31.1.21

Tanto, tudo

Estás tenso, impaciente, tens no ventre as pedras de basalto que há tanto tempo trazes contigo não sabes onde - nos bolsos, na mente, nos olhos. Felizmente, sabes que a tensão é superficial. Aprendeste há anos a distinguir profundidades, sabes de onde vêm as bombas que te rebentam nas mãos, mal tocas qualquer coisa. De quão fundo te chegam, onde explodem, onde te queimam, onde te esperam. Bombas de profundidade, minas que sobem em vez de descer e tu aprendeste a medir-lhes a força, a estimar-lhes  a violência. 

Aprendeste, sobretudo, a viver com elas. Transformaste-as numa dor que não dói porque só dói quando tu queres, quando tu a deixas doer. Uma dor que se magoa a si própria, que se faz sombra, explosão silenciosa, passo a passo como num filme mudo em câmara lenta.

Domaste as tuas minas, engoliste os teus calhaus, pregas rasteiras à tensão e à impaciência. Agora só te falta perceber porque te dói tanto, tudo.

Nove coisas que (agora) sei

  1. As pessoas sabem o que é melhor para elas. 
    1. Não sabem, claramente. Contudo, democracia é, acima de tudo, dar a cada um o direito de se enganar. Só os ditadores têm as respostas «certas».
  2. Os media não têm poder.
    1. Têm. Não há volta a dar. Falharam nas eleições de Trump e de Bolsonaro - tanto os media indígenas como os internacionais - mas se em questões políticas não têm a influência que pensavam ter, em questões emocionais têm.
  3. A democracia directa afinal tem falhas.
    1. Não tem. Isto não é democracia directa. Esta é intermediada - mesmo a iniciativa popular que neste momento está a decorrer na Suíça, com o objectivo de  retirar poderes ao Conselho Federal, só será votada em Setembro. Estamos a ser governados directamente pelos media, mas isso não tem nada a ver com a democracia directa.
  4. Os responsáveis por isto tudo são os media.
    1. Não são. Os responsáveis são as pessoas que lêem ou vêem acriticamente os media, o que é diferente.
  5. O Facebook é uma péssima fonte de informação.
    1. Não é. Filtrando o que se lê, é muito mais amplo, mais profundo e mais informativo do que os media. Basta filtrar o que se lê.
  6. (Ao contrário dos pontos anteriores, este não é uma dúvida. É uma confirmação.) «Este país...»
    1. Como sempre pensei, os portugueses não vêm de outro planeta. A uniformidade de reacções à crise demonstra-o à saciedade. Há obviamente diferenças nas titudes das pessoas, mas são de grau, não são qualitativas.
  7. Prefiro ser governado por políticos a sê-lo por tecnocratas, padres ou soldados. 
    1. Quanto ao dois últimos, continuo a não ter dúvidas. Em relação aos primeiros, o exemplo sueco demonstrou que os políticos devem delegar em técnicos algumas das suas funções. Como se aceita sem demasiada dificuldade que os bancos centrais devem ser independentes, também se deve aceitar que algumas decisões devem incumbir a quem não é eleito. Claro que há alguns caveat a ter em conta - em Espanha o «conselho científico» que Sanchez dizia estar a orientá-lo veio a revelar-se inexistente (Sanchez é um crápula, toda a gente sabe, mas não será o último); em Portugal, o governo afastou o Conselho Nacional de Saúde Pública, porque se opôs ao fecho de escolas). Mesmo assim, devem criar-se mecanismos para que algumas decisões estejam for da esfera política.
  8. É preciso reforçar o Estado de direito em Portugal. A facilidade com que o governo toma medidas inconstitucionais e ilegais é assustadora. Ou seja: a reforma jurídica que durante mito tempo vi como prioritária deve obrigtoriamente incluir este aspecto.
    1. Mais fácil de dizer do que de fazer. Continua a sonhar.
  9. (Mais uma confirmação.) A liberdade não é o valor mais importante pra a maioria das pessoas.
    1. Citando o senhor moçambicano que um dia disse ao meu Pai «a liberdade não enche a barriga», o trabalho do liberalismo deve passar por explicar ás pessoas que a liberdade é a melhor forma - no sentido de mais eficaz - de «encherem a barriga». Para quem tem o sustento assegurado, a liberdade é o valor mais importante. Para quem não tem, a liberdade é a melhor forma de o assegurar. Não é um fim em si mesmo.

Demagogia afectiva

Cheguei a este mundo há pouco tempo. Foi quando te conheci. Antes disso, aquilo que eu tomava por vida não passava de uma aproximação. 

Retrato expresso

Sofria tanto quando via um copo vazio como quando o via cheio. No primeiro caso, enchia-o o mais depressa possível; no segundo, bebia-o, também rapidamente. A sua vida oscilava entre estes dois martírios.

Que seria eu?

Que seria eu, se me deixasses ser tu uma hora?  Ou um dia inteiro, uma vida?

«Pensando em ti»

Está uma noite tão boa que me é difícil imaginar não estares aqui comigo. Como se pode fazer uma noite sem ti? Como se pode fazer um dia contigo tão longe? És a linha que os cose, os dias e as noites, a agulha com a qual me entretenho a tecer as horas, a suavidade na qual deslizamos, as horas, o mundo, o tempo e eu. És a pele na qual a minha se reencontra, perdida que anda por esta noite tão doce, tão benigna. Imagina: faz-me pensar que estás aqui comigo, a deslizar noite dentro como se do mundo não levássemos senão este monte de ternura no qual agora pedalo suavemente, pensando em ti.

30.1.21

Quatorze coisas que sei dela

1) O vírus existe. É natural e não uma invenção, o resultado de uma conspiração universal ou de um complot com vista a introduzir mudanças radicais na nossa forma de viver;

2) As consequências da Covid são mais graves do que as da gripe e exigem meios de tratamento mais pesados;

2 - a) Os protocolos hospitalares para tratamento da Covid implicam um acréscimo de  trabalho e de tempo no fluxo de pacientes através do hospital;

2 - b) Esses protocolos implicam uma diminuição do pessoal de saúde disponível;

3) O Sars-CoV-2 ataca maioritariamente grupos etários e pessoas com co-morbilidades bem definidos e conhecidos. Ou seja, grupos relativamente fáceis de isolar (desde que as pessoas, individualmente, o queiram);

3 - a) Mesmo dentro dos grupos de risco, a taxa de sobrevivência é esmagadoramente superior à letalidade;

4) É possível, face aos dados actuais, pensar que os contágios não são principalmente definidos pelos contactos mas sim por factores ambientais que desconhecemos (pelo menos em parte; já se viu que o vírus é sazonal);

5) É um facto iniludível que os confinamentos têm graves consequências sociais, humanas, económicas, psicológicas e de saúde geral da população;

6) Não há provas claras, inequívocas, de que os confinamentos, o uso generalizado de máscaras e as restrições à liberdade tenham um resultado positivo na contenção de contágios. Se tiverem, não é claro e inequívoco que os seus benefícios sejam superiores à destruição que provocam;

7) Passado um ano do início da pandemia, as vítimas continuam a ser as pessoas mencionadas na 3), o que significa que o foco da gestão ainda não está nos grupos de risco;

8) Ou seja: estamos a trocar um mal - resolúvel - num determinado e restrito grupo da população por uma catástrofe generalizada, de consequências transversais;

9) Estas decisões estão a ser tomadas com base em testes cujo falibilidade é elevadíssima e em critérios de atribuição de causas de morte baseadas nesses testes;

10) Há uma componente política muito grande na gestão da pandemia, componente essa que não existiu nas outras pandemias pelas quais a humanidade passou;

11) Os media não estão a fornecer uma informação isenta, precisa, objectiva e distanciada e estão a contribuir - propositadamente - para o clima de histeria que se está a viver,

12)  Os governos - pelo menos nos casos que conheço melhor, o português, o espanhol e o francês - não estão a ouvir especialistas com opiniões contrárias à narrativa vigente;

13) Instaurou-se um clima de censura na informação que limita o acesso a informações contraditórias.

14) Estamos a abrir portas a decisões governamentais que são um ataque às liberdades essenciais, portas essas que não sabemos se e quando serão fechadas. (Cf. a recente decisão do governo britânico de dar à polícia acesso aos dados médicos das pessoas. Isto é um precedente gravíssimo.)

Estruturas, mistérios

Raio de mania esta que tens: escorregar pelas palavras, transformá-las em parques infantis cheios de túneis, pontes suspensas, misteriosas estruturas nas quais as crianças se aventuram, e tu com elas.

PS - Face às palavras, este infantil eterno espanto de quem brinca com seriedade e devoção.

No escuro

Escrever degrau a degrau, arrumar os dias  como um calceteiro, coser tudo nessa manta de retalhos debaixo da qual a minha mão tacteia e te procura,  no escuro. 

Vida

Contigo aí, nem morrer consigo. 

Previsões, passado

Detesto fazer previsões. Questão de incapacidade: nem o passado consigo prever.

O que não partilhámos

Escrevo-te da cama, deste calor que um dia partilhaste comigo, muitas noites, muitos anos. Deixei, como sempre, a televisão a tocar na sala - como eu, gostavas de ouvir a música nos interstícios das últimas  conversas do dia; ou do amor, antes do sono. Sempre partilhámos o calor e a música, não é? Sempre partilhámos despedidas, fossem elas do dia que acaba, de algo que terminávamos, por causa de uma viagem... E nos reencontrámos com amor debaixo destes edredons, a ouvir a música que nos chegava de longe, fraca, ao lado das ternuras que partilhávamos, do fundo da noite.

Escrevo-te da cama de onde me disseste adeus, de onde me disseste que a ternura se tinha esgotado, em ti. Foi essa a única coisa que não partilhámos: o fim da ternura. 

28.1.21

Diário de Bordos - Lisboa - Porto - Lisboa, 28-01-2021

De um ponto de vista puramente ciclista, a primeira visita da elegante Coluer (também conhecida por Belladonna) ao Porto foi uma experiência ambivalente. A ida até à clínica que - espero - me vai devolver a visão e (sonhar é preciso) pôr os óculos no caixote de lixo da história foi uma maravilha-menos. O menos sendo devido apenas à chuva miudinha que me enchia os óculos de água. De resto, o passeio foi uma delícia. Fui o tempo todo a dizer Amo-te Porto e a declinar essa oração de todos os modos e feitios.

A vinda foi mais complexa. Vim pela avenida da Boavista (a clínica fica ao lado do Castelo do Queijo), já noite, com a visão ainda mais reduzida por causa das gotas para os exames e a servir de alvo aos automobilistas que, aparentemente, ganham pontos na carta de condução por cada razia  que fazem a um ciclista. Quanto mais perto, mais pontos. Se a faixa da esquerda estiver vazia, os pontos contam a dobrar. (Vazia de vazia mesmo, como uma garrafa de whisky ao fim de meia hora nas mãos do capitão Haddock.) O chuvisco ligeiríssimo da ida transformara-se em chuva fraca. Demorei um pouco menos de quarenta minutos, que ficarão para a história (a mesma dos óculos) como o mais longo período em que tive medo montado numa bicicleta. Ultrapassa largamente o anterior, o qual aconteceu quando tive de dar a volta à Praça de Espanha, logo por azar num dia em que os manicómios tinham aberto as portas e mandado os pacientes para a rua conduzir automóveis. 

Cheguei a tempo à estação de S. Bento. Na de Campanhã, foi-me possível comprar meio frango - bastante bom (digam comigo: amo-te Porto) - e uma garrafa de vinho que por indelicadeza do acaso vai fechada. Não tenho saca-rolhas e o revisor também não. A CP está cada vez pior. Isto de os revisores andarem sem um saca-rolhas para acudir aos casos mais desesperados é incompreensível. Aposto que a culpa é de Passos Coelho.

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Em todos os outros aspectos - só há mais um, o plural é majestático  - foi uma maravilha. Regresso a Lisboa com a data da operação marcada, com a certeza de estar em boas mãos e com a impaciência acalmada e ao rubro, simultaneamente. Impaciência schrödingeriana, por assim dizer. É a  melhor de todas, a seguir à que está simplesmente acalmada. 

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O tempo no comboio passa depressa. O revisor ainda só me chateou uma vez por causa da máscara - num comboio vazio e com ninguém a menos de cinco metros, no mínimo, é importante usar máscara em cima do nariz, para proteger os velhinhos nos lares, o SNS e o bem estar do nosso primeiro-ministro, que não deve ser beliscado só por  causa da tortura e da miséria que nos está a infligir. Ainda por cima, com o nosso (deles) consentimento, aprovação e alegria.

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A máscara está para mim como o Chega para as forças do bem.

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O meio frango do Eusébio dos frangos é uma maravilha. Às pessoas que tiverem de apanhar o comboio para Lisboa nestes tempos de escuridão, sugiro fortemente que comprem ali o farnel. (O picante mal se sente. É preciso pedir muito. E saca-rolhas, guardanapos e talheres.)

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O Porto é uma cidade linda e aposto que em breve aprenderá a conviver com ciclistas. Nesse dia será perfeita - ou, pelo contrário,  ter-se-á tornado igual a todas as outras, vá saber-se.

27.1.21

Felizes?

Está frio e eu moldo-me à cama. Ela aquece e tomo-lhe a forma, tal como o mesmo vinho se adapta a copos diferentes sem deixar de ser o que é. (Infelizmente a cama aquece mais devagar do que o vinho toma a forma do copo.) Somos o que escrevemos a quem escrevemos, poliedros irregulares e moles, maleáveis, moldáveis. O vento é o mesmo, se lhe puseres uma árvore ou uma vela no caminho e ele se dividir para as deixar passar (uma árvore imóvel "passa" pelo vento). Somos um imenso jogo de Tetris em que as peças são livres mas só algumas o sabem.

É preciso imaginar Tetris feliz e livre. Imagina dois Sísifos a empurrar a pedra encosta acima. Estão juntos, pode ser até que se amem, partilham o que os faz viver. Serão felizes?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-01-2021

As senhoras do balcão de embarque insistiram na necessidade de um teste PCR para voar para Portugal, eu disse que não, debatemos um bocadinho, elas ganharam, claro. Mal cheguei ao balcão das reservas a fim de mudar o bilhete a senhora pergunta-me: 
- É o senhor Serpa?
- Sou.
- Desculpe. A minha colega fez um erro. Afinal não é preciso um teste PCR. Vamos trocar-lhe a reserva. 

Um erro quem quer faz, só não faz quem nada faz. Acresce que as consequências não são dramáticas: quatro horas no aeroporto de Palma em vez de no de Madrid, duas ou três horas de sono a menos e o susto de curta duração: onde raio vou fazer o teste, quanto custa e quanto tempo vou ter de esperar? Enfim, voltei ao café onde estivera, pedi outro sumo de laranja e outro café «americano» (mas desta vez do preço foram deduzidos os cinco euros do voucher) e aproveito para trabalhar. Não me posso queixar do resultado da viagem a Palma, por muito que possa fazê-lo das condições. Como não posso - sabia perfeitamente o que me esperava - não me queixo de nada, espero com ansiedade a consulta de amanhã e oiço um compositor medieval que não conhecia: Gace Brulê, autor de canções «deleitáveis e melodiosas», diz um crítico da época e eu concordo. A música medieval arrefece o tempo, quase o pára, seja ela sacra ou profana. Vantagem suplementar: os auscultadores nos ouvidos atenuam os avisos constantes destes altofalantes obsessivos para pormos as máscaras «na boca e no nariz». Há pouco pareceu-me ouvir qualquer coisa relativa à necessidade de a ter mesmo à mesa, mas não investiguei muito mais. Está quase na hora de embarcar e desta vez a viagem será mais rápida do que à vinda, amanhã terei uma data para a operação - ou pelo menos uma aproximção mais aproximada do que a que tenho agora, o miúdo atrás de mim deve sofrer de uma perturbação qualquer e o mundo lá vai seguindo o seu rumo, que só um astrónomo  pensa ser linear e perfeito. Não é. Ziguezagueia como um poeta bêbedo, hesita como um marinheiro teso, salta para a frente como uma Panzerdivision no deserto. A única coisa que não faz é olhar para trás. 

26.1.21

Decálogo

Antes de adormecer fui ver os dez mandamentos. Não conseguia lembrar-me de todos e é impossível adormecer nessas condições amnésicas. Partindo do princípio, como alguém disse, de que os mandamentos existem para nos impedir de ser o que naturalmente somos, forçoso é reconhecer que o arquitecto que nos desenhou fez um péssimo trabalho. 

Depois pego noutra ideia - os caminhos do sono são tortuosos - e lembro-me daquela tese segundo a qual são os traços esquizóides que estão, provavelmente, na origem da hominização e da hierarquização das sociedades proto-humanas.

Ou seja, vamos a ver e os mandamentos foram feitos para os mandados. Os mandadores auto-dispensaram-se deles. O longo caminho da civilização consistiu em aplicar a estes os preceitos dos outros.

Com algum sucesso nuns países e desvios noutros, claro.

Convés, beliche

 Em França, as pessoas que nós designamos "sem abrigo" são "SDF" (sem domicílio fixo). Hoje, jantando os nachos do 7 Machos (uma merda, pela primeiríssima vez) sentado num banco de jardim, percebi a diferença. Sou um SDF, mas não um sem abrigo.

Fumei um maço de cigarros em três dias e estou enjoado. A regulamentação mudou: agora pode-se fumar na rua, desde que se esteja parado. Isto é literalmente vertiginoso. A rapariga do Aquanauta - uma tasca onde nunca pus os pés antes e nunca porei depois - diz-me que não posso fumar à janela, enquanto espero o rum e o café ("o fumo entra"). Não tenho a certeza de que seja o excesso de cigarros que me enjoa.

Bebo-os num banco na rua. A seguir vou para bordo. O meu domicílio nunca será fixo, mas terei sempre um convés por cima e um beliche por baixo.

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A mínima vai baixar, essta noite. Pus mais um cobertor entre mim e o convés. É um erro: acordar com frio é mais fácil do que debaixo de uma torre Eiffel de mantas, mas pouco importa. Nâo quero que as personagens dos meus sonhos apanhem frio e se constipem.

Palma, hoje

É como visitar uma senhora que deixou de te amar.

Manutenção

"Sinto-me como se estivessem a tirar-me a alma com um saca-rolhas ferrugento." Marisa era excessiva em tudo, até nas imagens. Era uma mulher de quarenta e dois anos, sem filhos porque,  dizia, "uma depressiva não deve parir, corre o risco de a DPP lhe durar para o resto da vida."

Encontrei-a no comboio para Faro, numa viagem de regresso a casa. "O meu saca-rolhas não está ferrugento", disse-lhe. "Não falava de ti, estúpido." Estamos juntos há cinco anos. Não quer casar-se, eu tão pouco. Estamos bem assim: ela em Lisboa, eu em Faro e o comboio, esse enorme hífen que nos une. Ela diz que é uma relação a três e eu concordo.

No outro dia, perguntei-lhe como estava a alma. "Desenferrujaste-ma, palerma. Como muito bem sabes. Há saca-rolhas que fazem milagres." Fez uma pausa, pôs-me a mão na perna e continuou: "Enfim, faziam. Agora, é só questão de manutenção,  não é?"

25.1.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-01-2021 / II

«A chuva não pára de chover» (aspas porque a expressão não é minha, infelizmente) e pela primeira vez na vida encomendo um  jantar para me ser entregue a domicílio. Dei as explicações todas ao rapaz da Diner, uma deliciosa casa de hamburgers deliciosos (a repetição é propositada e tem fundamento). Que haja gente a aceitar esta situação ultrapassa-me. É como se o universo se tivesse posto a falar chinês comigo.

Não que percebesse tudo, «dantes». Estava muito longe disso. Mas tinha uma grelha, com as coisas mais ou menos arrumadas, alguns espaços vazios para as novidades, outros ocupados com as «certezas» (aspas porque eram poucas e do tipo «a Terra é redonda», «os governos não são necessariamente bons e precisam de ser controlados», «os nossos impostos são mal utilizados e por isso é um imperativo moral evitá-los») e algumas casas (muitas) para as dúvidas, para as novidades, etc. De um só golpe, esta pandemia varreu tudo. Continuo a estar certo de que a Terra é redonda, o Sol nasce a Leste e põe-se a Oeste ou a água do mar é salgada, mas tudo o mais desapareceu. A minha grelha parece um castelo de cartas depois de um terremoto. Sempre acreditei no poder da inteligência (se bem estivesse na secção «incertezas»), mas ver pessoas inteligentíssimas aceitar a narrativa oficial como qualquer almeida numa taberna depois de três copos de três (sem desprimor para os almeidas ou os copos de três, claro) deixa-me devastado. Nunca acreditei muito nos governos, mas vê-los a fazer o que estão a fazer aos respectivos países (mai-la certeza de que se na Suécia os políticos tivessem algum poder fariam exactamente a mesma coisa) deixa a minha pobre grelha a perguntar-se se não se terá transformado num caleidoscópio com os espelhos partidos.

.........

Entretanto, o jantar chegou. Um hamburger excelente, dentro do banal (quem já teve o privilégio - meço as palavras - de comer hamburgers na The Burger Point, casa sita no Porto e que caiu vítima deste turbilhão de loucura, sabe que todos os hamburgers são banais, menos aqueles). Desobedeci às minhas normas habituais e comi na mesa de navegação, único sítio onde me posso sentar e ter uma mesa à frente. Amanhã não chove e espero poder não repetir a experiência. Uma mesa de navegação serve para navegar, não para comer, beber ou fazer o que agora faço - escrever disparates (não por muito mais tempo, verdade seja dita. Esta mesa não está feita para se passar aqui horas seguidas, muito menos quando não se vê um palmo à frente do nariz.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-01-2021

Uma cidade sem cafés é como um data de coisas que o zeitgeist me impede de mencionar. Desta vez, aceito a imposição e autocensuro-me. De qualquer forma, nenhuma das analogias que me ocorre é bonita, elegante ou agradável - o que pelo menos significa que estão em consonância com o referente: uma cidade sem cafés nem restaurantes é omissa, feia, deselegante e falta-lhe algo de fundamental. 

Acabadas as reuniões do dia vou buscar a gloriosa Peugeot e passeio-me por esta Palma que não está tão confinada como pensei no sábado e no domingo. Há pessoas na rua - todas mascaradas até aos olhos, claro. Negacionista assumido só conheço o Ivo, que hoje me diz "esta situação é de loucos, e como sou louco estou todo contente". Não está, claro. Ivo é o reparador de bicicletas, um homem doce, apaixonado pelas burras tanto como eu - mais, porque trata delas - e esta é a sua forma de ironizar. O negócio está de rastos, mas ele diz-me que "tem outros valores. O dinheiro não é tudo." O prazer que sinto em revê-lo é mútuo. Depois ando por aí. Penso que pedalar pela cidade é diferente de percorrê-la a pé (e melhor, claro). Pergunto-me porquê, ocorre-me aquele sentimento de chegar a um sítio de barco, tão diferente dos de todas as outras maneiras de chegar, a analogia que me vem à mente tão pouco é aceitável para o homem pudico em que hoje encarnei. Vou ver o Giuseppe, que tem boa grappa, o Xisco do mercado, que me dá um abraço esmaga-costelas e me pergunta "por onde tens andado, meu irmão?" A Babel está fechada, compro dois livros noutra livraria, um Pla e um Amos Oz, venho para bordo, adormeço antes mesmo de ter tempo de os tirar do saco. A chuva continua, irritante, paralizadora, insistente. A Peugeot está à chuva, isso dói-me, parece que sou eu quem se está a molhar. O P. ainda precisa de trabalho e eu de o pôr a trabalhar. Parece que estamos amarrados um ao outro, irmãos siameses que se amam e odeiam mutuamente.

Há bastantes lojas fechadas. Pergunto-me quantas delas reabrirão. Ivo diz-me que a delinquência aumentou imenso. Estamos a voltar à Idade Média...

24.1.21

Diacronias, analogias

"Pensou: <Nunca os conseguirás convencer. Quem não fizer como eles, está só. Querem, a todo o custo, fazer alguma coisa, pois têm medo de descobrir que estão sós. Agir em comum torna-os solidários, e provavelmente nada como uma acção em comum - se sai do habitual - é capaz de criar esse sentimento de unidade. É esse o mal deles. >"

"És como os outros - disse Freytag -, todos vocês pensam que é indispensável fazer  alguma coisa: estão obcecados com a ideia de agir imediatamente, é como uma doença."

Ambas as citações vêm de O Barco Farol, um livro escrito em 1960 por Siegfried Lenz, traduzido por Inês Madeira de Andrade (louvada seja) e publicado em Portugal peka editora Fragmentos em 1987. A primeira da página 124 e outra da 122.

O livro relata a invasão de um navio-farol por três bandidos, mas se falasse da invasão do mundo por um vírus não estaria muito longe de ser a obra-prima que é. 

Nb: sem ser perfeita, a tradução dos termos náuticos é suficientemente boa para merecer laudas.


Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-01-2021

O vento caiu e o P. cessou de se agitar e fazer gemer as amarras. Se fosse preciso uma definição para impaciência, tenho-a comigo: é o que sinto quando quero ver este bote pronto. Tento limpar a impaciência de outras emoções que se lhe agarram como fouling a um casco: a raiva, primeiro.  A tentação de o mandar passear, depois. E muitas outras. É preciso limpar a impaciência de tudo o que a suja ou conspurca. Acabei de jantar - uma sandes de presunto,  acompanhada com vinho Mollusca, bebido ao gargalo porque não há copos e me esqueci de os comprar ontem no supermercado - acabei o único livro que trouxe (o Navio farol, coisa linda de que refalarei em breve) e o silêncio é interrompido regularmente por uma conversa ou outra do P. com o que o rodeia.

Os barcos falam uns com os outros e eu, que sou tudo menos bisbilhoteiro, gosto de os escutar. Ninguém imagina o que se aprende a ouvir uma embarcação falar com as que a rodeiam.

Está frio - durmo com meia dúzia de cobertores - mas amanhã as máximas sobem. Terça, a mínima baixa. Será a última noite é não me preocupo muito.

Não me preocupo com nada, aliás,  senão com os próximos dez minutos. Tudo o que está para além disso faz parte do futuro longínquo.  Já sei que da próxima vez virei numa segunda-feira e não num sábado e que irei para um quarto e não para bordo. Mas isso são coisas com as quais não me preocupo. Amanhã o duche será nos chuveiros do clube, que por sorte não estão longe. Entrará vento, diz o Predict Wind (ou outro qualquer) mas vai ser coisa de pouca duração e o P. está bem amarrado, estes tipos sabem o que estão a fazer. Comprei uma tablette de Lindor preto, que como sempre reforça a minha crença na Lindt, vou atrasando o momento de ir para a cama e estou-me nas tintas para o futuro longínquo. 

Nada mais do que dez minutos,  meu caro. Dez minutos, automaticamente renováveis. 

Depois? Logo se vê. 

 

Como encher revistas Maria

A certa altura da minha vida, aprendi que a culpa não é dos outros. Foi uma aprendizagem por etapas: primeiro, é preciso aprender a distinguir culpa e responsabilidade. Depois, aprende-se o lugar certo de cada uma. Finalmente, aprende-se que às vezes a culpa e na maioria delas a responsabilidade é nossa. Finalmente, deixamos de nos concentrar na culpa - aprendemos que não somos nem super-homem nem um santo nem Jesus - e aplicamos o conceito de responsabilidade. 

A culpa pode ou não ser minha. A responsabilidade é, sempre ou quase sempre.

Sabias perfeitamente o que vinhas encontrar e não te enganaste, ao contrário do que tantas vezes te acontece. Portanto, meu caro, se fosse a ti não perderia sequer tempo a saber por que raio de carga de água estás a dormir num barco que é uma mistura de armazém e estaleiro, sem condições nem para escreveres. Não percas tempo com o acessório. Concentra-te no essencial e lembra-te: tens a vida que escolheste. O resto é conversa de encher revistas Maria. 

Canta-lhe laudas: nem todos podem dizer o mesmo.

22.1.21

Gaëlle

 Lisboa, 29/11/2020

 

Querida Vanessa,

A carta vai atrasada, eu sei. Desculpa. Isto tem andado complicado, por estas bandas. Poucas vontades e sem elas não há memória que me valha. Tenho aproveitado estes dias para me lembrar da Gaëlle   , um miúda pequenina, loira, francesa de olhos azuis que conheci há tempos em Dunquerque, a cidade mais feia de França e a mais simpática de todas. Prova – como se fosse preciso provar – de que quem vê ruas e prédios não vê corações. Seduzi-la foi um processo longo e laborioso. Ela acabara de sair de um casamento horrível, com um alcoólico que lhe deixara um filho e um monte de dívidas e precisei de tempo e palavras em grande quantidade para, finalmente, um dia na praia lhe deitar a mão. Estávamos na Primavera, não havia ainda muita gente e eu, não sendo grande fã de sexo na praia – não gosto de areia em lado nenhum e muito menos nesses sítios – lá me abalancei.

A primeira vez nunca é a melhor. Isso é mito de meninas «livres» e meninos cheios de hormonas. Aquela vez na praia não fugiu à regra: foi rápido, com poucos preliminares e apenas chegou para nos dizer – aos dois – que devíamos insistir. A verdade é que o monte de palavras e tempo que gastara a seduzi-la me seduziram também a mim. Acontece muitas vezes, não é? Quantas vezes seduzir alguém serve simplesmente para nos seduzirmos a nós próprios?

Gaëlle morava no quinto andar de um prédio que ficava ali mesmo ao lado e foi lá que continuámos. Era muito pequenina mas forte e quando se vinha dizia-me «tu fodes-me como um deus» e tinha aquilo que me parecia uma descarga eléctrica. Toda ela tremia, enquanto ia repetindo «...como um deus. Como um deus» Eu acreditava, claro. Qual o homem que não acredita? Ainda por cima, nessa altura sentia-me verdadeiramente um deus, era um deus. Foder como um parecia-me a coisa mais natural do mundo.

Penso nela muitas vezes, ainda. Gostaria de saber se encontrou um homem que a merecesse. Gaëlle tinha três empregos, um dos quais consistia em vender livros pró-independência a grupos independentistas. Tinha para isso uma carrinha Citroën, daquelas de chapa ondulada que se vêem invariavelmente nos filmes franceses. Com ela, percorríamos a Flandres francesa, a Normandia – como de costume, eu tinha um trabalho que me permitia intermitências. Normalmente era eu quem guiava. Volta e meia ela pedia-me «Pára, por favor.» Eu parava no primeiro sítio possível, ela saltava para cima de mim, punha-me a pila dentro dela, já molhada e pronta. Imagino no que teria vindo a pensar, para estar já naquele ponto. Chegava rapidamente ao orgasmo e dava-me gozo fazê-la vir-se duas ou três vezes, duas ou três descargas, uma quantidade infinita de «oh meu Deus» e «como um deus». Depois desencaixava-se de mim, sentava-se no seu lugar e dizia-me »Desculpa, estava mesmo a precisar.» Outras vezes, dizia-me: «Esta é só para ti.» e fazia-me um bico ali à beira da estrada, aquele tufão loiro na minha cintura a mexer-se em todos os sentidos. Ela sendo pequenina, eu arranjava forma de não «ser só para mim» e enfiava-lhe um dedo na vagina, outro no cu até eles quase se tocarem lá dentro.

Nunca fui muito de acreditar nessas coisas do «vir-se ao mesmo tempo» - prefiro dar a prioridade às senhoras, quando gosto delas; ou não pensar muito nisso quando me são indiferentes – mas é verdade que por vezes havia qualquer coisa de mágico naqueles orgasmos em que Gaëlle    se molhava de cima a baixo e vibrava como um mastro numa tempestade enquanto eu esvaziava o meu nela.

Por causa do filho – teria meia dúzia de meses, talvez um ano, não me recordo – habituara-se a não gritar durante o sexo e toda aquela energia saía-lhe pelo corpo perfeito, musculado, seco e lindo. Um dia, fomos com uns amigos dela beber umas cervejas a um bar, no campo. Não sei se conheces a Flandres: uma região muito bonita, entrecortada por inúmeros canais, com antigos moinhos reconvertidos em bares. A bebida ali é a cerveja, não o vinho. Estaríamos talvez três ou quatro casais. A certa altura, sinto uma mão nas coxas. Era uma das raparigas, amiga dela, que me dizia «A Gaëlle diz maravilhas de ti. Gostava de experimentar. Posso?»  Disse-lhe que sim – Gaëlle piscara-me o olho pouco antes e agora percebia porquê. Estava entretido com a rapariga – uma loira, claro, as flamengas são do norte, cabelos de cerveja e olhos de mar – quando sinto uma pancada violenta no ombro. Era o homem dela. Não estava nada contente com aquilo e arrancou-ma dos braços, pegou nela e foram-se embora. A festa acabou ali, aquilo estragou um pouco o ambiente, como podes imaginar. No caminho Gaëlle disse-me «Eu bem tentei aguentá-lo, mas não consegui. Anda, faz-me a mim o que ela queria que lhe fizesses». Parou a carrinha, mas desta vez fomos para trás, para o meio dos livros. É tão bom, um corpo levezinho em cima de ti, não é? Deve ser daí que vem aquela expressão portuguesa da mulher e da sardinha. O prazer concentra-se todo na ponta da pila e nos olhos. A estúpida mania das conas  rapadas ainda não tinha chegado. Ver aquele tufo de pelos entre o amarelo e o castanho claro mexer-se em mim parecia dar corpo ao gozo, uma sinestesia com sensações em vez de vogais. «Era isto que querias fazer com a... (como lembrar-me do nome da rapariga?) Era? Diz se eu não sou melhor? Diz!» Era. Acabei por foder a outra, um dia em que nos encontrámos num bar os três – a Gaëlle   , ela e eu. O homem ciumento tinha ficado em casa, ou ela tinha-lhe passado um bilhete de desembarque, não sei. Comi-a na rua, no recesso de um portão e não, não foi bom. Quando acabámos, disse-lhe «temos de nos ver numa cama, isto é sítio para quem já se conhece» e voltámos para dentro, onde Gaëlle    me esperava com uma cerveja e um sorriso trocista. «A primeira vez nunca é a melhor», disse para a amiga. Que visivelmente não acreditou, porque nunca mais a vi.

Porque penso em Gaëlle agora, passados estes anos todos? Porque me lembro de quando ela me pedia para pôr o concerto de Colónia quando queria fazer amor – isto é, todos os dias, todas as horas? Porque me lembro daqueles seios pequenos, rosados, onde se me entaramelavam os dedos, a língua, o nariz, os olhos, às vezes a pila – pareciam um foguetão a caminho da Lua, quando cresciam de repente...

Eu sei porquê: é por causa da Gaëlle  e de todas as Gaëlle que me atravessaram os dias e as noites, que magoei sem querer – e às vezes querendo, mas sempre injustamente – que hoje sou quem sou. E não, Gaëlle, eu não fodia como um deus. Nós fodíamos como deuses. Há coisas que só se fazem a dois e ir para o céu é uma delas.

Beijos do


Luís 



(Lisboa, 29/11/2020)

21.1.21

Diário de Bordos - Lisboa, 21-01-2021

À minha direita, o negro do mar e a rebentação das vagas em fiadas paralelas, sucedendo-se como fileiras de dentes, brilhantes, brancos e convidativos. À esquerda, o alcatrão da outra faixa da Marginal. Do Estoril até Algés é a bicicleta que me puxa. De Algés a casa, sou eu que a puxo. Ou puxo por mim, diria o meu Pai. «A bicicleta é o único meio de transporte em que a besta se puxa a si própria.» Que sorte tem a besta! A noite espicaça, o vento está pela popa, a estrada quase deserta. Em Caxias uma senhora abranda ao meu lado para me avisar de que sou pouco visível. Ponho o colete e continuo leve, direito na minha Coluer, as pernas a um ritmo que elas mesmas escolheram. A noite estava - e foi - demasiado boa para me enfiar num comboio. 

O medo é um abafador. Abafa-vos a vida, berlinde a berlinde. Vejo mal, a surriada que o vento me traz põe-me os óculos como se estivesse no mar; nada disso cobre o prazer que é rolar por esta Marginal quase deserta, por esta noite que oscila entre o negrume completo e o verde brilhante dos semáforos, nesta bicicleta silenciosa, confortável como uma poltrona. Sinto-me como se estivesse num trenó. A bicicleta avança sozinha, os carros passam à vontade na faixa da esquerda (alguns depressa demais, mas quem nunca andou depressa demais numa Marginal deserta que atire a primeira pedra). De vez em quando paro para limpar os óculos, para memorizar uma ou outra ideia mas logo de seguida a burra puxa por mim, chama-me e as paragens acabam por ser breves, instantes tão fugazes como os que o chuvisco leva a encher-me de novo as lentes de uma cortina estrelada, como aqueles filtros das fotografias que transformavam cada luz numa estrela. 

Fui ao Estoril fazer o teste PCR, que desta vez correu bem - suponho que por cansaço dos intervenientes todos, eles e eu. Comecei por entrar com a máscara bem sobre o nariz e só a abaixar lá dentro; apenas uma vez um funcionário me chamou a atenção, mas de uma forma delicada, quase ténue. Na sala, o diálogo com a senhora foi cordial. Saí e fui a casa do A. G., onde lanchámos, jantámos, bebemos duas garrafas de vinho para lá do muito bom - Castelo d'Alba um e Quinta da Comenda o outro, creio mas não garanto. Este do Alentejo aquele do Douro. Vinhos à portuguesa, adstringentes, encorpados (mais o Douro do que o outro). Quando parou de chover, vim-me embora. Até à estação não há que pedalar nem um minuto, é sempre a descer. Lá em baixo, decidi continuar até S. João, depois até Oeiras, e aí soube que estava decidido: viria até casa. Por causa do mar, dos dentes brancos que me sorriam, da surriada que me embaciava os óculos, porque o medo é um abafador, porque respirar é preciso, porque ir numa bicicleta que desliza silenciosa na pele negra do alcatrão é como voar montado nas asas de um anjo, porque uma bela amizade deve ser celebrada.

Não sei como se chama o produto químico que o movimento regular das pernas envia para o cérebro, mas sei como se chama o resultado: êxtase.

19.1.21

Não-dormir, não-frio

Que se lixe a hora. Vais deitar-te e não-dormir, como ontem. Não-dormiste até de madrugada e não sabes que fizeste da noite. Nada, provavelmente. Como leste um dia, a vida é uma longa insónia ao fim da qual devemos poder responder a uma pergunta simples: que fiz eu desta noite? Desta longa noite? Não me venhas com a história das árvores,  dos filhos e dos livros, já fizeste isso tudo (e os filhos a dobrar). Fala-me de coisas importantes, de quantas vezes morreste, qual o amor que mais te queimou, qual o mal que fizeste que mais lágrimas te arranca hoje? Aprendeste a viver com o mal que fizeste... Nada mais há que possas fazer senão aprender, jurar que não voltas a ferir ninguém e menos ainda uma mulher cujo único erro foi apaixonar-se por ti. Jurar a quem? A ti próprio, não há mais ninguém. E as que te magoaram: que fazes dessas dores que se acumularam e ainda hoje ressoam, todas, não te falta uma, como se coleccionasses lágrimas e punhaladas, como se te preparasses para um dia as fulminares com um tiro cada uma, em fila de costas para ti, como alvos numa feira.

Não penses que no fim tens uma balança e podes pôr num prato umas, no outro as outras. Não há ninguém, nem para ler a balança nem para te ajudar a seleccionar as dores. Não são coloridas nem têm números. 

Dessa longa insónia só trazes dores? Não tens alegrias? És um chato. Vai não-dormir para a cama e pensa no que vais fazer quando acordares. Deixa-te de dores, coloridas ou numeradas. Pensa na tua sorte: não tens sequer frio. Quem não tem frio tem tudo. Quem não-dorme também. 

António

 

ANTÓNIO

(Para a Sandra)

 

António vai todas as noites passear o cão, um rafeiro preto que anda como se os passeios fossem nuvens e parece ausente como se nelas habitasse. É viúvo, tem setenta anos e dois filhos cujo nome esqueceu, ou finge que esqueceu. Incompatibilizou-se com eles ainda a mulher era viva e ela morreu relativamente jovem, teria ele quarenta e cinco,  talvez cinquenta anos no máximo. Mora sozinho naquilo a que agora chama "o poço da maré vazia", vive de um magro pecúlio composto pela reforma e pelo que resta das poupanças, previdentemente postas a render numa pequena instituição financeira. Como é pescador as suas analogias referem-se sistematicamente ao mar. O cão chama-se Faneca porque deve ter sangue de cão de água português.

António não sabe a idade dos filhos. Calcula que o mais velho esteja agora nos quarenta e muitos, a idade que ele tinha quando a mulher morreu, mais coisa menos ano. O outro é três anos mais novo. Raramente pensa neles, mas esse raramente tem cada vez mais redemoinhos e isso inquieta-o. Queria ter uma morte limpa, sem espinhas ou com elas arrumadas no sítio. Nada de coisas a espetarem-se onde não são chamadas.

Detesta a modernidade, para a qual sente que não contribuiu. Contudo, nem sempre foi assim. Maquinista de comboios durante a sua vida activa, foi progredindo na carreira até tingir uma posição elevda numa importante fábrica de material ferroviário na Alemanha. Pouco tempo depois de a mulher morrer despediu-se, pediu uma reforma antecipada, continuou a ignorar os filhos – e a ser ignorado por eles - e regressou a Portugal, para a nossa aldeia. Primeiro tentou Lisboa, mas o contraste com a Alemanha era-lhe insuportável e veio para o campo, onde segundo ele as diferenças se esbatem ou se tornam irrelevantes. Escolheu a nossa aldeia porque é delimitada por um rio no qual pode praticar o seu passatempo favorito (mas não único). Afasta-se decididamente de todas as polémicas, reduz os contactos connosco ao mínimo (nós sendo os outros aldeões, cerca de mil e poucos). O seu «Il faut être moderne» de antigamente transformara-se em «La modernité m'emmerde et je l'emmerde» (antes de ir para a Alemanha trabalhara em França, nos primeiros anos do TGV, de que era adepto, admirador e orgulhoso conhecedor).

- Percebes, Faneca? – O seu mais frequente interlocutor era o cachorro – O problema da modernidade é que ela nos fugiu. Queríamos que fosse uma coisa e ela desembestou por ali fora, feita égua louca. Fugiu-nos de mão. Repara, não há geração cujos velhos não digam o mesmo, não pensem que o caminho de repente deixou de ser ascendente e se tornou descendente. É normal, mas não deixa por isso de ser assustador. Eu fui mais livre do que os meus pais, estes mais do que os deles e por aí fora. Os meus filhos não são mais livres do que eu. São menos. Enfim, os gajos da idade dos meus filhos. Para eles estou-me nas tintas. – Um dos tais redemoinhos apareceu-lhe, a voz ia começar a tremer e resolveu calar-se. De qualquer forma, o cão não ligava nenhuma aos solilóquios do velho; não ligava a nada que não fosse comer, urinar e defecar. De vez em quando aparecia-lhe uma cadela com o cio e atirava-se a ela com uma energia insuspeita. Era a única coisa que o atraía para fora do seu próprio corpo.

- Tens sorte, – dizia-lhe António nesses dias – as fúrias não te abandonaram ainda. Ou azar, sabe-se lá. Durante um certo período da sua vida fora um impenitente mulherengo e hoje olha para a actividade sexual com um misto de sentimentos: «já tive que chega» e «nunca chega».

 

O trajecto do passeio com o cão é sempre o mesmo, o seu local de pesca igualmente. «Quem fez uma vida a andar nas linhas não precisa de desvios», explicava António a Faneca, que se adaptara ao percurso como se tivessem sido feitos um para o outro. Parava sempre na mesma árvore, cheirava os mesmos portões, urinava e defecava nos mesmos sítios. Andava um bocadinho de lado e ondulava como se fosse feito de borracha, cabeça para o chão, cauda para cima. Tinha sido bem educado, vinha quando António o chamava, não ladrava aos outros cães nem a pessoas, não pedia nem roubava comida. Só se transformava no campo: saltava, corria, caçava ratos, pedia a António que lhe atirasse paus para em seguida estrafegá-los. Iam ao campo duas vezes por semana: sábados à tarde e domingos de manhã. «Ninguém precisa mais de um desvio do que quem anda nas linhas, Faneca.» António era atraído por uma boa contradição como a água de um rio pelas barragens. «Ouve, Faneca, que eu não viverei sempre: quando estás nos carris não há desvios; quando estás nos desvios não há carris.» Faneca ouvia, abanava a cauda e corria atrás de uma folha que o vento empurrava sabe-se lá para onde.

 

II

António foi pescar. Em breve morreria, «seja ela que me vem buscar, seja eu que a vou visitar», explicava ao cão. «Não tarda acaba-se-me a massa, a cabeça, os olhos e os ouvidos... não me vês a viver como tu, pois não, Faneca?, na dependência de um idiota qualquer. Vá lá que tu ao menos ainda consegues mijar e cagar sozinho, mas um dia eu nem isso poderei fazer. Além de que sem fúrias a vida perde metade do interesse e essas há muito me deixaram pendurado.» É verdade que pensava cada vez mais na morte e cada vez mais a ideia de se reconciliar com os filhos lhe subia pela espinha acima. Contudo, não sabia como encontrá-los. Perdera-lhes o rasto há mais de vinte anos, por causa de uma história de mulheres. Isto é, mulheres deles: apanharam-no na cama com elas, as duas ao mesmo tempo. A mulher riu-se e encolheu os ombros; eram duas irmãs e delas dizia «não são gémeas mas são putas monozigóticas». Porém os filhos zangaram-se, recusaram-se a vir a casa dos pais quando ele lá estivesse, passado pouco tempo Katherine morreu – era o único elo que o ligava a eles – veio-se embora para Portugal e a corrente quebrou-se definitivamente. Até agora.

O resultado da pesca foi bom. No rio abundam lampreia, enguias, saboga, muge, barbo, picão, achigã, carpa, lúcio-perca, caranguejos azuis. Destes, alguns são importados sabe-se lá donde. A António a proveniência dos peixes é indiferente: pescou um belo lúcio-perca e três muges decentes. Têm jantar para três dias, Faneca e ele. Ao forno, o lúcio é excelente, fino e delicado. Já o muge (noutras paragens conhecido por sável) é melhor frito ou grelhado.

 

III

António deita-se no tempo como se estivesse na espreguiçadeira de um paquete, ao lado da piscina, vendo as senhoras de biquíni explicar aos maridos porque é que não devem olhar para a concorrência. Espera um cometa que o leve para o futuro ou lhe traga o passado.

- Verdade seja dita, Faneca, a Katherine não tinha concorrência, pois não?

- ...

- Pois, tu não a conheceste, não sabes. Há quantos anos estamos juntos, nós? Apanhei-te numa rua, eras tu cachorro de mal te aguentares nas pernas. Catorze anos? Quinze? Não sei. Não tarda vais desta para melhor, é o que é.

- ...

- Katherine era diferente das outras mulheres. Tinha mais testosterona do que elas. Tinha mais testosterona do que muitos homens que conheço, de resto.

- ...

- Percebes, Faneca? Não percebes, claro. O teu vocabulário é limitado. Percebes o teu nome e mais meia dúzia de palavras. Repara, o problema é simples: do que é que se gosta numa mulher? Ser como nós? Asneira. Aguentar-nos? Erro. Corrigir-nos, educar-nos, seja o que for? Fracasso assegurado. A única qualidade que te faz amar alguém como deve ser é essa pessoa deixar-te ser quem és e amar-te apesar de seres o que és. Dialéctica pura, meu caro. Muita sorte tens tu em não perceberes nada disto. «Amo-te porque me desafias e me levas a ser tudo o que sou.»

- ...

- Tu calas-te, claro. Talvez nessa meia dúzia de sinapses que não tens de dedicar às necessidades básicas consiga surgir uma pequena faísca de surpresa. Nunca me ouviste falar tanto tempo seguido, pois não?

Estavam deitados à beira-rio. O dia caía, a água tranquila reflectia os tons encarnados, rosa, amarelos do céu. A terra escurecia progressivamente, devagar como uma senhora velhinha a subir escadas. O pequeno pecúlio de António já acabou há algum tempo. O rio corre por entre margens escarpadas, «secas como ossos num deserto».

- Agora moramos no poço da maré baixa, Faneca. Sem a ajuda do eurototós nunca mais sairemos dele. Os meus planos para a reforma ficaram a meio: pôr ordem no passado e apanhar um cancro fulminante, daqueles que matam em semanas ou em meses. Ainda vou a tempo, repara: tu não tarda vais de bola e eu... eu... eu, olha substituo o cancro por outra coisa qualquer, ainda mais rápida. Tenho a vida em ordem: o que parecia disperso e desarrumado foi limpo. A mulher a dias da vida passou por ali, deitou fora o que era de deitar fora, tirou o pó ao resto e arrumou-o por estantes, armários, gavetas, cómodas, tudo. Só me custou começar porque não sabia que ordem dar àquilo, que variáveis escolher. Uma vez isso feito, foi fácil, parecia um comboio lançado nos carris e sem sinais à frente. Fotografia, mulheres, viagens, trabalho, família, escrita, bebida... foi tudo a eito. Enfim, a eito é maneira de dizer. Foram mais de um dúzia de anos, não foi? Verdade seja dita, não a tempo inteiro. Havia a pesca, as caipirinhas no café do mercado – que linda é a mulher que as faz, não achas? – os passeios pelo campo contigo. O passado e o presente estão separados por uma rede permeável, uma rede que só retém o que lhe interessa e deixa passar o resto. Até lixo passa pelas malhas e nós vamos deixando-o acumular-se. A maior parte das vezes não nos apercebemos sequer de que é lixo; ouras, não ligamos. Dizemos «Ah, depois tratarei disto». Esse depois demora a chegar e o passado vai-se acumulando, desarrumado. Foi por isso que vim para a aldeia, Faneca: sentar-me à mesa, limpar os pratos do passado, apanhar um cancro e ir-me, com a casa limpa e as janelas sem mácula. Esta aldeia é o sítio ideal para fazer isso, excepto que de cancro nem sinais. Qualquer dia vou de cometa, é o que é. Vá, anda, vamos para casa. Está a ficar frio e a loira das caipirinhas já fechou.

 

- Também não vou durar muito, Faneca. Sabes isso, não sabes? Algures dentro de ti deve haver uma voz a avisar-te. A carcaça está podre, apesar de não parecer. São coisas que me chegam do fundo dela que mo dizem. Tu não estás muito melhor, repara. Estamos numa corrida, não para ver quem chega primeiro mas quem vai primeiro. Espero que sejas tu, com essa idade sem mim não duras muito e num canil qualquer mais vale estares morto, que aquilo não é vida.

 

IV

A questão está no que António disse ali em cima: o que separa o passado do presente e este do futuro é uma rede de malha muito larga: tudo passa de um lado para o outro. Arrumas o passado hoje e amanhã tens outro por arrumar e todos os dias um prato se junta à pilha. Nunca acaba. Um dia, resolveu acabar com as limpezas.

- Já fui muito infeliz. Mais infeliz do que tudo o que tu possas imaginar. Tão infeliz que não sabia sequer que a felicidade existia. Não era como se a tivesse esquecido, era mesmo não saber, nunca ter sabido. Só mais tarde, anos e anos depois, mais ou menos na altura em que conheci Katherine, descobri que a felicidade é real e não qualquer coisa de que se ouve falar ou se lê nos livros - mas não por conhecimento directo, não por a ter experimentado. Isso só veio depois. Muito, muito depois. Para mim, experimentar directamente a felicidade foi como renascer, como ver o Sol depois de um eclipse de séculos. Não me lembro de quando isso aconteceu, mas já ia muito avançado em direcção aos trinta. Até lá, a minha vida fora como aquelas intermináveis praias do mar do Norte, de areia cinzenta, céu cinzento, mar cinzento e mulheres muito brancas e finas como pasta de dentes. Não ligava às mulheres. Isto é, ligava e muito, queria tê-las mas não queria fazer o que era necessário para as ter. Como quando queres beber um café mas não tens vontade do o fazer. Era infeliz e deixava-me arrastar pela infelicidade como um entrevado numa cadeira de rodas no hall de um hospital. A infelicidade era a minha casa. No Inverno fazia batalhas de bolas de neve, ski de fundo, bebia vinho quente e era infeliz. No Verão, passeava pelos bosques, bebia cerveja ou vinho branco e... adivinhaste, Faneca. Ainda hoje me lembro desses dias com terror e espanto. Terror porque sei que podem voltar à cada instante. Espanto, porque não compreendo como lhes sobrevivi, como aguentei tanto tempo. Uma vez tentei acabar com aquilo, mas não consegui e mal saí do hospital real voltei para o meu hospital metafórico, o da cadeira de rodas, tetraplégico dos sentimentos.

A felicidade caiu em mim de repente. Já ouvira falar dela, como te disse. Talvez até a tivesse vislumbrado, talvez lhe tivesse tocado de raspão. Um dia, porém, descobri que podia ser feliz, podia ser como todos os homens à minha volta, podia ser deus. Deus menor, sem dúvida, mas deus. Finalmente, a minha vida começara a obedecer-me. Não sei como explicar-te isto: de ser vivido passei a viver. De bola de bilhar passei a ser o taco. Imagina um cego que de repente começa a ver: aposto que a sua alegria, a sua felicidade, o seu espanto não seriam maiores do que os meus, quando  descobri que também a mim era dado ser feliz. Como se tivesse nascido já adulto. Ainda hoje não percebo como aquilo aconteceu, mas espero que não acabe, ainda. - António pegou no gin tónico que pousara ao seu lado, deu-lhe um longo gole e continuou:

- Ainda é cedo. A partir de hoje, só trataremos do futuro, Faneca. Tu tens sorte, o teu é curto. Eu ainda tenho alguns anos para o fazer e é a isso que vou dedicar-me, de hoje em diante. Acabaram-se as arrumações.

 

 

Luís Serpa

 

Genebra 10/2020 - Lisboa, 19/01/2021

 

 

Voar para o sono

Não gosto da expressão "cair no sono". Faz pensar que há uma espécie de gravidade que nos puxa, inexoravelmente, para baixo, para o apagamento. O sono está lá em cima. Voa-se para o sono. Descola-se.

(Quando calha.)

18.1.21

Venenos, apelo

Pior do que o vírus é o veneno. Ou melhor, os venenos, são muitos. Não te ver. Afasta-te de mim. És um irresponsável. Vou denunciar-te à polícia. Põe a máscara! Faz o que eu te digo. Se o telejornal diz é verdade. Quem diz o contrário são os terraplanistas. Bom senso é acreditar em tudo o que te dizem. Queres deixar as pessoas morrer? Pões a economia à frente da vida. Os suecos são diferentes de nós. Quem é que pensas que és, achas-te diferente?

Venenos, só venenos. Vai ser o pior, o mais difícil de resolver: extraí-los desta gente toda, quando descobrirem que foram enganados, que se auto-enganaram. Ser enganado é chato, é duro, mas bom, acontece. Mas enganar-se a si próprio? Descobrir que quem nos pôs no lado errado da barreira fomos nós e não outra pessoa qualquer?

Já há informação que chegue. Ninguém vos pede que mudem de opinião. Façam-no vocês mesmos. Mas comecem por estudar toda a informação que existe. É só um passo, o primeiro.

17.1.21

Diário de Bordos - Lisboa, 17-01-2021, dia de eleições antecipadas

A bicha estava maior mas avançava mais depressa. Pelo menos foi o que me pareceu. Verdade é que foi rápido e gostei da organização. Havia pessoas a informar ao longo do trajecto, o processo foi fácil, fluido e rápido. Cumpri o meu dever eleitoral - votar na IL - muito mais facilmente do que esperava. Levei a bicicleta até o interior da reitoria, a senhora acedeu a guardar-ma (não percebi se com satisfação se não, mas isso é-me um bocadinho indiferente. Espero que tenha gostado. A Coluer é linda e tê-la à frente à guarda não é sacrifício para ninguém, suponho).

O cozido à portuguesa do café Tatu era óptimo, o vinho aceitável e agora vou para casa, devagarinho (esta é a palavra-chave). A bicicleta é confortável como uma poltrona e estou contente. Tudo é leve quando se está contente, mesmo uma bicicleta pesada.

Rolo por essa cidade abaixo. Há muitos carros e bicicletas na rua e a satisfação de ver automóveis parece-me estranha. Ciclistas a usar máscara é bizarro. Devem estar  proteger-se da variante ciclista do vírus, imagino. Mas é melhor vê-los assim do que não os ver de todo. Já gostar de ver carros é diferente. Não é bem uma novidade, mas anda lá perto. 

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Não estou a contar tudo como aconteceu. Este diário é relapso.

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Agora devia começar a série Amo-te Lisboa: parei na rua das Portas de Santo Antão. A ginginha estava fechada, mas a Ginginha Popular servia, prestando atenção à polícia que estava nas imediações. Foi um quadro de vida lisboeta - beber uma ginginha às escondidas da polícia roça o surrealismo - mas é a Lisboa que eu amo, a Lisboa resistente, a Lisboa de todos os santos vícios. Outro slide, no quiosque do cais do Sodré. Outro ainda, no meu amigo Hernâni. Cheguei a casa depois de n paragens e cada uma delas tinha sabor a Lisboa, a minha Lisboa, a de sempre, a que diz Sim e fecha as pernas ou Não e as abre, a Lisboa da finta, dos mânfios, a Lisboa que resistiu ao terramoto, ao Kruz Abecassis e há-de resistir ao Medina. Amo-te Lisboa e não é por causa do Mosteiro dos Jerónimos ou da Torre de Belém. É por causa da luz e das pessoas que ela ilumina e faz viver e elas em troca fazem viver. 

(A ginginha da Ginginha Popular é Espinheira, menos boa do que a Sem Rival, mas quem perder tempo a pensar nisto agora está equivocado.)

Lisboa é um equívoco para quem só vê bem e a cidade certa para quem sabe ver de través.

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Nb: o cerne da questão para um escritor não é saber se os leitores estão de acordo com aquilo que escreve. É saber se os leitores concordam com a forma como o escreveu. O trabalho do escritor é escrever, não é pensar. Absorver e escrever. E já agora, escrever bem. Isto é: tornar inteligíveis as ideias, sejam elas pensadas por si ou por outro gajo qualquer. O senhor da ginginha, que mas serviu (bebo sempre duas, para não ir coxo para casa) com um olho na garrafa e o outro nos polícias tem tanto direito a ser citado («estes cabrões não me largam, desde o princípio da tarde que andam aí») como o professor universitário que pensa que o vírus tem a obrigação de obedecer ao nosso primeiro-ministro (e se não obedeceu não foi ele, fomos nós).

Os chuis largaram-nos, bebemos as ginginhas - éramos dois à espera que aquilo passasse -  Lisboa foi Lisboa e o resto que vá para o inferno, como cantava um senhor brasileiro aqui há uns anos.

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Na verdade, a verdadeira questão foi formulada por Henrique Pereira dos Santos já em Março ou Abril: qual é o problema em aceitar que há um processo natural que nós não conseguimos controlar e ao qual nos devemos adaptar? Essa é a questão, inteira e límpida. Tentar parar o vírus com «medidas» é como tentar parar o vento com as mãos (continuo a citar Henrique Pereira dos Santos). Qual é a dificuldade em aceitar isto? Porque pensamos que temos um controle absoluto sobre todas as forças da natureza? Estas medidas só servem para ecrã de fumo, não resolvem nada - como se tem visto até agora em todo o mundo. Basta querer ver.

Mea culpa

 Sou o único reaccionário que conheço que é contra a diabolização do progresso.

Coisas que me enternecem

Coisas que me enternecem:

- Um senhor dos seus sessenta e muitos, setenta anos numa bicicleta de montanha eléctrica vestido de lycra. O grupo dos AMIL precisa de uma subdivisão;

- Casalinhos ao ar livre, de mão dada e máscara. É tão bonito, o bom senso...

- A proto-facha que há pouco me gritou "olha a máscara". Dêem-lhes uma causa e não há pide que não emerja de um democrata. Esta era giraça, classe média para cima, trinta e poucos, automóvel bom (tanto quanto me pareceu, percebo pouco disso). Era o homem que ia a guiar. Tinha um banco de criança atrás (pelo menos. Podia haver dois, mas só via um dos lados do veículo). Ia mascarada dentro do carro, não fosse o vírus precisar de boleia. Já devia ter votado, a julgar pela direcção do carro. A gente não os vemos, mas que eles andem aí andem;

- As filas para o voto antecipado na Cidade Universitária. Volto cá mais perto da hora do fecho, isto está impossível. E pensava eu que a abstenção seria enorme. As nossas autoridades têm aqui motivo de reflexão. Querem encorajar as pessoas a votar? Adiantem as eleições. 

- As ruas não estão tão vazias como eu supunha que estivessem. Para isto ficar suportável, só falta abrirem os cafés e eliminaram as máscaras na rua. Ah, e as lojas de roupa, claro. Preciso de um camisola tipo pullover da Burberry;

- Uma senhora "mais Avenidas Novas do que aquilo, morre-se" a tratar o cão (um cão de água português) por você. Estive quase para lhe oferecer (ao cão) uns restos do - magnífico - cozido à portuguesa que vim comer para o jardim do Campo Grande, na espera de que as filas para o voto se esvaziem;

- O dono de um restaurante condenado a vender meias-doses de cozido, enormes e soberbas,  "ao postigo" por 3,95 euros concordar com as "medidas": "Isto descambou, eles tinham de fazer alguma coisa". Quem é que falava em educar as massas? Era o Mao, não era?

Mentes vazias

O que está na minha mente, pergunta-me o Facebook. Está muita coisa: a alegria infantil de poder ir votar, por exemplo. Foi por um triz. Não estivesse a nevar em Madrid há duas semanas e a IL perderia por mais um voto; a alegria - menos infantil - de sentir que «isto» «está a acabar» (aspas porque «isto» designa um vasto conjunto de coisas e porque «a acabar» é um manifesto exagero. Começou a acabar - o meu irredimível optimismo leva a imprecisões na linguagem, uma lástima que não cesso de lastimar). A perspectiva de ir até à cidade universitária de bicicleta: gosto destes longos trajectos pela cidade e ainda mais agora, com as ruas quase desertas e este frio espicaçante.

Estão muitas coisas, algumas das quais não podem ser faladas e portanto devem ser caladas e outras que por deverem ser caladas não querem ser faladas.

16.1.21

Subir. Ou: És o teu melhor antidepressivo

Entre pairar e derivar escolhes aquele, claro, mas não tarda dás por ti a derivar, a deixar-te ir arrastado pela corrente - que não vês nem sentes, só sabes que está lá, tens uma ideia aproximada da velocidade - e pelo  vento. A deriva tem a vantagem de não exigir nada de ti senão deixares-te ir, saíres de ti como se deixasses uma casa ou uma cama que te acolheram. Pairar requer atenção, é como se estivesses à janela dessa casa ou sentado na borda da cama. Porém, a analogia correcta não é o mar. É um buraco no qual cais e do qual um dia te fartas, simplesmente. Estás lá em baixo. Evitas olhar para cima, não vá a luz do sol encandear-te. Até que um dia a luz de uma vela chega para te fazer ver. Sabes o que precisas de fazer para sair do buraco: uma escada. Tens ao teu alcance tudo o que precisas para a fazer: os degraus estão em ti, basta ordená-los. A luz do Sol chega-te, ilumina o fundo do buraco - é uma rocha escura, fria, escarpada - mostra-te onde deves pôr a escada, qual a ordem adequada dos degraus.

Está feito. Basta começares a subir.

Entreactos, entrecostos e carne picada - Receitas improvisadas

As garrafas de vinho têm a propensão - bem conhecida por toda a gente - de terminar no pior momento. Isto é, quando mais precisamos delas. Com o tempo aprendi a gerir-lhes os ritmos e as vontades. Ver uma garrafa esvaziar-se no preciso instante em que acabo de comer, ficando portanto com um copo cheio para a pausa pós-prandial é um triunfo nada despiciendo.

Sobretudo quando o almoço - umas rodelas deste chouriço extraordinário que me provém do talho O Naco, nunca por nunca ser o esquecerei - meia cebola, meio pimento encarnado, umas folhas de louro da frutaria (está para as frutas e legumes como o talho para a carne), dois dentes de alho esmagados, duas malaguetas do mercado da Ribeira, tudo isto refogado num pouco de azeite e outro tanto de banha. Lentamente. Devagarinho. A fogo brando. Quando estava tudo quase, acrescentei a carne picada, já misturada com alecrim e uns grãos de pimenta preta. Deixei refogar outra vez. Acrescentei vinho branco, cozeu devagar. Quando o devagar estava quase a acabar, fiz um arroz branco. - Acabou agora, ainda tenho o copo cheio, o palato grato, o pasmo intacto. (O sobretudo do almoço perdeu-se algures no caminho. Deixemo-lo.)

Ontem fiz entrecosto no forno em vinho branco, limão, alho, coentros e salsa e ficou bastante agradável, do que resulta que isto de gerir as durações do tinto vale a pena para não termos de sair a meio - tanto mais agora que o senhor da esquina já não tem vinho de Vila Real, o que prova que Deus não trata bem de quem Dele não trata, como eu (nem Deus nem a Cooperativa de Vinhos de Vila Real, mas isso é outra história). Agora bebo um alentejano que escapou ao raz-de-marée dos vinhos redondos, mas anda lá perto. (E tenho duas garrafas de um «biológico» das Beiras ali atrás, não vá o diabo tecê-las, mas essas estão guardadas para quando houver visitas.)

Os dias desenrolam-se entre ir às compras e consumi-las, com alguns entreactos e entrecostos de permeio. 

Uma reparação é devida

- Esta narrativa de culpa e medo está a afectar as pessoas - diz-me R. 
- São duas coisas de que elas precisam. Antigamente as igrejas davam-lhas em quantidade. Mataram-lhes Deus, ficam com a Covid - respondo.

Voltámos à Idade Média. Ou pelo menos estamos a caminhar para lá. Magnífica regressão. Cátaros, goliardos, ortodoxos, apóstatas, milenaristas, maniqueístas, estilitas e tutti quanti, o vosso esforço não foi em vão. Deixaram descendentes. Se formos procurar relações entre lojas fechadas e os pecados encontraremos algumas, aposto. Restaurantes, discotecas, lojas de roupa, livrarias (ler não é pecado? Depende do que se lê. Não foi assim há tanto tempo que o Index acabou [1966]) e não tarda está aí outro. Ninguém diz «Se pecares vais para o Inferno», mas «Se pecares não terás direito a ser tratado no hospital». A diferença é pouca. O discurso cristão oscila entre o individualismo - somos únicos e responsáveis perante Deus, é a Ele que devemos obediência e não à tribo - e o «rebanho», termo que aparece a cada três linhas. O pensamento religioso, maniqueísta, está de regresso. Há os bons e os maus, os santos e os pecadores, santa Greta (esta desapareceu?  Ou recuou para melhor saltar?) e os «negacionistas», os impuros e os vegans... A lista não acaba. Os crentes sentem-se autorizados a atirar pedras aos outros, aos leprosos da dúvida. 

Sabemos o que estamos a perder. Já passámos por lá. Não podemos recuar. Foi a nossa geração que estragou isto, tem o dever de reparar antes de desaparecer.


PS - Não gosto de igrejas, capelas, capelinhas, rebanhos, quintas ou quintinhas. Não é amanhã que me verão fazer parte de uma.

15.1.21

Oiça um bom conselho

Quando relatamos uma conversa, devemos resitir à tentação de dizer «Fulano disse-me que...». A forma correcta é «Fulano disse qualquer coisa que a mim soou como...»

Vésperas, Rachmaninov, fé, Genebra e mais uma data de coisas que não cabem num alfabeto

Oiço as Vésperas de Rachmaninov num aparelhagem fraquinha. Preciso do dobro do volume e da densidade, mesmo sabendo que quem as ouviu na catedral de Genebra dirigidas pelo Corboz nunca mais na vida chegará lá perto. 

(E quem não cedeu à tentação da fé naquele dia nunca se convertirá.)

Diário de Bordos - Lisboa, 15-01-2021

Recomeça esta prisão domiciliária completamente injusta e injustificada. Saio para fazer compras e apercebo-me de que é bem menos grave do que a primeira. Está tudo aberto menos os cafés e restaurantes. Deve ser a primeira vez na vida que me regozijo com uma palhaçada (das de fora do circo). Oiço Paco Ibañez e pergunto-me que raio de injustiça fez com que nós ficássemos com Godinhos e Afonsos e os espanhóis com Ibañez e Andions. Esta confusão com a Air Europa - resolvida hoje de manhã, hallelujah - deu-me pelo menos oportunidade de votar adiantado, se tiver feito as coisas correctamente. Não é impossível. Não voto Mayan, voto IL, uma vez mais. [Adenda: fiz. Vou votar no domingo]. Entretanto a televisão oferece-me Karajan e a filarmónica de Berlim, esqueci-me das natas no gratin dauphinois, o mundo volta, pouco a pouco, a ter tudo no lugar. Isto é, encarreirado, como se diz. Preferiria uma auto-estrada: «está tudo auto-estradado» mas contento-me com o carreiro. Não é difícil: gosto de formigas e detesto pressas. A minha geração bem pode limpar as mãos à parede, com esta cama que fez aos taradinhos da segurança, aos histéricos do risco zero, aos racismos identitários. Isto é tudo gente que vem dos MRPP e dos PRT e dos PCP-R e da liberdade socialista e se desabituou de pensar quando deixou a merda do marxismo-leninismo-maoismo-pol potismo-enver hodjismo-titismo e começou a trabalhar. Pata que os pôs! Confinem-se, mascarem-se, vacinem-se, matem-se mas deixem viver os outros.  Não consigo identificar a peça no canal Mezzo e lamento esta incapacidade. Nem o parabéns a você reconheço à primeira sílaba. É Brahms, vejo no programa. Vá lá, Não conheço Brahms de todo, ser-me-ia impossível reconhecê-lo. O mundo volta ao lugar e eu vou à rua comprar chouriços ao talho O Naco e ver se a minha fraca já chegou. Estou inscrito para votar, tenho uma consulta para os olhos e quero que o resto todo se lixe, com f grande. Amanhã talvez haja menos uma coisa no grupo «resto todo» e mais uma na lista das encarreiradas. Em Lisboa, a temperatura é de 14 graus centígrados, o que sempre é mais civilizado do que o briol de ontem e antes de ontem. Espero que haja muita gente a votar Mayan e que a fraca tenha chegado: são estes os limites da minha esperança. Pelo menos agora ninguém me pode acusar de megalomania.

Mulheres, dias

"Não sou grande espingarda. Nunca fui. Tenho contudo a vantagem de não me importar muito com isso. O filme está quase a acabar e gosto de finais tristes. Enfim, não exactamente tristes: que correspondam à história, que não dêem grandes piruetas para acabar, como os contos do O'Henry ou um malabarista de circo. Por isso me deixo ir sem sobressaltos por esta rampa abaixo. Sei o que me espera lá em baixo. Todos sabemos: já todos estivemos mortos, antes de nascer.  Andamos às voltas. O ponto de chegada é o ponto de partida. Se fores muito esperto, a diferença é que começas a descida mais alto. E se calhar demoras mais tempo a cair, é possível. Ou cais mais devagar ou a rampa é mais longa.

Passei a minha vida toda rodeado de gente inteligente. Sabes aquele estratagema das mulheres bonitas? Têm sempre uma amiga feia com quem gostam de se mostrar. Realça-lhes a beleza e poupa-lhes competição. Pois eu era o burro dos meus amigos intelectuais. Mostravam-me, deixavam-me falar e quem brilhava eram eles. Quem seduzia as miúdas mais bonitas, mais interessantes, mais estimulantes, mais tudo. A mim calhavam só  as que gostavam de felações e as faziam bem. Durante toda a vida isso revoltou-me, mas agora percebo que estava enganado. O que no fundo é natural: para alguma coisa se é burro e não é para acertar. Se acertasse seria como eles. Às vezes reunimo-nos para conversar e beber uns copos. Não lhes invejo as vidas, a nenhum deles. São mais ricos e tiveram mulheres mais bonitas? Sem dúvida. Mas quem deu as melhores quecas fui eu; e o que levas tu daqui, diz-me? Nada, se não as memórias de um corpo enredado no teu. Um ou vários, que foram muitos, graças a Deus. Já lá vai, tudo isso. Mora no largo da memória e nunca sai à rua. Foi o que mais me custou, quando chegou a velhice. Os outros escreviam, liam, iam a conferências, sei lá. Eu não: sem uma mulher ao meu lado sentia-me como se me tivessem cortado os braços. Como o guarda de um jardim zoológico sem animais. Caçador a quem o elefante tivesse esmagado a arma. Durmo sozinho nesta savana vasta e vazia. Os últimos elefantes deixaram-me há anos, alguns com pena, outros com riso. Custou-me bastante a aceitar, esse sossego. Agora regalo-me nele e gozo com os meus amigos: "Para vocês, nada mudou", digo-lhes. "Para que vos serve a velhice? Eu tive de reaprender a viver, enquanto vocês se limitaram a esquecer o que nunca souberam. Dei trabalho ao meu touro furioso. Esgotei-o. E vocês?" Nunca sabem bem o que me responder."

A campainha da porta toca. O senhor levanta-se e vai abrir. É a mulher a dias, uma jovem peruana de trinta anos a quem deu o trabalho por causa dos olhos, que o fazem chorar.

14.1.21

França, vida, coisas

- Coisas que nos fazem amar a língua francesa: «Viens rompre le pain chez moi.»
- Coisas que nos fazem amar a França: a língua;
- Coisas que nos fazem amar a vida: a manteiga da Bretanha; o vinho de Châteauneuf-du-Pape (e da Borgonha, de St. Émilion); o queijo de Époisses, o Camembert, o Morbier... (reticências porque a lista é interminável); os livros de le Clézio, Camus, Yourcenar (sim, eu sei).

Ainda

"Já fui muito infeliz. Mais infeliz do que tudo o que tu possas imaginar. Tão infeliz que não sabia sequer que a felicidade existia. Não era como se a tivesse esquecido, era mesmo não saber, nunca ter sabido. Só mais tarde, anos e anos depois, descobri que a felicidade é real e não qualquer coisa de que se ouve falar ou se lê nos livros - mas não por conhecimento directo, não por a ter experimentado. Isso só veio depois. Muito, muito depois. Para mim, experimentar directamente a felicidade foi como renascer, como ver o Sol depois de um eclipse de séculos. Não me lembro de quando isso aconteceu, mas já ia muito avançado em direcção aos trinta. Até lá, a minha vida fora como aquelas intermináveis praias do mar do Norte, de areia cinzenta, céu cinzento, mar cinzento e mulheres muito brancas e finas, como pasta de dentes. Não ligava às mulheres. Isto é, ligava e muito, queria tê-las mas não queria fazer o que era necessário para as ter. Como quando queres beber um café mas não tens vontade do o fazer. Era infeliz e deixava-me arrastar pela infelicidade como um entrevado numa cadeira de rodas no hall de um hospital. A infelicidade era a minha casa. No Inverno fazia batalhas de bolas de neve, ski de fundo, bebia vinho quente e era infeliz. No Verão, passeava pelos bosques, bebia cerveja ou vinho branco e... adivinhaste. Ainda hoje me lembro desses dias com terror e espanto. Terror porque sei que podem voltar à cada instante. Espanto, porque não compreendo como lhes sobrevivi, como aguentei tanto tempo. uma vez tentei acabar com aquilo, mas não consegui e mal saí do hospital real voltei para o meu hospital metafórico, o da cadeira de rodas, tetraplégico dos sentimentos.

A felicidade caiu em mim de repente. Já ouvira falar dela, como te disse. Talvez até a tivesse vislumbrado, talvez lhe tivesse tocado de raspão. Um dia, porém, descobri que podia ser feliz, podia ser como todos os homens à minha volta, podia ser deus. Deus menor, sem dúvida, mas deus. Finalmente, a minha vida começara a obedecer-me. Não sei como explicar-te isto: de ser vivido passei a viver. De bola de bilhar passei a ser o taco. Imagina um cego que de repente começa a ver: aposto que a sua alegria, a sua felicidade, o seu espanto não seriam maiores do que os meus, quando  descobri que também a mim era dado ser feliz. Como se tivesse nascido já adulto. Ainda hoje não percebo como aquilo aconteceu, mas espero que não acabe, ainda."

O senhor pegou no gin tónico que pousara ao seu lado, deu-lhe um longo gole e continuou:

"Ainda é cedo."

13.1.21

Diário de Bordos - Lisboa, 13-01-2021

Planos para o lanche. Que fazer depois de um soberbo almoço com uma senhora que foi uma das minhas estrelas da blogosfera (e espero volte a ser)? A ideia original era voltar para casa, mas a de um café e um pastel de nata na Versailles intrometeu-se; ao lado da Versailles fica o senhor Tavares, que vende quanto a mim o melhor café de Lisboa; na Versailles chateiam-me por causa da máscara, venho-me embora, vou à Flor do Chaimite onde compro duzentos e cinquenta gramas de café de Timor, um pacote de queijadas de Sintra - Casa do Preto - e uma mini-garrafa de licor de castanha assada. Não gosto de castanha assada, mas talvez o licor seja bom. Se nos ativermos apenas ao que já sabemos nunca saberemos nada. No caminho paro para ver um amigo que não conheço e gostava de conhecer, mas tem a loja fechada. Penso na Air Europa, um prodígio de ineficiência. penso no que esta bicicleta (a de cidade) é confortável, comparada com a outra (a de estrada), de como são ambas boas e belas, de como é uma estupidez comprar meia dúzia de queijadas de Sintra...

...das quais já comi cinco e estou enjoado até ao dedo grande do pé. O licor não é mau nem bom, antes pelo contrário, mas não deixa de ser curioso e oscila entre o mau e o bom até que no fim o ponteiro cai para o lado do bom e ali fica, no meio da música que vem do canal Stingray (fica ao lado do Mezzo e é bastante bom também, um bocadinho mais moderno). Hoje começa outro confinamento, eu continuo sem poder ir para Palma, o mundo continua a rodar como se eu não existisse e a única dúvida agora é saber quando me vai passar o enjoo das queijadas. Magna quaestio.

Versailles, Flor de Chaimite, café de Timor, licor de castanha assada, bicicleta Coluer a rolar por este fim de tarde em que a luz me aparece insultuosa, gozona, de tão bela: isto podia ser uma declaração de amor a Lisboa. É. A cidade passa os dias a gozar comigo e a dar-me tampas e eu passo-os a dizer-lhe que a amo e a ameaçá-la: «Olha que não é a primeira vez que te deixo, não é a primeira vez que deixo uma mulher que amo». Ela ri-se, inunda-me com esta luz, com o cheiro da Flor de Chaimite, com a perspectiva da mistura de licor de castanha assada com queijadas da Casa do Preto, faz-me uma festa nos olhos com a vista de algumas ruas (não penso nos pavimentos: amar alguém é amar-lhe os defeitos. As qualidades qualquer ama) e pronto, lá estou eu caído de novo, pelo beiço, pela alma, pelos olhos.

E pela boca, claro: experimentem ir ao restaurante Luzboa, ali para os lados da Gulbenkian; ou às Zebras do Combro - isto para mencionar apenas duas descobertas recentes. São uma maravilha, qualquer deles, em estilos diferentes. Estão ambos adequados ao sítio onde estão, o Luzboa mais para o moderno, o Zebras mais tradicional. Esta cidade prende-nos pelos olhos, pela boca, pelos sentidos todos e nós deixamo-nos levar, como um cego por uma vadia que o vai roubar e está todo contente, apesar de o saber.