31.7.20

Vida, invenções

Não sei se conseguiria escrever um romance. Inventar a minha vida já me deu tanto trabalho...

Futuro feito

As pessoas deviam embebedar-se devagar, como se faz amor a uma senhora que se ama. Toda a tarde, copo a copo, abraço a abraço, beijo a beijo, gole a gole. Devagar e pensando no que se faz: um corpo, um copo amam-se milimetricamente.

Hoje, por exemplo: vim a Cascais, que agora amo mais do que amava quando cá vivia. É como reencontrar o corpo que amei e bebo-o, devagar. Volto a ele como voltaria a ti, volto a esta baía como ao teu ventre, a este vento como ao teu sopro, satisfeito e saciado.

Volto atrás: o meu futuro é tudo o que fiz, tudo o que te fiz.

Sem querer

Enquanto espero pela consulta no centro de saúde vejo as tele-notícias. Ao conjunto de sortes que é estar fora de Portugal acresce esta: não ver esta corja sem querer.

Magia dos números

Se a Alemanha perder dez por cento do PIB e Portugal também,  perde muito mais dinheiro do que nós mas fica infinitamente melhor.

Vidinha, vida

O que se vê não passa de um diminutivo daquilo que é.

30.7.20

«Isso»

A ideia é relativamente simples: a perna esquerda vai em modo passeio, a direita em modo deslocação (ou vice-versa, pouco importa). O resultado é ainda mais simples: um longo passeio de bicicleta que ao contrário do sentido habitual de passeio tem um objectivo: voltar para bordo. Daí, penso na bênção que é poder dizer «voltar para bordo», daí volto atrás e penso na sorte que é «fui jantar com um amigo». Não é bem um amigo, porque é mais do que isso. Não é bem um jantar, porque foi mais do que isso. Não é bem um passeio porque é mais do que isso.

Talvez no fundo «vida» seja tudo o que é mais do que «isso», não é? Tudo o que fica para além disso. Amizade cumplicidade, jantar triplo reencontro, bicicleta trajecto e passeio, Tejo cenário, tempo como se o tempo não existisse. 

Como se tudo isto fosse exactamente isso, isso mesmo, mais do que «isso».

Os queixos e as balizas

Ignoro se é possível gostar menos de qualquer coisa do que gosto de futebol. Se for, esse lugar está ocupado - em mim, claro. Não falo pelos outros - pelo boxe.

Mas tal como há golos que parece terem sido feitos não pelo goleador mas pela baliza - como se esta chamasse a bola, lhe dissesse "vem por aqui" e a bola não conhecesse a resposta correcta ("Sei que não vou por aí") suponho que haja queixos que chamam um uppercut, o provocam (no sentido de causalidade).

Não sei. Metáforas futebolísticas e boxísticas não são o meu forte. Refiro-me à inevitabilidade, a certo tipo de atracção demolidora, certo tipo de vitórias que o são por falta de alternativas.

Ou a certas vidas: são elas o queixo ou a baliza da minha analogia. Ou seja: há derrotas que contam como vitórias. A baliza que recebeu o golo porque a bola não tinha alternativa faz parte do golo, faz parte da beleza do conjunto, da grandiosidade geral, amorfa, difusa das coisas. 

Amar é isso: ser o queixo e o murro,  a bola e a baliza. 

Talvez não. Talvez isso seja apenas viver, talvez o amor não seja para aqui chamado.

É. 

29.7.20

Doxa, massas, mentiras

Que as pessoas gostem de ser aldrabadas,  enganadas, tomadas por idiotas não data de hoje. A história está cheia de episódios desses.

O que me parece recente é os crentes tomarem-se por espertos e pensarem que idiotas são os cépticos. É que nem sequer se lhes dá o benefício da dúvida: não alinhas na narrativa dóxica és um assassino, ponto.

Esta crise vai servir para mais um triste capítulo do tratado de psicologia de massas que alguém anda certamente a escrever. 

O sono é preferível

E assim chega Mértola ao fim, por esta vez. Jantar leve no Salvador, saudades pesadas e antecipadas espalhadas pelas ruas, meio minúsculo pingo de medronho no Guadiana. A velha máxima "Sou de onde estou" esfarela-se a cada saída de Mértola. Sou de onde quero ser está mais perto da verdade. Isto é, mais perto de mim.

Sou uma imagem da verdade - tudo aquilo passível de ser acreditado o é. Sim, sou  passível de ser crido. Já querido não sei, as opiniões divergem.

Gosto de opiniões divergentes. Nunca se sabe qual a verdadeira. Não é forçosamente a do meio, não pensem. Isso seria fácil de mais. Algumas pessoas querem-me, outras crêem-me, outras ainda nem uma nem nenhuma.

Eu creio em mim e há dias em que me quero. Nem sempre, claro. Apesar de tudo, prefiro o sono.

28.7.20

Flutuar, cansaço

Caio no cansaço como quem se lança para uma piscina e espera que a água o suporte. Boiar no cansaço...

Do asco

Martelar mil vezes na cabeça dos abutres: ter uma agenda política não dispensa a ética e o decoro.

Um rio tranquilo, se faz favor

Deixar-me ir, como se um rio me levasse.

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 27-07-2020

São quase oito e meia da tarde e a temperatura em Mértola caiu para uns míseros trinta e três graus. Hoje a máxima não chegou sequer aos quarenta. Amaricou-se e ficou lá perto, mas não, nada de passar a mágica marca dos quarenta, abaixo da qual a casa aguenta bem uma ventoinha, imagino. Sem isso, só na rua. 

.........
Deixei-me de arabescos e oiço Hildegarde. Não há melhor maneira de exprimir simultaneamente a gratidão e o espanto, sobretudo se se lhe juntar um copo de Balanches branco, como agora faço. A regra de que à noite nesta casa só se bebe medronho está posta de lado de uma vez por todas, como posta de pescada comida. Ficam as espinhas e a pele, que é a memória da garrafa de Farelo no congelador, coitada. Amanhã sai de lá, como eu saio daqui no dia a seguir. 

.........
Gosto demasiado da vida para ser capaz de a abarcar num só abraço. 

.........
A única coisa do género feminino que nunca me largou é a gratidão. Uma espécie dela metafísica, existencial, irracional. Não sei que fazer com isto que se me cola à pele como nunca mulher alguma. Pena não saber a quem dirigir o agradecimento.

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«Efectivamente, a virtude não é mais nada senão um afecto ordenado e medido cujo alvo nítido é Deus...
...

Podemos ver isto mesmo em uma ou duas virtudes. E sugiro que escolhamos a humildade e a caridade, pois quem obtivesse estas duas já não precisaria de mais nenhuma, uma vez que as possuiria a todas.»

(Anónimo, in A nuvem do não-saber.)

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«Dói-me o mundo todo excepto a tua mão
a lavar-me por dentro.
Isso sabemos nós.»

(Cláudia R. Sampaio,  in  Já não me deito em pose de morrer.)

Ou seja, se percebo bem: um anónimo inglês do século XIV, a música de Hildegarde von Bingen, o vinho branco de Balanches, a poesia de Cláudia Sampaio e o calor que se esvai, pouco a pouco. É isto uma noite? É.

«Tragam-me um homem que me levante com
os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia»

(Cláudia, de novo.)

...........
A casa é pequena, os azulejos pavorosos, a luz aterradora e os móveis de fugir.  E ainda há quem goze com a capacidade que os marinheiros têm de sentir-se em casa seja onde for. 

Apercebo-me hoje, pela primeira vez, de que há um mistério mais vasto do que a vida. Chama-se gratidão e é o mistério dos mistérios.

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Sinto-me um porto à deriva sem um navio no cais. Ou seja: estou enganado, porque ando tudo menos à deriva e tenho montes de navios no cais, prontos a largar. Isto de não ser compreendido pelos próprios sentimentos é uma chatice.

27.7.20

S. Tamuje

Desafio qualquer ateu: venham comer ao Tamuje e digam-me se a meio da refeição não começam a ter dúvidas.

No fim, estão convertidos: Deus existe. É a senhora que lá cozinha. Chama-se Ana Isabel (ele há nomes predestinados) e juro, palavra de honra, xicuembo xa'nhaca, vou morrer aqui: uma refeição no Tamuje equivale à descida de cinquenta pombas. Ilumina. 

Dispersas do dia - Mértola, 27-07-2020

É raro ouvir música em Mértola. Uma das coisas que me seduz nesta vila é o silêncio. Já aqui muitas vezes falei dele, um silêncio sólido como uma barra de sabão de Marselha, que é preciso cortar à faca: ou como um olhar inteligente numa mulher bonita, que nos seduz antes de se deixar seduzir.

Hoje infringi esta regra. Infringi todas as regras: bebo vinho branco (Balanches, este homem foi tocado pela graça divina) em vez de medronho, oiço música em vez de ouvir silêncio e não faço nada em vez de não fazer nada.

Enfim, não faço nada é um manifesto exagero. Maravilhar-se é fazer alguma coisa, não é? Ser feito alguma coisa. Fazer qualquer coisa daquilo que se é, se vê, se pensa que se é... As concatenações são infinitas. Entro no silêncio, abato-o, substituo-o - por música árabe - e vejo que os elefantes continuam com o rabo virado para a porta. A senhora que eficaz e gentilmente me limpa a casa quando não estou reteve esta regra: os elefantes devem ter o rabo virado para a entrada da casa. Não é de modo algum consensual, mas eu gosto dela e por enquanto fica assim. Talvez mude qualquer dia, quando me fartar de ver os rabos dos elefantes e começar a acreditar noutra superstição qualquer. É preciso mudar de superstições regularmente, como toda a gente. Não tarda ponho máscaras nos proboscídeos, coitados. Tenho dois: um de pau-preto com a tromba para cima, outro de uma madeira que desconheço, com a tromba para baixo. Estão os dois de rabo virado para a porta.

Não tarda um terremoto ocorrerá em Mértola: os meus elefantes.

Ou o Balanches branco mas não quero falar muito nisto. Um cavalheiro não revela os segredos que acabam de lhe ser confiados.

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«Desta forma se verifica que tanto os principiantes como os discípulos mais adiantados só poderão meditar como convém se primeiro lerem ou escutarem; e só poderão orar como convém se primeiro meditarem.»

(in «A nuvem do não-saber», anónimo inglês, séc. XIV)

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«Silêncio de cortar à faca» é uma expressão ambígua. Em Mértola tem de se cortar o silêncio com uma faca para se poder avançar nas ruas, exactamente como na selva os exploradores cortam as lianas para progredir. É bom, contrariamente ao que a expressão idiomática sugere.

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Vou à janela e confirmo que a música está demasiados alta, o copo de vinho quase no fim, a temperatura mais baixa (está nos 27). Ajo sobre aquilo que posso: a música e o vinho. O resto aceito.  Verdade seja dita, não há muitas alternativas, pois não?

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Não sei se já repararam, mas um corpo feminino é um prodígio, uma dádiva, um sólido argumento em favor das ideologias teleológicas. Não as partilho, de todo - acredito mais no acaso do que na necessidade - mas gosto de tudo o que me faz vacilar, o que põe à prova as minhas convicções.

Quando esse corpo tem uma cabeça por cima, as coisas não mudam de figura. Mudam de grau, de patamar, de galáxia. Uma indecência, é o que é.

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«Ninguém vem para o Alentejo comer pouco», diz-me a senhora do restaurante. Corrijo interiormente: «Ninguém vem para o Alentejo viver pouco.» (A garrafa de medronho está no congelador, não vá amanhã escapar-se-me o dia e ficar eu só com o medronho.)

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Página em branco perante mim, como aquelas pistas nas quais deslizam velozes patinadores, mão atrás das costas, curvados para melhor avançar. Sentado na cadeira, claro. O mínimo que se pode dizer é que não sou um repentista. 

26.7.20

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 26-07-2020

42° em Mértola. Constato com satisfação que toda a gente anda de máscara, coisa que se justifica facilmente e se compreende ainda mais facilmente. Saio de casa e venho para o café Guadiana, centro da vida social, intelectual e cultural da vila. Sinto-me protegido, rodeado de devotos altruístas, amigos do próximo (neste caso eu) e de fantasias.

Usar máscara - diz meia dúzia de entendidos por esse mundo fora - tem tanta utilidade na luta contra o vírus como acender velas na igreja para acabar com os ciclones. Lutar contra as crenças é difícil, mas não devemos esmorecer: vejam o que aconteceu ao socialismo cientifico de Marx. Já nem os marxistas acreditam naquilo.  Foram precisos - o quê? - uns míseros cento e cinquenta anos. Um ápice. Um ar que lhes deu. Aposto que lá para 2170 a crença na maldade do vírus será substituída por outra crendice qualquer. O homem não terá mudado muito - não mudou desde que pintava bisontes e mamutes nas paredes das grutas, não é agora com um vírus marado que vai começar a acreditar na razão - e motivos não faltarão, desde o arrefecimento global ao crítico problema da inversão dos pólos magnéticos, coisa que nunca se terá visto e será certamente provocada pelo uso intensivo de papel feito com folhas de alface e o terrível impacto disso nas criações automatizadas de minhocas.

Por mim, aceito tudo. O calor, a cerveja no café Guadiana (não há imperial), o terrível barulho do ar condicionado ("está velhinho, por isso faz esse barulho". É sempre bom saber a "causa das coisas"). Vim para dentro, mas a diferença de temperatura não justifica tal desgaste no capital de paciência e volto para fora. Ficar em casa é difícil, mas já o sabia e comovi-me na mesma quando cheguei com os meus sacos de livros, fiz as primeiras arrumações e descobri duas ou três coisas cuja existência me estava completamente obliterada da memória. 

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Estou em Mértola, rodeado de devotos de S. Covid, banhado em calor, a beber cerveja insuficientemente gelada. Fico três noites. Como não aceitar tudo?

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As pessoas põem religiosamente a máscara antes de entrar no café. Antigamente, benziam-se quando passavam à frente da igreja. O mecanismo é o mesmo, porém este é-me mais dificil de aceitar, talvez por ser mais recente. Apesar de tudo a Igreja deu grandes obras ao mundo. Este vírus limita-se a expor as insuficiências cognitivas da população. Há uma diferença, convenhamos.

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O projecto de passar os dias em casa parece-me comprometido. Não importa. Os planos devem ser como os princípios do outro: se não servem, arranjam-se uns diferentes.

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No museu Vieira da Silva almocei a melhor feijoada brasileira que até hoje comi no hemisfério norte (e em grande parte do sul). Quinta têm cozido à portuguesa. Já um lugar para mim está reservado. Quem come fondue de queijo em Moçambique come um cozido em Portugal (este raciocínio é falacioso. A ver se os pró-Covid descobrem a falácia. É pouco provável, mas nunca se sabe. Althusser tentou inverter alguns andares da pirâmide de Marx. Não conseguiu: entretanto saltou-lhe uma loucura ao caminho e teve de matar a mulher. Mas pelo menos percebeu que o edifício teórico não estava lá muito sólido. A minha falácia é mais fácil de denunciar).

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A senhora que se veio sentar na mesa à minha frente é obesa, fuma, grita imenso com um dos dois miúdos que traz, o mais novo que se lhe senta nos joelhos, ela continua a fumar, o miúdo põe-se a brincar com as coisas que estão na mesa, a senhora diz-lhe para não brincar com as coisas que estão na mesa. Compreende-se: o vírus transmite-se muito facilmente. Vá lá que tem a máscara ao queixo, pronta a ser posta no regulamentar sítio.

O puto (chama-se João, para quem estiver interessado) não pára de se mexer, a senhora não pára de gritar e eu pergunto-me por que raio não é esta doença fulminante? Entrar por aquelas goelas abaixo, calar a mulher, imobilizar o puto (poupando o mais velho, adorável). 

........
O jantar vai ser leve, o vinho Balanches, a cama cedo: uma vida ordenada é prólogo da felicidade. Só espero resistir aos impulsos assassinos  (o calor é um poderoso aliado. Vou resistir).

........
O café Guadiana encheu-se de pessoas e de moscas. Às oito encontro-ume aqui com o C., que me deu boleia para baixo. Faltam quinze minutos. A senhora obesa agora grita para um telefone, o puto parou, as moscas não, o mais velho fala continuamente com a mãe que não o ouve sequer e menos ainda responde e eu pergunto-me  se não será hora de ir ao supermercado. 

É. 

...

Não era. Está fechado. Amanhã, pequeno-almoço no Estaminé. A senhora gorda foi-se embora, as moscas multiplicaram-se por um factor dez e a mesa à frente foi ocupada por duas senhoras francesas. Está definitivamente na hora de me ir embora.

Anti-daltónicos

Esta prática de esquartejar a sociedade em peças cada vez mais pequenas cria grupos  onde os esquartejadores não os querem. Coisa que me deixaria indiferente, não fossem as vítimas os grupos que estes palermas dizem querer defender. É revoltante. Já nem daltónico se pode ser.

Há muito tempo na má direcção

Uma das sete pragas do mundo moderno é este hábito de pôr gelo moído nas bebidas. Talvez alguém devesse chamar a atenção da Greta para o crime ecológico que é moer gelo; ou a dos politicamente correctos para a discriminação a que os nobres cubos de antanho estão agora sujeitos.

Açaimos em todo o lado, histeria global, AO90, aquecimentos gretescos e premiados, gelo moído: este mundo não avança na boa direcção. 

Já o andam a dizer há mais de cinco mil anos.

25.7.20

O que aí vem

«Por conseguinte, presta muita atenção ao tempo, ao modo como o despendes, pois nada é mais precioso do que o tempo. Num só momento, por breve que seja, pode-se ganhar ou perder o Céu. Um sinal da preciosidade do tempo é este: Deus, que o administra, não concede dois momentos de cada vez, mas um após outro. E Deus faz isso, porque não quer inverter a ordem ou curso normal da causalidade na criação, pois o tempo existe para o homem, e não o homem para o tempo.»

Esta pérola (salvo dois ou três pormenores da tradução, como aquele «pode-se ganhar ou perder» em vez do para mim preferível «pode ganhar-se ou perder-se» e duas vírgulas dispensáveis) está num livro chamado "A nuvem do não-saber" (The cloud of unknowing) de um anónimo inglês do século XIV, editado pela Sistema Solar com a chancela Documenta. Ainda estou no princípio, mas pelos afagos que já lhe dei percebi que é a primeira de uma longa série de maravilhas. Foi-me recomendado pelo dono de uma livraria chamada Poesia Incompleta, a quem deixo aqui um modesto e sincero obrigado.

Há outra antes, ainda no prólogo: «Qunto aos tagarelas carnais, os bajuladores e os detractores de si mesmos ou dos outros, os mexeriqueiros, os linguareiros e os que espalham boatos, e ainda toda a espécie de críticos, nunca eu desejei que vissem este livro. É que nunca tive a intenção de escrever esta obra para indivíduos desse jaez.» Esta mesma precedida de uma outra, logo no segundo parágrafo.

Ir às raízes do nosso saber é provavelmente a única forma de enfrentar o que para aí vem.

24.7.20

Dispersas do dia. Lisboa, 22-07-2020

A biografia de um homem - ou pelo menos a sua parte afectiva - devia ser feita não a partir dos amores que viveu, mas dos seus amores falhados. Ses amours ratées, pour ainsi dire. Une longue liste d'amours manquées é sinal seguro de uma vida preenchida. Isto é, pré-enchida, de uma vida que se viveu a priori, ab ante. Os amores falhados são os únicos que só têm futuro. Os outros não saem do presente ou do passado.

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Quando preciso de verduras bebo um mojito ou dois (sem açúcar, claro) e assim fico com o tanque da clorofila cheio. Para a vitamina C escolho rum simples: a lima é uma poderosa e inigualável fonte da coisa.

Sugiro fortemente os mojitos do Procópio. Têm a melhor proporção de verde e rum que se pode encontrar a leste da cidade do Panamá. Não igualam - infeliz mas compreensivelmente - os do Red Frog do Casco Viejo de Panamá quando o colombiano lá trabalhava. Nenhum iguala, em parte alguma do mundo, mas os do Procópio andam lá perto.

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Devia ser proibido ouvir falar francês quando não se pode intervir na conversa.

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Buñuel escreveu um tratado sobre bares que é - para mim - seminal. Cada vez que venho ao Procópio penso que foi aqui que ele o escreveu.

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Entro no táxi, na rádio passa Life is life, um hit dos anos oitenta, creio. A cançoneta leva-me a falar com o chauffeur. Moldavo, engenheiro civil, em Portugal desde o ano dois mil, nove anos em Reguengos de Monsaraz, a filha fez o ISEG e casou-se com um colega economista. Taxista em Lisboa. O melhor que apanhei nos últimos duzentos anos. A mulher morreu de cancro e ele «não [pode] sair daqui sem ela.»

«A minha vida é aqui», conclui quando chegamos ao destino. Life is life. A vida é uma contorcionista cega, boa e sexy como um amor que chegou ao fim antes de acabar. Escrever é uma das maneiras de lhe fazer amor: ela não pode dizer que não.

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Dia mais estúpido dos próximos vinte anos, espero: começa horrivelmente, continua sofrível e acaba com um jantar adorável. Quem falou em contorcionistas cegas?

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Em cada sábio vive um pedagogo. Infelizmente, o inverso não é verdade.

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Pedir à maioria das pessoas que pense racional, ordenada, logicamente é como pedir a um católico que apresente provas da virgindade da Senhora ou da ressurreição do homem. A fé e a razão são campos de jogo diferentes, jogos diferentes, outros árbitros.  Tão miscíveis como aço inox e hidrogénio.

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Os elementos físicos de um bom bar são:
- Qualidade dos cocktails;
- Decoração;
- Luz;
- Música;
- Competência e simpatia do pessoal.

O que faz um bom bar: a dignidade. A nobreza. O resto é conversa de esvaziar copos.

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Os dias estúpidos são feitos de uma sequência de erros que cometemos. Os bons, de uma de coisas boas que nos aconteceram, nos foram oferecidas.

Um teólogo que interprete isto. Eu não sei.

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Escrever é uma espécie de metalurgia: há que dar forma ao metal, torná-lo comestível.

23.7.20

O copo sempre cheio - Kalimerices

Não passa um dia que não dê graças à vida. Não por me ter dado tanto, como diz a canção, mas por me ter ensinado a ver tanto no pouco que me deu; e a fazer tanto desse pouco. 

(Isto é mentira e - pior - uma injustiça.)

O primeiro e o último passos

Não sonhes. Não tentes sequer "ver as coisas como elas são": isso não passa de sonho. Nem olhes para o copo. Antes de saber se está cheio ou vazio terias de aprender o que é um copo. Aborda virgem a vida, olha para ela como se tivesses nascido ontem, embebeda-te sempre que possas: ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo.

Cada passo que dás deve ser o primeiro. Tens é de aprender a dá-lo como se fosse o último, porque ou é ou pode ser. 

22.7.20

Pasteleiras sónicas

Há pouco subi do Cais do Sodré ao Páteo Bagatela pelas ruas do Alecrim, Misericórdia, etc. sem pôr o pé no chão uma única vez. (Numa pasteleira...)

Não é que atribua um alcance por aí além a isto, mas é facto que a rua da Misericórdia só não está igual ao que era porque está muito pior. Ora aquilo estar muito pior é um consolo.

Imagine-se que estava melhor?  O Medina perderia pontos na sua candidatura a pior presidente da CML de sempre, os riscos de queda diminuiriam acentuadamente, os automóveis poderiam andar mais depressa... Só desgraças. 

Contradições fácticas

Os náufragos têm uma proverbial prancha de madeira. Sempre, aquilo não escapa.

Posto isto, que fazer dos iniludíveis factos de que a) não sou um náufrago e b) tenho sempre uma prancha de madeira que me espera?

A b) não é um facto e não é iniludível; a a) também não. Há factos que se contradizem a si próprios.

20.7.20

Ciclos

Aconchego-me no regaço das palavras que aí vêm, as que estão por parir, as únicas que me ligam, me falam, me olham nos olhos. As outras não me interessam, nem o sono me tiram. 

Com as que aí vêm teço cobertores, enrolo-me neles, faço coreografias encantadoras, hipnotizantes.

Depois as palavras nascem, os cobertores mudam de cor, as coreografias derretem como gelados a pingar do cone e vão-se embora.  O ciclo repete-se todos os dias, todo o dia.

19.7.20

Fragmento de vida

Fragmentos a que chamamos palavras juntam-se noutros fragmentos a que se dá o nome de frases, que se juntam em áreas maiores chamados parágrafos e por aí fora.

Se juntarmos todas as palavras, parágrafos, textos, livros que existem, existiram ou existirão - se os colarmos lado a lado - se os alinharmos em fila - se os empilharmos em colunas até às nuvens mais altas - obteremos uma coisa a que se chama "Fragmento de vida".

Como fazer turismo

Já aqui mencionei várias vezes a minha forma favorita de fazer turismo: sentar-me num café e esperar. Detesto calcorrear ruas, olhar para monumentos com ar entendido (ou desentendido, que ainda é pior), partilhar fotografias com dez mil pessoas por minuto. Muito mais vantajoso, qualquer turista precavido o sabe, é sentar-se num café e deixar a cidade (ou o lugar onde se está) passar por nós. (Idealmente a espera deve acompanhar-se por um vinho da região, se a tiver. Hoje para começar o «passeio» turístico pedi uma cerveja, em honra do tempo que tem feito.)

Claro que este método de fazer turismo exige um pouco de prática e alguns critérios para a escolha do café onde se vai esperar pela cidade. Primeiro: grupo etário. Deve escolher-se o café que tenha a média de idades mais elevada, tanto de clientes como de empregados; segundo: vocabulário. Cafés que ostentem, clara ou escondidamente, as palavras gourmet, wine, food, taste, etc. são imediata e liminarmemte excluídos; terceiro: localização. O café deve ser central sem estar no centro. Os conhecedores sabem que os melhores locais não são aqueles por onde tem de se passar, mas sim aqueles onde se vai porque se sabe que lá estão. Mas não demasiado escondidos, porque se quer ver também os como nós forasteiros. 

A escolha de um café para se ficar a conhecer uma cidade é um exercício delicado, um equilíbrio, um faro: há que ter o sentido do cheiro hipertrofiado. Cheiro metafórico, claro, não o olfacto. 

Uma vez encontrado o ponto de vista, deseja-se ter acertado e espera-se. Se tiver sido bem escolhido, em uma ou duas horas e meia dúzia de copos de vinho conhecemos o sítio como se lá tivéssemos nascido. Ou quase.

Aviso à navegação

Começar o dia a ler a poesia de Cláudia R. Sampaio é como começá-lo num combate de boxe com o Jack LaMotta ou com o Mohammed Ali.

O risco de se sair severamente abalado, sovado, soqueado até aos fundamentos é de cem por cento.

Sugiro a todos a leitura urgente de uma antologia há pouco publicada, chamada "Já não me deito em pose de morrer": as marcas que os murros daquela poesia deixa não se vêem e não doem da mesma forma do que os dos boxeurs.

18.7.20

A graça do mar

Encanta-me esta paisagem que só conheço vista do mar - e com a distância que o mar graciosamente concede.

Agora acabou. Virámos para Leste. Já por aqui andei, por estas bandas no sentido lato. Duas vezes: uma de automóvel, outra de camionete ou comboio, mas agora parece-me muito mais bonito. Ou talvez seja "ainda mais bonito".

Literatura, adiposidades

Às vezes pergunto-me se a memória dos livros que li, dos filmes que vi, das músicas ouvidas não se misturará em mim como a gordura é o resto de tudo o que comi e bebi ai longo dos anos. Uma espécie de argamassa, por assim dizer. Conseguir identificar alguns dos seus constituintes - enquanto que da gordura não faço a mais pequena ideia de onde se guardam os whiskies, os runs, batatas e por aí fora - não lhe altera fundamentalmente a natureza.

17.7.20

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 17-07-2020

Diz a velha sabedoria feminina que o caminho para o coração de um homem passa pelo estômago. Quando venho a Portugal penso que o caminho do patriotismo é o mesmo. Sobretudo se venho ao Porto e os meus passos me levam, à mon corps défendant, ao restaurante o Buraco. O Joseph de Maistre - um autor que merecia ser mais lido (e relido, estúpido) - contava que quando saía da prisão tencionava voltar para sua casa, mas os seus passos levavam-no invariavelmente para casa de uma Madame cujo nome esqueci. (É interessante ver isto que nos fica dos livros quando não temos a biblioteca ao lado...)  No Porto acontece-me o mesmo com o Buraco, com o Candelabro - onde agora bebo um rum para ver se as dores na anca se afogam - com o Aduela, com tantos outros sítios aonde os meus passos me levam sem eu querer, sem sequer eu saber que é para lá que me levam.

Devo contudo dizer que esta relação entre o patriotismo e o estômago me intriga, para lá da boutade. Tem de certeza a ver com as memórias (no plural) e com a memória (no singular). Como em todo o lado do mundo pratos tãos bons como o bacalhau à Buraco que hoje almocei, mas nenhum vai tão longe na geografia como este. Nem na geografia nem em mais nada.

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Conheço o António Cabrita há duzentos e cinquenta anos, mais semana menos semana. É um dos melhores prosadores da língua moderna, na minha ignara mas sensível opinião. Já a sua poesia me é estanque. Hoje comprei um livro dele (ou recomprei, não sei), porque é lindo e porque sei que no meio das estanqueidades todas há pérolas. Não me enganei, como de costume: «...o pavio de uma solidão antecipada, tomar / café, fixando nas borras uns olhos pretos tristes...». Ou «Vi, numa fábrica de seda / em Benares, rostos / que pareciam pétalas sem osso, / mãos estanhadas e símiles / aos panos que lustravam / as nossas, ásperas / e remotas...»

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O meu corpo é uma máquina fisiologicamente preparada para dormir a sesta e é para lá que me vou arrastar, feito personagem beckettiana. Borges dizia que todos acabamos por nos transformar na ideia que os outros fazem de nós. Acrescento: e nas personagens dos autores que nos formaram.

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O Porto está leve e alegre, mas se calhar fui eu que mudei, não sei. Sei é que é uma cidade com o tamanho certo, vá lá saber-se o que é o tamanho certo para uma cidade. Sei que me sinto bem aqui. Talvez seja dessa novidade que gosto, talvez doutra coisa qualquer. Não é de certeza agora que vou procurar o porquê. Sei que quero cá voltar, muitas vezes e não poucas.

(Não conhecer quase ninguém e não ser conhecido de ninguém. Será isso? «Ainda que custe, a dor tornou a vida mais legível» - Cabrita, de novo, o António. Que pessimismo, misturar idade com dor. Que verdade. Inevitabilidade. Perspicácia.)

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Declaração de desinteresse: a maioria dos autores portugueses de hoje não me interessa porque se afoga muito fácilmente. Em palavras, na sua própria sapiência - tão vasta - no seu umbigo, ainda maior. (Tão pouco gosto do que escrevo, mas isso passa ao fim de vinte anos. Às vezes menos, poucas.)

16.7.20

Diário de Bordos - em voo, Palma - Madrid, 16-07-2020

O avião sai atrasado. Pouco, mas sempre é menos tempo que tenho de ficar em Madrid. Desde quatro de Março que não entrava num avião e juro que nunca mais me vou queixar de aviões, aeroportos e arrelias associadas. Quatro horríveis, penosos meses e meio.

A ideia de que o homem é um animal racional apanhou um abanão muito forte com esta crise. Prefiro a alternativa de já não sei quem: o homem é um animal irracional que por vezes é capaz de pensar. Cada vez menos, me parece. A passageira que reclama comigo porque tenho a máscara no queixo é jovem, atlética, viaja com duas crianças muito novas. Mas sente-se no direito de me obrigar a pôr o raio da máscara porque simplesmente não pensa, não usa a razão. É um animal irracional que provavelmente no seu trabalho é competente e reconhecida, quem sabe? Aqui, prefere deixar a razão de lado.

Espero que este pesadelo acabe o mais depressa possível. É horrível ver esta ferida assim exposta. A irracionalidade erigida em gestora do quotidiano. 

A minha máscara tem quatro meses e está a desfazer-se. Ainda é mais incómoda, com este felpo todo a querer entrar pelo nariz cada vez que respiro. Os bebés da senhora choram o tempo todo. Apetece-me mndar-lhe olhares assassinos, apesar de normalmente o choro das crianças não me incomodar. Resisto: não vou eu também ceder a impulsos animais. Já deve estar stressada que chegue. Daqui a pouco chegamos a Madrid e ponho-me num restaurante em Barajas até serem horas de voltar para o aeroporto. 

Na verdade, o único sítio onde provavelmente estarei protegido desta histeria é Mértola. Ou Genebra. Ou no mar, que é onde gostava de estar. 

Sacana do piloto recuperou o atraso.

15.7.20

Corpos e críticos

Todos, suponho, sabemos que a clivagem entre razão e emoção não é tão clara como Descartes pensava. António Damásio escreveu um livro sobre isso, de resto, um livro que deve ser lido por toda a gente - já foi, imagino.

Estou na Plaza Raimundo Clar, em Palma. Acabo de comer uma carbonara sublime, bebo um Amaretto di Sarono, vejo passar as miúdas (miúdas é um termo genérico que designa mulheres de todas as idades). O pesadelo de ontem está esquecido, mais ou menos obliterado pelo eficaz filtro da vontade. Não há mulheres feias nesta cidade. São todas bonitas, muito bonitas e sublimes. A repartição é equitativa (e começa nas empregadas do restaurante, aliás). Penso nos maricas e sei que sentem, perante um belo corpo masculino o que eu sinto perante estas mulheres.

É daí que me vem a associação com Damásio: percebo-os, mas não o sinto nem um minuto. É uma percepção racional, puramente racional. Não tenho rigorosamente nada contra as preferências de cada um. É-me indiferente, tanto quanto a cor da pele, o apelido ou o número de algarismos da conta bancária. Estou-me nas  tintas.

Mas porra, estas mulheres são tão lindas! O meu Pai, que de maricas tinha pouco, dizia que um belo corpo masculino é mais belo do que um seu equivalente feminino. Discordo com cada uma das células do meu organismo, coitado (do organismo, não do meu Pai). Não há no mundo visão mais bonita do que a de um belo corpo feminino desnudo, nem melhor sonho do que o de despir uma mulher bela vestida.

O resto é conversa de eunucos, intelectuais e críticos de literatura.

(Para a R., prova viva do que digo e do que penso.)

Jogo do galo

Portugal é um país de castas. Sempre foi. Podemos imaginá-lo dividido por linhas horizontais: em cima a malta da massa, os cognoscenti (vasto grupo, que pode ou não ter guito ou poder mas se mexe nos meios de quem os tem), artistas do regime, etc. Em baixo o «zé-povinho», simultaneamente desprezado e desconhecido pelas camadas acima. No meio estão os do meio: já não são povinho mas ainda lhes falta uma geração, meia dúzia de zeros na conta bancária ou o «sucesso» (aspas porque detesto o termo) para ascender à linha de cima.

Não contente com esta estratificação, a esquerda decidiu acrescentar outra, baseada na cor da pele, no sexo, na etnia - em tudo o que possa fazer de alguém «uma minoria». Estas clivagens organizam-se  verticalmente. Resultado: temos um país que parece aquele jogo das cruzinhas e dos círculos, no qual é praticamente impossiel ganhar ou perder.

(Cada um dos quadrados subdivide-se ainda em quintinhas, mas isso fica para depois.)

14.7.20

Milho, calor

Onde é que eu ia? Não sei. Algures perdido num campo de milho - sou avesso ao centeio - a espreitar quem de lá vier. Espigas, calor, o amarelo do campo a defender-se do azul abrasador do céu. 

É milho-rei. Não há amarelo que lhe resista. 

Grandezas, dia

O dia deita-se e eu com ele. Em paz os dois, um com o outro e ambos com o mundo. Podia ser pior, podíamos atentar aos pormenores mas nenhum de nós está para aí virado. É possível que uma vida seja feita de pormenores. Não sei. Hoje não é, de certeza.

Hoje é dia de grandezas. Venham muitos assim.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2020

O Abrakadabra está cheio, ontem vi a primeira mulher feia de Palma (ou melhor, em Palma) e qualquer dia vou a Portugal. Os acontecimentos sucedem-se e não se parecem uns com os outros. São todos diferentes. A senhora era visivelmente uma turista, muito gorda - a barriga dela era três vezes a minha, contando por baixo - tinha umas mamas minúsculas e vestia aquilo que me pareceu ser a parte de cima de um biquini, mas para um entendido talvez fosse outra coisa qualquer. Fosse o que fosse, era aterrador de feio. Hoje (talvez por coincidência), o meu bar  - aquele de que gosto porque tem monte de defeitos e uma qualidade, que é eu gostar dele - está cheio. (Não tem nada montes de defeitos.)

Vou a Portugal em breve e vi uma minúscula luz no túnel do P. Estes dois factos estão relacionados, sim. A Miss Peugeot saiu das mágicas mãos do Ivo, melhor ainda do que estava antes da estúpida queda na grelha de esgotos.  (Eu não caí. Quem caiu foi ela, apresso-me a esclarecer.)

Isto está tudo ligado. A vida é um Mecano feito por um cego maneta, alcoólico, sem noção das coisas. Há quem lhe chame «Acaso».

.........
Penso em Mértola e lembro-me de que não é lá que quero morrer. É em Bequia, no bar do Lucífer. Ou em Jost van Dyke, no Soggy Dollar. Mértola é para se viver, não para se morrer.

.........
O Abrakadabra está cheio de gordas. Não sei que pensar. Lembro-me de uma piada do Wolinski: dois tipos sentados numa esplanada.  A certa altura passam duas mulheres, uma magra e elegante a outra muito gorda. Um diz: «Há dois géneros de mulheres. As fodíveis e as infodíveis.»

No quadrado seguinte continua: «Prefiro as infodíveis. Urram quando tu as fodes.»

Às vezes hesito em achar piada, porque sei de experiência que é verdade. As infodíveis precisam de dizer a toda a gente que estão a ser fodidas.

Verdade seja dita: há muitas das outras, também. Das que não precisam de gritar. O gajo que faz este Mecano devia parar de beber, recuperar o uso das dois braços e deixar de implicar comigo.

Reconheçamos e prostremo-nos em veneração: quem inventou o corpo feminino merecia um Nobel. Não sei de quê, mas um Nobel. Da vida. Da felicidade. Da bem-aventurança. Da gratidão. Do que quiserem, mas um prémio. O corpo feminino é a prova provada de que a evolução sabe o que faz, tem sentido estético e - sobretudo - compaixão, a maior de todas as qualidades humanas.

13.7.20

Intermitências, dor

A pergunta é sempre a mesma: "como é melhor entrar na dor - de chapão ou pouco a pouco?" e as respostas também:
a) Não sei;
b) O melhor é não entrar de todo;
c) Cada dor tem uma forma de nela se enterrar.

Numa noite límpida nos trópicos, com a Lua cheia ou lá perto, vê-se frequentemente os cumulus a passarem-lhe por baixo. Às vezes ocultam-na completamente; outras, só um pouco. É sempre bonito de se ver. Um tipo está de quarto, sozinho no poço. A tripulação dorme, vem-lhe à mente aquele haiku que termina com "nada entre mim e a Lua", pensa "Não é verdade. Há as nuvens". As cores são: preto e prateado. Um bocadinho de branco na esteira, outro na amura, se for depressa.

Entrar na dor intermitentemente, dela sair, voltar a entrar. Às vezes até acima, outras até à cintura, só. Saber que ela tem fim.

(Para a C. R., com um beijo.)

O mini-país

Uma vez escrevi que Portugal é demasiado pequeno para produzir verdadeiros megalómanos. O mesmo se passa com tudo. Nem filhos-da-puta sabemos fazer. Não passam de filhos-da-putinha. Os sacanas de sacaninhas, os palermas de palerminhas, os bufos de bufinhas.

Salvo raríssimas excepções, os nossos ricos são tesos com dinheiro, os nossos pobres remediados, os nossos escritores escriturários e as virgens ofendidas. (Todas, sem excepção. Não temos uma única virgem que não se ofenda se alguém lhe propuser deixar de o ser.) 

Creio que a única actividade em que somos bons é a corrupção (pelo menos a nível europeu. No campeonato mundial da modalidade ficamo-nos pelo meio da tabela).

12.7.20

Perguntas

É óbvio que não se pode responsabilizar os media por difundirem notícias sem quaisquer enquadramento, crítica, contraditório, consulta de especialistas que os expliquem. É pena, mas é assim.

Já responsabilizar quem os lê, ouve, vê e acredita sem procurar mais informação, sem ler quem discorda, sem confrontar opiniões e números, sem espírito crítico - pode-se? Ou temos de considerar que a maioria dos nossos concidadãos é inimputável?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-07-2020

Uma cerveja bem fresca, boa, de Pilsen é como vento num dia quente. Isto é: a cerveja está para a vida como o vento para o Verão. O benfazejo vento. Porém, actuam de forma diversa: com a cerveja ingerimos o que vem de fora; o vento leva-nos para lá os calores. Prova de que os opostos aabam sempre por se encontrar, seja lá fora seja cá dentro, em cima ou em baixo.

A., uma das minhas colocatárias (de momento a única. A outra está em Amsterdão, de onde é natural) não gosta de correntes de ar. Cita a avó (dela, mas podia ser a minha): «Protege-te das correntes de ar». Sempre gostei de correntes de ar - mais ainda depois de ter vivido em Moçambique - e nunca entendi este horror ao vento dentro de casa.

Amanhã ofereço uma cerveja à senhora, ver se a minha analogia a ajuda.

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A lista das coisas que faltam para acabar o P. cabe numa folha A4. Quando couber num Post-it dos pequenos faço uma festa.

Não será bem uma festa. Vai ser a Mãe de todas as festas.

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O quarto onde estou é uma merda, mas já me habituei. Além do vidro na janela, só me falta uma mesa decente para trabalhar. Ambos estão estão prometidos para breve. Aposto que o P. virá primeiro.

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A partir de amanhã começa a ser obrigatório usar máscara na rua. Muita gente aplaude a iniciativa do governo local. Por mais tolerante que tente ser - tenho conseguido, juro - não consigo impedir-me de pensar que são um monte de parvalhões. Nada a fazer, eu sei, excepto gritar alto e bom som e continuar a usar a máscara no queixo, como faço agora nas lojas. Pelo menos até o segurança me vir chatear, porque à segunda vence multa e não estou para dar nem um cêntimo a estes tiranetes de opereta.

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Cereja no bolo: ontem passei por cima de uma destas grelhas que não sei para que servem e lixei a roda de trás da bicicleta. Alguém pode dizer ao mestre pasteleiro que já tenho cerejas que cheguem e não preciso nem quero mais?

11.7.20

Declaração de intenções

O homem tem um rabo-de-cavalo, o que só por si é mau sinal. Acresce que o dito é particularmente ridículo, aposto no alto da cabeça, onde antigamente fazíamos as palmeirinhas nos cabelos da minha irmã J.  Preparo-me para ficar ao lado dele no Aurélio e invoca a "distância social" (aspas porque não gosto de usar palavrões no DV). Tudo nele é ridículo, aliás, desde as sapatilhas aos óculos. 

Eu não quero, não mereço e não aceito o mundo que esta gentalha se prepara para construir, por muito que os patetas, idiotas, parvalhões, palermas, mentecaptos, acéfalos, crédulos e acríticos o queiram, aceitem e mereçam.

Adenda: fica aqui explícita uma ordem aos meus filhos: no dia em que me virem de rabo-de-cavalo, Exit. Sem apelo nem agravo.

Volvo quase intestinal

Acabo de descobrir a origem destes problemas de estômago. Não tem nada a ver com o que bebi ao longo da vida e sim com as leituras: tenho de vomitar tudo o que li. O que bebi fica, que não faz mal nenhum.

Aviso em francês

Avertissement aux jeunes demoiselles en fleur: il ne suffit pas d'être belle. Encore faut-il savoir porter sa beauté. 

10.7.20

Náuseas modernas

Segundo um inquérito informal do Diário de Mallorca, a maioria das pessoas inquiridas é a favor do uso obrigatório de máscara na rua, em vigor a partir de segunda-feira.

A modernidade dá-me náuseas. 

9.7.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-07-2020

Estas merdas chegam em revoadas, como os pardais, os golfinhos e os imbecis. A porra da dor da anca, que tanto me afligiu em Março, reapareceu com força redobrada. Encharco-me em anti-inflamatórios, mas até agora tudo o que consegui foi pôr o estômago aos saltos. O idílio entre mim e o corpo estava decididamente a correr bem demais. Amanhã arrefinfo-lhe com uma garrafa de vinho e meia dúzia de runs, ver se quer voltar à convivência pacífica destes últimos dias ou se à mescla de comprimidos volto a juntar o Almax de meia em meia hora.

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Livro do mês (ao ritmo a que leio, é mais do semestre): El asedio de Troya, de Theodor Kallifatides. É o segundo livro deste autor que leio. O primeiro não me encantou por aí além, mas havia nele qualquer coisa que me levou a comprar este. Intuição confirmada, recompensada, A história do cerco de Tróia contada por uma professora aos seus alunos adolescentes, numa ilha grega durante a Segunda Guerra. Ainda estou no início, mas já se começam a desenhar duas ou três tramas amorosas, paralelas à de Páris e Helena (uma delas explicíta desde a primeira ou segunda página, de resto). Delícia de narrativa.

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Uma certeza me consola: as coisas boas também vêm em revoada. Quando este temporal passar aposto que vem chuva da boa, chuva maningue, chuva de alegrar as almas e fazer dançar os mortos.  (Chuva metafórica, por favor, claro.)

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O André Dias vai falar e vou ouvi-lo. Não se devem desperdiçar as raras oportunidades de ouvir um pouco de bom senso.

PS - O som está péssimo e não se percebe nada. Eu não digo que isto anda tudo ligado?

PPS - A partir deste fim-de-semana vai ser  obrigatório usar máscara na rua. Quero mudar de planeta, sff.

8.7.20

A vida não é uma missa

É verdade que durante a missa não se deve manifestar o nosso desacordo. Se és ateu e estás na missa, estás porque queres.

Mas a vida não é uma missa e manifestares-te é uma obrigação. Esbraceja, grita até ficares rouco. Antes calado por excesso de gritos do que por  cobardia. 

Alquimias

As palavras são os degraus de uma escada que sobes lenta, hesitantemente. Vais buscá-las uma a uma, elas retraem-se, escondem-se como os degraus das escadas rolantes e precisas de esperar que voltem a aparecer.

Escreves como pedalas, à velocidade mínima para não titubeares na tua bicicleta, seguires uma trajectória mais ou menos rectilínia, como se soubesses para onde vais. 

Sabes que em breve os ruídos da rua desaparecerão, o teu cansaço transmutar-se-á em sono, como chumbo em ouro nas mãos de um alquimista talentoso.

Quem será o teu alquimista?

Futuro anterior

Concordo com o Arthur quando ele diz que é preciso ser moderno ("absolutamente moderno", precisa ele, como se suspeitasse que um dia alguém teria dúvidas sobre o grau de modernidade a adoptar).

A questão reside no facto inexpugnável de que a modernidade dele era diferente da nossa.

Eu já tinha algumas hesitações quanto à modernidade e tudo parece indicar que o maldito vírus lhes deu a machadada final e as transformou em certezas.

Moderno sim, mas do século XIX.

7.7.20

Jair Bolsonaro, a Covid e o Bem

Bolsonaro contagia-se e todos os anjos do bem lhe caem em cima. Detesto o homem, politicamente e provavelmente detestá-lo-ia em pessoa, se o conhecesse. Mas pergunto-me o que diriam tantos anjos do bem se alguém desejasse a morte de um preto, por exemplo? Ou de um imigrante daqueles que de qualquer forma morrem no Mediterrâneo? Ou de actor muto conhecido - imaginem que alguém se regozijava com a morte daquele senhor que há pouco tempo se matou. Aposto que todos os que querem a morte do presidente brasileiro são contra a pena de morte.

(Ainda por cima, esquecem-se de saber ler jornais: o vírus não mata todos os que infecta. Mata só uma pequena percentagem dos contagiados e uma mais ainda da população em geral.)

É um problema no qual penso muitas vezes: onde colocar a linha? Ninguém duvida de que matar Hitler é um imperativo moral, tal como matar Estaline, Lenine ou Mao Zedong. Bolsonaro, Trump, Johnson não estão obviamente na mesma linha. E Putin, está? Xi Jinping? E aquele noruguês que matou setenta e tal putos num acampamento? Esse talvez a mereça mais do que o idiota do Jair, não? Penso que sim, mas não quero desviar-me do ponto central deste post: a coerência é a marca de um espírito simples. Os espíritos complexos que hoje querem a morte do palerma do Bolsonaro amanhã vão marchar contra o racismo, defender as vidas dos pretos, lutar contra a pena de morte e estarão em acordo com as suas deliciosas consciências, tão boas, tão pacificadas. tão refastaladas no Bem que fazem inveja.
 

Barbas e anjos

Usei barba durante alguns trinta anos, não serei talvez a pessoa indicada para reclamar contra esta moda das barbas. Ou então: Passados quase trinta anos a usar barba, barbeei-me e nunca mais voltei a usá-la. Estava farto. Serei provavelmente o gajo mais indicado para reclamar contra esta moda das barbas.

De onde virá esta mania de as pessoas ficarem todas iguais?  O grande cilindro compressor da moda: saem todos iguais. Já hoje passei por alguns trinta N. F., no mínimo. Rapem essas barbas, porra. Sejai vós mesmos. Comecei a usar barba muito novo, para parecer mais velho. E vós, disfarçai-vos de quê? De mais jovens? Farto de barbas até aos cabelos!

(Já esta moda do branco nas mulheres me enfada menos. Ficam bonitas. Parecem anjos, anjos a resmas, anjos em todo o lado. Só lhes faltam as asas, coitadas.)

Demónios, anjos

Não deixa de ser curioso pensar que o trio de demónios do nosso tempo são o Trump, o Bolsonaro e o Johnson. Putin, Xi-Ping e o gordo da Coreia do Norte são, para a geração mais bem formada de sempre, uns anjos.

6.7.20

Fim de tarde na Plaza del Banc de l'Oli

Primeira e espero última pega por causa da máscara. Refiro-me a pega mesmo, comigo a dizer à senhora para se calar. Não estou na minha terra. O que me põe fora de mim não tem nada a ver com a máscara. É a estupidez. É sórdida, desumana, deixa o homem despido daquilo que o fez humano. (Neste caso é mulher, mas isso não tem nada a ver.)

Felizmente a raiva esvai-se depressa. Este ralo enorme que é a beleza da praça del Banc de l'Oli, o sublime lombo de porco assado do Tom, a beleza da senhora da mesa em frente à minha, infelizmente demasiado longe para meter conversa, engole tudo. Há uma concatenação de beleza, não é? O calor, a praça, o lombo de porco, a senhora sozinha na mesa em frente, demasiado longe. Apetece-me ir ter com ela e dizer-lhe «Olá. Chama-se Mireille? Tem cara de Mireille. É um nome muito bonito, sabe?  Se bem os meus favoritos sejam Helena e depois Laura. Para mim, as Lauras que não conheço são loiras, como a do filme. Ficaria muito feliz se você se chamasse Mireille, é um nome que lhe assenta bem, como um chapéu grande a um rosto oval ou um vestido pouco decotado a uma senhora com os seios pequenos. (Não, não trabalho na moda.) Costumo atribuir nomes às mulheres bonitas que por uma razão ou outra me seduzem. Me atraem. Me fazem sonhar, como você faz. É parte de uma concatenação, um grupo de elementos cuja beleza se adiciona e multiplica a dos outros. Gosto de si porque não está a ler, nem a escrever, nem a mexer no telefone. Observa, e esta praça não pede outra coisa senão que a observem. Que idade tem? Eu sei que isto não se pergunta, sente-se. Mas esta conversa é imaginária, não tem importância. Aposto que tem quarenta e poucos anos, não? Talvez trintas, quase entas. Não sei. Não tem importância. Nada tem importância, na verdade, excepto esta esperança de que você se chame Mireille, aprecie a beleza deste fim de tarde tanto como eu e não seja estúpida. As mulheres desconhecidas que me atraem nunca são estúpidas. A estupidez tira a graça toda ao sonho.»

(Com um abraço ao D. P. F.)

5.7.20

Apologia do Verão

O Verão chegou em força, benfazejo Verão. As mínimas ainda não passam dos vinte e dois, mas em breve subirão para os vinte e quatro, vinte e cinco. É bom este calor, parece que nos diluímos nos dias, que a barreira entre nós e o mundo desaparece, somos unos, nós e o que nos rodeia.

Passei alguns anos sem Invernos e gostaria muito de voltar a passar.

Diário de Bordos, Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-07-2020

O quarto não é a merda que pensei no primeiro dia. Isto é: é uma merda, mas não tão grande. É pequena. O problema sendo sempre o mesmo: o confronto entre aquilo que esperamos e o que encontramos. 

Na verdade, não me queixo. Tenho sorte: durmo no meio de um ciclone, quanto mais à beira de uma rua movimentada, que à uma da manhã se transforma numa rua deserta, como ao domingo. Hoje até abri as janelas.

Quero focar-me na sorte: tenho sorte. Ponto.

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Fui ao P. Uma das enormes vantagens do quarto é estar a cinco minutos do bote. É quase como se morasse nele, não é?

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Almoço no Sa Ronda, "Casa de Comidas". Não consigo acabar a dose de mexilhão, de tão grande. Duas observações: a) o acordo com o meu corpo está a funcionar, se bem traga contratempos e seja um bocadinho bringuebalant;  b) Santa Catalina não é tão má como esperava. 

Tribalismo

Uma das curiosidades desta tribalização da vida pública é que está cada vez maia perto de conseguir transformar um gajo liberal, tolerante, "je m'en foutiste", "façam o que quiserem desde que não me chateiem" num tribalista assumido.

Tenho que lutar contra esta tentação. Não quero que eles ganhem.

"All that jazz"

Por causa de uma troca no Facebook, relembro Calasso: é preciso voltar aos lugares onde a nossa loucura foi mais intensa.

Nada a ver com essa treta dos lugares onde fomos felizes. Quanta felicidade nos trouxe a loucura? Quanta infelicidade? Não é questão de aritmética, mas sim de vida. Rever os lugares onde vivemos mais intensamente, como se os nossos últimos anos fossem uma peregrinação, uma romaria festiva, uma despedida com estilo.

Literatura?

O mundo é demasiado vasto. É preciso cortá-lo às fatias e essa é uma das funções da literatura. 

Cortá-lo às fatias e reconstituir o bolo, com as fatias dispares do bolo de cada um.

Dúvida matinal

Se errar é humano, fazer sempre os mesmos erros é português?

4.7.20

Diversas do dia - Palma, 04-07-2020

Hoje dormi a sesta, não vá o diabo tecê-las. Pensei nas prima donne, é tema que me persegue. Depois deixei de pensar. Quero que se fodam, no fundo. Ou à superfície, caso prefiram.

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Por falar nisso, tento falar na actualidade política portuguesa, tão rica em histórias de putas. Desisto, claro. Vai para quase quarenta anos deixei de as frequentar, não é altura de recomeçar, ainda que sejam de natureza diferente.

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«Metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.» Tenho de repetir isto todos os dias, feito mantra.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-07-2020

Uma pergunta: o equivalente moderno de dormir em quartos separados é ter Facebooks separados?

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O lugar chama-se La Madeleine de Proust e eu estou farto de francesas pedantes. Será que o dia pode continuar, agora que o fel saiu?

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Pode. Chegas a bordo do P. e apercebes-te de que o teu fel é de uma futilidade. A pergunta agora é: porque não têm os alemães e os holandeses o clima, o carácter e os preços de Portugal e Espanha? (Refiro-me a preços nominais. Preços reais devem andar perto.)

(Esta pergunta é retórica. Ainda o ano passado estive num estaleiro holandês que trabalhava tão mal como qualquer espanhol.)

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É preciso um gajo ser um bocadinho especial para gostar disto.

Já para não ser capaz de fazer outra coisa a particularidade necessária multiplica-se por mil. (Pergunto-me se não muda de natureza...)

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Palma é uma espécie de banho tépido que torna as contrariedades em coisinhas risíveis, incidentes tão graves como, para um ambientalista, esmagar sem querer uma formiga. 

Ou: Palma é um poderosíssimo ácido que dissolve contrariedades e as substitui por um bálsamo feito de tempo, de fatalidade e de "qu'est-ce qu'on s'en fout" irrealista, como se a função da geografia fosse demonstrar que a geografia é tudo e sem ela somos nada. Somos onde estamos.

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Amo-te Palma, como Amo-te Lisboa são declarações de amor narcisistas. Quase: não me amo tanto como amo as duas.

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Somos todos prima donne, neste trabalho. A diferença é que alguns são responsáveis e outros não.

(Uma prima donna responsável é uma prima donna coxa, eu sei.)

3.7.20

Post onde não acontece nada (post sem qualidades)

Estou cansado. Dia sem sesta acaba cedo. O meu corpo está fisiologicamente programado para dormir à tarde. Esqueci-me de tudo: compras, contas, escrever (isto não é esquecimento, é falta de energia). Fica para amanhã, que também é dia. Hoje o P. mudou para o Clube Náutico, é tudo o que importa. Muito provavelmente vai ser a sua última casa aqui. Não sei como livrar-me deste cansaço, que não tem nada a ver com a sesta. Amanhã pensarei nisso. 

2.7.20

Descobertas tardias, secularizações e outros pecados

Já passava dos cinquenta quando descobri que podia coçar as costas com um livro.

Isto é, quando descobri que um livro não é sagrado.

Pergunto-me onde - ou quando ou se - acabará este caminho para a banalização do mundo, da realidade - para a sua aceitação, no fundo.

(Felizmente o real está cada vez mais inaceitável. Esta pergunta não tem sentido.)

1.7.20

A minha Palma - 3

Mais um artigo para a Gazeta Rural, a quem agradeço a hospitalidade.

Tinha pensado escrever três artigos sobre Palma e Maiorca e depois passar a outro país – o Panamá, aqui entre nós, país fascinante e também ele escondido. Porém, releio o último artigo e vejo a quantidade de injustiças que nele não estão. Isto é, a quantidade de sítios que não mencionei e que a minha consciência, aos gritos, reclama eu corrija.

Não há nada a corrigir, na verdade: a maioria dos donos dos bares e cafés que mencionei não sabe sequer que escrevi sobre eles; não serão decerto os meus artigos que os vão ajudar a ultrapassar essa situação. É antes um acerto de contas interno, uma exigência da mente para ter paz consigo mesma.
Começo por falar da Tasquita d’Esquina, um café português no qual a Sandra e a Fernanda dão provas frequentes de imensa paciência e suportam as minhas erupções criativas até altas horas depois do fecho, às vezes ajudado pelo toque discreto de um sino, história de me lembrar que sou marinheiro e tenho obrigação de saber o que são horários. A Sandra – uma miúda esguia, seca, daquelas feitas de aço inox – faz francesinhas, porque é do Porto. Não sei julgá-las. Mas posso asseverar que as pataniscas de bacalhau não são nada más. O espaço é giro, amplo, não tem nada daquelas tascas para emigrantes das obras que durante tanto tempo era a única coisa de Portugal que se encontrava no estrangeiro. A selecção de vinhos é bastante decente e até há algum tempo havia medronho mas não sei porquê acabou. Continuo com o Aurélio, dos Maños, no Mercat de l’Olivar, ponto de queda praticamente quotidiano quando regresso do PANDA, às vezes feliz e a precisar de celebrar, outras triste e a procurar apaziguar. As alegrias e as desilusões ali aportam quase todos os dias, filtradas (estas) ou ampliadas (aquelas) pelo longo trajecto de bicicleta desde Calanova. O Maños é o único restaurante ao qual eu vou e quem recebe a gorjeta sou eu: o Aurélio nunca me cobra tudo o que consumo. Ao princípio reclamava, mas agora deixei de o fazer. Não vale a pena. As tapas são de longe as melhores do mercado e a energia do Aurélio é contagiosa, vertiginosa. Aquele homem trabalha depressa mesmo quando não tem ninguém (é raríssimo, admitidamente). Sugiro o pica-pica, uma espécie de pica-pau feito com choco. É de cair, de se levantar à noite, de chorar por mais. Ainda no Mercat há o Lucca e a Silvia, onde por vezes almoço pasta fresca, feita por eles ali à nossa frente e a quem devo saber hoje que a bolognese não é nada do que até agora pensava. O stand chama-se Bottega Bolognese. Foi aqui que ocorreu uma das cenas mais cómicas da minha estadia em Palma: vejo que o prato do dia é carbonara e pergunto ao senhor (ainda não o conhecia) se põe natas no molho. Olhou para mim como se lhe tivesse perguntado em que esquina trabalha a mãe dele à noite. (Note-se que a pergunta é compreensível: Palma está cheia de alemães para quem uma carbonara sem natas é como cerveja sem espuma. Que fazer? Não se pode ter tudo, BMW e saber comer pasta.) Mesmo ao lado fica o Cristian, dos Sabores del Mundo: tem a mais vasta colecção de especiarias que até hoje vi e sabe de todas. Não conhece as das Caraíbas, lapso que me comprometi a colmatar mal chegue à Martinique. É argentino até à medula, faz-me pensar numa piada sobre argentinos que não posso contar aqui e vende especiarias à tonelada por dia. A Núria, do (agora) Corner 37 e antes Latterio é igualzinha à minha tia Lena, mas sabe infinitamente mais de vermutes. É uma senhora pequena, loira e viva como a chama trémula de uma vela numa corrente de ar e eu adoro-a, ela e o vermute La Madre, que me deu a conhecer e só por isso merece o céu.

Por falar de vermutes: quem me iniciou na arte delicada, subtil, esquiva dessa bebida que hoje aprecio para cima de tudo foi o Jaume, da Bodega Can Rigo. O Jaume é um maiorquino de há não sei quantas gerações e sinto-me honrado quando ele me acolhe com a sobriedade densa, sólida, calada que é próprio das gentes desta terra. Acessoriamente, faz o melhor polvo à galega de Palma que comi fora da Coruña e albóndigas que rivalizam com as do Toni, do Café Santa Eulália (segredo: quem as faz é a mãe do Toni). Há alguns anos trouxe um barco de Brighton para aqui e em Lisboa os armadores embarcaram. A senhora fazia uma tortilha como eu nunca comi na vida e teve a gentileza de me ensinar o truque: não cozer as batatas, mas confitá-las. Tentei várias vezes e nunca consegui reproduzi-las. No Toni comi uma tortilha igualzinha à dela. Contei-lhe a história e ele disse-me «Sim, é assim que a minha Mãe as faz. Confita-as, com cebola.» A armadora esquecera-se de me mencionar a cebola, certamente por inadvertência. A praça de Santa Eulália é outra daquelas praças de Palma da qual saímos mudados a cada vez que lá vamos, sobretudo quando se sabe que o imponente campanário caiu numa tempestade, nos anos sessenta. Há dias em que ao fim da tarde o Sol o incendeia como à catedral e pergunto-me se não terá sido isso que o fez cair.
No caminho de casa, depois de deixar a bicicleta na garagem, ficam primeiro o Otaku e o seu saque higiénico – limpa tudo - e depois o Gustar. Não me acontece nem uma nem duas vezes eu passar, o Tom e o Fidel estarem a fechar a casa e obrigarem-me – este verbo é injusto – a beber uma grappa com eles e ali ficarmos a conversar de tudo e mais alguma coisa, como são as conversas de homens no fim das noites. Falta o Minyones, a Bodega Belver, o Sete Machos... O Sete Machos, meu Deus. Já lá entrei tantas vezes sóbrio. O restaurante La Fabrique, dos meus amigos Patrick e Hélène, ela ex-jornalista em Paris e ele restaurador em todo o lado. O «mini-restaurante Casa Julio» (aspas porque cito). É esta, a minha Palma e tenho provas disso: no outro dia, já não sei a propósito de quê, um dos donos do bar España (o mais novo, não passa dos sessenta e muitos) disse-me «tu no te preocupes, eres de la casa» e isto deve valer mais do que um passaporte da Cort.

Palma não é só cafés e restaurantes. Qualquer dia falo das ruas e praças. E da Catedral, claro. Não é amanhã que iremos ao Panamá...

Pequena nota breve de uma conversão extemporânea, instantânea e efémera

Deus existe e vive em Palma.