31.12.16

Fim do ano

Quando a alegria dos outros não é invasiva, agressiva, estúpida, desagradável e imposta é soberba.

Homens da minha idade e senhoras mais novas. Ou seja: as miúdas são giras e não sou o único feio.

Abraço, Ricardo

Para terminar o ano, um abraço ao Ricardo. Era daquelas pessoas de quem se gosta mesmo que não se conheça muito bem. Nada é mais revoltante do que uma morte precoce.

A verdadeira questão

O ano chega ao fim e isso deixa-me relativamente indiferente: a mistura de letras e números que fazem uma data nunca me entusiasmou por aí além. Já me aconteceu esquecer-me do meu aniversário, por exemplo.

A verdadeira questão é: se pudesse escolher entre amar e ser amado qual escolheria? Muito provavelmente bacalhau cozido com grão, cozido à portuguesa, Château Haut-Marbuzet e rum El Dorado 15 anos à sobremesa.

Não há questão importante à qual um bom almoço não responda.

Terrores, qualidade

O Don Vivo, coitado, está cada vez com mais leitores. Coisa que em si não me incomoda particularmente: continuam a ser poucos. Inquietante é a alta qualidade desses leitores. Pelo menos os que conheço. Isso sim, é aterrador.

Da tautologia, sempre

Não é por azar que as pessoas não têm dinheiro. É ao contrário: a quem não tem carcanhol os azares sucedem-se como navios em linha, ou - imagem mais contemporânea e quiçá menos bela, mas compreensível para mais leitores - carruagens de metro (refiro-me aos metros que funcionam. Não ao de Lisboa). Claro que a questão de saber porque é que não se tem massa fica tão em aberto como a da origem das coisas para um ateu.

É assim que a deixo: aberta. Deve de resto haver várias respostas, contrariamente a sabermos de onde vêm as estrelas, que só tem uma consoante se acredita em Deus ou não. Se bem no meu caso seja evidente: a razão pela qual não consigo nunca ter dinheiro é não conseguir ter dinheiro senão às vezes.

Vezes essas que se diluem no sempre com uma facilidade desconcertante. Como todos sabemos, a linha que separa o sempre do nunca é ténue, quase invisível. 

É muito agradável

Uma vez vi um jogo de rugby. Até aqui nada de especial. É esperar, por favor. Os jogadores eram camelos. Quero dizer: camelos a sério. Literais. Isto não é uma metáfora para um jogo de rugby entre membros do governo. Eram camelos.

Foi um jogo animado. Os camelos faziam placagens (?) uns aos outros deitando-se com o ventre sobre as bossas do que estava por baixo.

Era giro ver aquilo, mas um bocado chato porque foi num país do Médio Oriente e não havia cerveja. Consigo passar imenso tempo sem cerveja (ainda ontem passei quase duas horas) mas durante uma partida de rugby é difícil.

À saída um árabe abordou-me. Estava bem vestido, era educado.  Perguntou-me se eu tinha gostado do jogo. Eu disse-lhe que sim, admirei a rapidez e a destreza dos camelos. O árabe concordou. Depois mudou de conversa e perguntou-me (muito educadamente) se eu queria fazer sexo com ele. Disse lhe "não, obrigado". "Olhe que devia experimentar. É muito agradável,  sabe?" "Não duvido. Mas prefiro fazê-lo com mulheres". "Compreendo. Eu também gosto, de vez em quando. Mas nem sempre. Prefiro com homens. Leu aquela apologia do sexo homossexual que a Yourcenar faz nas Memórias? Não? É muito boa. Faz ela o Adriano dizer que gosta de fazer sexo com um homem porque sabe exactamente o que ele está a sentir".

"Pois eu prefiro o mistério de dois seios túrgidos, uma vagina bem molhada, quente, acolhedora", respondi. "Aliás na mesma sequência ela diz exactamente isto sobre o sexo heterossexual". "Verdade. Adriano apreciava os dois lados da questão, como eu. Olhe, tenha uma boa tarde. Desculpe-me, ficaria de bom grado a falar consigo mas preciso absolutamente de encontrar um parceiro. Há mais de uma semana que não tenho sexo e custa-me muito".

"Boa tarde. Boa sorte". Irra, coitado do homem. Eu passo meses, às vezes anos sem sexo e não me custa nada. Não tem a ver com a idade. Quando era novo acontecia-me a mesma coisa. O corpo de uma mulher interessa-me menos do que a mulher propriamente dita. Sempre foi assim.

Uma vez tentei namorar com uma senhora estúpida, mas não funcionou. Não conseguia pôr o membro em estado operacional. Enfim, verdade seja dita que não tentei muito tempo. De manhã fui-me embora de casa dela pedindo-lhe desculpa e dizendo que lhe telefonaria mais tarde. Nunca mais liguei. Ela sim, duas ou três vezes, mas não sei seguimento. Disse-lhe que não sim mas também.

Hoje estava a lembrar-me do jogo de rugby e da estranha conversa do árabe e resolvi fazer a mesma pergunta à senhora que estava ao meu lado ao balcão da cervejaria.

Disse-me que não e eu respondi a mesma coisa que o árabe: "devia experimentar, sabe? É muito agradável".

(A história do árabe foi-me contada hoje pelo F. C., que vive no Qatar. Aqui fica o meu obrigado).

30.12.16

Omolenta

Comecei por refogar separadamente, por esta ordem, no mesmo azeite e em lume a minima alho, tomate, chouriço, salsa e coentros picados e misturados. Depois pus tudo num passador para escorrer o excesso de gordura e fiz um déglacé com vinho tinto do fundo da frigideira. Acrescentei o chouriço, tomate, alho e ervas ao vinho.

Quando evaporou juntei os ovos, que tinham sido amaciados com leite e levado pimenta, rosmaninho, curcuma e aquela mistura de pimentos fumados que o Ed me deu e é divina e eu não sei como vai ser a minha vida quando aquilo acabar.

Ao todo levou para aí hora e meia, entre o começo e o fim. Talvez menos. Estava bom para burros (nos quais me incluo, eu sei). Da próxima vez há que escolher outro chouriço, é tudo.

Debates televisivos

Preparo-me psicologicamente para ligar a televisão de novo. Lembro-me de uma conversa que tive com o Philippe R. em Genève. Ele dizia mal da televisão, diabolizava-a, achava-a um veneno. Eu dizia-lhe que não: "isso é como dizer que a literatura é uma porcaria porque há maus livros, ou que a sociologia não presta porque Jean Ziegler é sociólogo" (esta última era uma ligeira provocação, muito ligeira: Ziegler era - e se calhar ainda é - o herói da esquerda suíça. Para se ter uma ideia: era pior do que o Zizek e o Boaventura juntos. Hummm... Não sei. Talvez só pior do que o Zizek. O único sociólogo pior do que o Boaventura que conheço é chauffeur de táxi).

Bom, não interessa. Philippe atacava a televisão, eu defendia-a. A certa altura, exasperado et à court d'arguments grita-me "Estás a defender a televisão porque não a vês. Se a visses verias o que aquilo é".

Oui, Philippe. Je vais regarder la téloche pour confirmer que c'est une merde mais qu'il y a peut-etre de temps en temps quelque chose qui vaut la peine. Aprés Ravel...

Luta anti-cancro

A melhor maneira de transformar um alimento cancerígeno em alimento não-cancerígeno é não ter dinheiro para comprar outro.

Lumpen-burguesia

A burguesia evoluiu em burgessia: uma classe de burgessos para quem não responder a um telefonema ou a um e-mail é sinal de distinção. Não é, burgesso: é sintoma de degenerescência, de lumpen-proletariazação, de arrogância estúpida. (A arrogância inteligente chama-se pedantismo e vem de outro campeonato).

É daqui que virão os futuros marqueses? Lamento pelos monárquicos.

Não se pode ter tudo

Pergunto-me por vezes se escrever, pintar, compor, esculpir, dançar bem não são muito mais difíceis e exigentes do que ganhar dinheiro, o que explicaria uma data de coisas.

Silêncio portátil

O homem estava sozinho na praça. Era uma praça circular, junto ao rio. Tinha pombos e gaivotas. Isto é, os pombos vinham quando as gaivotas iam para o rio. Mal estas regressavam os pombos fugiam. O homem via alternadamente o rio, as casas que rodeavam a praça, os pombos ou as gaivotas. Por vezes chovia e olhava para baixo, para o chão, abrigava-se nas arcadas e sonhava com um dia sem chuva.

Raramente falava com alguém: por vezes um turista perguntava-lhe onde era o museu que ficava ao lado da praça; ou um empregado de café tentava meter conversa com ele. Respondia educada mas laconicamente a todos. Com o tempo os empregados dos cafés habituaram-se à sua presença silenciosa e neutra, quase transparente. Os turistas não: um turista raramente se habitua ao que quer que aconteça nos locais que visita. "Obviamente", pensou o homem. "Habituar-se requer tempo, permanência, repetição. Curioso porém como nos podemos habituar a algo que não compreendemos". Os turistas viam nele aquilo que queriam ver. Essa é a essência do turismo: olhar para as coisas e pessoas e ver nelas o que para aquele lugar se levou.

"Turistas, viajantes e nómadas. Um viajante é um turista com tempo. Um turista um sedentário que se enganou no prédio. No fundo o nómada é quem viaja menos: está sempre em casa".

"Ao diabo os paradoxos".  O homem pensava depressa, saltava abruptamente de uma premissa a uma conclusão e à sua refutação como se jogasse à macaca, a pé coxinho e por impulsos bruscos.

Há muitos anos que vivia sozinho. Começara a ir àquela praça havia pouco tempo: antes disso estivera noutras praças noutras cidades noutros países e noutros continentes. "Não passo de um silêncio portátil".

"Se parar morro afogado em palavras. E não haverá colete que me salve. Estão furiosas, como se eu as tivesse enganado, como se lhes tivesse prometido uma quermesse e em vez disso as tivesse levado a um convento de beneditinos ou de carmelitas descalços".

As palavras vingam-se: transformam o silêncio em solidão, alquimia maldosa. Melhor tratá-las bem para que tragam paz, venham uma a uma e se vão embora tranquilas. "Não há bagagem mais pesada do que as palavras", disse o homem em voz alta, sem querer.

Ninguém o ouviu. Silêncio portátil. 

29.12.16

Marqueses, burgessos

Um país de marqueses sem dinheiro e de burgessos com ele.

Infelizmente os marqueses estão cada vez mais burgessos e estes levarão muitas gerações a tornar-se marqueses.

28.12.16

Sesta

Vou dormir. É como morrer mas tem a vantagem de ser repetível.

Camisas, inferno

Atirar ao alvo errado é uma tentação quase irreprimível. Por exemplo: ainda agora dei por mim a maldizer o inverno por causa da passagem das camisas a ferro.

Claro que a culpa não é do inverno (seria do inferno, se o trocadilho não fosse fácil de mais).

Nota para mim próprio

Este blog faz amanhã treze anos. Não esquecer post de aniversário. Temas:

- Emoção;
- Como o tempo passa;
- Que ricos e variados foram estes treze anos;
- Nos primeiros anos piorava de ano para ano mas depois estabilizou (provavelmente à falta de pior, mas isto não precisa ser dito);
- Lembrar os blogues da mesma altura que ainda sobrevivem;
- Lembrar a Coluna Infame.

27.12.16

Apologia do Facebook

Era um bocado ingénuo, sempre viveu nas margens (frequentemente do lado de fora delas). Filtrava a informação que lhe chegava: tinha uma capacidade prodigiosa de se alhear de tudo e todos os que não lhe interessavam (infelizmente a maioria das coisas e das pessoas).

Só começou a perceber verdadeiramente o mundo em que vivia quando por curiosidade começou a ler comentários a alguns posts no Facebook.

26.12.16

O mastro

Foi assim que as coisas se passaram. É importante começar por aqui: foi assim que tudo aconteceu, sem tirar nem pôr. As coisas acontecem porque sim e não porque nós queremos que elas aconteçam. Tudo isto aconteceu há muitos anos, ainda eu era vivo. Lembro-me do princípio, do meio e do fim, que seriam os pilares da história se o que aconteceu começasse e acabasse, se tivesse paredes a separar os quartos das salas, a casa da rua, a história do tempo. Não tem. Nada começa nem acaba. Partículas, fragmentos, migalhas, pó, espuma, fotões reflectidos nos retrovisores de automóveis que se deslocam velozes sem que saibamos de onde vêm ou para onde vão.

Houve um acidente qualquer na Bélgica. O Ministro da Cultura belga convidou-me para fazer um monumento à memória do dito incidente (sou escultor). Não sei por que raio de carga de água o homem se lembrou de mim. Tinha-o cruzado um dia na exposição de um amigo e fomos "amigos" durante uns tempos. Depois cada um foi para seu lado e de amigos com aspas passámos a "conhecidos" e daí, suponho, a "sim, sei quem ele é".

Um dia recebi um mail dele, agora era ministro e queria uma peça minha para marcar o dito incidente. Disse-lhe que sim. Estava de novo em período de penumbra financeira, à beira da escuridão total. A falta de dinheiro tem consequências em todos os aspectos da vida de um homem, incluindo o vocabulário: a palavra "não" desaparece.

Disse-me que precisava de ir à Bélgica dar uma volta pelo país, "senti-lo", "impregnar-me". Teria um carro e um chauffeur à espera no aeroporto. Tinha as duas primeiras noites reservadas num hotel em Bruxelas; as outras seriam marcadas em função do local onde me encontrasse.

O chauffeur chamava-se Ferdinand, era Flamengo e odiava Wallons.

- Fui dizer ao meu pai que me ia casar - contou-me logo na primeira tarde.
- Óptimo - respondeu. - Com quem?
- Ah, pois, Pai, era isso que te queria dizer...
- Então diz.
- É que ela é Muçulmana.
- Muito bem. Se fosse Wallone era pior.

E ria-se a bandeiras soltas na ventania.

Gosto da Bélgica. Tem aquela cidade cheia de canais, comboios que vão para Antuérpia depois do Natal e da esperança, cerveja demasiado doce, ódio profundo às crianças, um governo que às vezes governa e a maioria do tempo faz que governa. Três línguas oficiais num país em que ninguém se entende e restaurantes japoneses baratos, coisa que eu desconhecia até ir a Bruxelas pela primeira vez.

Passei uma semana a percorrê-la com o Ferdinand, cujas vida e piadas deixaram de me interessar demasiado depressa para o gosto dele e demasiado tarde para a minha paciência. A secretária do Ministro tratava das reservas com uma eficácia e um silêncio apreciáveis.

A Bélgica é um país plano, horizontal, cinzento mas honesto: toda a gente concorda que é uma ficção mas continua a vivê-la e o país lá vai sobrevivendo, virado para fora por manifesta incapacidade de olhar para dentro. Ou falta de vontade, mais provavelmente. Um dia na Wallónia passei por um campo no meio do qual vi um tufo de vegetação. O campo estava deserto. Era inverno, mas não havia neve. Uma longa extensão monocromática, plana no meio da qual sobressaía um tufo de canas. Pedi a Ferdinand para parar.

O caniçal rodeava uma estrutura que ao longe não percebi bem o que era. Inicialmente hesitei entre um poço ou a base para uma coisa qualquer que a desolação do lugar há muito levara. Era um poço, um buraco. Um buraco é um lugar de passagem. Os buracos nas solas dos meus sapatos são o lugar de passagem para a água da rua quando chove, por exemplo. É por um buraco que a luz entra e ilumina o que está escuro, que espreitamos quando queremos saber o que se passa do outro lado da porta. Decidi ali que a minha forma de celebrar o tal acontecimento seria fazer um mastro e plantá-lo naquele poço. Um mastro gigantesco, em fibra de vidro, um mastro que nunca mais acabasse, um mastro que saísse do que estava escondido, uma vertical no meio do nada.

- Um mastro no meio do nada - disse ao ministro quando lhe fui apresentar a ideia. - Uma vertical num país horizontal. Um marco (ia acrescentar "num país sem marcas" mas calei-me a tempo).

Fez uma série de perguntas técnicas: como ia aguentar o mastro, quanto tempo duraria, em que material seria feito, se tinha uma ideia dos custos e dos prazos e por aí fora. Respondi como pude. Os dados mais precisos ser-lhe-iam enviados quando os tivesse.

O homem disse que sim, que gostava da ideia, queria assinalar o incidente e um mastro alto, enorme seria uma boa maneira de o fazer.

.........
Construiu-se o mastro. Houve uma série de problemas técnicos a resolver: estaiá-lo, pôr uma luz encarnada no topo não fossem um avião ou um helicóptero abalroá-lo. Um mastro demasiado rígido parte-se, demasiado flexível dobra-se; pode-se estaiá-lo parcialmente a si próprio, o que lhe permite ser mais fino e leve, ou só à terra; pode ser feito de madeira, alumínio, fibra de vidro, carbono, ferro, aço, cimento. Propus carbono: é leve, resistente, pode pintar-se ou não (se não se pintar fica negro, um negro brilhante, denso, intrigante).

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A inauguração foi uma festa. Veio o ministro e metade do Governo, representantes de tudo e mais alguma coisa incluindo provavelmente a sociedade protectora dos animais e a associação dos lunáticos anónimos. Veio uma fanfarra, uma senhora velhinha falou da importância simbólica dos mastros, o ministro felicitou-me pela ideia e a si próprio pela ideia de ter tido a ideia. Correu tudo bem, a festa foi bonita, fui apalpado por um paneleiro que se dizia amigo das artes e por uma loira que às artes preferia os artistas. Bebi de mais, acordei no dia seguinte com a loira ao meu lado, fui tomar o pequeno-almoço sozinho e quando voltei ao quarto a senhora perguntou-me se a podia foder outra vez porque já não se lembrava de como tinha sido a foda de ontem.

O avião era às três da tarde.

.........
Pouco tempo depois o mastro caiu, mas o ministro já não era ministro e ninguém deu pela queda. Excepto a loira; escreveu-me a dizer ou que o mastro era melhor do que eu ou eu melhor do que o mastro, não me lembro bem. Morri e deixei de me interessar por metafísica. Agora só os grandes eixos da vida (ou da morte) me atraem. Saber, por exemplo, se a loira ainda é viva e se pode vir ter comigo esta noite, se um dia de sol vale uma noite de lua cheia, se é melhor um rum ou dois copos de vinho tinto. Ao contrário do que se pensa a morte é uma sequência de curtos prazos.

O céu não é bem azul. Está quase cinzento. Azul acinzentado (o azul é a cor dominante. Se fosse o cinzento diria cinzento azulado. É com estas coisas que me preocupo agora. Eixos estruturais.

Banalidades estruturantes. Sem elas a morte desfazer-se-ia, seria insuportável).

25.12.16

Eloge de la fatigue

"L'homme quitta la pension le lendemain matin. Il y avait un ciel étrange, de ceux qui courent vite, pressés d'être à la maison. Le vent du nord soufflait, fort mais aussi sans faire du bruit. L'homme aimait bien marcher. Il prit sa valise et son sac rempli de papiers, et il prit la route qui s'en allait, longeant la mer. Il marchait vite, sans se retourner. Il ne la vit donc pas, la pension Almayer, se détacher du sol et se désagréger, légère, partir en mille morceaux,  qui étaient comme des voiles et qui montaient dans l'air, descendaient, remontaient, volaient, et avec eux emportaient tout, loin, et aussi cette terre, et cette mer, et les mots et les histoires, tout, dieu sait où, personne ne sait, un jour peut-être quelqu'un sera tellement fatigué qu'il le découvrira."

Alessandro Baricco, in Océan Mer, ed. Folio

Deserto

Perdido na vastidão do beijo que te quero dar. No deserto.

24.12.16

Escala de Serpa

Todos nós conhecemos - ou pelo menos ouvimos falar - da escala de Richter, uma escala que mede a intensidade dos sismos; nem todos, mas alguns dos meus leitores conhecerão decerto a escala de Beaufort: mede a intensidade do vento e é linda de morrer (ou melhor: a sua historia é linda de morrer: Beaufort inventou-a para avaliar os panos que envergaria no seu navio, os colegas acharam a ideia tão boa que a universalizaram; ainda hoje é usada). A escala de Douglas mede o estado do mar, foi inventada no princípio do séc. XX e poucos navegadores a conhecem. Menos ainda - graças a Deus - conhecem a escala de Saffir - Simpson, usada para avaliar a força (e prever os estragos) dos furações.

Hoje venho propôr uma nova escala, tão importante como todas as supra-mencionadas. Com toda a humildade chamar-lhe-ei "Escala Serpa da Tesura" e como o nome indica serve para medir os diferentes graus da pobreza (em calão: tesura, para quem não sabe).

Uma das características bonitas da tesura é que se reproduz assexuadamente. Reproduz-se por partenogénese. Um físico diria "Tesura atrai tesura na razão directa da falta de dinheiro". Se fosse um físico pretensioso diria "Pobreza atrai pobreza na razão inversa do carcanhol disponível". (É do domínio público que dinheiro atrai dinheiro. Escusado será certamente fazer a aproximação entre os conceitos de massa e pobreza. As diferenças só se atraem no magnetismo - o que de resto nos levaria para os interessantes terrenos da atracção magnética não estivesse eu ocupadíssimo a desenvolver a Escala Serpa da Tesura - ).

Ora bem:

Nível Zero: Pode comprar-se uma garrafa de vinho sem matutar mais de dois segundos sobre o preço (lembro que esta escala mede a falta de guito e não a sua presença. Nunca gastei mais de trinta euros numa garrafa de vinho e mesmo essa foi para oferecer. Se um dia fizer uma escala para a abastança falarei em todas as abençoadas garrafas de Chateau Haut Marbuzet et simili que bebi até hoje. Ou uma escala da amizade, vá).

Nível Um: A garrafa de vinho custa ligeiramente acima de dez euros. Um gajo pergunta-se "vale a pena juntar uma moeda à nota? Não haverá por aí vinho que me permita receber antes uma moeda em troca desta nota, tão bonita?"

Nível Dois: O problema do vinho está resolvido. Não se fala mais nisso. Começa-se a pensar na passagem a ferro das camisas (lembro que esta escala é pessoal: detesto passar a ferro. Cada um dos leitores terá certamente outra antipatia). A Cinq à Sec lava e passa pelo mesmo preço; a senhora da esquina passa só, por um preço ligeiramente inferior. Que fazer?  Qual escolher?

Nível Três: Deixa de haver dilema na escolha do fornecedor para a passagem a ferro das camisas.

Nível Quatro: Deixa de haver fornecedores para a passagem a ferro das camisas. Um gajo passa-as ele próprio, se possível com um ferro decente, ouvindo música decente e pensando numa mulher decente (de bonita, não de costumes).

Nível Cinco: A passagem a ferro das camisas torna-se um hábito; o preço do vinho deixa de ser um problema: se uma nota de cinco não tiver troco e esse troco for uma moeda preta não se compra. Os dilemas mudam, a memória aviva-se, como o frio da primeira manhã de Outono: quanto custa um copo de vinho no café X? E no Y? (Os efeitos positivos da falta de massa sobre a memória são incomensuráveis).

Nível Seis: A questão do preço do vinho nos cafés fica resolvida. O teso começa a lembrar-se da qualidade do vinho nas tascas e a compará-las (cf. ponto anterior).

Nível Sete: Um gajo hesita entre apanhar um autocarro e beber um café. Este ponto é interessante porque permite avaliar ao mesmo tempo actividades fundamentalmente diferentes. É uma espécie de sinestesia financeira. No supermercado: o único critério para a escolha de uma coisa qualquer é o preço. Batatas, cebolas, alhos, salsichas, azeite, carne picada, sal, pimenta, desodorizante e por aí fora deixam de ser entidades com uma personalidade e uma identidade próprias e reduzem-se a uma etiqueta de preços.

Nível Oito: Um gajo não pode nem beber um café nem ir de autocarro.

Nível nove: Fica para depois.

Nível Dez: Um gajo está na rua e tem miúdas giras a levar-lhe comida à meia noite.

Notas:

1 - É importante notar que a segunda lei da termodinâmica se aplica como uma luva à situação financeira de uma pessoa: é mais fácil passar de rico a pobre do que de pobre a rico.

2 - Deve distinguir-se entre ser pobre - uma questão de números - e miserável - coisa de atitude -. Pobre é aceitável; miserável não.

3 - Mudar de nível com dinheiro emprestado não conta como mudança de nível.

4 - Há uma espécie de pedantice em ser pobre por escolha própria; conta como pedantice, caso um dia alguém decida fazer uma escala desta. Mas continua a incluir-se na escala da pobreza, porque por mais que o diga ninguém quer ser pobre ou é pobre porque quer.

5 - Reitero o ponto dois: Pobre sim; miserável nunca.

22.12.16

Poemas, vida

Um monte de poemas. A pergunta é: quanta vida há por detrás deles?

Isto é: de quem os lê, de quem os escreveu?

Sem o sangue que fica da vida e da poesia?

Não, não

Hoje enviei-lhe um pedido de não-namoro.

Ela disse que não e fiquei feliz.

Amor, rua

Uma vez amei uma mulher. "Uma vez" não deve naturalmente ser lido à letra. Foram mais: uma, duas, três vezes. Quatro, quiçá. Nunca as contei porque cada vez que amo uma mulher é a primeira vez; e de qualquer forma nunca deixei de amar uma mulher que alguma vez amei. Isto não é demagogia: se amo alguém é porque ela é amável. Não deixa de o ser, ou raramente, se eu deixar de a amar, ou ela a mim, ou os dois. Acontece, claro: já amei mulheres de quem nem o nome recordo. Poucas, graças a Deus.

A calçada está irregular, é desconfortável mas bom andar nela: nem sempre o que amamos é confortável. Talvez até o amor – aquele cujo nome se recorda anos mais tarde – seja desconfortável. Prefiro os passeios desajeitados de Lisboa aos monótonos e cansativos sidewalks de West Palm Beach, por exemplo.

Uma vez amei uma mulher; ainda a amo. Amo-as todas: as que amei e um dia amarei, as que me amam e as que amei e me disseram “não, vai amar para outro lado. Vai passear por essas ruas de que tanto gostas, as que percorres a pé ou quando a tinhas de bicicleta, as ruas que vês do autocarro ou adivinhas do metro”.

Há amores mais desconfortáveis do que outros, amores que se percorrem mais depressa ou mais devagar, amores que nos ou se fazem esperar.

Como as ruas. O amor é bom à solta na rua no mar no ar, no futuro ou no passado, no presente e sempre e nunca. Uma vez amei uma mulher. Vou amá-la sempre, para sempre: para cada uma das que amei há um sempre diferente, construído tijolo a tijolo, passo a passo, beijo a beijo, olhar a olhar, toque a toque.

Nas ruas do amor há sentidos proibidos e sentidos obrigatórios, limites de velocidade, traços contínuos, proibições de estacionar, calçadas escorregadias, pilaretes e polícias sinaleiros.

Se não houvesse não seriam ruas e não seria amor.

21.12.16

Ser pequeno

A miséria é desconfiada e a desconfiança miserável. Sem uma a outra não sobrevive: a pequenez não é auto-sustentável. 

Exclusão de partes, tempo

Era um humanista misantropo. À medida que envelhecia mais misantropo e mais humanista ficava. Mistura de tempo e exclusão de partes: demasiado tarde para começar a gostar de animais e demasiado cedo para deixar de os ver.

A sorte e o frio

Estava com medo do frio e este revela-se o menor dos meus problemas. Que sorte!

20.12.16

Definição - Amigo

Um amigo é um irmão que atribui mais peso às nossas qualidades do que aos nossos defeitos.

(Para o A.G. com um abraço amigo, irmão)

Optimismo, tempos

É preciso imaginar as ruínas de Great Zimbabwe, aqueles muros circulares, concêntricos e misteriosos devastados, demolidos por um bando de elefantes enraivecidos, bêbedos e voadores. Os elefantes atacaram por todos os lados: as ruínas são caóticas, espalham-se em todas as direcções sem ordem aparente. O cenário é aterrador. Não resta pedra sobre pedra. A devastação é total.

"Não faz mal. Tenho os planos dos muros e posso reconstruí-los", diz um homem; mete mãos à obra de seguida. Está cansado, mas aprendeu há muito a viver com o cansaço. "A longo prazo não reconstruir é mais cansativo", explica-se. "As muralhas estão em ruínas mas de qualquer forma tenho os planos".

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O optimismo mata mais gente e provoca mais danos do que o pessimismo. Talvez um gajo devesse ter isso presente antes de fazer seja o que for.

Todavia: sem optimismo uma ruína é uma ruína; com é uma obra, um objectivo quiçá nobre, quiçá risível. Um futuro. Para um pessimista só existe passado.

O passado é uma merda. Tanto é que já passou. Se fosse bom estaria presente, não teria passado.

19.12.16

"Nada é feito"

"Nada é feito" clama um senhor nos Poetas do Povo. Se nada é feito como é que tudo se desfaz?

18.12.16

Voltar a casa

Anarquismo em Portugal? Ser anarquista num país em que se acha que o Estado deve fornecer tudo, desde pensos rápidos a bancos para os amigos, passando por teatro, cinema e respectivos rebuçados, companhias aéreas, água, luz, gás e greves ser anarquista é uma piada.

De quem não percebeu, mas piada.

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"Atenção ao espaço entre o cais e o comboio". Enternecedor, este cuidado com a saúde dos passageiros. De notar que o próximo espaço entre o cais e o comboio vai ocorrer daqui a - diz o painel luminoso - dezasseis minutos e trinta segundos.

Pena o cuidado com os passageiros não ser extensível a coisas fundamentais e ficar confinado a infantilidades inúteis e importadas.

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Duas febras - das melhores de Lisboa - e duas taças de vinho: três euros e trinta cêntimos. Pobre por pobre antes em Lisboa. Pelo menos não me sinto espoliado. É uma pobreza justa, quase aceitável.

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A quantidade de livros de poesia publicados em Portugal é fascinante. Num país em que as pessoas mal se falam toda a gente escreve poesia.

Deve ser por isso: tanto silêncio na urbe só se resolve com verborreia no papel.

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A vantagem dos amigos sobre a família é conhecerem-nos há menos tempo.

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"Portugal não é um país para marinheiros", diz-me R. Verdade: somos demasiado livres para um país de robots, demasiado pobres e plebeus no meio de marqueses (sem dinheiro, mas marqueses).

Anti-capitalismo animal

Os anti-capitalistas descobriram finalmente que o capitalismo faz bem às pessoas e agora defendem os animais.

Passado e futuro, Portugal

Portugal, um país que pouco se interessa pela sua história e a respeita - com excepção dos Descobrimentos os portugueses pouco se interessam pelo seu passado - resiste à mudança como nenhum outro que eu conheço.

Quer manter o presente para não ter passado e tudo o que consegue é escamotear o futuro, que chega por baixo da gabardine como a pila de um exibicionista.

17.12.16

Almoço improvisado - Trouxas de presunto com carne de porco e grelos de nabo.

A ideia apareceu-me a caminho do supermercado; quem disser o contrário ou mente ou não sabe do que está a falar, passe o pleonasmo. "Aparecer" não é o verbo correcto. Foi construída. Começou com trutas à Minhota, um prato do qual gosto particularmente por causa da mistura de truta e bacon. Depois pensei numa alterativa: saltimbocca mas de porco, uma coisa que já fiz há uns anos uma vez e da qual gostei quase não desgostei.

A caminho do supermercado pensei que sim não mas talvez. Quando lá cheguei não havia trutas, mas havia grelos de nabo congelados. Comprei carne de porco picada, uma embalagem de presunto e alheiras, não fosse o diabo tecê-las.

Comecei por saltear os grelos com alho; continuei com o mesmo à carne. Fiz um déglacé (está muito na moda aqui pelas bandas de mim) com um bocadinho de água e vinho tinto; misturei os grelos salteados e a carne de porco, temperei com paprika, cominhos e uns pimentos em pó fumados que trouxe de West Palm, presente do Ed.

Com essa mistura e as fatias de presunto fiz umas trouxas, levei ao forno dez minutos ou quase quinze.

É um bom ponto de partida.
Nortada gelada.

16.12.16

Mitos

De A Short Story of Myth, de Karen Armstrong, ed. Canongate.

"This is clear in the myth of Anat, the sister and spouse of Baal, the storm god, which symbolises not only the struggling of farming but also the difficulty of attaining wholeness and harmony. Baal, who brings rain to the parched earth, is himself engaged in a creative battle with monsters, the forces and chaos and disintegration. One day, however, he is attacked by Mot, the god of death, sterility and drought, who constantly threatens to turn the earth into a desolate wilderness. At Mot's approach, Baal for once is overcome with fear, and surrenders without resistance. Mot chew him up, like a tasty morsel of lamb, and forces him down into the underworld, the land of the dead. Because Baal can no longer bring rain to the earth, vegetation withers and dies, amidst general lamentation. El, Baal's father - a typical High God - is helpless. When he hears of Baal's death, he comes down from his high trone, puts on sackcloth, and gashes his cheeks in the traditional rites of mourning, but cannot save his son. The only effective deity is Anat. Filled with grief and rage, she wanders through the earth, distraught, searching for her alter ego, her other half. The Syrian text which has preserved this myth tells us that she yearns for Baal "as a cow her calf or a ewe her lamb". The Mother Goddess is as fierce and beyond control as an animal when its young is in danger. When Anat finds Baal's remains, she makes a great funeral banquet in his honour, and, uttering a passionate complaint to El, she continues her search for Mot. When she finds him, she cleaves Mot in two with a ritual sickle, winnows him in a sieve, scorches him, grinds him in a mill, and scatters his flesh over the fields, treating him in exactly the same way as a farmer treats his grain.

Our sources are incomplete, so we do not know how Anat managed to bring Baal back to life. But both Baal and Mot are divine, so neither can be wholly extinguished. The battle between the two will continue, , and the harvest will only be produced each year in the teeth of death. In one version of the myth Anat restores Baal so completely that next time Mot attacks him, he responds much more vigorously. Rain returns to the Earth, the valleys run with honey, and the heavens rain down precious oil. The story ends with the sexual reunion of Baal and Anat, an image of wholeness and completion, cultically reenacted during the New Year's festival." 

Gosto desta história para lá de toda a medida. Tem tudo: o Bem vencido, a ressurreição trazida pelas mulheres, a luta sem fim entre o Bom e o Mau, a imparável fúria da Mulher.

Diário de Bordos - Lisboa, 16-12-2016

A viagem boa chegada boa: a TAP deixou-me levar o saco na bagagem de mão, pelo que não tive de esperar a habitual eternidade em Lisboa. Entre a aterragem do avião e o destino final decorreu uma hora, a qual incluiu os rituais croquete e bica à chegada, carregar o telefone portátil e verificar o bilhete do metro.

Nem as igualmente habituais escadas rolantes avariadas, a notícia no DN que o governo subvencionou não sei quantas empresas esperando assim criar mil e trezentos empregos (lê-se a notícia e vê-se que não é verdade: quinhentos são novos e os outros são mantidos). Faço rapidamente as contas: cento e trinta e seis mil euros por emprego. Se pegassem nessa massa e a dessem directamente aos beneficiados eles utilizá-la-iam muito melhor (isto assumindo que os beneficiados finais são os empregados. Duvido. Mas isso é outra história).

Está frio e chove. "Lisboa acolhe-me chorosa", penso. Talvez. Não sei. Descarto a ideia por pieguice manifesta. No meio das incertezas todas nada uma certeza: é bom estar de regresso, por muito difícil seja o que me espera. O resto é entre mim e Lisboa, uma vez mais.

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No avião acabei o Homme Obscur de Yourcenar. Como de costume acompanhado por um posfácio, espécie de making of. É desse posfácio que retiro esta descrição de Nathanaël, a personagem principal:

"...il n'est pas tout à fait aussi ignorant ni aussi démuni que j'aurais voulu qu'il le fût. Reste, néanmoins, aussi indépendant que possible de toute opinion inculquée, le quasi‑autodidacte nullement simple, mais délesté à l'extrême, se méfiant instinctivement de ce que les livres qu'il feuillette, les musiques qu'il lui arrive d'entendre, les peintures sur lesquelles se posent parfois ses yeux ajoutent à la nudité des choses, indifférent aux grands événements des gazettes, sans préjugé dans tout ce qui touche à la vie des sens, mais aussi sans l'excitation ou les obsessions factices qui sont l'effet de la contrainte ou d'un érotisme acquis, prenant la science et la philosophie pour ce qu'elles sont, et surtout pour ce que sont les savants et les philosophes qu'il rencontre, et levant sur le monde un regard d'autant plus clair qu'il est plus incapable d'orgueil. Il n'y a rien d'autre à dire sur Nathanaël."

Há: exaspérant. A liberdade e a independência - ainda por cima sem orgulho - são exasperantes. Eu sei, por experiência.

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É muito difícil encontrar uma hospedeira (ou hospedeiro) da TAP mais simpáticos do que qualquer outro. Salvo raríssimas excepções o pessoal de cabine de companhia é de uma simpatia estratosférica. Esta vez foi uma excepção: uma das senhoras era ainda mais simpática, sorridente, afável do que o habitual. Nem me lembrei de que tínhamos saído com uma hora de atraso.

15.12.16

Diário de Bordos - Tri-Rail entre West Palm Beach e Miami, EUA, 15-12-2016

Escrevo do comboio que me leva ao aeroporto de Miami. Daqui a pouco mais de quinze horas estarei em Lisboa. Não sei que dizer do que me espera: um período negro com uma grande luz ou uma grande claridade com um poço no meio?

Pouco importa. Ed do F.C. veio trazer-me à estação. Foi um adeus de marinheiros: "Ciao, até um dia destes". "Ciao". "Obrigado por tudo". "Obrigado eu". Um aperto de mão, as portas do carro fechadas. Detesto grandes despedidas, lenços brancos a acenar, corridas atrás do comboio, abraços que mais não fazem do que prolongar a dor que as despedidas todas são. A página West Palm Beach virou-se. Pode ser que a reabra - o conto de horror do qual é parte ainda não acabou - mas para já está fechada. Ponto final.

Parágrafo.

Concentro-me na claridade que me espera. O negrume é cego e mudo, desinteressante. Tenho a certeza de que o tempo demonstrará que tive razão, que a minha opção foi a boa. Não sei. Sempre vivi na incerteza. A certeza virá no caixão.

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O comboio teve uma avaria. "Vamos tentar chegar o mais longe possível para Sul. Acabamos  de perder um motor", diz o altifalante num tom cordial, como se estivesse a dizer que se esgotou o stock de limonada. Na estação diz "Este é o comboio que vai para Sul, blablabla. Não temos ar condicionado, caso não queira embarcar". Para um indígena a vida sem ar condicionado é inconcebível, como um inferno sem chamas.

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De volta ao aeroporto de Miami. Um dos meus ódios de estimação, desta vez largamente atenuado porque vou na TAP para Lisboa. E com o atraso no comboio vou lá passar menos tempo do que tinha previsto.

14.12.16

Conspiração internacional

Não é só a eleição do Trump que a Rússia está a tentar influenciar. Há claramente manobras para manipular o Don Vivo também.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 13-12-2016

A noite está muito calma. Lua Cheia, sem vento. Na marina dois barcos têm iluminação de Natal mastros acima. Acho um bocadinho pateta: o Natal é festa de terráqueos, não de marinheiros. Enfim, que se lixe. O problema é deles, se bem quem vê as luzes sejamos nós, todos os outros. São um bocadinho foleiras mas só as vejo durante os cinquenta metros de pontão entre o F.C. e o W. Uma vez cá dentro não vejo nada.

Oiço apenas a interminável lengalenga entre o W. e o cais. Tenho os cabos com pouca folga e deve haver corrente. Falam decerto um com um outro a dizer "espera, agora subo eu. Desce. Sobe. Vou um bocadinho avante. Deixa-te estar onde estás. Isto está a apertar de mais. Não. Deixa. Gosto assim".

Qualquer coisa do género. Um barco não faz barulho. Conversa com quem tem para o ouvir. Não me meto na conversa. Se os quisesse calar encharcaria o través de popa - é ele que está a papaguear - em detergente para a loiça, mas não quero. Desapetece-me.

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O jantar foi garoupa cozida. Estava boa.  Usei um vinagre de cidra orgânico que estava a bordo há não sei quanto tempo e estragou-me a primeira parte. O azeite tão pouco era grande coisa. Depois mudei para o Oliveira da Serra comprado no Seabra e as coisas melhoraram. Azeite orgânico, cinco estrelas, gourmet.

Os armadores percebem tanto de azeite e vinagre como de barcos, coitados.

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Quinta-feira vou para Lisboa. Não sei quanto tempo fico. O mais provável é não voltar. Estou um bocadinho farto destes gajos, mas por enquanto é só um bocadinho. Ainda não é muito. E provável que não volte. Estou um bocadinho farto destes gajos. Não muito, ainda, só um bocadinho. E prometi-lhes que os ajudava. E a mim que levava isto até ao fim.

Parece a conversa do W. com o cais.

13.12.16

Reedição - Tiro ao alvo

Uma reedição que vem mesmo a calhar:

Tive uma adolescência difícil. Tentei apaziguá-la com whisky e Nietzsche, mas os resultados não foram satisfatórios. Hoje tenho sessenta anos e ainda lhe sinto os efeitos. A verdade é que me tornei um homem solitário, detestado pela maioria das pessoas e apenas levemente suportado por duas ou três - a quem por isso chamo amigos íntimos. Não o são, nem uma coisa nem outra: não tenho nem amigos nem íntimo. Enfim, o meu íntimo acaba nos meus pulmões. Daí para dentro, ou para baixo, ou para onde quiserem não há nada. Talvez o estômago. Não sei.

Também não sei se gosto da vida que levo: nunca pensei nisso e de qualquer forma não dialogo comigo mesmo. Não sendo esquizofrénico não tenho interlocutor. Continuo a beber whisky, claro; mas deixei de ler Nietzsche. O moralismo cansa-me, cada vez mais e mais depressa. Acho que deve haver, algures, uma perspicácia neutra de um ponto de vista moral. Neutra, transparente (é uma metonímia para inexistente. Que se fodam as metonímias e a moral). Claro que me podem dizer que continuo a ler Beckett e que se aquilo não é moral o que o é? Talvez, mas pelo menos Beckett é cómico. E Cioran; e esses gajos todos: Debord, Vaneigem ("en se banalisant, la vie quotidienne a conquis peu à peu le centre de nos préoccupations (1). - Aucune illusion, ni sacrée ni désacralisée (2), - ni collective ni individuelle, ne peut dissimuler plus longtemps la pauvreté des gestes quotidiens (3). - L'enrichissement de la vie exige, sans faux-fuyants, l'analyse de la nouvelle pauvreté et le perfectionnement des armes anciennes du refus (4)"). "As armas antigas da recusa". Não é cómico, isto? As novas não servem? De qualquer forma cada vez leio menos, uma sorte.

Aos quinze anos o meu Pai deu-me um modelo de porta-aviões para construir. Achava fácil, e como eu gostava de aviões pensou que era o indicado. Deve ter sido a única coisa em que acertou na vida - pelo menos no que me diz respeito -. Desde então nunca mais parei de construir modelos - de navios, de aviões, de soldados, de tanques, de carros, de tudo de que tenha sido feito um modelo -. E comprar, também: tenho uma colecção que deixa a do Pavilhão Chinês a milhas. Todos pintados pormenorizadamente - graças a Deus nunca tive que perder tempo a foder mulheres nem a educar as crianças que daí resultam, inevitavelmente -. (O que não quer dizer que seja virgem. Não sou. Até há pouco tempo ia a uma puta do Intendente, sempre a mesma, duas vezes por mês. Mas ela reformou-se e não quer foder mais. Tanto se me dá. De qualquer forma estava mais gasta do que um pergaminho do Mar Morto).

Também perdi a vontade de construir modelos. Agora o meu passatempo é destruí-los: comprei uma carabina de chumbos e todos os dias atiro a dez soldados; uma vez por semana acrescento dois aviões e um navio. Calculei que a este ritmo tenho para dez anos de tiro ao alvo. Depois, não sei. Talvez compre uma Walter PPK. É uma arma bonita, a PPK; e a dois centímetros é impossível falhar o pior modelo que já construí.

Pedido humilde

Pode a divina providência ou outra providência qualquer ou seja o que for que faz de providência deixar de fazer de mim saco de porrada?

Obrigado.

12.12.16

Rosa, Manuel Gusmão

Hoje Manuel Gusmão faz anos. É um poeta que li muito e que por vezes citei no DV. Procurei-o agora e aparecem-me: "Põe uma pedra nessa infância", a "Terrível ausência de mar" e esta:

a rosa é o tigre

a rosa é o tigre preso
a meio do voo

e o olhar da surpresa
preso no olhar do tigre

súbito susto

Chama-se Rosa e está no "dois sóis, a rosa / a arquitectura do mundo", Ed. Caminho, 1990

10.12.16

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 10-12-2016

Nada é simultaneamente mais simples e mais complicado do que uma espera. É simples porque não há nada que fazer; é um martírio porque não só não há nada que fazer como dependemos de terceiros.

W., o barco onde estou foi atingido por um raio antes de eu chegar. O equipamento eléctrico foi todo para o galheiro, claro, bem como a electrónica, as ferragens dos diamantes (dos dois lados) e talvez - não sabemos - o mastro e os brandais. Na melhor das hipóteses - se não tivermos de mudar o mastro - cem mil dólares; na pior duzentos. Os armadores tinham previsto gastar quinze mil.

Fiz um protesto aos seguros, claro. O caso era límpido: um raio na Flórida está muito longe de ser raro - é uma das regiões com mais raios do mundo, a seguir a uma ilha na Costa Rica - o barco estava atracado, os sintomas de raio não enganam. Os seguros começaram por aceitar, seguiram-se os trâmites habituais e toca de esperar uma resposta que só podia ser positiva.

Não foi: o barco estava seguro para as Caraíbas e portanto na Flórida estava fora da área de cobertura. Ou seja: não estava seguro.

Os armadores são inexperientes, não sabiam que um seguro marítimo tem áreas pela razão simples e irrefutável de que os riscos não são os mesmos em todo o lado. Lembraram-se, contudo, que a companhia de seguros lhes tinha exigido um Plano de preparação para ciclones (Hurricane Preparedness Plan em inglês, HPP daqui para a frente), o qual eles tinham naturalmente entregue e mencionava especificamente a Flórida como local onde o barco estaria durante a época dos ciclones.

É importante ver que a apólice tem a mesma data do HPP (23 de Junho. Isto é relevante porque a época de ciclones começa a 1 de Junho). Ou seja: a companhia de seguros vendeu um produto sabendo (ou devendo saber. Trata-se mais do que obviamente de um erro de um funcionário menor) que não era adequado às suas próprias exigências. Não há volta a dar-lhe: os seguros puseram o pé na argola.

Acontece que se há sector no qual a regra do caveat emptor se aplica sem a mais pequena flexibilidade é o dos seguros. Tem de ser assim: uma companhia de seguros que facilite sai do mercado em meia dúzia de meses.

Portanto neste momento o mar da companhia de seguros está a bater contra a rocha dos underwriters (que ainda por cima é a Lloyds de Londres, não muito conhecida por deitar dinheiro pelas janelas em casos em que não tem de o fazer). Duzentos mil dólares é uma pipa de massa para uma pequena companhia de seguros como a do W. Os armadores - que entretanto já gastaram o dobro do que tinham para gastar - disseram "acabou. Se quiseres ficar aí ficas com um per diem até se resolver o imbróglio dos seguros" (isto há aqui algumas elipses, mas o grosso da história é esta).

Decidi ficar por duas razões. Uma delas é que estes armadores já me tiraram de dois apertos e penso que agora chegou a altura de lhes pagar. O outro barco no qual trabalhei para eles acabou por ser vendido por uma soma ridícula devido à sua inexperiência (fazem-me pensar em focas bebés no meio de um bando de tubarões) e se tiverem de vender este ao menos que isso não se repita.

De modo agora só nos resta esperar que a companhia de seguros reconheça que errou. É como esperar que a Virgem Maria venha dizer aos pastorinhos que esteve numa orgia. Enfim, não tanto: ainda há uma probabilidade e é a essa que me agarro. Penso para a semana ter uma resposta definitiva.

Penso ou espero? Não sei. Para um marinheiro a clivagem entre pensar e esperar é muito muito ténue. Não haveria marinheiros se não fosse assim.

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Vou com o Ed do F.C. ao supermercado português de Pompano Beach. Uma hora de comboio (cada trajecto) para comprar morcela e vinho tinto decente. Há piores motivações.

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Quero definitivamente mudar de vida, mas a história do clima assusta-me. Não o aquecimento, benza-o Deus, que venha e depressa. Ao contrário: estão vinte e dois graus (diz a net) e tenho de pôr uma sweat shirt e meias porque estou cheio de frio.

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Ah, e café. Não esquecer o café.

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Ontem fiz beringelas recheadas no F. C. Ed diz-me que foi a melhor refeição do ano. Fiquei contente: é um gastrónomo, sabe de comida e tem sobretudo uma qualidade que aprecio cada vez que a encontro e infelizmente encontra cada vez menos - diz o que pensa. Quando cozinho e não gosta - ou não acha muito bom - diz-mo exactamente como me disse que aquelas beringelas estavam uma delícia.

Estavam: foram feitas com todos os éfes e érres, como se estivesse a fazê-las para uma senhora que me encantou. (Estava, apesar de ela não estar aqui. O encanto tem um raio de acção ilimitado, sempre teve).

A tapenade também não ficou má, mas sofreu um bocadinho com a má qualidade das azeitonas.

(Acrescentar azeitonas à lista).

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As previsões dizem que a frente vai ficar até segunda-feira, mas amanhã vem o sector quente e as temperaturas sobem. West Palm Beach fica a pouco menos de vinte e sete graus de latitude. Posso estar enganado, mas assim de repente devem ser uns dez a mais do que o que deviam ser. Ou então sou eu que tenho de me readaptar.

Não será difícil, penso. Ter frio é como não ter dinheiro: três meses suportam-se melhor do que três dias.

4.12.16

Morreu o Gotlib!

Diário de Bordos - Palm Beach Gardens, Flórida, EUA, 04-12-2016

Vim ao mercado (verde, naturalmente) de Palm Beach Gardens. Comprei aipo orgânico, claro, mais especiarias ao marroquino (chama-se Adriss ou lá perto), ovos directos da quinta. Há muita comida à venda e alguma deve ser boa (comi um dos melhores conch fritters de sempre), mas não se pode beber uma cerveja, beber um copo de vinho ou sequer provar um rum chamado Really Bad Rum de um produtor local (ou comerciante, não sei, não fui à página).

Para se habituar a viver aqui um gajo tem de se habituar a ser tratado como uma criança (hoje juro que vi escrito numa garrafa de água com gás num supermercado "product under pressure. Handle with care". Numa garrafa de água com gás das de três quartos de litro. "Handle with care". Não a comprei).

Fui comprar uma cerveja a uma loja perto do mercado e beber um café ao Dunkin´Donuts que lhe fica em frente. É sempre assim: uma coisa aqui, outra ali, uma terceira acolá. No fim tudo funciona: é um puzzle espalhado por quilómetros e quilómetros quadrados (o mercado fica a quase onze quilómetros da marina) e - como me dizia Del hoje de manhã -  pouco espesso, "ao contrário da Europa, onde tudo está muito perto e tem espessura".

O objectivo não é comparar a Europa aos Estados Unidos, obviamente. Seria como comer uma pera e achar que não sabe a ananás. É simplesmente habituar-me a isto, perceber os códigos, saber que o mais provável é ter de passar aqui mais dois ou três meses e mais vale saber ler o sítio onde estou.

Sendo que agora volto para bordo. Chega de leituras, descobertas e compreensões. Vou para terreno familiar. O resto é conversa de encher bexigas de porco.

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Já tinha ouvido falar de vacas e de galinhas felizes (aquelas numa garrafa de leite, estas numa embalagem de ovos). Hoje ouvi pela primeira vez a expressão "flores felizes". Eram girassóis, indubitavelmente bonitos, grandes, resplandecentes. Agora se estavam felizes ali em baldes em vez de na terra não sei, não tenho maneira de ajuizar.

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Alcatrão, cimento, palmeiras, relva, uma casa e um ou dois carros. É desta paisagem que Del e Steve dizem que não tem alma. Estão podres de razão. Nem alma nem corpo nem esqueleto nem ossos ou músculo. Não tem nada. Parece uma miragem, um desenho em três dimensões, um jogo de Lego, cenário para um filme de fantasmas, ilustração de um ensaio de Camus. Desde que não seja o Homem Revoltado, claro.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 03-12-2016

Fiz finalmente o chilli con carne. Ficou bom: pelo menos tinha chillies, muitos e variados. Um dos tripulantes não conseguiu comê-lo por demasiado picante. Os outros gostaram. Foi um jantar bastante agradável. Falei de mais e eles também, o que sempre equilibra. Excepto o que não conseguiu comer: não abriu a boca o jantar todo. Não sei se por demasiado picada se por não ter nada a dizer.

Ao todo foi um bom dia. Confirmei a minha ideia de que "os americanos não sabem comer" é tão falso como "a terra é plana" ou "na América quem não tem dinheiro morre na rua". De manhã fui ao "mercado verde" (entre aspas porque a tradução é literal) de West Palm. Acreditem se quiserem, mas comprei meio Époisses, uma baguette e um pão com azeitonas (meio porque o preço era proibitivo).  Para quem não sabe: Époisses é um queijo francês da Borgonha. Se alguém um dia precisar de uma prova da existência de Deus (eu não preciso; sei que não existe, mas isso não é assunto que me preocupe particularmente) deve comprar um Époisses affiné au marc de Bourgogne. Não era o caso do que hoje comprei (felizmente, porque se fosse não teria podido comprar nem metade, a julgar pelo preço deste) mas um Époisses é um Époisses tal como eu sou marinheiro seja a embarcação à vela, a motor ou a remos. Comi-o no mercado, sentado no canteiro de uma árvore cujo nome desconheço mas que dava sombra, coisa bastante necessária por estas bandas. Depois fui beber um copo de vinho ao Palm Sugar, não fosse o diabo tecê-las. A posteriori é melhor do que numquam.

A seguir vim para bordo fazer o chilli. Comecei por fritar bacon, na gordura resultante refoguei os pimentos, os chillies, as cebolas, a carne (bifes que de tão ecológicos davam para vegans; estavam a preço de saldo e cortei-os aos bocadinhos). Tudo isto separadamente. Depois juntei tudo na panela, mai-los tomates e montes de salsa, os orégãos, paprika (fumada, comprada no mercado no stand de um marroquino) e cominhos comprados ao mesmo marroquino sorridente. Deixei cozer quatro horas. A inovação foram os cominhos: usei sementes em vez de moídos. Esta mutação vai ser adaptada.

Amanhã há outro mercado e é maior. Vou ter de lá ir, claro. Ainda por cima tem a vantagem de ser mais longe, qualidade não despicienda porque a) controla o peso do que trago, ou seja b) o respectivo custo e c) me faz ir mais longe.

Na bicicleta, quero dizer. Não sei quanto tempo se pode resistir sem carta de condução aqui.

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De maneira é isto: um gajo espera e desespera e de vez em quando deixa de desesperar mas não de esperar.

Não seria mau ver o fim da espera, com ou sem desespero.

2.12.16

Não quero saber

Não sei o que é a solidão e verdade seja dita: não quero saber.

Deve ser uma mistura do que foi e do que vai ser, não é?

Definição: idade

Idade: cada vez mais ossos a doer e menos carnes a dar prazer.

Outra vez

Não sei ser amado mas tenho quem mo queira ensinar.

Outra vez.

Morrer e continuar vivo

Beber de mais é bom: é como morrer e continuar vivo. 

Há quem discorde, claro: pessoas que não sabem nem o que é morrer nem o que é continuar vivo.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 01-12-2016

Noites complexas. A ideia inicial era sair de bordo com a bicicleta, ir a Singer Island, daí passar a Palm Beach e depois voltar para bordo. Mal saí começou a chover. Pouco, mas a ameaçar muito. Fui a correr à loja de bebidas, comprei quatro miniaturas de rum e refugiei-me no Romana Pizza. Mal entrei começou a chover à séria.

A ideia (parte da inicial) era comer um Tiramisu, mas não havia. Havia Cannoli.

A chuva parou. Fui para Singer Island. Recomeçou a chover. Parei num bar. Aqui a cena do bar precisa de um post separado. Um americano obeso chef numa steakhouse - ou subchefe, precisou depois, quando lhe disse que ia lá visitá-lo u dia destes - cada vez que a polícia o manda parar (acontece parece frequentemente porque tem um Camaro SS, whatever that means) explicou-me que quando lhe pedem a carta de condução entrega-a juntamente com a sua licença de porte de arma escondida. "Eles têm que saber que estou à espera deles"). Isto e muito mais.

Deus sabe que não gosto de governos, mas daí até andar com armas porque "eles" vai um passo. Eles somos nós. Pelo menos nas sociedades democráticas.

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É um erro andar de bicicleta quando se está grosso, a partir dos cinquenta e nove anos de idade. Ou cinquenta e oito, vá.

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Esperar é pior do que morrer. Sei porque já experimentei os dois.

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Não há uma ponte entre Singer Island e Palm Beach. Ainda bem que choveu.

1.12.16

Confrangimentos e sem frangimentos

Há uns anos tinha uma série de posts nos quais brincava com algumas das minhas obsessões: o excesso de duches, a insuficiência de lavagem de dentes, o engraxar dos sapatos (sim, houve tempos em que andava com sapatos de engraxar), as gravatas (ditto).

Os posts eram mais ou menos assim (só encontrei este, mas há muitos mais):


Normas básicas de higiene

Aquando do douche trimestral não se deve esquecer, nunca, de se ensaboar bem a parte de trás dos pavilhões auriculares. Aliás, já o meu irmão mais velho dizia, sempre disse: "só há dois sítios que não te deves esquecer de ensaboar, nunca: o outro é a parte de trás dos pavilhões auriculares" (quando eu lhe retorquia que isso totalizava quatro sítios a ensaboar e não dois ele fazia um gesto largo com a mão - que muitas vezes encontrava, infelizmente, a minha cara no caminho - e perguntava teatralmente "que importa?". Deve ser daí que vem a pouca atenção que atribuo aos pormenores).

Ensaboar a parte de trás dos pavilhões auriculares é uma operação delicada que exige algum treino - a menos, claro, que a pessoa não se importe de misturar champô com sabonete; atitude essa que eu condeno, absolutamente: para além de ser uma espécie de pleonasmo emulsivo, indiciador sem dúvida de uma histeria latente, o sabonete pode, em alguns casos bem ilustrados pelo saudoso prof. Pfeiffer (sim: bisavô da Michelle) anular o efeito do champô -.

Dado que o regime de 4 douches por ano não fornece uma base prática suficiente para se treinar, sugiro aos meus digníssimos leitores que treinem os movimentos a seco duas ou três vezes antes de entrar na banheira. Em seis meses (ou dois douches) terão adquirido a capacidade básica para executar correctamente esta fundamental operação. Também se pode praticar em macacos, claro: aliás, até combina muito bem com o pentear dos bichos. Infelizmente esta prática está limitada aos guardiães de jardim zoológico e (de certa forma) a quem cuide de adolescentes, políticos, parlamentares e pessoas desocupadas.

Tenho uma extensa prática de douches (posso garantir que já tomei mais de uma centena, ao longo de toda a minha vida - se incluirmos os da infância, claro - ) e domino relativamente bem a técnica de ensaboamento da parte de trás dos pavilhões auriculares; contudo, como a minha aprendizagem foi empírica tenho uma certa dificuldade em transmiti-la. Sugiro se adopte o método físico mas eficaz do meu irmão mais velho, que Deus tenha e guarde com Ele bem guardado.

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Acreditem se quiserem, mas a um desses posts (não foi este, mas o tom era o mesmo) uma leitora reagiu no primeiro grau: acreditou que eu realmente só tomava quatro duches por ano (apresso-me a esclarecer os leitores - e sobretudo as leitoras - que não é verdade. Tomo pelo menos cinco, alguns anos até seis).

Orgulhosa, segura do seu valor de guardiã da higiene pública linkou o post (era na época pré-FB); poucos dias depois tinha uma série de comentários e trocas de mail que iam do furioso ("seu porco, não tem vergonha?") ao altruísta ("Luís Serpa, você devia lavar-se mais vezes, um duche de três em três meses pode trazer-lhe complicações para a saúde").

É confrangedor, não é? É.

Adenda: editei ligeiramente o post inicial.

Diário de Bordos - West Palm Beach, Flórida, EUA, 30-11-2016

Hoje pus, outra primeira vez, uma bicicleta no suporte de bicicletas do autocarro. Não é uma experiência por aí além, é de uma simplicidade assustadora. Experiência, essa sim, é andar nos autocarros americanos (enfim, americanos não. Em S. Francisco não eram assim). A primeira coisa que se vê é a clivagem racial: 95% dos passageiros são negros. A segunda é da ordem da saúde mental: tanto dos noventa e cinco como dos cinco restantes uma grande parte ou é doente mental ou tem problemas de droga, bebida ou sei lá, de relacionamento com o mundo exterior. O resto refugia-se nos telefones portáteis, abençoados sejam.

Eu olho, gosto de olhar. Hoje entrou um branco com a camisola de uma marina que fica entre a minha e a cidade. É uma marina reservada a mega-iates, mega-cara, aposto que o homem - cabelos encaracolados, tímido, olhos castanhos grandes, bonito - chegou aqui há pouco tempo e ainda não comprou um carro ou porque está ilegal ou porque ainda não recebeu o primeiro salário. Também gostei da condutora do autocarro, tão simpática, esperou que atravessasse a rua e deixou-me pagar só um dólar em vez dos dois habituais porque eu não tinha troco. Quando me vim embora disse-lhe "gostaria que os seus colegas fossem todos como você" e ela respondeu "obrigado, sir" e sorriu.

Não gosto de West Palm Beach, não sei se algum dia gostarei - espero que não, seria sinal de que estaria num lugar ainda pior - mas gosto destes momentos de empatia, de humanidade.

Que bom é andar de autocarro.

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O ping-pong com os seguros continua. Esta tarde mandei um puxanço ao qual eles não vão conseguir responder. Quem me dera fosse definitivo. Esperar é uma tortura, com ou sem fogão.

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Hoje não fui ao Catch, vim ao Sugar Palm, de onde escrevo. É mais barato e mais feio e a comida não é tão boa, mas na verdade tudo isso importa pouco. A única coisa que importa agora é pôr aquele barco em condições.

Gosto de refits, de trazer à vida barcos que parecem mortos.

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Comecei a trabalhar nas fotografias. Faltam-me dezenas delas, incompreensivelmente. Pode ser que um dia eu perceba porquê. Isto é: porque é que entre mim e a fotografia há esta ponte partida.

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"Em todos os casais há um que ama e outro que se deixa amar", dizia não sei quem. Às vezes pergunto-me se nessa dicotomia não serei dos que nasceu para amar e não sabe ser amado.

É possível, embora não desejável. Sou.

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Sonho com a simetria como um cego com a luz.

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Isto dito, sou o que sou. Detesto o que sou mas não saberia não o ser, mesmo que quisesse. Não quero: prefiro os diabos que conheço.

E Deus sabe que aos meus conheço-os bem, tão bem como se os tivesse feito.

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De uma coisa não tenho dúvidas: estou sozinho há demasiado tempo. São oito da noite e bocejo como se fossem quatro da manhã.

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Uma coisa mágica nas casas de banho dos restaurantes americanos é: nunca falta papel para as mãos. Não sei como é que eles fazem isto. Em Portugal quando há papel para as mãos num enrolador um gajo faz uma festa e chama o rei de Espanha ou o Papa (o que estiver mais à mão de semear). Aqui nunca falta.