29.4.19

Palma, subir na vida: Fragmento

(Mas antes devo dizer que tive um dia de merda e que se essa merda tingir este post é merda do dia, não é merda de mais lado ou lapso nenhuns.)

Comecemos pela cidade, adorável. Poderia viver aqui e pensei nisso muito tempo. Agora menos, falta-me a cultura, aquela efervescência cultural de Lisboa, a família de Genebra ou a perspectiva de futuro de Mértola. De resto é linda, é um paraíso para quem anda de bicicleta - oiço menos buzinadelas em Palma num ano do que em Lisboa numa semana - e há dinheiro, o que significa que as miúdas são giras, a comida boa, as livrarias bem recheadas e as ruas limpas.

Os indígenas são sui generis, mas à custa de não te dares com eles aprendes a conhecê-los, respeitá-los e até, em alguns casos mais raros - apreciá-los. São fechados como ostras - mas curiosamente não chauvinistas como os catalães. Ignoram-te, simplesmente. Não se dão sequer ao esforço de te detestar ou sentir sejo o que for a teu respeito. Aqui, os estrangeiros dão-se com estrangeiros. Podes viver vinte anos em Mallorca sem aprender espanhol e ninguém acha isso estranho.

Há duas Palmas: a dos locais (que inclui turistas, "expats", "yachties" e outros palermas) e a dos nómadas, a dos gajos que sabem que não são daqui mas se estão nas tintas porque de qualquer forma tão pouco são doutro lado. A minha é esta, claro: uma cidade onde flutuo sem raízes mas com afectos, sem futuro mas com passados. Vivo numa guesthouse muito bonita, que vou ter de deixar esta sexta-feira porque os preços vão subir; eu subo também, para o segundo andar da mesma casa, o andar rasca. É a minha forma de subir na vida.

AMDG

Não sei se é legítimo um ateu como eu pensar AMDG quando um sublime (ou será divino?) par de mamas vem sentar-se na mesa em frente. Seria de certeza se se tivessem sentado à minha frente na mesa. Agora na mesa em frente não sei. Penso que sim. AMDG.

PS - Se contiverem silício, então as laudas vão para a indústria quimica e para a medicina moderna.

PPS - Na mesa a seguir um senhor velhote (mais dez anos do que eu? Qualquer dia não poderei chamar-lhe velhote) partilha o meu fascínio e tenta trocar olhares cúmplices comigo sem que a senhora ao lado dele veja.

28.4.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-04-2019 / II

Door 13: um rapazinho com voz de rapazinho (bem educado) a passar de Lou Reed para Leonard Cohen e a assassinar os dois, mas estranhamente ainda não me chateei o suficiente para me chatear. Limito-me a pensar como eram as canções originais (Walk on the Wild Side e Hallelujah) e oiço tranquilamente, sem solavancos. O escorrega funciona bem.

Funcionaria melhor se me levassse a St. Johns, nas USVI, beber Dark & Stormies bem feitos; e daí ao Soggy Dollar, em Jost van Dyke, beber Painkillers até ficar a voar como o Superman só que um bocadinho de lado e aterrar em Oakland para beber Mai Tai até me esquecer de querer voar.

O S. do Door 13 foi simpatiquíssimo, contente por me ver de novo e tudo. Não ouvi três quartos do que ele me dizia. Qualquer dia estarei surdo do ouvido direito e pergunto-me como vou lidar com isso? Dizer às pessoas que sou surdo, obrigado? (Como faço com o esquecimento dos nomes...) Não sei. Por enquanto o problema não é a surdez, é o acufeno. Mais uma ponte a atravessar quando lá chegar.

O rapazinho bem educado continua na sua "desconstrução". Bob Dylan já por lá passou. Agora é Wish You Were Here. Tem pelo menos um mérito, mas preciso de o identificar. (Não é ironia. Isto não é mau de todo. É só esquisito).

O Dark & Stormy está uma merda, mas é grande, vá lá. O gajo põe canela nisto. Canela num Dark & Stormy! Por menos do que isso pessoas morreram. Eu não morro, mas também não vôo. Bebo-o tranquilamente e penso que esse é o melhor advérbio de modo da língua portuguesa: tranquilamente.

Abençoadamente. Solitariamente. Silenciosamente. Há tantos pretendentes ao titulo.

O Alexander salvou a honra do convento. Não há natas, mas ele (o Giovani, não o outro, mais recente) substituiu-as por Baileys e a coisa funciona.

Isto é: acrescenta mais um destino ao meu vôo: o Procópio, em Lisboa, ao Jardim das Amoreiras. O barman chama-se Luís. Com o outro Luís, da falecida Casa do Largo e com o Sr. Miguel do Pavilhão Chinês integra o (meu) pódio no concurso inter-galáctico de barmen.

O rapazinho bem educado sentou-se à mesa das italianas bêbadas e chatas. Há muitos anos pensei que morrer de Sida seria uma boa forma de morrer e fiz tudo o que pude para atrair os respectivos vírus (menos injecções, claro, é coisa à qual nunca me habituei). Por uma razão qualquer aquilo não funcionou, os vírus declinaram - simpaticamente, acrescento agora - o meu convite e o exercício custou-me um número incalculável de noites com prostitutas de rua (isto é mentira. Estava em noite de choradinho. Descobri depressa que afinal o caminho para o Sida não era assim tão bom), uma noite de castidade com uma rapariga que ainda hoje deve estar a perguntar-se por que raio de carga de água a recusei, alguns dias de ansiedade quando fiz o primeiro teste (negativo. Os outros a seguir confirmaram, mas já não estava ansioso) e - sobretudo - a decisão de nunca mais voltar a deitar-me com uma mulher para a qual precise de camisa-de-Vênus. Seja ela quem for, incluindo italianas bêbedas, por bonitas que sejam.

São.

A música no Doir 13 deixou de ser ao vivo e melhorou bastante. Não me interpretem mal: o rapazinho não era mau. Era assim assim. Tem um chapéu à Neil Young. A italiana (só vejo uma. Não sei para onde foi a outra) está demasiado bêbeda para saber o que quer. Eu não estou e sei: ir para casa.

........
À saída tive direito a uma degustação de runs. Dois Mount Gay que confirmaram o que sei deles; um rum da Reunião de que não gostei, por demasiado doce; um Plantation de Barbados: fraude simples; e um Clément branco, delicioso. Esta ideia de que só os runs castanhos é que são bons devia ser revista.

Não o será tão cedo, imagino. Ainda bem.

27.4.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-04-2019

De que é feita uma noite em Palma? De uma mistura de vinho tinto, Palo, vermute, hierbas secas, de Sifoneria, Cala Seu, hoje entrou um pouco de cerveja - é raro mas acontece - o medronho da Sandra também entrou definitivamente no circuito, os vermutes (antes) e (agora também) as tapas do Can Rigo, a Bodega Belver, o Moltabarra, a 5ª Puñeta, tudo isso de bicicleta por estas ruas senhoriais. Não esquecer o Ca na Chinchilla, o Antiquari - esquecer este seria como esquecer a mãe num texto sobre a família - a Biblioteca de Babel, o bar Rita, onde hoje comi uma Serranita deliciosa e vi que a miúda do bar (e acessoriamente mulher do patrão) é ainda mais bonita do que eu a recordava e já era muito, da Sifoneria, outra vez, sempre. A U. é daquelas miúdas que um gajo leva ao altar antes de levar ao hotel, tão diferente fisicamente da S. e tão igual no resto, alemã até ao tutano e aqui há tanto tempo... Hoje passei por um sítio simpático, estava uma senhora a tocar guitarra e a cantar com aquela voz que numa mulher faz de mim um bocadinho de manteiga ao sol, parei e sentei-me, estava lá o D,, um baixo que gosto de ouvir. Pedi uma cerveja - hoje a noite incluía-as - e logo a seguir começou uma cena de pancada, muito nada de especial, só uns empurrões mas vim-me embora. Não me apetece estragar a noite com dois idiotas bêbedos à porrada.

E o dia, de que foi o dia feito? Comecei a combinar com o I. a minha próxima ausência, é uma merda que me chateia mas tenho de ir, isto de um gajo tentar respeitar a palavra dada é uma porra, a palavra empobrece, não nos torna mais ricos (isto é um choradinho indecente que para começar não se aplica de todo a este caso e para continuar é irrelevante e só aqui ficaaté à próxima revisão). Daí fui para a marina pôr o plug no esgoto do tanque de águas negras, foram precisos dois mergulhos, a porra da água está fria - já sabia - e o casco já está todo cagado - idem, está ali parado há mais de seis meses - depois fui ao mercado comer pasta e vim para casa dormir a sesta.

De que são feitos as noites e os dias, de que são feitas as horas, de que são feitas as coisas, em itálico por ser demasiado abrangente, este coisas refere-se a tudo o que um gajo faz e não fez, pensa e devia pensar, aos objectos, aos erros - tantos, meu Deus -? De que é feita esta merda toda?

Não faço ideia. Limito-me a percorrê-la, de tão habituado ao cheiro até gosto dele, tento fazer poucos solavancos, o menos possível, é preciso que isto seja fluido e bom.

É, verdade seja dita. É bom.  Confrontados ao real não há pessimismo que ganhe nem tristeza que se justifique.

PS - ou eu me engano muito ou isto vai tudo acabar no Door 13.

26.4.19

Do rum e outras histórias; (Fragmento)

(...)
Os runs falam línguas, como as pessoas e os papagaios. Há-os anglófonos - os meus favoritos -; francófonos - os mais elegantes e complexos; - hispanófonos - os piores, no sentido de serem os que têm menos marcas apreciáveis; - e lusófonos - não são runs. Só quem atenta mais às raízes do que aos resultados lhes chama rum -.

Os anglófonos são masculinos e os francófonos femininos. Os espanhóis são simplesmente maus, salvo algumas raras e honrosas excepções. Dos outros não se fala, por educação e pudor (com a potencial excepção de meia dúzia de cachaças, demasiado difíceis de encontrar fora de Minas Gerais).

De todos, o Clément é sem dúvida um excelente expoente dessa invenção francesa que é o rum agricole. Deve provar-se também o J.M., menos redondo; ou o Damoiseau, da Guadeloupe, forte e racista (é verdade: não se deixa beber por lábios inocentes). Dos ingleses sugiro os El Dorado todos (sendo que o de 15 anos é uma das provas da benevolência de Deus); e o Mount Gay, que é o Johnny Walker dos runs: decente e barato (pelo menos o corrente). Nos outros: o Flor de Caña, bom em todas as idades e muito bom nas mais velhinhas; o Zacapa, só nas velhas; e o Botran, que só provei uma vez e do qual não posso fazer uma apreciação definitiva, mas pareceu-me pelo menos aceitável.

Nessas bandas deve encontrar-se isto tudo. Mai-lo Trois Rivières, que devia ser dado na escola primária para ensinar os putos a distinguir o sublime do meramente excelente; ou - na categoria brancos, jovens e inescapáveis - o Habitation La Favorite, que se deixa beber como uma puta apaixonada se deixa foder: como se fosse a primeira vez.

........
O calor voltou a Palma, a reboque das cores. Contudo, as pequenas ainda estão de inverno; os maiorquinos são desconfiados e não se mostram sem ter a certeza do que os espera. Elas ainda mais.

........
Recuperei a carta de condução mas não veio com qualquer formação em automóveis. Continuo o mesmo ignorante, agora com uma janela aberta para as diferenças de qualidade. Pouco importa: se um dia tiver dinheiro para comprar um bom automóvel não o compro. Preferirei um barco.

(...)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-04-2019

Dizem os entendidos que não se deve misturar uvas com cereais. O medronho - abençoado seja - não é um cereal e pode ser bebido ao mesmo tempo do que tudo, incluindo boa música e um ambiente porreiro.

Estou na Sandra (salvo seja), na Tasquita da Esquina, que tem bom medronho, boa música, simpatia para dar e vender e quase uma dúzia de boas fotografias, feitas pela supra-mencionada senhora.

Sou um verdadeiro pacóvio: refiro-me a tudo pelos nomes das pessoas e não pelas respectivas designações comerciais. Reflexo de marinheiro mais do que pacóvio: só as pessoas nos interessam. O melhor navio do mundo com um capitão que não lhe está à altura nada mais é do que uma jangada mal-amanhada. E uma destas bem tripulada fica um paquete de luxo.

.........
O meu plano para amanhã de manhã é: dormir. Devo dizer - ou melhor, digo-o com um prazer indelével - que já consigo dormir até tarde, às vezes até às dez da manhã; e quando o faço os dias já não me parecem perdidos. Não sei o que é que mudou - se fui eu se foi o sono se os dias - mas algo não só não está igual como está melhor.

Depois vou ter de mergulhar na marina para pôr um plug (como se diz em português?) no passa-cascos do esgoto do tanque de águas negras. O tanque está vazio, mas a marina é um gigantesco tanque de merda; não faz mal. Chateia-me mais o frio da água. Para a merda basta manter a boca fechada, mas para me defender do frio não posso fechar a pele.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-04-2019

Seria preciso desatar para aí a escrever sem parar, mas é tarde e estou com sono. Há que ser sintético e perguntar-se porque é que esta noite foi tão maiorquina, de onde me vem a falta de vontade para tudo em geral e para nada em particular, por que raio de carga de água o jazz é tão mau nesta cidade, porque é que a L. tem uns olhos tão bonitos - terá ela alguma coisa por trás deles? - porque continuo a ter surpresas do meu P. adorado, porque consigo ouvir Hildegarde von Bingen sem jamais me cansar?

Não tenho resposta a nenhuma destas perguntas e verdade seja dita, é-me quase dolorosamente indiferente.

.........
Há pessoas que vão para os palcos cantar, apesar de cantarem mal; outras cantam bem e é um sarilho para as convencer disso.

Tem mais a ver com a auto-imagem do que com o talento, não é?

.........
E com a persistência. Eu tenho muita. Sou um verdadeiro camelo de persistência.

24.4.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-04-2019

Lembro-me vagamente do post que hoje "escrevi". Vai entre aspas porque não o escrevi. Ditei-o simplesmente, para aquele bloco-notas interior cujas folhas são feitas de água e vento: eu bem dito e ele mal escreve.

Enfim, ¡qué vaya!, lembro-me do princípio: era um post sobre as cores, o verde, o amarelo e o azul, cores que mantêm entre elas relações profundas (de amizade, claro). O problema é que para se fazer amarelo com o verde precisa-se do encarnado e esse anda ausente, talvez pelas comemorações do feriado que aí vem (para quem vive em Portugal. Nós - emigras, vagabundos, nómadas, o que quiserem chamar-nos - não temos direito a cravos. Não é bem verdade. Estivesse eu em Portugal e trabalharia na mesma, porque não há cravo que chegue aos calcanhares do P.)

Isto é: há. Qualquer cravo chega aos calcanhares do bote e até passa para cima, mas o problema é esse mesmo: é que são tantos que um gajo já nem os vê. É como perguntar a um peixe se ele pensa na água. Duvido.

De maneira fico-me com as cores deste dia de Verão: o azul do mar - não sei porquê, voltou a ficar azul. Até agora andava assim meio tosco, um azul preguiçoso -; o verde da vegetação - esse sei porque ficou tão verde de repente: por causa da água -; e o amarelo do Sol. Era isto.  Pode fazer-se verde misturando azul e amarelo, qualquer estudante de pintura sabe, como de resto qualquer botânico: o azul da água e o amarelo do Sol fazem um verde porreiro.

Vi muitos desses verdes, em Quelimane, no Burundi (onde chovia que era uma alegria, aquilo não era bem chuva, era uma fecundação), no Zaire, no Panamá, sei lá... E na Costa Rica, claro. Em Quepos vi a gama toda de verdes ao mesmo tempo, chegámos de madrugada e parecia que Deus se tinha esquecido das outras cores todas, vi uma parede de verdes como nunca mais voltei a ver.

Hoje não, de certeza. Os verdes aqui são mais recatados. Mas a mistura de verde, azul e amarelo estava tão bonita que nem sequer pensei em Quepos, só pensei "isto é tão bonito!", assim mesmo, com ponto de exclamação e tudo.

Isto é tão bonito! É tão bom poder repetir esta frase todos os dias, tantas vezes que "isto" deixa de ser só "isto" e passa a tudo...

.........
Escrevi muito mais coisas, mas o bloco-notas é lixado e não retém um milésimo do que lhe dito todo o dia, todos os dias. Sorte para quem lê, azar para quem escreve.

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Assim, pela via do prazer, da felicidade e da calma escorrego pelo tempo dentro. Tomara dure até ao fim.

23.4.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-04-2019

O dia derramou-se em mim e agora esparramo-me eu na cama, como naquelas intermináveis filas de dominós em que cada peça faz cair a seguinte. (Não fizesse eu parte da fila e seria assim; faço e não é.)

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Ver tudo a andar de novo é inebriante; imagino que as folhas sentem o mesmo quando lhes chega a primeira seiva da Primavera e sabem as flores para breve. Ou o primeiro sol a uma família de ursos hibernados. Ressurreição: a Páscoa não podia ter calhado em data mais adequada.

Estavamos a avançar ao pé coxinho. Agora, pelo menos, temos os dois pés no chão.

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Por isso chego a casa e tudo o que vejo é uma cama, uma imensa cama em pleno centro da cidade, para onde me posso atirar como se o relógio se tivesse adiantado meia dúzia de horas.

Hoje foi um dia tricotado, linha a linha. Nem me chateio com a dor de cabeça quotidiana: se um dia ela acabar (espero bem que sim) enviarei um ramo de flores gigante e uma garrafa de vinho aos senhores que fabricam Paracetamol.

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Há dias assinei um contrato com um editor. É inegavelmente bom, apesar de não ser daqueles contratos como sonhamos. Mas a casa é boa e séria, não daquelas "passa-para-cá-o-guito Editora". Pouco a pouco as coisas vão tomando forma.

Uma vida tricotada linha a linha, é o que é. Qual dia, qual quê.

Sobreviver

Deus fá-lo-ia, decerto, se existisse: dir-te-ia sem palavras o que eu me mato a dizer-te alto e bom som.

Passemos. Nem Ele existe nem tu ouves; eu sobrevivo. Na cruz, mas sobrevivo.

21.4.19

Chuva e outros agravos

Pergunto-me se de um dia desagradável se poderá dizer "este dia está a chover-me em cima" como se se dissesse "este gajo cuspiu-me em cima".

Questão de espaço e harmonia

Lembrar-me dos teus cabelos chovendo no meu ventre não mos traz de volta, nem eles nem ele. Já foi. O ventre no qual reposaste não existe, tal como o desejo que a ele te conduziu. Antes assim. Apreciemos a harmonia, por muito que ela faça sofrer. A mortificar-se, melhor um do que dois: esta cruz é pequena e solitária, não tem espaço para mais.

Neutrão, abismo

Em breve partirei de Palma. Acrescento entredentes "se Deus quiser" e penso que trocar-se uma cidade que se adora por um sítio que nunca se viu é mais ou menos como tentar não se pensar na mulher que se ama: sabe-se que estão lá e lá ficarão, núcleos de átomos dos quais não se é mais do que um neutrão, na melhor das hipóteses. Já "se Deus quiser" é a manifestação espúria do desejo de que o abismo não comece amanhã. Um pedido de clemência, vá lá: vou-me embora / não penso nela, mas tu, abismo deixas-me continuar vivo?

Da relatividade das pragas e respectiva ubiquidade

O nosso tempo tem pragas como o terrorismo muçulmano, as politicas identitárias ou o politicamente correcto. Coisas que nos envenenam os dias e nos fazem duvidar do conceito de progresso.

Nenhuma dessas pragas, porém, chega ao calcanhar da ubiquidade das pizzarias, do Nespresso e dos animais de estimação.

Quando?

À sua volta, o mundo refazia-se diariamente. Porém, ao fim de tantos anos ele aprendera a ver o sentido das mudanças, antes imperceptível. No fundo, um funil é apenas a forma portátil de um turbilhão, de um remoínho. Aprender a ler quando se transvasa um líquido qualquer para um recipiente mais pequeno, com a ajuda desse precioso instrumento; sobreviver quando no estreito de Messina um gigantesco remoínho nos agarra a embarcação pela quilha e dela faz um pião; usar da vida os turbilhões como as crianças um escorrega no parque infantil - formas diferentes dessa coisa una, indivisa que se chama vida? Ou formas fundamentalmente semelhantes de uma vida múltipla? Pouco importa. Tudo toma forma, pouco a pouco.

........
A verdadeira questão não é a vida. É a morte, é saber quando passamos para o lado de lá da linha: ainda estaremos a usar os anos de vida, ou já estamos do outro lado, a consumir os que a morte tão generosamente nos emprestou? Onde situar essa linha? Os árabes diziam: "plantar uma árvore, escrever um livro, fazer um filho". Sabe a pouco, ou temos a mania das grandezas e não nos apercebemos de que tudo o mais é fútil, é vinho num funil, seio bonito que o desejo nos faz esquecer quantas vezes acariciámos, lábios já tão beijados... Para que queremos mais?

Começamos do lado da vida; um dia passamos para o da morte. Não perguntes porquê ou como. Pergunta quando.

20.4.19

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 20-04-2019

O último de cinco dias em Genebra: logo à noite estarei em Palma, num dos meus outros mundos. Em época de reconciliações, acrescento uma a esta lista feliz: vi um programa de televisão que me encheu as medidas e me trouxe à memória um debate, antigo mas sempre válido, ao qual o meu interlocutor exasperado pôs fim dizendo-me "tu defendes a televisão porque não a vês". É verdade, Ph., mas também é verdade que quando a vejo (e não me refiro só ao canal Mezzo, que não é bem televisão, é outra coisa) sei que tenho razão: não se deve confundir o medium com a mensagem, diga o McLuhan o que quiser.

(O programa chama-se La Grande Librairie. A quem fale francês e se interesse pelas religiões e pelo seu papel no mundo moderno sugiro intensamente que o veja. É uma hora e meia de jouissance. Atenção, só está disponível até dia 26 deste mês).

Enquanto ouvia o programa perguntava-me quem teríamos em Portugal para replicar um debate igual e a resposta é o nome do outro. Não há selvagens de colete amarelo, encarnado, preto ou seja qual for a cor que consigam fazer esquecer a qualidade da vida intelectual francesa.

........
(Cont.)

19.4.19

O sentido da vida

Acordo em Genebra e apercebo-me de que à lista das minhas cidades (no sentido lato) - Lisboa, Palma, Mértola - é preciso acrescentar esta.

História, geografia e ciência do caos: ainda há quem procure o sentido da vida? Comece por aqui.

18.4.19

Declaração de intenções

Um blog no primeiro, segundo e terceiro graus sobre poesia, política, economia, cozinha, navegação à vela, afectos, literatura, cinema, amor, restaurantes - numa palavra, Maiakovski: "Honorés camarades de l'avenir, je vous parlerai du temps et de moi".

Foi esta a primeira declaração de intenções do Don Vivo. Continua válida. 

"Conheço-os. Sou um deles"

A ideia original era traduzir a história, mas é linda de mais, é a melhor descrição de um marinheiro que vi até hoje. Vem num livro chamado "Secretos del Mediterráneo", de Lluis Ferrés Gurt: o capitão de uma embarcação luta denodadamente contra um temporal. Quando se apercebe de que vai perder agarra-se a um estai e grita para o vento "Reconhecerás pelo menos que te entrego o meu navio em bom estado".

[Adenda: o título do post é uma tradução desajeitada de um verso que no original inglês diz "I know them. I am one of them". É óbvio que a repetição do pronome é importante e que eu devia ter resistido à mania de não usar o inglês excepto em casos de força maior. Este é inegavelmente um desses casos.]

Passos, palavras

Pôr palavras umas depois da outras com o mesmo cuidado - e o mesmo escrutínio - com que miúdos púnhamos um pé à frente do outro para medir qualquer coisa, com uma concentração de vida e de morte.

De onde vêm? Quem deu o primeiro passo? Quem primeiro marcou no chão de terra uma dor, uma alegria ou esperança, um sorriso, a fremência do primeiro beijo, a brisa que antes de te acordar te agitou os sonhos e os misturou todos, como se a paleta de aguarelas que seguravas se tivesse entornado, como se a chuva?

Os teus passos são delicados; palavras de quem sabe os perigos do caminho, os precipícios, as zagaias que não espreitam mais ninguém se não tu. Um a um, uma a uma, vida a vida.  

O resto guardas na memória. Ou melhor: nas memórias. As que já tens e as que um dia terás, quando se te acabarem os passos, as palavras, as vidas.

17.4.19

Moicanas

As donas da livraria-café feminista-alternativo-LGBTQIYZWQETEAX onde gosto de ir parecem homens.

As lésbicas são os últimos machistas.

Para os dois

Percebes, Pedro - Bruno pronuncia claramente o meu nome, sublinha-o,  porque no fundo se dirige a si próprio e aquele Pedro na verdade é Bruno - o estúpido desta situação é que se ela aceitasse o meu amor não precisaria de me amar. O meu amor por ela chega para os dois. 

15.4.19

Demiurgo

Poema do dia:

Eu purgo o demiurgo que há em mim. 

14.4.19

Diário de Bordos - Sneek, Friesland, Países Baixos, 14-04-2019

Neste país as mulheres ou são muito bonitas ou muito feias; não há meio-termo. Os homens são teimosos como mulas e altos. Parecem máquinas, eles e elas, mas desenhadas por deuses diferentes.

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Países Baixos é mais bonito do que Holanda e igualmente impreciso. Devia ser Países Flutuantes: há água por todo o lado. Por vezes pergunto-me se não será a única coisa flexível que têm, mas depois apercebo-me de que não os conheço o suficiente para fazer este tipo de julgamentos.

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Vamos todos embora, repatriados. O estaleiro só fez merda, a mulher do armador está doente e ele quer ficar aqui sozinho a lidar com o estaleiro. Há poucas asneiras que aprecio mais do que esta: preciso de uns dias em Genebra e esta é uma ocasião que não podia vir mais a calhar.

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Está frio, mas as esplanadas estão cheias: as pessoas preferem o sol ao calor. Compreendo-as, mas pouco tempo depois de me sentar ao "sol" (aspas porque é um manifesto exagero) venho para um café beber copos e escrever. Não sei se a ordem é esta, se a inversa, ou se há sequer uma ordem. Acontecem simultaneamente.

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Uma amizade que nasceu epistolar (não nasceu, mas pelo menos cresceu) ressuscita pela mesma via. Não se deve subestimar o poder da palavra escrita, mesmo que o universo de leitores seja uma pessoa: há leitores que valem um planeta, uma vida.

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O clima de Portugal é o pior inimigo dos portugueses: por causa dele aceitamos os políticos que temos.

Admiração, inveja

A pergunta foi feita uma vez com uma razão específica, mas é universal: um amor que nasce da admiração conta como amor? A igualdade é a base de todos os amores, a sua condição de sobrevivência, de durabilidade, etc. Mas: a admiração coexiste com a igualdade? Podemos admirar-nos entre iguais?

Devemos. Entre desiguais a admiração tenderá inevitavelmente para a inveja e não é bonita.

13.4.19

Diário de Bordos - Sneek, Friesland, Países Baixos, 13-04-2019

Sábado amanheceu com um nevão, chuva e ainda um pouco mais frio do que o costume, o trabalho do estaleiro está péssimo, vamos todos voltar para casa, não só não chego a Paris de barco mas nem sequer saio da Holanda. Este é o plano por agora, pelo menos. Vamos ver o que amanhã nos reserva.

De garantido, só o frio e a chuva, neve e granizo a alternarem com um céu azul de morrer, estes holandeses de quem o sorriso esconde uma teimosia ilimitada e as holandesas, obras ora de Deus - quando são bonitas - ora do Diabo, caso contrário: não há meio termo, ou são lindas de cegar ou feias de não se poder olhar para elas.

O que fica do que foi?

Explodes-me as noites, mulher, transpiras-me os sonhos, envolves-me as mãos, monopolizas-me o querer, desvias-me dos olhos a luz.

Dos dias que vivi sobras tu.

Sorte, pequena

Uma frase bem escrita, um café bem feito, um chá saboroso, uma miúda gira e simpática que se senta ao nosso lado no avião, uma viagem bonita à nossa espera.

É tão simples, não é? Fazer um café decente, alinhar meia dúzia de palavras de uma forma harmoniosa, agradecer à genética ter sido misericordiosa com a vizinha (e já agora aos pais, que a beleza mal-educada não passa de desperdício), ter sorte.

Não falo de sorte grande, lotaria, toto-milhões; mas sim da sorte simples, lhana, sorte nem grande nem pequena, daquela de nos perguntarmos: "Ontem o dia foi bom e hoje foi um bocadinho, um milímetro melhor. Como será amanhã?" e estarmo-nos nas tintas para a resposta.

10.4.19

Fluição

Não é só o frio, abominável: oito de máxima,  um de mínima (vá lá que são acima de zero. Amanhã baixa para um negativo). O pior não é o frio. É eu gostar disto e não saber como vai ser quando não houver mais. O bote não está pronto, a tripulação é porreira, a Holanda está cheia de água em todo o lado e de miúdas giras idem, hoje comi um papet vaudois como nunca comi, no sábado largamos se o tempo estiver bom, o bote é lindo e porreiro, parece uma miúda gira apesar de não ser muito miúda, é como uma que conheci há uns anos, trabalha num banco e é gira que se farta, hoje experimentei uma bicicleta eléctrica pela primeira vez e é assim que os dias vão correndo.

Correndo não: fluindo.

8.4.19

De onde sou

Aprendemos muitas coisas em Palma, basta querer. Eu quero, prometo, mas só as coisas que não conheço. As outras ponho no alforje, já basto carregado.

De modo temos de nos quedar pelo jantar, pelas coisas que fazem de nós humanos, por esta difusa sensação de pertença. Sou daqui; sou de todos os sítios onde já fui feliz, onde sou ou - quem sabe? - um dia serei. 

O fim de uma ilusão (princípio de outra)

Uma cidade também é isto. Não; uma cidade é isto: encontrar aldeias, grupos, nichos, destruir preconceitos e construir novos: aprender. Uma cidade ensina, o campo sedimenta o que a cidade nos ensinou. Tempos diferentes, preconceitos reconstruídos... Há ele maior prazer do que descobrir que se está enganado?

Talvez este post se venha a chamar "Pasta alla bolognese, divagações e fim"; ou "Ragù bolognese, o fim de uma ilusão". Ou qualquer coisa assim.

Ou seja: hoje fiquei a saber que nem o  bolognese nem o ragù são "molhos de tomate com carne", como sempre pensei, mas sim o contrário: molhos de carne sem tomate. Devo a descoberta ao Luca, o italiano do Mercat del Olivar e à sua mulher Silvia, a quem estarei para sempre grato. Devíamos todos trocar de preconceitos como trocamos de camisas (menos frequentemente, claro); e ficar grato às cidades, porque nos proporcionam mais ocasiões para o fazer (e têm 5 à Sec para as camisas).

A razão é simples: um citadino que chega ao campo sabe que não sabe nada do que ali se passa. O mesmo homem numa cidade sabe tudo. Está portanto muito mais habilitado a reaprender, enquanto que no campo só pode aprender.

Ora se aprender é bom, reaprender é melhor, como o próprio prefixo indica. 

7.4.19

Domingo

Aos domingos a cidade fica silenciosa e triste. A maioria dos cafés fecha e os passeios sem esplanadas e vazios mostram as mazelas. Esta maioria inclui praticamente todos os lugares de que eu gosto, o que me leva a perguntar-me se não haverá um paralelismo entre cafés decentes fecharem ao domingo e, por exemplo, senhoras educadas não andarem na rua sozinhas à noite. Não sei: o Ler por Aí... Café está aberto aos domingos e é decentíssimo; e a quantidade de senhoras educadas que andam na rua à noite, desacompanhadas e seguras é infinita.

Mas há de certeza uma relação. Só é preciso descobri-la. Por exemplo, na Rambla o El Punt está aberto. Nunca aqui entrei, até hoje; e nunca voltarei: o Vermute é medícre e caro. Vou ao lado, ao Cover, onde também nunca pus os pês. Vamos ver. Talvez seja para isso que os domingos servem: descobrir lugares novos, pensar na mulher que amamos, lembrarmo-nos das que um dia amaremos, ir-nos preparando para a próxima viagem, para o próximo domingo.

6.4.19

Ilusões

Nunca passamos desta coisa dos princípios e fins. Onde começou isto, onde acabou aquilo? Não sei.

Amo-te desde antes de te conhecer, amar-te-ei depois. É mais ou menos assim que todos os amores devem ser: patéticos, honestos, profundos e eternos. Os outros não passam de ilusões ópticas.

Equilíbrio

Andamos sempre à procura de um princípio e nunca o encontramos porque as coisas têm fim mas não têm princípio; e mesmo quanto ao fim não estou seguro. Ainda agora por exemplo pensava em quanto gostaria de falar contigo, dizer-te quão bem estou em Palma, quanto me lembro dos dias que aqui passámos... Ainda não acabaram, vês? Ainda por aqui andas comigo, vamos ao Mercadona juntos, econtramo-nos no Antiquari. Curiosa, esta resistência que as coisas oferecem aos fins, como velhos que se agarram à vida por pouco sentido que ela agora tenha para eles, dias de chuva que nunca acabam, dias sem dinheiro, garrafas de mau vinho ou sorrisos fingidos.

Eu por aqui estou, fora da caixa como de costume; ou dentro da minha. Na verdade mudámos pouco. Talvez sejamos ambos mono-lugar, ela e eu.

Não me portei bem contigo nem tu comigo: foi talvez uma das relações mais equilibradas que jamais tive. Talvez por isso não haja maneira de ter fim, apesar dos múltiplos princípios que teve.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-04-2019

É óbvio que a história começa com a Carbonara do italiano do mercado, apesar de antes disso ter bebido um vermute no Aurélio e comprado legumes na miúda gira cujo nome desconheço. Responde simplesmente por Princesa quando me dirijo a ela, com um sorriso encantador no canto do olhar, um daqueles sorrisos que dizem "sabes muito, daqui não levas nada mas continua, que eu gosto". É a ela que compro legumes, pimentos, tomate, salsa e só não levo mais porque ela não quer.

Depois continua no stand onde fui comprar a sobreasada para o frango. Vejo várias caixas de Époisses, pergunto à senhora se estão prontos e ela diz-me que não. Na brincadeira, digo-lhe "bem, então volto daqui a duas semanas" e ela responde "te lo guardo, se quieres", eu digo "claro que quiero", ela pergunta-me o nome e eis, senhor, daqui a duas semanas o Époisses estará no ponto.

Antes disso: acabei a Carbonara com uma grappa reserva e um café brasileiro que não conhecia, uma coisa maravilhosa, o rapaz teve o cuidado de baixar a temperatura e a pressão da máquina, é dias destes que por vezes me levam a pensar "Palma é outro planeta e eu fui feito para viver no espaço sideral, não sei, algures num país em que se possa comer carbonara feita com guanciale e sem natas, beber café feito à boa pressão e temperatura porque o rapaz simpatizou comigo e depois vir para casa cozinhar chili con carne e frango de mistela improvisado enquanto se vive, descansado porque algures no mercado há Époisses a amadurecer, Époisses do bom".

Parece um bocado melodramático não é? É e é.

Pouco importa. Estou a preparar a próxima etapa do P., vamos eu e ele para a Costa Brava, por muito que me chateie deixar Palma e é muito.

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Roubaram-me uma burra que nem sequer era minha, era alugada e eu pergunto-me se sou verdadeiramente contra a pena de morte.

Dia Mundial da Carbonara

Quem me conhece sabe que vendo a boa metade da família por uma carbonara  como deve ser. (Agora que estamos reconciliados um pouco mais caro: a coisa tem de ser excepcional). Acresce que hoje é - aparentemente; não ponho as mãos no fogo - dia mundial da carbonara.

Ou seja: decidi comer esse molho de pobres e campesinos no italiano do Mercat del Olivar. Há pelo menos um em cada mercado: vendem pasta que cozinham no momento, vinhos, queijos e outras especialidades italianas.

Fiz a pergunta sacramental: "pões natas na carbonara?"

Ainda não comecei a comer e já sei que vai ser boa. O homem olhou para mim como se eu lhe tivesse perguntado em que esquina costuma a mãe dele trabalhar.

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Degustação.

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Esperem. Vou ali ao céu e já venho.

O que os espera

Descrever concretamente factos abstractos, transcrever sentimentos confusos e inexplicáveis em palavras mais ordenadas e compreensíveis, dar a ler o invisível: saberão os jovens pretendentes a escritor o que os espera?

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Dizer-lhe, por exemplo:
- Sou infeliz porque te amo, mas sê-lo-ia muito mais se não te amasse.

É nesta fenda, neste intervalo, nesta espécie de rift afectivo que Hugo vive: entre o deserto de amar e o abismo de não amar, a gravidade e o calor em luta permanente, uma a puxar para baixo, o outro a elevar-se e a puxá-lo para cima.

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Andreia levanta-se, vai à cozinha fazer café e pergunta-lhe: queres torradas ou cereais, no teu abismo?

Desequilíbrio

O grande problema da tristeza é ser muito cansativa, muito chata, insuportável. A infelicidade dá demasiado trabalho para as poucas vantagens que proporciona. 

2.4.19

Diário de Bordos - Sevilha, Andaluzia, Espanha, 01-04-2019

Por onde começar? Pela viagem, claro: a camionete de Mértola para Vila Real de Santo António chega às cinco da tarde. A de Vila Real para Sevilha sai às cinco menos cinco. A solução é evidente e é uma pinça: a) pedir ao senhor de uma das camionetes que espere e b) ao outro que acelere.

A estratégia funcionou: o carro espanhol esperou o português, que chegou com um ligeiro atraso, apesar do entusiasmo do chauffeur (diga-se sem ser de passagem: foi ele quem conseguiu fazer com que o colega espanhol nos esperasse). Resultado: estou em Sevilha.

A viagem de Mértola para Vila Real foi agradável antes, durante e depois de adormecer. O chauffeur  (ele intitula-se motorista) tinha sobre Mário Soares a peculiar mas discutível opinião de que "o pai da nossa democracia" (não é o motorista que cito) devia ser amarrado a um cavalo e arrastado pelo chão até morrer "como vi fazer ontem num filme na televisão" (aqui é). Com Cavaco Silva e com Jorge Sampaio era menos feroz. "Também têm culpas no cartório", cito de memória mas verbatim.

Apercebi-me de que a política o fazia perder velocidade, pedi-lhe desculpa e adormeci profundamente. Acordei pouco mais de uma hora depois graças ao esforço que o senhor fazia para "cortar no horário": o Jim Clark que dormita nele há muitos anos despertara ao volante daquela camionete, Deus o abençoe. Chegámos três ou quatro minutos depois das cinco, o que significa que ele "cortou" seis ou sete do percurso: tínhamos saído com dez de atraso, sem razão nenhuma porque Mértola é o inicio da linha.

Não é de todo a primeira vez que uma coisa semelhante me acontece. No tempo em que chegava sistematicamente atrasado aos aviões aconteceu-me telefonar do metro que me levava a Heathrow para o balcão de check in da TAP e pedir-lhes que não o fechassem antes de eu chegar. Passado o momento inicial de estupor a senhora acedeu, com condições mais destinadas a salvar-lhe a face do que a acelerar o metro.
Nunca mais repeti a cena, claro: há coisas que não se fazem mais do que uma vez na vida, sob pena de transformarem em má educação ou arrogância o que não passou de um ligeiro desvario, um jogo de dados com o universo, um teste à sorte, uma aposta contra "o sistema" (aspas porque fica mais bonito).

Seja como for: estou em Sevilha, num quarto de hotel pequeno e cuja recepcionista (do hotel, não do quarto) é podre de boa, coitada. O jantar foi óptimo, uma sequência de tapas aqui e ali,  incluindo na Bodega Santa Cruz, sugestão de C. M. F., a quem agradeço ter mencionado o lugar na sua página (e ter visitado a Ler por aí... logo no primeiro dia, claro).

Amanhã turisto de manhã e apanho o avião à tarde, repartição de tarefas que não me parece má de todo: aquilo que vi da cidade à primeira vista dá vontade de lhe dedicar mil vistas.

Já cá tinha estado vai para quarenta anos, mas não me lembro de nada se não de ter dormido em frente a uma estação de comboios, num daqueles carros de transportar bagagens; e de umas ruas velhas iluminadas por candeeiros amarelos. Hoje passei pela catedral e vi de novo as limitações das viagens de quando era hobo. Enfim, quase hobo. Hobo intermitente,  a tempo parcial.

Ou seja: em quarenta anos passei de um estrado de madeira ao ar livre para um quarto minúsculo e sem casa de banho no terceiro andar sem elevador de um pequeno mas encantador hotel, cuja recepcionista faria um estilita duvidar.
Há quem tenha feito melhor, mas não me queixo. Amanhã estarei na minha amada Volta Dos e aí se poderá confirmar que o salto foi maior. E que não tivesse sido: a Andaluzia é uma região maravilhosa, povoada por mulheres bonitas, vinho bom e Jerez muito seco. Mais um vagabundo ou menos um não a estragaria.

1.4.19

Guerras de sono

Lutar contra a insónia, lutar contra o sono? Quanto mais o tempo passa mais ambas as lutas me parecem igualmente patéticas, guerras perdidas à partida.

O sono ganha sempre, estando lá ou não.