que pouco mais permitia do que a posição do missionário. A casa era grande e com uma vista bonita para o Tejo.

Foi na cozinha que de manhã, quando acordou, ela me encontrou, sentado num banco a ler o jornal da véspera. Já não sei quem disse "nunca me deitei com uma mulher feia; mas já acordei com muitas". Imaginem o meu susto: quando fôramos para a cama, na véspera, eu já sabia que ela era feia.

Mas não tinha casa para dormir nem dinheiro para comer; se o jantar fosse bom a sobremesa podia ser o que Deus quisesse (que não seria diabólica já eu sabia. O Diabo tem bom gosto). Ela queria mais; queria uma matinal, "para começar o dia em beleza". Disse-lhe que não podia, a idade não me permitia aventuras repetidas.

Estava a ver a página dos empregos. "Sabes trabalhar com Excel?", perguntou-me. "Sei". "Nesse caso, se quiseres tenho um emprego para ti. Não posso pagar muito, mas ficas aqui em casa e pelo menos a renda e a comida não pagas".

Agradeci-lhe efusivamente. Quando ela estava no duche peguei no meu saco e fui-me embora. Deixei-lhe um bilhete que dizia "Obrigado. Não." Prefiro a maldade da beleza à bondade feia.

Ou a liberdade esfomeada à prisão saciada, não sei.

27.6.11

Fúrias

As fúrias dividem-se em más, malvadas e boas (exactamente como as mulheres, aliás; e das mulheres que não são fúrias não vale a pena falar). Tanto numas como noutras gosto das malvadas, mas prefiro as boas - são as melhores, de longe, as mais perenes e bonitas.

Quando compro a Time Out tenho invariavelmente fúrias dos três tipos - e se não tenho não vale a pena falar dela. Hoje aconteceu-me com o restaurante O Cantinho do Aziz: há uns anos passei dias e dias a procurá-lo e não o encontrei (fúria má); o restaurante é pequeno e familiar e adorável - resistirá à invasão? - (fúria malvada) e excelente (fúria boa). Meus caros, nem a Playboy conseguiria isto.

Fartar vilanagem

Mais uma: "Passos herda quase 4 mil milhões de euros em dívidas a fornecedores". A cáfila que sai devia ter vergonha, e limpar as mãos à parede.

Até ao fim

Isto foi um fartar vilanagem até ao fim! A Jugular School of Economics (sucursal local da Voodoo School of Economics) terá certamente uma explicação racional, cabal para isto, e para nos fazer ver que somos todos cegos.

"Défice público derrapa no primeiro trimestre"

25.6.11

Luta pela vida

Pode ser que perca.

Complacência

Uma galinha gorda de Antibes - Poulet Antiboise

Não é uma, claro; são três. E não são galinhas (ou um frango), são mulheres. E não é uma receita, é um livro. Mas fica: vi-a hoje mesmo no FT, que continua a ser o melhor jornal do mundo depois do Economist e resolvi experimentá-la.

O frango não está pronto ainda, mas promete. Aqui vai (com quantidades):

Poulet Antiboise

1 Frango
1 kg de cebolas
150 l de azeite
Piripiri
20 azeitonas pretas
Uns ramos de tomilho

Descascar as cebolas e cortá-las em rodelas. Colocá-las num prato de ir ao forno profundo com o azeite, sal e o piripiri. Por cima da cebola pôr o frango temperado com sal e pimenta. Tapar o recipiente e levá-lo ao forno a 170º durante hora e meia. As cebolas não devem ficar castanhas, mas tornar-se gradualmente quase um puré. Ir acrescentando azeite se necessário.

Quando o frango estiver tenro cortá-lo aos bocados; coar o excesso de azeite das cebolas. Colocá-las no prato de servir com o frango por cima, espalhar as azeitonas e um ramo de tomilho.

Parece delicioso, e cheira muito bem.

(Ah, e a tradução foi feita por mim e levou alguns cortes. E o frango levou um bocadinho de salva, que fica sempre bem com galináceos; e alecrim, que vai bem com tudo.)

Adenda: entretanto fui à procura na net e encontrei esta receita, fundamentalmente diferente. Uma maçada, é o que é, porque vou ter de a experimentar também.

Barulho, absurdo

Os vendedores de aparelhos auditivosdeviam montar stands à entrada das discotecas. Assim, as pessoas poderiam regular o volume do som que ouvem, em vez de ficarem surdas com os níveis absurdos dos DJ.

Ou seja: teriam um mercado hoje em vez de num futuro longíquo, e muito maior.

Não acontece nada

O eléctrico avariou-se. Não foi hoje; já foi há muito tempo. As pessoas demoraram a sair: o wattman (ou a wattman, já não me lembro) não julgou necessário informar os passageiros que era uma avaria, e não uma paragem prolongada ou um problema de trânsito. Depois lá acabámos por perceber e descemos, cada um para seu lado. Alguns apanharam táxis, outros ficaram na paragem, outros ainda seguiram a pé. Não era o nosso eléctrico que estava avariado, à frente havia mais dois. E por coincidência numa paragem. Não interrompemos o trânsito porque as linhas naquela rua estão numa faixa dedicada.

Mas isto já foi há muito tempo: um par de largas semanas, talvez mesmo dois. Hoje não aconteceu nada de especial; se calhar é por isso que me lembro da história dos eléctricos e da falta de aviso. Enfim, talvez tenha acontecido: a cabeleireira que estava na cadeira ao meu lado enfiou a tesoura no pescoço da cliente. "Enfiou" é um exagero. Só o uso porque quero dar um bocadinho de tensão e dramatismo a um dia em que não aconteceu nada. A mulher estava a fazer-se a mim e picou ligeiramente o pescoço da gorda. Esta reclamou, a cabeleireira pediu-lhe desculpa e o Lopes, o meu barbeiro há trinta anos, grunhiu qualquer coisa entre dentes. Para além de cortes de cabelo e shampoos o Lopes percebe muito de futebol, política, mulheres, vinho, automóveis, agricultura, música pimba, cozedura de caracóis e construção civil; e tem uns laivos de conhecimentos de pescas, design, moda, electrónica (de divertimento; de computadores proclama alto e bom som que não percebe nada), gestão de resíduos urbanos, culinária, indústria têxtil, geopolítica, fabricação de móveis e alcatroamento de ruas. Nada mais lhe interessa: discute os temas que domina e os que apenas aflora com os mesmos à-vontade e energia; e maldiz o dia em que teve de transformar a barbearia em "Salão Mixto de Barbearia e Cabeleireiro Lopes e Lopes".

O segundo Lopes era a filha; queria ser barbeira mas ele não deixou e o compromisso foi o cabeleireiro. Entretanto casou-se e deixou "esta merda" ao Lopes. Hoje a miúda que contrataram para a parte feminina do cabeleiro picou o pescoço de uma gorda porque estava a olhar para mim em vez de olhar para o que estava a fazer.

Tenho cinquenta anos e trabalho num museu. Sou vigilante: passo horas sentado a olhar para as peças e para as pessoas. Poucos empregos me dariam mais satisfação do que este - aliás tive que ser despromovido, quando fui contratado era um dos responsáveis pelas compras. Depois fartei-me de olhar para as mamas da minha secretária e disse ao director que queria ser vigilante. Ele pensou que eu estava a brincar, primeiro; e depois doente. Tive de insistir muito, mas lá consegui. As mamas foram uma desculpa, creio eu; uma desculpa interna: nunca meti a rapariga ao barulho.

Era uma loira burra como um tripé, mas tinha uma cara, um corpo e um sorriso que levavam qualquer gajo à paralisia mental em dois milissegundos. Vim-me embora. Mamas tenho em casa, e inteligentes. E ricas: há muito que quem sustenta o lar é a Mariana; que eu ganhe mais ou menos não se nota. De qualquer forma o dinheiro não me interessa e faço questão em casa de só consumir até ao que ganho. O resto é um problema dela, não meu. Se quer ter carros, casas, talheres de não sei onde e viajar para os ir comprar ela que pague. Eu mantenho-me afastado do que posso quando posso (é raro entrar num dos seus carros, por exemplo).

Enfim, tudo isto para dizer que hoje não aconteceu nada. É sábado, reparem, e estou de folga. A Mariana foi às compras, ou visitar um dos seus toy boys. Tem uma colecção deles. Um dia pedi-lhe para me dar as datas de aniversário de cada um, para lhes enviar uma garrafa de vinho do Porto. Disse que não.

A Mariana é muito inteligente. Não sei porquê, só consigo seduzir mulheres inteligentes - ou melhor, conseguia, quando me dava a esse trabalho; e digo "não sei porquê" porque é verdade. Hoje fui beber um café com a Ana e ela disse-me que era uma das vantagens de não ter dinheiro: "assim elas são obrigadas a ver o que está lá atrás; as míopes afastam-se, e as que vêem bem gostam do que vêem".

Estou insensível aos lisonjeios e não a levei a sério. A verdade é que as mulheres inteligentes são difíceis e complicadas, mas as estúpidas são insuportáveis e quando me preocupava com mulheres acabava sempre por preferir as inteligentes. Não é bem "preferir": não aguentava as outras, e ou elas ou eu acabávamos sempre por nos irmos embora. Consigo fingir que sou complexo, mas não que sou o que sou: um homem simples, primário.

Agora não ligo muito às mulheres. A Mariana chega-me: foi a única pessoa, até hoje, que percebeu (ou pelo menos aceitou, com um sorriso e um afago) o meu pedido de despromoção; não me chateia com o dinheiro, não se chateia com a minha distância. Ela sabe que sou um touro numa arena, e que tudo o que peço é que a arena seja grande e esteja vazia.

Enfim, nem sempre. Acabei a olhar para a cabeleireira e fiz-lhe um sinal com a mão: apontei para o relógio. Vou encontrar-me com ela à saída. Há cabeleireiras inteligentes, e dias em que não acontece nada.

23.6.11

Símbolos, eficácia

A minha primeira reacção ao ler a notícia foi esta. Mas depois pensei que estamos na área do simbólico, por um lado; e que o verdadeiro problema é fazer passar uma mensagem. Este tipo de acções deve ser avaliado pelo critério da eficácia. Só.

(E esperemos que tenha efeito de exemplo).

Adenda: vi várias vezes o melhor ministro das finanças que a Suíça jamais teve ir de bicicleta para o Palácio Federal, e de lá sair para ir jogar xadrez nos cafés das redondezas.

Adenda 2: a julgar pelos guinchos dos socialistas e socialites parece estar a funcionar.

Bom senso

"senhor ministro, acabe com a ASAE antes que seja demasiado tarde. Acabe com a ASAE, já."

(E esperemos que o próximo Parlamento comece rapidamente a simplificar a legislação, e a fazer leis menos propícias a tolices.)

21.6.11

Gaudência - (cont.)

"Não gosto de amores complicados, e não os há simples. O melhor é não ter amores de todo", explicou-me Gaudência um dia.

Mas a sua lógica nem sempre era tão clara, tão límpida. Por vezes enveredava por caminhos menos lineares.

"Empresto erecções."
"?"
"Sim, empresto erecções. Como sabes, elas nos homens vêm com uma marca, uma dona; mas às vezes usam-nas para outros fins ou outras pessoas. Depois ficam aflitos porque não podem dar a erecção à sua legítima proprietária. É aí que eu intervenho e lhes empresto uma para se desenrascarem. Depois devolvem-mas, às vezes com juros; outras não".
"E juras, aceitas?"
"Não."

Gaudência morava num daqueles prédios feios e impessoais dos anos 60, num quarteirão burguês de Lisboa. O apartamento era como ela: grande, com algumas divisões muito claras e outras muito escuras. Apesar de ser grande usávamo-lo quase todo: fazíamos amor (expressão que ela desprezava) em todas: na cozinha, no hall, na sala, nos quartos, no escritório. Um dia sentou-se no rebordo da varanda (morava no oitavo andar) toda nua e pediu-me para a foder. Fui buscar uma banqueta que tinha na cozinha e agarrei-me a ela, literalmente, como se aquela foda fosse a vida. Foi.

Ao princípio a ideia de comer uma senhora pela qual metade das Lisboas – a residente e a de visita - passava por cima aborrecia-me. Eram a sensualidade, a experiência, o savoir faire, a garantia de a cada vez ter uma novidade que me faziam bater-lhe à porta, quantas vezes a contragosto. Depois, quando começámos a falar, esse incómodo desapareceu. Ou melhor, quando ela começou a falar comigo; eu não sou muito falador e assim continuei. A verdade é que Gaudência era solitária.

Mas devagar, muito devagar, começou a abrir-se comigo. Deixei de ser "pau para toda a obra", "pau mandado" e adquiri ouvidos e uma cabeça, "bastante boa, por sinal". Passámos de “tenho de lhes falar muito para os fazer pensar que sou nova nisto, e quando estou contigo não me apetece dizer nada” para “és a única pessoa que consegue perceber o que quero, e o que não quero dizer”; mas foi longo.

E eu, é doloroso reconhecê-lo, incentivei-a.

Em nome do Misericordioso

Os palhaços que nos deixam

"Tribunal de Contas detecta quase 3 mil milhões de despesa pública irregular"

(Palhaços e ladrões; só não são incompetentes - governaram-se muito bem).

Anedota

Não sei com vai acabar...

...mas pelo menos começa bem. (Enfim, a ver vamos; o outro também começou bem, a prometer que punha o Cordeiro na ordem. Depois foi o que se viu).

Começa bem

Boa escolha

Sonhos, matérias

És leve, mulher; da matéria de que são os sonhos feitos, ou da que eles fazem.

Partida

Um gajo passeia pelas ruas de Lisboa; senta-se na esplanada da Brasileira, bebe uma ginginha nas rua das Portas de St. Antão e, pouco mais longe, come uma chamuça no indiano da esquina. Bebe um porto no Solar do Vinho do Porto, beija uma miúda na estação do Rossio, senta-se no jardim da Estrela, passa pelas ruas que tão bem conhece e vê, porque as conhece bem, que mudaram, muito pouco: um novo bar aqui, uma loja que fechou ali.

Em breve partirá, dilacerado como sempre, ou um bocado mais. Pensa que nem quando tudo corre bem tudo corre bem. Ocorre-lhe a imagem de carris que insistem permanentemente em separar-se, em vez de irem obedientes, paralelos, para um objectivo comum.

"O absoluto é uma merda", pensa. "Mas não o trocaria por nada deste mundo".

19.6.11

Neo

Fala-se muito no neo-liberalismo, que ninguém sabe muito bem o que é - enfim, é mais ou menos os gambozinos da política: todos sabemos o que são mas nunca ninguém os viu; e ninguém fala da neo-esquerda, da qual o CDS, bem visível e palpável é o nosso lídimo representante.

Regresso

Regresso a Lisboa ao fim de alguns meses de ausência. O encanto é o mesmo; o desencanto também. A esmagadora maioria dos andaimes perenes ainda está de pé (foi-se o da Rua da Escola Politécnica, graças a Deus). Os prédios continuam em ruínas, as ruas sujas e esburacadas, os automóveis em cima dos passeios. É feio, mas é pior: diz-nos que somos um povo que à mudança prefere persistir no erro, medroso, indiferente ao que é de todos.

Ao mesmo tempo, vamos destruindo alegremente o que resta de algumas zonas nobres da cidade, descaracterizando-as e substituindo edifícios belos e nobres por caixotes de vidro.

Lisboa é um milagre: resiste aos portugueses.

Lisboa e Tejo e nada

Passseio pelas margens do Tejo, entre Alcântara e o Cais do Sodré. Estou na periferia da cidade. Quando será esta área o centro da cidade? Quando é que a APL se dedicará a fazer ressuscitar aquilo que agora não passa de uma mistura de ruínas grafitadas e bares saloios?

Pela tua mão

Pela tua mão regresso ao amor, passo a passo, pouco a pouco; como a um país do qual esqueci os abismos, e as praias.

18.6.11

Entediante

As pessoas deviam fartar-se de estar cansadas, tanto como de estar deprimidas. Não há nada mais entediante do que a depressão ou o cansaço.

Ao acaso

Pegar numa palavra, uma qualquer ao acaso e dar-lhe voltas, virá-la do avesso, acariciá-la até ela endurecer e querer saltar para for de si mesma; levá-la a andar no Paredão, amá-la, conviver com ela todos os dias, partilhar os dias e as noites, pensar nela, sonhar com a felicidade que anuncia.

"Tristeza", por exemplo: e depois dar-lhe um grande pontapé no rabo e mandá-la passear.

17.6.11

Governo

Não sei porquê, mas algo me diz que temos um grande Governo. E sei porquê, algo me diz que me enganei redondamente a respeito de Pedro Passos Coelho.

16.6.11

Cães

Há cães que ladram aos automóveis quando estes passam. Os automóveis, naturalmente, continuam o seu caminho; os cães interpretam isto como um sinal de vitória: eles ladraram e os carros foram-se embora.

Haverá um dia em que os cães perceberão a razão pela qual os carros se afastam?

Encontros e desencontros

Há uma espécie de crueldade perversa que consiste em perseguir pessoas vulneráveis, frágeis, com os pretextos mais doces e carinhosos; e há uma cegueira (que de tão incompreensível é quase masoquista) que consiste em não ver os sinais de perigo que alguém põe à nossa frente, por muito grandes, visíveis, claros que sejam.

Separadamente, a crueldade e a cegueira passam despercebidas, não fazem muita mossa. As tragédias começam, e só fazem sentido, quando as duas se encontram.

É por isso que não gosto de tragédias: aborrecem-me, de tão previsíveis que são.

Surpreender

"E se Portas surpreendesse?"

Pôr em causa

Não sei se isto é de rir ou de chorar. João Galamba, um deputado independente eleito pelo PS, acusa Passos Coelho de "pôr em causa a credibilidade do governo cessante". Pôr em causa a credibilidade do governo cessante.

A impermeabilidade à realidade é uma coisa notável e tem a vantagem de nunca poder ser posta em causa.

Só há uma coisa que me chateia: eles pensarão que as pessoas são estúpidas? Ou, se preferirem, impermeáveis como eles à realidade ululante?

Inconvenientes

Paulo Portas quer ser ministro. É um direito que lhe assiste, se bem eu ache que seja um prejuízo para o País. Mas não quer os inconvenientes qui vont avec.

Para um homem que tem o passado dele algo me diz que vai ser uma vontade difícil de satisfazer.

Acho muito bem que Portugal tenha dois submarinos, note-se; e que tenha tido um jornal como o Independente (que sempre achei, de resto, uma merda). Mas deve ser possível comprar submarinos sem histórias associadas; e é verdade que dá um certo gozo ver um gajo que passou grande parte da vida a fazer tiro ao alvo passar para o outro lado da barraquinha.

15.6.11

Indecente

Treze meses e mil euros? É indecente. Por amor de Deus, treze meses é uma eternidade, mesmo com pena suspensa, por umas lambaditas de vez em quando, senhor Doutor Juiz. E mil euros uma verdadeira fortuna. Que vai aquela gaja fazer com tanto dinheiro?

Adenda: este deve ter copiado também, mas não foi apanhado. Ou se calhar foi, vá lá saber-se.

Um senhor

Não sou nada atraído por homens, mas gosto de senhores.

Quem agradece somos nós, caro Pedro.

Parabéns atrasados

Parabéns atrasados ao Portugal dos Pequeninos, um grande blogue com um grande nome.

A primeira de uma longa série

Ganda porra; ou: que maçada!

"Afinal a terra poderá arrefecer"

(Via Insurgente)

Resguardo

Há um conceito na navegação chamado "resguardo". Em inglês diz-se "leeway". Prefiro o termo inglês: lee é sotavento, e leeway, literalmente, poder-se-ia traduzir por "caminho, ou espaço, a sotavento".

É o espaço de que uma embarcação necessita para se safar de um perigo, se alguma coisa correr mal.

Por exemplo, estou a barlavento de uma costa e de repente perco a capacidade de manobra; se tiver dado resguardo a essa costa tenho muito leeway para reparar a avaria, ou para me afastar da costa. Se estiver em cima dela, dou com os burrinhos na terra, versão náutica do velho dito.

Claro que circunstâncias diferentes requerem resguardos diferentes - numa regata só não ando em cima das rochas porque não tenho rodas na quilha. Mas mesmo numa regata, se o meu leeway é pequeno, estou permanentemente a pensar no que fazer se alguma coisa correr mal, e tenho sempre preparada a manobra para me safar.

Si tu veux vivre vieux marin arrondis les caps et salue les grains (se queres viver até velho, marinheiro, dá resguardo aos cabos e saúda as tempestades - na marinha de vela a saudação consistia em arrear pano).

Resguardo, manobra, safar, prever são palavras importantes no vocabulário náutico.

Troikas

Precisamos não de uma, nem de duas, mas de pelo menos uma dúzia de troikas.

"Praia de Mangualde é hoje inaugurada".

Surpresa

É sempre uma surpresa, mas a cada vez é maior a gratidão.

14.6.11

Auto-retrato (bis)

Sou português e marinheiro sempre, e gestor às vezes (graças a Deus). Enquanto português acho que não preciso de ter vergonha: leio Camões, Pessoa, Diniz Machado e Cardoso Pires (e Vergílio Ferreira) no original; odeio Manoel de Oliveira; como bacalhau e sardinhas em quantidades mais do que razoáveis, bebo vinho e aguardente como um homem feliz e já plantei cruzinhas em metade dos continentes (a outra metade não perde pela demora); como marinheiro também me defendo, creio: já tive a minha justa quota de erros, e outra, mais justa ainda (espero) de sucessos.

Gestor sou, com toda a simplicidade, o pior do mundo. É muito desagradável, mas permite conhecer por dentro a diferença entre erros, insucessos e falhanços. Ou seja: entre visão estratégica, excesso de visão estratégica e falta total de visão táctica. Começo a conhecer-me.

Definição

Um gestor português é um tipo que poupa hoje uma pipa de massa para gastar o triplo amanhã, na mesma coisa.

(PS - O meu amigo A.G. confirmou. Pode ir para as verdades irrefutáveis.)

Proibição...

Portas fechado

Não é um erro de gramática. Portas fecha a porta a privatizações que me parecem importantes. Que o Portas é um merdas já se sabia; que Portugal não tem partido de direita também (a menos que ainda venhamos a descobrir que o PSD é de direita, coisa surpreendente); mas porra, tanta porta fechada, tanta merda no Portas, são de mais.

Chamar

Oiço o mar chamar.

Vento

Está muito vento. Eu estou abrigado e não o sinto; só o vejo - nas árvores, nas saias das senhoras que passam - ou adivinho, nas vagas da água que não vejo, ali ao lado.

Não sinto o vento, o benfazejo vento, mas sei que se a ele estivesse exposto estaria bem. Ver-te-ia talvez, quem sabe, as saias a subir, como vejo as das senhoras que por vezes passam à minha frente; e dir-te-ia "vês, eu bem te disse que devias andar de saias mais vezes"; pôr-te-ia a mão na coxa, o mais disfarçadamente possível, mesmo por baixo do limite do tecido.

Quem nos visse pensaria "que sorte tem aquele tipo", se fosse homem; e "que faz ela com aquele homem?", se fosse mulher. Mas não faria mal: ninguém nos vê, porque eu estou abrigado do vento e tu não estás aqui.

Tento escrever sem repetir palavras - "tu", por exemplo. Surge-me a cada movimento das folhas das palmeiras, a cada vaga que não vejo mas imagino, a cada mulher que passa ou pára à frente da porta do café. Não são muitas, mas posso, seja Deus louvado, dizer de todas elas "tu és mais bonita".

Depois ocorre-me que és o vento, tu, mas ao contrário: sinto-te mas não te vejo. Sinto-te em cada recôndito milímetro de cada vaga da minha pele; mas só te vejo quando olho para o céu e vejo a luz do fim do dia, um hesitante azul alaranjado que iria bem com os teus olhos, que tão pouco vejo mas sinto, nos meus quando olho para o céu.

Um dia levar-te-ei ao mar e ao vento; ou trá-los-ei a ti. Contigo posso fazer isso tudo, mesmo abrigado do vento.

Revolução

Há uma revolução na Marina de Cascais. Tornou-se frequentável.

12.6.11

Serviço público - restaurantes Mértola e Alcoutim

Restaurante Snack-Bar O Camané, Alcoutim

Praça da República, Bloco A, Loja 3,
Alcoutim
Tel.: 964 108 585

O Camané é um daqueles restaurantes onde não se entra sem uma forte recomendação; mas acaba-se a agradecer a forte recomendação. Não liguem à decoração nem à iluminação; concentrem-se no essencial: uma cozinha sublime e um serviço à altura.

Restaurante o Brasileiro
Cerro de S. Luís, Mértola
Tel.: 286 612 660

Ditto (inicialmente o serviço pode parecer um bocadinho seco; não é).

11.6.11

Vinho...

...roxo, violento, bom.

Autofagia

Comer-te.

Conselho alentejano

Avinha-te, amiga-te e acama-te.

Auto-retrato

Amigar-me

Estou no Alentejo.

Declaração de felicidade

Felicidade, meu amor, é olhar para umas mamas que passam e poder pensar "as minhas são melhores".

10.6.11

Serviço público - vinhos

Começa pela cor, escura, densa; continua no ataque, uma explosão de encher o palato até à alma; o fim de boca prolonga-se - com a ajuda de um pequeno, mas sensível toque de santa adstringência. Taninos vivos mas não agressivos, o sabor da uva quase inalterado.

Um vinho de mastigar, de nos fazer lembrar que Deus existe, e se não existe há quem O imite muito bem.

Graham's Vintage 2007.

9.6.11

Desejo, caminhos

Seria preciso explicar-te os caminhos do desejo, que não são rectilíneos, e muito menos planos; mas alguém a quem é necessário explicar os caminhos do desejo não os perceberia. 

Eartha Kitt*



Orson Welles chamou-lhe "the most exciting woman in the world". A expressão diz dela o que seria evidente até para um marciano acabado de aterrar neste mundo; de Orson Welles, diz o essencial: o homem conseguia dizer o que toda a gente gostava de conseguir dizer. Quando as palavras não chegavam, usava gestos. Quando os gestos não chegavam, usava imagens. Ele e ela, em separado: cinema. Juntos, nunca ninguém saberá. Mas aposto que ela troçava da barriga dele.

*É uma ousadia, falar de Eartha num blogue de mar.

7.6.11

Vida: variações

Por mais que tente, não consigo meter-me na vida dos outros; nem na minha, sequer.

Por mais que tente, não consigo interessar-me pela vida dos outros; nem pela minha, sequer.

6.6.11

Discurso

Quem ouvisse o discurso do Sócrates e não o conhecesse teria perguntado "por que raio de carga de água não foi este homem reeleito?".

Jantar improvisado - hamburguer

É preciso reconhecer que se a cerveja não estivesse mais morta do que uma bifa, ou uma intelectual* na cama e o hamburguer tivesse levado farinha teria sido um grande jantar.

Mas a cerveja estava morta e não havia farinha para acrescentar à mistura de ovo batido, natas, salsa picada (muita, ando com vontade de comer verdes), mostarda da boa, alho e pão embebido em leite (pouco, para evitar redundâncias) com que enriqueci a carne picada. Ou seja, o hamburguer estava com um gosto porreiro, mas a desfazer-se. Felizmente as batatas fritas às rodelas e a cebola frita aguentaram a coisa; e quanto à cerveja, que se lixe. Nem uma cerveja negra dos confins da África, ou uma fina de Paris a teriam sido capaz de arrebitar.

*Espero que não haja intelectuais a ler isto; se por acaso houver: este referência é um simples artifício literário. Precisava de uma palavra que rimasse, mesmo virtualmente, com nacional. Não tenho nada, bem antes pelo contrário, contra as intelectuais na cama (ou seja onde for).

"Levantai hoje de novo"

A ler, aqui.

Abstenção; até que enfim

Com 100.000 pessoas a emigrar por ano, e os consulados portugueses a funcionar como (não) funcionam não é de espantar que a abstenção seja tão elevada.

Isto dito: porra, até que enfim!

(PS - Seria bom que o gajo deixasse a vida política se fosse para desenhar casas. Mas aposto que vai arranjar um tacho melhorzito).


5.6.11

Solicitação

Pedro, poça, caraças, vê se te portas à altura, está bem?

(Não acredito muito no homem, mas ainda acredito menos em impossíveis).

Passeios

Passeio-me pelo texto como por uma rua bordeada de jacarandás; cada palavra uma flor, em cada página o cheiro.

Passeio-me por ti como pela felicidade; em cada mão a pele, nos olhos a cor, em cada rua a vida.

2.6.11

Deuses e demónios, demónias; anjos.

Tinha um encontro com os deuses, no outro dia. Embebedei-me antes de lhes aparecer, pontualmente à porta (sou patologicamente pontual). A conversa começou bem (falámps do tempo, e daqueles divinos pequenos nadas que mobilam um fim de tarde no jardim, no mar ou na cama); mas depressa descambou. "Quem acha que tem pilas maiores, os deuses ou os demónios?", perguntou-me um deles. Estavam todos grossos, impressionados com o que seria, vim mais tarde a saber, o seu primeiro encontro com um mortal.

"Na verdade acho impossível responder a essa pergunta porque não acredito que haja uma descontinuidade clara e límpida entre deuses e demónios. Acho que todos nós, vós incluídos, somos um bocadinho de cada, síncrona ou alternadamente".

"Boa resposta", disse um deles. "Vamos dar-lhe mais uns anos de vida, como prémio". "Discordo", disse o outro; "mais anos de vida é diabólico".

Deixei-os a discutir e fui beber baldes de gin tónico para a pérgola que havia ao fundo do jardim. Lá encontrei uma senhora com umas mamas muito bonitas, redondas, mamilos pequenos e rosados, bem delineados. Via-se que a natureza tinha perdido um bom par de horas com cada uma delas.

"A natureza é uma merda", pensei. "Estas mamas seriam muito melhores se tivessem sido desenhadas por uma demónia"; o que me levou a pensar que falamos em deuses, deusas e demónios, mas não em demónias. Talvez porque estejam entre nós, enquanto que aos outros é preciso procurá-los. Acho que sim.

Já esbarrei em tudo o que o mundo conta de deuses e demónios, e deusas; mas nunca esbarrei em nenhuma demónia, o que só reforça a minha convicção: elas estão entre nós.

Enfim, acabei a perguntar-lhe porque estava ela na pérgola de mamas ao léu. "Porque estava à tua espera, meu anjo", respondeu.

- Não acredito em mamas que me esperam. Mamas divinas só servem para nos asfixiar, nós mortais, nós que morremos por um bom par de mamas.
- Utilizas a palavra mamas demasiadas vezes, meu querido. É por isso que elas te asfixiam.
- Impossível. O que me asfixia não são as mamas, é o amor.

Pequenos nadas, fixos.

A minha mente enche-se pouco a pouco, o que é uma bem vinda mudança: antes de se encher estava vazia, tal como a minha avó antes de morrer estava viva e eu antes de cair estava na bicicleta.

Não sei se se enche, a mente, das substâncias adequadas: a melhor delas todas, as substâncias, por exemplo não está cá; és tu, como sabes. E não estás cá.

O que me leva a pensar que a mente se enche, mas não o tacto, e que talvez o tacto seja parte da mente, não sei. Acho que não: o tacto é parte da pele e a mente não tem que eu saiba pele.

Pelo que a mente se enche mas não, estamos a chegar a uma conclusão, das substâncias adequadas. Como paio, mas não me vaio para a mente; bebo vinho, e tão pouco vai. A mente não se enche se não de coisas que não interessam, outra conclusão: o gordo ao balcão da loja onde estou, que debita disparates mais depressa, e mais profundos, do que eu; a queca de Cascais que acabou de sair da dita loja (é um antiquário que serve vinhos, no Princípe Real). O autocarro de turistas; o calor que só um balde de Gin Tonic no Lost In seria capaz de estancar, se Deus quisesse.

Nada como uma mente vazia que se enche de pequenos nadas, uma pequena cheia de grandes nadas que não mente, um nada cheio de pequenas mentes que escrevem ao som de disparates de café e prefere, para o efeito, disparates de tascas, mais fáceis de digerir do que disparates bem articulados.

Disparates com palavras como "parâmetros" são uma porra, sobretudo se "parâmetros" tiver sido mal utilizado. Prefiro uma boa dor nos tomates, uma gaja boa, um copo de vinho, o vento no Lost In, a cama que tu enches e que sem ti de súbito não é sequer cama; prefiro a ausência de juma vírgula a uma vírgula a mais. Prefiro uma palavra a menos a outras, muitas, mal colocadas. Prefiro vadiar por esta cidade a vadiar por um emprego fixo no cemitério de Lausanne; ou mesmo sem emprego, fixo no cemitério de Lausanne.

Curioso como tudo o que é mau inclui a palavra "fixo".

Troika enfim

Hoje li de raspão na capa de um dos económicos nacionais que a troika vai exigir que o Governo pague aos seus fornecedores no prazo máximo de 90 dias.

E ainda há que ache mal que eles cá estejam.

Gaudência - II (Fragmento)

Frequentei Gaudência mais de dois anos. Frequentar é o verbo certo. Ela deixava-se visitar como aquelas damas do séc. XVIII francês mantinham "um salão", com a diferença de não ter um dia certo. Normalmente telefonava-lhe à tarde para saber se estaria livre nessa noite; por vezes, num aceso mais cruel, ou urgente, de desejo telefonava-lhe à noite, ou de madrugada. Se estivesse sozinha dizia que sim. Morava num terceiro andar de um prédio antigo num bairro típico da cidade. Os vizinhos detestavam-na e chamavam à casa dela a "estação de metro da Madragoa". De casa via-se o Tejo, e ouvia-se tudo o que se passava no prédio. No prédio, naturalmente, também se ouvia tudo o que se passava lá em casa.

Gaudência gostava de dar instruções aos homens com quem fazia amor; eu estava livre disso, felizmente - muito do que ela sabia tinha sido eu a ensinar-lhe, devido às variadas origens geográficas, sociais e profissionais das senhoras com quem me acontecia ir para a cama (peço desde já aos leitores que não me confundam com o autor do texto, um lingrinhas pila-de-frango que de sexo só sabe o que os salesianos lhe ensinaram na terceira classe. Nunca nos devemos esquecer de que entre um texto e o seu autor há a vida, os pilares da ponte de tédio, um narrador e pelo menos dois leitores).

Trocávamos novidades: "põe-te assim", "deita-te assado", "levanta a perna direita", e assim por diante. Era bom ir para a cama com ela, porque não havia "amo-te", "estava com saudades de ti" e quejandos. Foder para Gaudência era um assunto técnico que devia ser resolvido com diálogos técnicos.

Não pensem  que não gosto de ouvir uma voz feminina dizer-me "amo-te". Gosto. Mas não na cama, nem sempre. A melhor coisa que posso ouvir de uma mulher é "estou a vir-me". Algumas acrescentam "querido", mas são poucas, felizmente. "Estou a vir-me" é a expressão mais doce, mais completa, mais tudo que uma voz feminina pode emitir - e se for eu o destinatário ainda é melhor. (Já daqui oiço o autor aos gritos. Ele casou-se com uma devota, daquelas que jejuam à sexta e vão à missa aos domingos. Imaginem a Quaresma do homem).

Gaudência não gritava. Arrastava o i de vir ("estou a viiiiiiiiir-me"), nasalava-o, sibilava-o - mas baixo, porque já lhe bastavam os protestos dos vizinhos quando era uma das suas visitas masculinas a conter-se mal. Por vezes fazia realmente lembrar um metro a travar na estação, mas não era, claro, por causa disso que os vizinhos tinham posto aquele epíteto ao apartamento do terceiro andar de onde se via o Tejo.

Havia coisas, é verdade, das quais não nos cansávamos: ela acariciar-me todo com os bicos das mamas, chupar-me o dedo grande dos pés, eu penetrá-la de costas, sentado na borda da cama enquanto ela se masturbava ("todos os braços são poucos", explicava-me, como se eu me importasse), deitarmo-nos em sentidos contrários - os pés de um na cabeça do outro. Eram posições e coisas que nunca desapareciam do léxico e nos faziam infalivelmente gozar.

Tinha um cabelo negro, muito denso, comprido. Por vezes passava-mo pelos testículos enquanto chupava aquilo que ela designava por "Senhor Bispo" (quando estava pronta, dizia "a capela está disponível para o senhor Bispo, se lá quiser rezar a missa).  Pouco depois vinha aquele "estou a viiiiiiiir-me", muito baixinho, muito longo, interminável - e vinha-se, a tremer como se tivesse castanholas agarradas ao corpo todo e as quisesse tocar todas ao mesmo tempo. E logo parava, imóvel, muda, paralisada. "Um gajo não se cansa disto", dizia-me, às vezes. Não sei de onde lhe vinha o hábito de se auto-referir como "um gajo", mas parecia-me apropriado.

Alguns dias era ela que me telefonava. "A capela está vazia e triste, à espera do senhor Bispo. Será que ele está disponível para celebrar o santo milagre da comunhão?". Normalmente estava. Não sou um predador sexual como ela era (e suponho que ainda seja, não sei). A única coisa que tinha em comum com ela era uma alergia à mistura de sexo e amor, que acho detestável (e se lhe acrescentarmos o casamento então é que não suporto de todo). Tenho, claro, as minhas aventuras, com senhoras das mais variadas proveniências e escalões sociais, como disse ali em cima. Mas são poucas e duram pouco tempo.

Cozinha de là bas, em modo sintético

Colombo de frango (ou outra carne qualquer. Também pode ser feito com atum).

Açúcar (amarelo, cela va sans dire);
Frango - dourar no açúcar.

Cebola, alho, salsa, louro (se não houver bois d'Inde. Se houver parece-me dispensável), graines à roussir, bois d'Inde, cenoura - juntar ao refogado (que ainda não levou, e não vai levar, uma gota de óleo, azeite ou manteiga).

Pó de colombo diluído em água suficiente para cobrir tudo o que está no tacho.

Batatas, courgettes (não gosto de courgettes e nunca as uso).

Piripiri.

Servir com arroz branco - nem sempre. Às vezes carrego nas batatas e não faço o arroz.

Quando acabou a escravatura nas Antilhas os proprietários das quintas de açúcar mandaram vir chineses e indianos, não sei por que ordem, para substituir os africanos agora livres.

Alguns desses indianos vieram do Sri Lanka. Daí o nome de Colombo dado a este, no fundo, caril adaptado ao gosto local. Quando é mau é delicioso, quando é bom divino.

1.6.11

Olha, estou...

...aqui!

(Com um obrigado ao José Lopes.)

Gaudência

"Foder é bom; foder bem é melhor".

Conheci Gaudência no Botequim da Graça, numa noite em que C. lá dizia contos eróticos. Cheguei bastante cedo e sentei-me numa mesa muito perto do "palco". Gaudência chegou já a sessão tinha começado. Pediu-me com um gesto para se sentar à minha mesa e sentou-se ao mesmo tempo.

Daí até à cama dela foi um passo. Posteriormente apercebi-me de que tudo estava a um passo da cama dela; desde a cadeira do dentista a uma bicha de supermercado nada nem ninguém (desde que fosse homem) ficava a mais de um passo da sua cama.

O pai, um mulato de Cabo Verde que se interessava por etimologia e pensava saber tudo sobre o tema (não sabia nada de nenhum) impusera aquele horroroso nome à miúda porque "tivera muito gáudio ao fazê-la" - nas noites em que bebia de mais - ou porque "assim temos a certeza de que ela terá uma vida satisfeita" - nas outras, cada vez menos frequentes.

Aos 19 anos Gaudência resolveu assumir o nome e começou a "foder desalmadamente - isto é, sem alma; mas com energia e aplicação". Coincidiu com a vinda para Lisboa (a família morava no Algarve, onde o pai dava aulas num liceu e a mãe, uma transmontana que também dera aulas, antes de se casar e cansar se queixava do calor).

Crescera perseguida pelas inúmeras e maldosas piadas sobre o nome; dar-lhe a volta "por baixo" foi uma libertação (a fase do "por baixo" não deve ter demorado muito a passar, mas enfim). Gaudência não sentia a mais pequena sombra de afecto por qualquer dos homens que levava para a cama e despachava logo que suspeitava neles a nascença, ou a presença de uma atracção por ela.

(Cont.)

Jantar a quatro mãos, quase redundante, ao som de Fleet Foxes e The Smiths

Infelizmente faltam-me as duas mãos que confeccionaram o risotto de vinho tinto; a respectiva receita fica para mais depois. Por agora vai a das costeletas de porco em vinho tinto (parece redundante, mas garanto-vos que não é. O conjunto resultou óptimo).

Costeletas de porco em vinho tinto com risotto de vinho tinto

a) Costeletas
Fritam-se as costeletas num pouco de azeite e reservam-se. Nesse azeite frita-se uma grande quantidade de salsa e alho picados e bem misturados. Quando fritos junta-se o vinho tinto, deixa-se ferver um bocadinho e acaba de se cozer as costeletas.

b) Risotto de vinho tinto

Aqui vai a receita, tal como recebida das mãos:

Quando comprar as costeletas compre um osso das mesmas com um bocado de carne. Leve ao lume com bastante água, temperada de sal, de onde sairá um caldo.

Agora a parte boa: um tacho regado de azeite aquece. Uma cebola média e três grandes dentes de alho picados mergulham no azeite. Translúcidos? Uma chávena de risotto para dentro do tacho (carnaroli é o ideal, mas basta ir o arroz, deixe a chávena vazia na bancada). Frita-se durante um ou dois minutos. Transtranslúcidos? A mesma chávena de vinho tinto no tacho (quanto melhor, melhor). Ferve. Cheira bem. Lume sempre brando. (Marlon sempre lume.) Acrescente duas conchas de caldo. Vá mexendo. Quando for cada vez mais o arroz e cada vez menos o caldo, acrescente mais caldo, sempre a duas conchas, que tudo o que é bom faz-se pelo menos a dois. Repita até o arroz estar cozido. Eu repetiria cinco vezes, mas a cozedura e a aldentada não são, como algumas belezas, assuntos consensuais. Prove. Corrija de sal. Sirva com uma pitada de salsa picada em cima para não se embebedar da cor. Coma. Diga que está bom. Minta, se for preciso. Alimente-se — é diferente de comer.

Serviço público - restaurantes Fort-de-France

Gostei muito de Barcelona até um dia me ter sido revelada a sua profunda saloiice, até me ter apercebido do seu provincianismo escondido. Com Fort-de-France aconteceu o contrário: detestei a cidade até ao dia em que o seu carácter festivo, simpático, acolhedor se me revelou. Por coincidência, no dia seguinte (o meu último, azar) deambulava pelas ruas estreitas e barulhentas antes de ir para o aeroporto e encontrei, de repentemente, o restaurante Au Vieux Foyal, um lugar gírissimo, que organiza sessões de jazz e onde se come comida tradicional da Martinique. A ir, portanto, de dia almoçar, ou à noite jantar.

Fica na rua Garnier Pages, nº 22, e o telefone é 0696 28 60 83. O dono chama-se jean-Pierre e é uma simpatia discreta, sorridente, como todos os grandes senhores daquela ilha.