CINCO MICRO-CONTOS
Desejo
No dia em que me roubaram a bicicleta estava a chover e eu cheio de dores
num joelho. Além disso estava de ressaca, porque na noite anterior tinha bebido
uma quantidade razoável de Bailey's. Espero que saibam como se bebe Bailey's:
com um bocadinho de whisky, muito pouco, duas gotas para cortar o excesso de
doce e uma pedra de gelo, não mais.
Foi nesse dia que a Isabel me levou a casa pela última vez. Ainda me vejo a
sair do carro dela: miserável, devastado, curvado, a coxear e a pensar que
nunca, mas nunca mais andaria com uma miúda sem estar apaixonado por ela. Já
que é para sofrer, ao menos que se sofra por uma razão que valha a pena. E o
desejo não é uma razão suficiente.
Lua
Não sei se já viram a lua a nascer nos trópicos, quando está cheia: parece
muito grande e é de um encarnado vivo, brilhante. Dá a impressão de se lhe
poder tocar com as mãos - bastaria estendê-las. Escolhia sempre essas noites
para engatar uma miúda. A partir do momento em que ela acedesse a ir para a
praia comigo era fácil: a lua dá-lhes volta à cabeça, toda a gente sabe. Claro
que me podem dizer que se elas foram para a praia ... - tretas. O que lhes dá a
volta é estarem ali deitadas e ver um enorme círculo encarnado sair da água
como - suponho, nunca vi nenhum - um submarino incandescente a emergir.
Foi isso que fiz com a Ângela: levei-a para a praia e fui-lhe contando
histórias de coisas que não me tinham acontecido, mas podiam ter. Elas gostam
de ouvir histórias, eu de as contar; não me parece que o facto de serem
inventadas de uma ponta à outra tenha muita importância. Enfim, se
analisarmos o caso de um ponto de vista da eficácia não tem com certeza: elas
iam e vinham como baldes numa nora (faço esta analogia porque por vezes me
sentia um bocadinho burro: sair da discoteca, levar uma mulher - que na maior
parte dos casos nunca tinha visto - para a praia, contar-lhe meia dúzia de
histórias, comê-la e vir-me embora - se isto não é como um burro às voltas numa
nora não sei o que é. Verdade seja dita que, por questões de ética pessoal,
nunca repetia uma história).
Onde é que ia? Ah, na Ângela. Era uma miúda pequena, nervosa, seca, com umas
mamas muito grandes (tudo era pequeno nela. Só as mamas eram grandes). Quando
estava a iniciar a minha segunda ou terceira história (parece-me. Se calhar
foram mais) ela disse-me "ainda vais contar muitas, antes de foder? Estou
a marimbar-me nos crocodilos e nos hipopótamos que mataste não sei onde. Podes calar-te e foder-me, por favor?"
Política
Não sou muito de manifestações, greves, movimentos colectivos,
"futuros radiosos" ou "novos homens". Não gosto de
engenharia social, de activistas - sejam eles monárquicos, de esquerda, de
direita, a favor ou contra os animais, contra as marés ou por uma lua cheia aos
fins-de-semana. Por isso, quando conheci a Anabela e me apaixonei por ela - foi
quase simultâneo - sabia que estava a fazer uma asneira.
Anabela era sindicalista, dirigente de um partido de extrema-esquerda e
professora de sociologia numa faculdade pública, boa. Conhecia-a porque veio
ter aulas de ténis comigo. Ao fim da terceira lição eu estava completamente
colhido por ela. Já o inverso demorou um bocadinho mais - e exigiu,
sobretudo, que me calasse com as minhas piadas anti-esquerda, anti-maricas,
racistas e machistas. É verdade; espero que não me confrontem muitas vezes com
esta admissão: calei-me - ou melhor, mudei - por causa dela.
Era muito grande, mais alta que eu; loira, com um corpo ginasticado, tenso,
elástico. Foi muito difícil convencê-la a ficar comigo mais do que a primeira
ou segunda vez de cama. Todas as nossas conversas iam invariavelmente parar à
política - até que eu tomei a decisão de não tocar no assunto, nunca mais.
Anabela tinha um certo ascendente sobre mim, reconheço-o sem dificuldade de
maior. Era eu que a amava; ela deixava-se amar.
Uma noite estávamos na cama e fui-me abaixo. Fiz-lhe uma observação - é verdade
que totalmente gratuita, inútil, não provocada. Mas inócua; qualquer coisa do
género "este palerma do [segue-se o nome de um sindicalista qualquer] só
diz asneiras". "Imbecil", retorquiu.
Eu tinha um ano de pressão para sair. Comecei a bater-lhe - murros e pontapés,
só. Mas foram muitos, é verdade. Só parei quando ela estava morta - os polícias
que me invadiram a casa é que me fizeram parar, porque eu continuava a
bater-lhe. Não sabia que se pode matar alguém com murros e pontapés, mas parece
que sim.
Elevador da
Glória
Não cabe na cabeça de ninguém cair de bicicleta num dia de chuva. Foi porém
o que me aconteceu hoje de manhã. Estava atrasado e resolvi descer a Calçada da
Glória. Por azar, apanhei o elevador a subir e quis desviar-me dele. Não
consegui e caí. Magoei-me bastante, mas o pior foi o vexame: o elevador estava
cheio, e aquela gente toda a olhar - saíram todos e precipitaram-se para mim;
feriu-me mais do que a queda, claro.
Madalena começou por afastar toda a gente: "eu sou médica. É melhor
afastarem-se. Eu trato dele. Senhor condutor, é melhor continuar a sua
viagem". O wattman aceitou, visivelmente aliviado. Quando estávamos
sozinhos disse-me "continuas o mesmo idiota, não é? Como é que te lembras
de descer isto de bicicleta? Deixa-me adivinhar - estavas atrasado".
Madalena viveu comigo dez anos. Sei que não vale a pena contrariá-la, sobretudo
quando tem razão. E não, não é médica: é dona de uma agência de publicidade.
"Consegues levantar-te?"
Levantei-me a coxear, cheio de sangue e de óleo dos carris. Não estava
atrasado: sabia que ela apanhara aquele elevador - paguei a um miúdo, filho de
um amigo meu, para me dar um toque no portátil quando a visse entrar no
elevador. A queda foi propositada. Não funcionou: quando lhe pedi o número de
telefone ela respondeu-me "nem penses nisso". O pior, como disse, foi
o vexame.
Lombo de porco
Vamos voltar atrás e recomeçar onde ficámos, queres? Eu chego a casa, ponho
o chapéu no sítio do costume, tiro o sobretudo; tiro os sapatos. Vou à cozinha
dar-te um beijo; pergunto-te se queres ajuda e tu dizes "não, obrigada,
está tudo pronto. É só pôr no forno". Volto para a sala e vou ao bar
preparar um whisky. Pouco depois tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao
avental. Dizes-me:
- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora.
Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. E agora vou-me embora.
Começo por não perceber.
- Vais-te embora?
- Vou.
- Não percebo. Vais-te embora como, porquê, para onde, como? Quando é que
voltas?
- Não volto. Vou-me embora. Vou deixar-te. Como sabes não gosto de lutar
contra o que é, quando me parece que é e não pode ser de outra forma.
- Está bem. Adeus - e continuei a beber o meu whisky.
Foste-te embora e nunca mais te vi. É aqui, se não te importas, que
gostaria de rebobinar e começar de novo. Assim, por exemplo:
Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:
- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora.
Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. Fazes-me um gin tónico? -
Levanto-me e faço-o, como tu gostas (é - ou melhor, era - um ping pong
permanente, este "como tu gostas"), com bitter Angostura. Tu
sentas-te no braço do sofá e dás-me um beijo.
Ou:Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:
-O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora.
Vamos para a cama? - Respondo "sim" e vamos para a cama.
Tudo, menos:
- Está bem. Adeus.