29.7.19

Cansado

É tão tarde este cansaço, tão profundo, tão de há tanto tempo... Porque só me apareceu agora?

25.7.19

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-07-2019

Cada dia de charter vale por dez dos outros. Vamos com três das e meio, amarrados à bóia num sítio lindo (ilha de Formentor, para quem possa interessar). O gerador trabalha sem parar, vinte e quatro horas por dia: o senhor não pode viver sem ar condicionado; a família dorme, com excepção do pater familia; não há ponta de vento; o calor ainda não chegou mas já anuncia a sua benfazeja presença. O sítio é lindo, não está muito cheio, a posidónia vê-se claramente. Consigo abstrair-me do gerador, intermitentemente, aos intervalos. Das três famílias calhou-me a pior. As miúdas são de uma má-educação que dói. Em Lima têm um exército de empregados e não têm um pai que como o meu lhes diga "os criados são pagos por mim e trabalham para mim, não para vocês". O homem é calado, reservado, desconfiado. A mais simpática é a mãe, uma espécie de caricatura de mulher de rico: loira, um corpo que não deixa transparecer nem um dos cinco filhos que gerou. Quatro raparigas e um rapaz, o mais novo. Quatro anos, birrento, salta do iPad para o telefone e deste para o iPad.

"Metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa." O charter acaba amanhã: estou a meio.

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Histórias do yachting. A rapariga era stew. Um dia foi substituir a cozinheira que se avariara de uma perna. Um mês depois a cozinheira voltou, mas a rapariga não quis voltar a ser stew... O barco procura desesperadamente uma substituta.

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Escala em Puerto de Andratx. Sou recebido com grandes manifestações de alegria, risos, bocas ao señor Oliver (este não vence inicial).

É bom.

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Tinha previsto ir a Lisboa. Não vou. Esbracejo bravamente para afastar o pedregulho que me caiu em cima.

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Penso nas placas tectônicas, que se afastam umas das outras como nós nos afastamos das pessoas. E se aproximam, como nós de outras pessoas: inexoravelmente. 

22.7.19

Diário de Bordos - Portocolom, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-07-2019

A última vez que fiz um charter foi por estas bandas. Começou em Menorca e acabou na Sardenha. Experiência catastrófica, em grande parte por minha culpa: mal cheguei vi o buraco em que me tinha metido e não me fui logo embora. Desde aí (foi há dois ou três anos) tenho feito só transportes, uma coisa completamente diferente, apesar de o meio ser o mesmo.

Vim para esta semana com uma atitude um bocado ambivalente: por um lado precisava; por outro, queria, para ficar a conhecer melhor Mallorca; por outro ainda - haverá atitudes trivalentes? - queria ver se passar uma semana com clientes (a mania do "guest" não chegou a Espanha, felizmente) ainda é um desafio ou já passou à categoria de seca.

Resposta curta: é um desafio e uma seca. Primeiro, o contexto: um grupo de dezanove pessoas, creio que três famílias, Peruanos, divididos por três Lagoon 450. A nós calhou uma família: pai, mãe, cinco crias (quatro raparigas e un varón) simpática sem mais. Ainda não encontrei o ângulo para trazer o senhor para bordo, como quando no big game fishing o peixe está ali ao lado do costado na ponta da linha e agora é preciso embarcá-lo. O homem é fechado, desconfiado. O que mais me impressiona é a dependência dos miúdos (o rapaz, de quatro anos está incluído) do wifi. É permanente. Os pais são cúmplices, com a velha desculpa de que "se não eles chateiam-se". Tadinhos. A verdade é que em Cabrera, onde não há rede, acabaram por se divertir à grande. Os miúdos só se "chateiam" se nós os deixarmos. Como qualquer miúdo em qualquer parte do mundo podem viver sem estar agarrados a um telefone, iPad ou o que for electrónico. Da obsessão do pai com o ar condicionado não há muito a dizer: já a conheço. Os americanos, venham eles do norte, do sul ou do centro do continente não podem viver sem ar condicionado. Ponto. O gerador não pára. Esta noite pediram-me para subir a temperatura, mas apagá-lo está quieto.

Esta dependência de máquinas é doentia, dói-me. Não são capazes de estar setados e olhar em volta, de passar cinco minutos sem música (que ainda por cima é um horror. A música pimba sul-americana devia ser incluída na categoria "tortura" e dar direito a um bónus triplo).

Mas é bom; é bom; é bom navegar, por pouco e a motor que seja (vinte nós na proa tanto à ida para Cabrera como à vinda para aqui); conhecer finalmente Cabrera, uma reserva natural que apenas aceita uma quantidade limitada de barcos cada dia; ter uma stewi que é uma pessoa decente, mesmo que por vezes me pareça vai levar algum tempo até descobrir a pólvora). O percurso está bem desenhado, os colegas são para cima do impecável, a rapariga desenrasca-se bem no fogão. Tenho de rever esta história do charter versus transporte versus skipper de armador...

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Um dos meus colegas foi minista. Lembra-se da Dois Oceanos (que não fez); mas fez as Minis de 2005 e 2007. Ou seja, já nos cruzámos: nesses anos estive em Salvador na chegada da Mini e organizei a primeira escala no Funchal. O mar é tão pequeno!

"I know them. I am one of them" (já chegou o livro. Chama-se Selected Bequia Poems. O autor é Richar Dey. Preparem os sacos. A viagem até Bequia é longa mas não requer muita bagagem.)

18.7.19

(Por enquanto.) Ou: Lista dos assuntos já tratados

  • Bravatas. 
  • Manguitos ao destino. 
  • Homenagens à resiliência. 
  • Inexaurível fé de que não há marretada que dê cabo da carcaça. 
Pelo menos por enquanto.

F. joga com (e insulta) o destino, Ou: Não cedas um centímetro

F. era vagamente inseguro e por isso gostava de jogar aos dados com o destino. Digo destino para não citar o outro, o que dizia «Deus não joga aos dados com o Universo» e depois demonstrou que sim, na volta talvez jogasse, se existisse. Na história de F. não existe, isso é seguro: deixou de acreditar em Deus ao mesmo tempo que deixou de acreditar no destino: joga aos dados com ele porque sabe que vai ganhar. «Haverá de certeza quem chame batota a isto», pensa, enquanto bebe os seus últimos dólares. Está numa tasca chinesa de Nova-Iorque, numa fonda do Panamá, num restaurante guatemalteco ilegal de Miami, numa cachaceria de S. Luís do Maranhão, num bar de Manila. F. sabe que o destino tem muitos destinos, pára em todos os portos, mas não é por isso que perde. «É porque não existes», lança-lhe desafiante. Os últimos dólares de F. são assim consumidos em rum, whisky, basi, na certeza de que amanhã novos dólares lhe chegarão e noutra certeza, esta pior ainda, de que não é amanhã que deixará de jogar aos dados com o destino.

«Como de resto não será amanhã que o destino deixará de nos foder à mais pequena oportunidade. Dá-lhe um dedo e ele mata-te um amigo, o cabrão».

(In memoriam J. G., † 18/07/2019)

Never give an inch, não cedas nem um centímetro. Falsifica os dados, enche-os de rum Mount Gay, esfalfa-te na burra, enche-te de sol e de sal, faz batota mas não cedas uma polegada que seja.

Béguine, pas béguine

"Ne soit pas béguine", dizia-lhes em voz doce mas audível, clara, bem articulada. "Laisse-toi faire, gentimment, laisse-moi t'ammener là où je te veux et toi aussi. Ne soit pas béguine, va", acrescentava para dentro, numa voz que só o seu desejo ouvia.

Às vezes, o delas também.

17.7.19

Transparências

Questão de modelar a transparência, dar-lhe formas: laminar, por exemplo. Tetaédrica; polimórfica, se fores preguiçoso e não quiseres dar-te ao trabalho - admitidamente sempre doloroso, difícil - de fazer uma escolha. Aquilo a que os franceses chamam arrêter un choix, expressão tão bonita quanto complexa quanto precisa: escolher é parar (e parar é morrer, mas isso agora interessa pouco). É da transparência que falamos, não de morte, da opaca morte.

A transparência modela-se. Há quem a aprecie cúbica, piramidal ou, como eu, laminar (desculpem as repetições). Ao contrário das transparências tridimensionais, que aguentam tudo as planas são muito sensíveis. Rompem-se ao mais pequeno murro, ao mais ligeiro pontapé.

Como eu, daí a preferência. Não há empurrão que não me rasgue, me deixe a sangrar na rua, escalpe os sentidos, esfole de alto abaixo.

Uma transparência fina sempre leva menos sal.

Arte, vida

Ninguém acreditava nele quando o dizia: a sua maior obra de arte foi a sua vida.

(Pelo menos enquanto foi vivo. Depois de morto começaram a acreditar. Faziam-lhes falta aquelas esculturas imateriais que todos os dias deixava, as frases magníficas que não chegava a escrever, as fotografias que fazia com o olhar, os quadros que pintava - ele, que nem uma parede sabia pintar.)

Infinito, eterno. Ou: geometria

O ponto de partida era explorar a ligação íntima entre o infinito e o eterno. Dizer-te que és aquele exacto ponto em que o plano do infinito corta o plano do eterno. Perpendicularmente, claro. Não há oblíquas, não há curvas, dois planos que se cortam perpendicularmente definem duas rectas e o encontro dessas rectas define um ponto e esse ponto és tu, infinita, eterna.

(Enfim, podes perguntar-me de onde vem a segunda recta: sou eu.)

16.7.19

Paz, interstícios e apanhada

Sonho com interstícios, falhas, fendas, com o nada no meio. Ontem, por exemplo, falhei os hambúrgueres, ficaram uma porcaria sem fim; hoje vou aproveitar os que sobraram para fazer um molho de tomate. Depois do jantar fui com a C. beber copos para a Tasquita. Interstícios, falhas, fenda no meio das chamas, clareira. Não é inteiramente verdade: a meio do jantar recebi uma boa notícia, as chamas não desapareceram mas baixaram muito, os copos já foram uma celebração e a C. é a companhia ideal para isso, o único defeito dela é ter menos trinta anos do que eu, coisa que não tem cura, mais uma falha. Bebemos Orujo, que é o bagaço dos espanhóis e Bailey's, designação irlandesa para "bem-estar em formato líquido" e voltámos para casa grossos e felizes. Ela está no terceiro andar, pergunto-me como foi trabalhar hoje, se está com uma ressaca igual à minha, pergunto-me como é que uma miúda de trinta anos do fin fonds do Wisconsin pode ser tão gira, isto é, gira (se bem uma não impeça a outra). Fartámo-nos de conversar, a Sandra (a dona da Tasquita) é outra, gira, bonita, fendas no meio destas pedras todas, pedras que voam, que se abrem debaixo de mim, lava ardente, um gajo anda, queima-se, chamusca-se, queima-se outra vez, falha miseravelmente um cozinhado e nos interstícios disto tudo estão duas miúdas que fazem esse mesmo gajo pensar ( e se calhar muitos outros, espero que sim) na sorte toda que teve, como é que uma vida a andar em pedra-pomes ardente chega a isto, uma noite de copos felizes, sensuais, inteligentes, articulados, sensíveis (refiro-me às miúdas, claro).

De maneira hoje resolvi tirar a manhã, que expressão tão bonita, vou tirar a manhã ao dia, fica um dia amputado, mais uma fenda, mais um interstício: tirei a manhã e ofereci-a às minhas células sedentas, coitadas, a tentar repor os níveis de água que o álcool lhes tirou, ofereço-a a mim mesmo, tão cansado, chamuscado mas tão vivo como se tivesse nascido ontem, como se tudo o que vivi até hoje coubesse numa fenda, uma minúscula fenda no tempo, uma minúscula fenda num corpo, aquele conjunto todo de Legos desencaixados, encavalitados uns nos outros em equilíbrios mais do que duvidosos, equilíbrios felizes às vezes, infelizes outras tantas menos uma: o saldo é positivo, por mais voltas que se dê à pilha e aquilo tudo ali metido numa aparente desordem, um ersatz de caos, as peças não caem porque estão unidas por um fil rouge, há qualquer coisa dentro delas que as mantém juntas, unidas, desorganizadas, amontoadas como se um colar se tivesse partido mas o fio que liga as pedras não, perderam a ordem mas o que as une continua lá.

Afinal já não posso ir a Lisboa como tinha planeado, é uma merda mas tenho de ver se chove um pouco, ver se a lava arrefece, se as chamas se esquecem por um momento de arder, ver se algures, se algures num corpo, algures num copo, num bar numa palavra, numa fenda, nos interstícios de tudo isto as minhas células reencontram a água perdida e eu a paz que por vezes, num interstício como o de ontem, entrevejo desfocada, trocista, a jogar à apanhada comigo desde que cresci.

12.7.19

Realidade? Só um bocadinho, por favor. Tenho a natureza à espera.

Uma das provas de que o género humano não suporta muita realidade é que a seguir ao Iluminismo veio o Romantismo.

Lamento multilíngue

Não é por não querer ser rico que Portugal é um país pobre, claro. Portugal é pobre porque não sabe ser rico. Não sabe o que é ser rico. A mediocridade está ali, ao virar da esquina. A riqueza está um pouco nais longe, chegar lá exige esforço e - sobretudo - saber. Saber, imaginar, ver. Mas a mediocridade abafa tudo, é uma cortina, um pano encarnado à frente de um touro.

Cosa fare? Niente. Go with the flow. Rêve pour toi. Scheisse.

11.7.19

Quotas

Esta história das quotas não me sai da cabeça. Há pouco lembrei-me de que durante muito tempo, cada vez que ia a França, perguntavam-me de onde é que eu era (para quem não sabe: os franceses são obcecados com a origem das pessoas. Brassens tem uma canção genial a esse repeito, chama-se Balade des gens qui sont nés quelque part, podem ouvi-la no FB).

Um tempo.

Um dia resolvi experimentar ter uma namorada estúpida. Um dos dramas da minha vida é que só consigo seduzir mulheres inteligentes (hoje já não é um drama, apresso-me a esclarecer). Mas naquele tempo longínquo resolvi experimentar a estupidez no feminino. Estava farto de ser o único estúpido do casal (questão de equilíbrio, sem dúvida. Um casal comigo e com uma mulher inteligente é muito assimétrico).

Um tempo.

Encontrei uma rapariguinha muito bonita, argelina, que um dia convidei para jantar num restaurante da moda de Dunkerque. Durante o jantar, lá vem a pergunta fatal:
- De onde és? - (traduzo agora porque não me apetece traduzir depois.)
- Sou chinês.
- Chinês? Mas não pareces nada chinês.
- Não, eu sei. Mas por favor não digas a ninguém, o meu pai ainda não sabe.
- Ok, prometo - disse muito seriamente. A miúda passou o resto do jantar a olhar para mim, ver se descortinava um simples traço de chinês nesta cara tão ocidental que me calhou na rifa genética.

O jantar desenrolou-se normalmente, mas fui deixá-la a casa e voltei sozinho para bordo. Não há beleza que vista correctamente uma insuficiência de sinapses. Ou que a dispa.

Dois tempos.

Agora, imaginemos: estou por acaso em Portugal, recebo uma folha a perguntar-me a etnia e respondo «preto por dentro (duvido. deve ser mais do género Afro-descendente, ou coisa que o valha); chinês por fora, mas devido a um erro na transcrição DNA / RNA pareço branco. Qual a etnia que devo assinalar?» e é uma longínqua descendente daquela argelina (atraída sem dúvida pelas maravilhas de Lisboa) que lê a resposta.

Hummm... Acabaria na televisão, aposto. Ou na cama, vá lá saber-se.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-07-2019

Hoje resolvi-me finalmente a ir procurar trabalho. Imprimi dez CV, dos quais distribuí um. Fiz dois telefonemas. O segundo propôs-me duas semanas de charter (uma das quais calha numa data má, mas enfim. Não quero levar a minha dieta a extremos). Considerando que ainda tenho nove CV e pelo menos meia dúzia de números a chamar, talvez não seja desrazoável pensar que vou emagrecer, sem dúvida, mas comendo e sendo feliz.

Uma das coisas boas da minha área profissional é que um gajo de sessenta anos arranja trabalho mais facilmente do que um de trinta. Pergunto-me porque será.

Evolução ou entropia?

A questão é esta: como é que de Ivan Illich, Herbert Marcuse e Debord se chega a Zizek e a Galeano (isto para citar apenas gajos com quem hoje não concordo.

A pergunta pode parecer mal formulada: nao li os dois últimos como li os outros. Não está. QED.

(Claro que se tem de incluir a variável Idade na equação. A isso respondo que ainda há pouco tempo reli Illich, com o prazer de sarar divergências. O homem nos anos sessenta defendia as bicicletas com um rigor de raciocínio que ainda hoje não foi igualado, quanto mais ultrapassado.)

Gestão e acompanhamento de revoltas juvenis

Aos dezoito anos a minha revolta foi gerida - não sei se é o verbo adequado - por Nietzsche, Guy Debord, Wilhelm Reich, Raoul Vaneigem, Freud (fazia parte do pacote, era inevitável como a chuva no Inverno), Aldous Huxley, Herbert Marcuse, Camus, Sartre - muito pouco, obrigado - Henry David Thoreau, D. H. Lawrence, Jack London, John dos Passos - Manhattan Transfer foi um dos livros que me marcou até hoje e nunca mais o reli. Hoje pergunto-me o que diria Debord desta estupidificação generalizada. E não me venham com a história de que ele a previu na Sociedade do Espectáculo. Esse era - foi - o maior manifesto contra a estupidificação que jamais li. O tema eram os homens, não eram os cãezinhos (coitadinhos).

É mais ou menos óbvio que se ler Reich aos meus filhos eles riem-se, mas isso só demonstra a minha tese: deixámos-lhes um mundo em condições, um mundo demasiado bom. Dali, só estragando, coisa na qual eles se empenham com uma energia admirável (eles não se referindo aos meus filhos, Allah uAqbar).

10.7.19

Problemas de homem branco, problemas de africano

Ultimamente uma questão persegue-me (enfim, não é uma. São muitas, mas falo de questões grandes, não de minhoquices como pagar a fornecedores ou comer): onde é que a minha geração falhou? Nasci em 57, sou um baby-boomer a cair para o tardio. A minha primeira hipótese é que nós resolvemos os grandes problemas (liberdade, igualdade - não, não é provocação, mas pode ficar para depois - prosperidade) e deixámos para a geração dos nossos filhos aquilo a que os africanos chamam "problemas de homem branco": o sofrimento dos animais, o ambiente, o vegetarianismo galopante, o desprezo pela ciência...

Releio-me e apercebo-me de que estou na pista falsa. O sofrimento dos animais é uma questão importante, mesmo que seja um problema de homem branco. O mesmo se passa com o ambiente: deixámos tecnologia para lidar com os problemas que o rápido desenvolvimento do pós-guerra criou, é questão de a melhorar - como aliás está a ser feito, como aliás seria de esperar. Nao é por aí.

Um dos problemas que deixámos, sem dúvida, foi ter demonstrado a inanidade das doutrinas totalitárias, comunismo em primeiro lugar. O ambientalismo e os seus off shoots não passam de anticapitalismo com roupa nova. Aquilo que não conseguiram matando milhões de pessoas, os anticapitalistas tentam conseguir asfixiando a economia. Não vão conseguir, claro: não se mudam milhões de anos de evolução com meia dúzia de patranhas (nem os tais milhões de mortos o conseguiram...)

Mas também não é aí que se revela o nosso falhanço. Nem o ambientalismo nem o sofrimento dos animais - coitadinhos - nem o yoga, o vegetarianismo, a homofilia obrigatória, a futebolização da política seriam um problema se fossem abordados e defendidos racionalmente. Sempre foram, de resto. Sempre consegui debater com os meus amigos as suas opções de vida, as suas opiniões, a sua visão do mundo. Eram discussões por vezes violentas - verbalmente - mas o que se esgrimia eram argumentos, não eram insultos.

Onde nós falhámos - e eu confesso que gostaria de perceber porquê e este post não é mais do que um primeiro passo - foi em ter deixado que a sociedade se transformasse num conjunto de tribos. Quem não é da tribo à qual se pertence não tem direitos, não sabe pensar, é um fascista, um homófobo, um primário que só pensa em ver animais sofrer, um facínora que sonha com o fim do planeta. Foi em ter deixado regressar a era do pensamento mágico. A ciência é vilipendiada - em que ano se começaram a reembolsar os medicamentos homeopáticos? Em que ano se começou a acreditar nas "drenagens linfáticas"? Em que ano as touradas se tornaram um problema? Não sei, mas acho que é aqui - na tribalização da sociedade e no desprezo pela ciência - que devo começar a procurar respostas para a pergunta que há tempos me persegue.

Até lá, vou pensar nos problemas menores, os chamados "problemas de africano".

9.7.19

Perder, paciência

Neste eterno debate entre a paciência e o desafio, quem perde é sempre a paciência. Isto é, eu perco-a.

Luz, negrume

As coisas metem-se nos interstícios, nas fendas, juntamente com a luz e outras coisas. Depois perde-se imenso tempo a tirá-las de lá, é preciso escrevê-las letra a letra até saírem. Nunca saem todas, nem nada que se pareça. Ficam para ali encavalitadas umas na luz, outras na escuridão.

É que as fendas por onde entra a luz deixam passar também o negrume, não pensem..

Alminha terna, vaga

"Petite âme, âme tendre et flottante, 
compagne de mon corps, qui fut ton hôte, 
tu vas descendre dans ces lieux pâles, durs, et nus, 
où tu devras renoncer aux jeux d’autrefois."

Tradução de Marguerite Yorcenar do poema de Adriano, Animula vagula, blandula...

"Alminha terna, vaga,
Companheira do meu corpo, de quem foste hóspede,
vais descer para esses lugares inóspitos, duros e nus
onde deverás renunciar aos jogos de antigamente."

Por agora, nada disso. Vou dormir, só. 

8.7.19

Planície

Cuida-te como se cuidasses dessa planície que à tua frente se abre. Bem sei que sou mais de altos e baixos, mas o dia chegará em que os altos se baixam e baixos se alteiam.

Sempre

Patinamos num imenso lago gelado. Tudo é de um branco azulado à nossa volta, um branco furtivo, que não se dá. Tu vais à minha frente, não por uma questão de segurança mas prosaicamente para te ver as nádegas, as pernas, o movimento síncrono dos braços. Olho-te e vejo para onde vamos: para uma estúpida imensidão gelada na qual estou condenado a ver-te, sempre.

Imperfeições

Se me pudesse sentar no teu olhar sentar-me-ia, acredita. Não sairia de lá nunca mais, mesmo quando olhasses para outros homens. Não penso ser melhor do que os outros, mas assim lembrar-te-ias de todas as minhas imperfeições.

Pede o contrário do que já tens

Como se no dorso de uma baleia de bossa estivéssemos os dois em equilíbrio, pedindo aos deuses que ela não mergulhasse.

Mergulhou, claro. Devíamos ter-lhes pedido que a fizesse afundar-se, para termos a certeza de que sobreviveríamos.

Ida simples, por favor

Fragmento-me quando passo por ti como a luz por um cristal: saio outro e o mesmo.  Divides-me em cada célula que sou, em cada orgão. Atravesso-te e descomponho-me, re-atravesso-te e recomponho-me. Somos um jogo de ir e voltar sem destino à vista.

Isto é: somos o destino um do outro, ida sem volta e volta sem ida. 

Caminhos

É de caminhos que hoje falo, os caminhos que hoje sonho. Caminhos: os do deserto que me trouxeram aqui, os do deserto que daqui me levaram, os da floresta, do mar, da savana, das cidades. Quais deles os piores, ou melhores?  Como definir um caminho: é aquilo por onde avançamos, por onde recuamos, que nos leva ou nos traz? Se tudo isso são caminhos, avançar, recuar são a mesma coisa? Avançamos sempre, qualquer que seja a direcção?

Imagina um prado, uma baía, uma longa vereda na savana. Sabes que por ali passaram outros, mas agora és o único. Como se os caminhos fossem um corpo, não é? Como se essa vereda fosse uma linha que começa ali em baixo e acaba no queixo; como se a savana fosse o teu ventre; como se a baía fossem esses teus olhos azuis de tanto amar, verdes de tanto andar.

Uma orquídea; não percebo nada de flores; uma rosa, um cravo, um girassol. De que percebo, afinal? De nada. Enfim, sim: percebo de caminhos. Os que me levaram a ti, os que de ti me levaram.

Sentimentos

Basicamente como se avançássemos ao longo de uma linha invisível, guiados apenas pelos sentimentos. Vamos para o amor, dizes-me. Não, primeiro a amizade, respondo-te. Temos de passar pelo medo. Não, vamos directamente para a alegria. A única saída da alegria é a tristeza. Paciência. De qualquer forma, uma sem a outra não vale nada. Devíamos passar pela gratidão.

E assim por diante. O caminho nunca acaba. Ou melhor: sim. Acaba na surpresa, todos os dias, todas as horas.

A perfeição do pretérito perfeito

Curiosamente, o único tempo verbal que traz o futuro consigo é o pretérito perfeito. Não há fundação mais sólida para o que aí vem do que "Eu fiz".

Vastidão, Se

Acreditem: não há maior palavra, mais vasta e mais profunda em todas as línguas do universo do que Se.

Lições de economia nómada

Li há algum tempo um artigo sobre isto, escrito por um economista e sustentado por argumentos técnicos.

Os meus argumentos em favor da tese não são teóricos, são empíricos. Fundamental e dolorosamente empíricos: não se ter dinheiro é mais caro do que tê-lo. Isto é: poupar dinheiro é custoso, pela razão simples e inamovível de que o que se poupa deve ser dividido com quem nos faz poupar. Um teso paga tudo mais caro porque o que tem não é divisível com quem tem ainda mais.

É esta a fronteira daquela ideia de que quem é pobre é-o porque não quer não o ser (o contrário de ser pobre não é ser rico): às vezes é-se pobre porque deixar de o ser custa mais dinheiro do que o que se tem.

Felizmente, há provas (empíricas) disto que nos fazem rir e aliviam a dor. Já me aconteceu, por exemplo, ter de apanhar um táxi porque podia pagá-lo com o cartão de débito, mas o dinheiro da conta não ser suficiente para ir a um ATM levantar massa (a esmagadora maioria das máquinas de spaghetti só permite levantamentos a partir de vinte euros).

Assim, quem quer ser rico? Vou de táxi porque não tenho dinheiro para o autocarro. Ando de um lado para o outro porque não tenho dinheiro para não andar, para ficar no nesmo sítio. Bebo um bom vinho porque não tenho dinheiro para ir ao supermercado (não é invenção: tinha o vinho guardado para uma ocasião especial. Aquela era-o: um almoço ou jantar sem vinho é uma ocasião especial que não deve ser passada sem vinho).

Hallelujah!

Lutas, tentações

A luta contra a tentação da mediocridade é a mais difícil de se vencer em Portugal.

7.7.19

Injustiças de base

"Porque o importante não é que descubras que a tua mãe é uma puta. O importante é que te dês conta de que essa puta não é a tua mãe." (A tradução é minha, o autor György Faludy e o livro Días Felices en el Infierno, como de costume.)

O livro é imperdível (o meu telefone propõe imperativo. Não está mal. Isto de lhe extirpar tudo o que tenha forma de AO90 ou brasileirismo abriu espaço bem empregado).

Para se perceber melhor a citação: mãe refere-se ao Partido Comunista Soviético. Puta é consequência do pacto Hitler - Staline. O diálogo é entre o autor (o livro é autobiográfico) e um amigo membro do Partido Comunista Húngaro desiludido com o pacto, com o partido e com o comunismo. Numa palavra: um órfão repentino.

Acho uma daquelas injustiças imperdoáveis só agora ter conhecido Faludy.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-07-2019

Parece que hoje foi o dia mais quente dos últimos dias e parece igualmente que amanhã vai ser ainda mais quente. Uma das coisas chatas do calor é um gajo ter de tomar bastantes duches todos os dias (hoje vai acabar em três,  como ontem). E isto sem sair de casa, passo os dias no quarto ver se chove e se a maré enche.

Espero que chova depressa. Entre duches a mais e chuva a menos isto está a ficar difícil. 

Eliot, onde estás quando mais precisamos de ti?

Que «O género humano não suporta muita realidade» (Human kind cannot bear very much reality) já se sabia há muito tempo. Eliot não descobriu nada, limitou-se a escrever (bem, claro) o que já era do conhecimento comum desde pelo menos os gregos.

Hoje a diferença é que a human kind na sua pior forma - a de turba - tem acesso a meios de comunicação de massa, consegue fazer-se ouvir fora das grutas onde sempre viveu (e infelizmente já não vive).

Avenida da Liberdade, nº 1

Não me lembro de quando me apareceu a morada Avenida da Liberdade, nº 1. Foi provavelmente nas Ilhas Virgens Britânicas, BVI para amigos e família, que têm a Imigração mais chata de todo o arco caribenho (com a esmagadora excepção das suas vizinhas USVI mas essas não são caribenhas, são norte-americanas). Sei, disso estou seguro, que foi numa ida às BVI que à chegada declarei como profissão Escritor de Viagens, Travel Writer no original, que deixou o homem a olhar para mim desconfiado. "Que livros escreveste?", perguntou-me. "Nenhum. Escrevo para jornais e revistas de viagens e tenho um blogue. Queres ver? Tens net aqui?" Estávamos num aeroporto, deixou-me entrar sem mais. É possível que Avenida da Liberdade me tenha ocorrido na mesma altura.

A verdade é que estava farto de ter de inventar moradas - nem que venha da Lua um funcionário público aceitará que um gajo não tem morada - e Avenida da Liberdade impôs-se com a evidência e a fluidez das coisas óbvias. Às vezes tentava variações: 1, Avenue de la Liberté, Paris; ou 1, Freedom Avenue, London; mas acabei por voltar sempre à Avenida da Liberdade, 1, Lisboa. Só capitais, sou um homem urbano.

Uma vez não funcionou e tiro aqui o meu chapéu ao senhor: na Horta fizeram-nos uma vistoria daquelas à séria, que meteu "canídeos" (aspas por cito: "O canídeo terminou", disse um dos guardas para o chefe da operação), mergulhadores, alguns dez gajos a bordo. No fim o sr. Nâo-me-lembro-do-nome-e-se-lembrasse-não-o-diria", "Inspector (?) da Polícia Judiciária (?)" pergunta-me os dados. Quando chego à morada digo "Avenida da Liberdade, nº 1" e o homem diz-me "Isso não pode ser, ninguém mora nessa morada". Ainda tentei dizer-lhe que era lá que ia buscar o correio, mas o homem não foi na história. Tive de inventar outra morada qualquer.

A verdade é que interiorizei da tal forma o endereço que já me sai automaticamente. Uma coisa que começou por preguiça tornou-se bastante prática e benéfica. Por exemplo, tive três multas de trânsito enquanto aluguei o carro ao M. (e uma agora já com o E.) Se alguém por acaso nessa morada vir chegar correspondência da Guardia Civil espanhola (ou lá o que for) agradeço que lhe dê o devido destino. Nem sequer é preciso separar, não sou muito de rituais religiosos.

6.7.19

A devastadora ausência da lua cheia

Hoje não está lua cheia, nada que se pareça. Saímos há poucos dias da sizígia contrária, a da lua nova, ainda falta muito tempo para que possas invocar a Lua, dizer que é tudo culpa dela, que andas aluada, que as regras te doem, que perdeste peso ganhaste peso ou te dói um dente, que o barulho de um cabelo a cair te acorda em violento sobressalto a meio da noite, as noites de lua cheia no Verão são as piores dizes-me com esse olhar tão trágico tão assustado, esses teus olhos negros como a lua nova, é por causa deles que te assustas quando há luz a mais no céu à noite desconfias de um astro grande e luminoso pelo qual é tão difícil navegar, um astro que come o horizonte.

Não sabes onde apoiar-te, falta-te a lua, pões-me as mãos nesses seios tão redondos, tão duros e dizes-me "está aqui a lua, olha para ela" e eu olho para ela, para elas.

Estás deitada no meio de uma enorme dor de cabeça, vasta como um court de ténis, dizes-me, deitada levantas a blusa para que mãos e olhos as vejam.
- Vês a minha dor de cabeça?
- Não.
- Espera um bocadinho, ela aparece-te já.
- Toma uma aspirina.
- Não quero. É uma dor de cabeça muito bonita, muito lisa e grande. Quero que tu a vejas.

É nessa dor de cabeça que nos perdemos, quando eu acordo já tu te levantaste e saíste dela. Eu não: encosto-me num canto, encolhido como se tivessem acabado de me salvar de morrer afogado e penso na tua lua cheia, que tanta falta te faz.

Não é verdade. Penso nesses teus olhos azuis e nos cabelos loiros e sei que é a mim que a lua cheia ilumina. Uma dor de cabeça avassaladora não substitui a devastação da tua ausência.  

Avesso de mim

É questão não de sair de mim - as trivialidades atraem-me pouco, como sabes - mas de entrar em ti; vestir-me de ti. Nada a ver com a pele - tu, toda tu vestir-me-ás, toda tu me cobrirás de ti, eu por dentro e tu por fora.

Virar-me do avesso, porque te tenho em mim

Vulnerabilidades

"Mi único punto vulnerable era una increíble falta de aptitud para el sufrimiento".

György Faludy, in Días felices en el infierno.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-07-19 / II

Mais uma noite dessas que fazem de uma cidade um sítio onde se pode viver. Desta vez, um churrasco no Volta Dos, a casa que tão gentilmente me acolhe, organizado, improvisado à la va vite pelo Ch. Ainda não consegui perceber como é que a estranha diversidade do humano me atrai cada vez mais e não cada vez menos. Talvez no fundo eu esteja condenado... Não: talvez no fundo eu seja um condenado. Cada vez mais me parece plausível: sou um condenado, daqueles que gostam do que fazem; estou condenado a pensar que tenho sorte. Sou um condenado de mim.

Não sei. Pouco importa. Que todas as condenações fossem esta: não ter dinheiro e apesar disso ter vida (sempre é melhor do que não ter vida e ter dinheiro, entre nós seja dito).

5.7.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-07-2019

A história contar-se-ia facilmente, caso fosse preciso contá-la. Não é: todos sabemos que numa cidade as árvores, as ruas, a arquitectura, os cafés, restaurantes, museus, lojas, livrarias são apenas o cenário. Nada mais. A cidade - qualquer cidade, aldeia, vilarejo - é feita de pessoas. Já aqui algures uma vez o disse: passar a tarde num café diz-nos tanto sobre uma cidade como as mesmas horas a calcorreá-la, sobretudo se o café tiver sido bem escolhido e nas ruas estiver calor (ou frio, ou chuva ou o que for). Os exemplos disto são tantos que não vale a pena desfilá-los, como se estivéssemos a rezar o terço.

Ontem o A. M. convidou-me para jantar e eu levei-o, como sempre faço, à minha Palma. Começámos pela Bodega Belver, dali fomos ao Antiquari, depois à Ca na Chincillla. Até aqui estivemos na cidade: ruas lindas e arborizadas, prédios bonitos, estabelecimentos com carácter; mas na Chinchilla estava o F., dono do Antiquari, com a I. (de que Chinchilla é o diminutivo) e um amigo, mesmo na mesa ao lado da nossa. (Pequeno parênteses: a Chinchilla continua a ser um dos melhores restaurantes de Palma).

E assim a cidade transformou-se; isto é deixou de ser ruas e começou a ser pessoas, o que faz dela um lugar muito mais interessante e - sim - vivo. A conversa alargou-se às duas mesas, dali fomos todos para o Antiquari, juntaram-se-nos mais meia dúzia de amigos do F. e passámos uma noite porreira, a falar de rum, jazz, França e mais uma dúzia de assuntos que agora por qualquer razão me escapam.

4.7.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-07-2019

Às vezes deixo a bicicleta lá fora, quando volto para casa antes do jantar, para me obrigar a sair, não ficar fechado no quarto como se fosse um camarote a mil milhas de Bequia. Foi o que aconteceu hoje. Fui pedalar por estas ruas desertas, durante o dia são intransitáveis. Perde-se muito, claro: a luz do dia, a sensação de frescura, de refúgio do calor que estas vielas estreitas e fechadas são: não há calor que as abra. Mas ganha-se no espaço, na sensação de se escorregar pelo pavimento durante a noite como a luz escorregou durante o dia.

Hoje tive um prémio complementar: a Tasquita estava aberta, consegui beber um ou dois orujos e passar meia hora à conversa com a S., a dona. Nasceu na África do Sul, em Jo'burg e foi para Portugal com sete anos. Está em Mallorca há quatro anos (eu pensava que ela tinha nascido aqui...)

3.7.19

Marinheiro profissional

Hoje percebi finalmente por que raio de carga de água as pessoas navegam três dias e sabem tudo da navegação: estava numa conversa com uns hóspedes a quem devo fazer o check-in e a certa altura disse "sou marinheiro e percebo bem o vosso problema" (a citação não é verbatim de propósito) e antes de enviar a mensagem senti necessidade de acrescentar "profissional" depois de marinheiro. Imaginem que em vez de ser o que sou era médico: teria necessidade de acrescentar "profissional"? Ou engenheiro? Ou arquitecto? Ou charlatão? Não, claro. Só os marinheiros devem ter o cuidado de acrescentar "profissional", porque se há coisa de que este mundo está cheio é de marinheiros, apesar de sermos tão poucos.

2.7.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-07-2019

«En effet Ateh était poète, mais les seuls mots d'elle qui nous soient parvenus sont les suivants: "La différence entre deux oui peut être plus grande que celle entre un oui et un non."»

«Les actes de l'homme sont comme les mets, et les pensées et les sentiments comme des assaisonnements. Pour celui qui sale les cerises ou arrose de vinaigre un gâteau, tout ira de travers...»

«Constantin lui répondit que sans livre il se sentait nu, et que personne ne croit un homme nu même s'il dit qu'il a beaucop de robes.»

Milorad Pavić in Le Dictionnaire Khazar, ed. Belfont

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Performance de teatro na Sifoneria. O actor / animador / o que for pedia-nos que escolhêssemos uma palavra, que não era suposto dizermos a ninguém. À cautela escolhi duas, a outra sendo Hallelujah, que acabei por usar.

Hallelujah!

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Às vezes pergunto-me se na verdade o melhor remédio não será Karen Dalton, muito mais do que o riso. Depois começo a ouvi-la e a resposta sai de jacto: Sim, é.

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Exemplo de diálogo que me enche as medidas: um fornecedor explica-me que deve alterar o preço (para cima, claro) porque quando fez a quotação viu mal a dimensão do serviço. Estabeleço mentalmente um limite e digo-lhe para me fazer nova proposta. O homem fica exactamente no limite que eu estabelecera. Digo-lhe que sim e ele começa a divagar, cortou o aumento em dois porque blábláblá. Corto-o:
- J., ando nisto há quarenta anos.
- Ah, então não é preciso dizer mais nada. Boa noite e obrigado.

O que diferencia um barco de regatas com uma boa tripulação de um outro com uma tripulação de clubes são os gritos e as conversas a bordo. Numa boa tripulação não se fala, com a óbvia excepção do táctico e do gajo do leme. Gritar então é impensável. Fiz regatas de dias em que tudo o que se ouvia no convés era "Viragem de bordo em dois comprimentos", "cambadela em três comprimentos", "italiana em três comprimentos (ou quatro, ou cinco, mais frequentemente). Não há conversas inúteis. Um dia estava à conversa com o meu vizinho de borda e oiço a voz do skipper: "Querem um chazinho?"

Não sei de onde vem este gosto pelo entendimento tácito. Suponho que seja a noção de pertença a um grupo (a uma tribo, como agora se diz. Acho a expressão abominável). I know them. I am one of them. Esta grande fraternidade de gajos que não se conhecem, mas conhecem as mesmas coisas, viveram as mesmas situações, passaram pelo mesmo e sabem que hoje sou eu e amanhã és tu e depois de amanhã será outro e é para isso que estamos cá. Não há ninguém mais individualista do que um homem do mar e ao mesmo tempo mais necessitado do grupo; essa contradição exprime-se na parcimónia dos diálogos. A necessidade de conversa pára quando se determina que sim, somos do mesmo bando; se não somos, não há palavras que o salvem: nunca seremos.

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Por falar nisso: encontrei finalmente o nome do autor do poema de onde vêm esses versos, de que tanto gosto e o título do livro: Selected Bequia Poems, de Richard Dey. O livro está encomendado. Talvez mitigue esta lancinante necessidade que tenho de ir a Bequia.

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J. L., o dono da Babel e grande apreciador de Lisboa sugeriu-me um livro. Chama-se "Dias felizes no Inferno", de György Faludy, um poeta húngaro que desconhecia totalmente.

Ainda vou no princípio (o meu ritmo de leitura não melhorou muito nos últimos dias) e já resisti a muitas tentações de copiar aqui uma frase ou outra.

A esta não resisto (a tradução é minha, do espanhol): "Os meus avós eram donos de uma grande mansão de um só piso, em forma de L, perto da estação da aldeia e voltada para as montanhas. Em tempos fora uma pousada e cada uma das suas divisões estava mobilada de tal maneira que quartos e mobiliário pareciam ligados entre si por uma estranha afinidade. Se alguém pela tarde batia à porta da frente, as taças e copos de vidro alinhados no armário no outro extremo do corredor começavam a mover-se, como jovens que esperam ansiosas o seu primeiro baile." Se isto não é literatura da maior vou ali e já venho.

1.7.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2019

A Bodega Can Rigo existe há cento e quarenta anos. Não é sítio que frequente muito porque está no meio do quarteirão mais turístico de Palma, mas cada vez que lá vou admiro a casa por isso mesmo: resistiu, manteve o seu carácter mallorquin, serve hoje como - adivinho - servia quando abriu. Hoje olhava para o espaço (é minúsculo) e pensava que deve ter sido refeito há trinta ou quarenta anos. Não sei. Perguntarei ao dono, quando lá for um dia mais tarde e ele estiver de serviço. Comparo a casa com o P., que está a fazer num ano o que não fez em trinta e cinco. Vai ficar como a Can Rigo: novo com trinta e cinco anos de idade.

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Uma das coisas que mais aprecio neste trabalho é a quantidade de novidades que estou a aprender. Saber é bom, sem dúvida; mas aprender é melhor: é o caminho que leva a saber e os caminhos que levam a um lugar são melhores do que o lugar. Hoje, por exemplo, fiquei a saber que um tanque de combustível de aço inox não é só um tanque de combustível de aço inox, tal como eu pensava. É preciso que as soldaduras tenham sido feitas pelo exterior E pelo interior, sob risco de fugas de combustível intempestivas e incontroláveis. A sujidade no tanque - que inevitavelmente se acumulará - provocará pequenos pontos de corrosão ao longo das juntas e mais tarde ou mais cedo haverá fugas de gasóleo, se não houver soldadura dos dois lados.

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Um dos aspectos negativos do saber é ser um antídoto para o optimismo. Ora sendo este (em excesso) uma peça basilar na constituição de qualquer marinheiro, será que saber tende a fazer desaparecer o marinheiro?

Não. O que acontece é que o optimismo avança, muda de território; o marinheiro não deixa de ser marinheiro: é o seu optimismo que muda e se instala um bocadinho mas à frente, um bocadinho mais fundo.

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Uma coisa posso eu garantir: no dia em que o P. ficar pronto vai haver nesta terra uma explosão de champagne, whisky, rum, hierbas, Palos, Vermute, cerveja, vinhos branco e tinto,  Bailey's, Bénèdictine, Pastis, Vodka, Gin, Tres Caires da qual se guardará memória muito tempo.

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Quinta-feira chega o A. M., um capitão filipino que há muitos anos (sete ou oito) ajudei, num transporte complicado da Martinique para St. Martin. Deve ser das pessoas mais adoráveis com quem já naveguei. Convidou-me para jantar e perguntou-se se estou à procura de trabalho, pode ajudar-me, quer ajudar-me. Não nos vemos desde St. Martin...

"I know them. I am one of them."