31.7.24

Reclamação. Abaixo as minis!

Quero deixar aqui uma reclamação, alta e clara, contra a ou as pessoas que inventaram as cervejas em garrafas mini. É o maior atentado ao bom senso, ao bom gosto e ao planeta (tema que me preocupa bastante, como é sabido) de que tenho memória. Aquela merda acaba-se num instante,  as garrafas acumulam-se, um gajo quer beber cerveja e não pode estar constantemente a abrir o frigorífico. Além disso, estou pronto a apostar que quatro minis saem mais caro do que três médias, apesar de a diferença de quantidade ser ínfima. 

Abaixo as minis! Viva as médias. No meio está a virtude! Nem litrosas nem minis!

Diário de Bordos - Sa Calobra, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2024

Ando farto de comer saladas, que é o que todos os clientes comem, naturalmente. Não está tempo para um coq au vin.

.........

Hoje ouvi os clientes mas eles não me ouviram. Resultado: ferro e corrente presos, aquele numa rocha e esta noutra. Tive de chamar mergulhadores de Soller. Trezentos e cinquenta paus. Propus-lhes pagarmos a meias porque em última análise o responsável sou eu. Recusaram e assumiram a totalidade. Franceses mas vivem na Bélgica por motivos fiscais. São simpáticos e a mulher de um deles, romena, é gira que se farta, o que não estraga nada. O outro veio sozinho. Ao todo, cinco: a família de quatro e o amigo / sócio. Ou seja: tenho um camarote! Com o calor que está não me vejo a dormir no peak de vante (detesto chamar coelheira àquilo, apesar de a alcunha ser merecida).

.........

Depois da "aventura" (aspas porque é irónico) viemos para Sa Calobra,  mas estou demasiado exausto até para dormir, quanto mais para ir à terra.

Experimentei tudo o que sei para safar o ferro, mas os mergulhadores - dois sul-africanos simpáticos e eficazes, passem os pleonasmos - confirmaram: sem mergulhadores teria sido impossível. Como o ferro estava a vinte e cinco metros de fundo... A única coisa que consegui foi comprovar que a carcaça não merece todas as críticas que lhe faço. Só algumas. Ainda está aí para as curvas.

..........

Não me lembro quase nada do meu SCARLETT, um Casamance que trouxe sozinho de St.-Malo para Lisboa. Posso contudo afiançar que os Fontaine-Pajot actuais são uma merda. Por exemplo: o ferro está colocado de tal forma que não se lhe pode pôr um arinque sem o bote (forçoso é reconhecer que pela descrição dos saffas de nada teria servido).

.........

Dêem-me por favor clientes que não sabem. Os que "sabem" (ditto) deviam pagar um suplemento e caro.

.........

As baterias não aguentam a noite, de maneira tenho de fazer uma hora de motor antes de adormecer e uma a meio. O marido da senhora romena precisa de um aparelho para respirar quando dorme e tenho de deixar o inversor ligado porque aquilo só funciona a duzentos e vinte. 

Só lamento é que com uma mulher tão bonita tenha de usar máscara... (Lamento nada. Só tem de usar aquela coisa para dormir.)

.........

A semana que vem só tenho três dias de day-charter. O meu P. precisa de mim. Ganho menos de metade mas trabalho um quarto do tempo, de maneira as álgebras equilibram-se.

30.7.24

Queres apanhar outra?

Esta mistura de pele lisa e fresca, acabada de sair do duche e uma dor de cabeça mediana faz-me pensar em ti. Nunca me disseste que te doía a cabeça, sorte a minha e sempre tiveste a pele assim, de se lhe pôr a mão em cima e não se ser capaz de a tirar, alquimia física. Um dia tinhas os cabelos todos espalhados pelo meu baixo-ventre enquanto um polícia te multava o carro, nem ele sabia o que fazias nem tu o que ele fazia nem eu, que acabava de acordar e só via essa vaga de cabelos negros espalhados por tudo quanto eu tinha de coxas e barriga e quando chegámos ao carro vimos a multa e rimo-nos. "Foi merecida", disseste-me. E eu perguntei-te: "Queres apanhar outra?"

O fim

Os orgasmos acontecem no fim e não no princípio. Não é por acaso: a vida deixa o melhor para quando tudo está a acabar. 

Vida, o que quiserem

Vou abandonar aquelas ideias tontas do "isto é que é vida", "saber viver é...", "a vida é assim."

Não sei o que é a vida e de viver só tenho uma noção muito empírica. Nada conceptual. Viver é aquilo que faço todos os dias, pela razão simples e irrefutável de que não quero deixar de o fazer (os: o que faço e viver). Ando por sítios bonitos, às vezes aborreço-me outras não, às vezes tenho dinheiro (quando chove), a carcaça ora reclama ora me leva de Cascais a Lisboa de bicicleta sem um ai. Nada disto me parece complicado porque a nada disto atribuo qualidades mágicas. É certo que gostaria de escrever mais e melhor, como fotografar, de resto. Há imensas coisas que gostaria de fazer e outras que adoraria não ter feito. Ou dito, sei lá. 

Mas estão ditas ou feitas ou pensadas e contra isso não há filosofia que valha. É isto a vida? Não sei. É o que faço quotidianamente: misturo erros e acertos e as proporções por vezes saem certas, outras erradas.

Chamem-lhe o que quiserem.

29.7.24

Diário de Bordos - Sant Elm, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-07-2024

Outra vez em Sant Elm. Os milagres continuam. Não sei se se pode chamar milagres ao que nos acontece porque o esperávamos e procurámos. Desta vez almocei no Flexas. Bom, correcto sem mais. Isto é: se não contar com simpatia da Malena, uma maiorquina da minha idade (mais coisa menos coisa) que herdou aquilo da mãe. A carta não é nem enorme nem particularmente original, mas é honesta - tal como a jovem filha, que me disse que o peixe vinha todo da piscicultura, tal como eu pensava. Prometi-lhes que para a próxima vez tentaria levar lá os clientes. Jantar no Es Raor, a convite dos clientes. O arroz negro continua o melhor que já comi nesta vida e nas outras. Gelado de manga no Tigy's com o milagre do rum a acontecer de novo - um gajo vai comer um gelado e na mesa aparece-lhe o dito e um copo de rum. O vento caiu completamente, como previa a previsão, o que por um lado é chato por outro não. O sono está aí a abanar-me o ombro, quer que eu pare de escrever.  Clientes impecáveis. Dores diversas controladas com uma mistura de paracetamol e ibuprofeno. 

Não sei que nome dar a uma sequência de milagres. Não sei sequer se são milagres.

28.7.24

Idade, je m'en foutisme

Idade confortável: a carcaça reclama mas lá vai andando e a cabeça não só funciona mas também atingiu um nível de paz, autoconfiança e tranquilidade (numa palavra: estar-se nas tintas, em português. Em francês seria je m'en foutisme, termo de que sou grande apreciador) que só pode degradar-se, não melhorar.

Sorte a minha. Nunca ninguém viu a idade regredir.

26.7.24

De empréstimo

Vim ao Gambrinus beber um homónimo (epónimo?) e pensar que quem veste Vilebrequin de empréstimo bem pode vir de empréstimo ao restaurante da rua das Portas de Santo Antão. Antigamente vinha aqui muitas vezes, mas sempre de empréstimo. Comia uns croquetes, uma vez uma fatia de uma coisa de perdiz que eles têm e é uma maravilha, bebia uns gambrinus, um café, às vezes um porto (como hoje, Casa das Carvalhas, maravilha). Nunca me sentei a uma mesa, que me lembre. Estava aqui de empréstimo, como hoje, como sempre, como partout. Como quando ponho calções de banho da marca Vilebrequin, de empréstimo.

Ando emprestado à vida. Espero que ela me devolva no mesmo estado em que me recebeu. 

25.7.24

Amizade, evolução

As amizades começam por ser uma celebração da similitude e evoluem para se tornarem sobretudo uma gestão das diferenças. 

[Adenda: pensei acrescentar "cuidadosa" a gestão, mas não o fiz. Por um lado seria um pleonasmo; por outro um oxímoro. A amizade não precisa de ser gerida.]

24.7.24

Diário de Bordos - Lisboa, 24-07-2024

Apesar de todos os esforços que faz em contrário, Lisboa continua a cidade encantadora que sempre foi. O calor não é culpa dela, claro; os buracos nas ruas tão pouco; nem o barulho, a sujidade, os mendigos, os prédios modernos e asquerosos, passe o pleonasmo. Nada disso consegue vergar esta cidade, nada nem ninguém conseguirão tornar banal esta cidade. Não tem nada a ver com a pastelaria aonde tomei o pequeno-almoço, com as livrarias Snob ou Palavra de Viajante por onde passei como quem vai a Fátima de joelhos (isto é um exagero só literariamente aceitável), com o quisoque S. Paulo aonde comi dois pastéis de bacalhau como não os há em mais parte nenhuma do mundo (nem de Lisboa, quanto mais), nem com o restaurante Tentações de Goa, um dos dois melhores goeses da cidade. Não tem nada a ver com nada de preciso - pastelarias, livrarias e restaurantes são como chapéus - mas sim com o que lhes fica de permeio. Ou dentro, não sei. Faço parte daquele grupo de gente que pensa que uma cidade é feita sobretudo de pessoas e não apenas de monumentos, arquitectura ou história e Lisboa tem o melhor conjunto dessas coisas todas que conheço. Queixam-se do turismo? Credo! Lembrem-se de como era a cidade antes dos turistas e calem-se.

.........
Ontem fui a Cascais. Morei na Linha entre os três e os oito anos e depois dos dezassete aos dezanove, mais coisa menos mês. Voltei em dois mil e dois... Na verdade nunca deixei verdadeiramente Cascais e continuo ainda hoje a perguntar-me se o meu amor por aquele mar e aquela vista é um amor objectivo (há amores objectivos?), se o meu patriotismo tem a ver com a memória mais do que com o certidão de nascimento, se as inquantificáveis horas de navegação naquele mar serviram para fazer de mim o que sou. A pergunta é retórica. Claro que sim. Sem Cascais eu seria outro.

........
Regresso a Lisboa num Uber. O chauffeur chamava-se Imra e é bangladeshi. Está a aprender português. É a sexta língua que fala. A maioria dos idiotas do Chega (há excepçóes) mal consegue balbuciar uma, a que lhes saiu na rifa do nascimento.

.........
Há uns anos - meia dúzia deles, provavelmente - a M. T. mostrou-me os preços dos fatos de banho Vilebrequin. Fartei-me de rir, um riso incrédulo, só mitigado pela leitura de Baudrillard, que ajuda a percebê-los. Desde aí, quando penso na moda e ou leio posts de uma senhora que no Facebook escreve bastante sobre o tema lembro-me dos calções de banho Vilebrequin, para mim um epítoma da debilidade do edíficio todo. Modas, marcas, m'as-tu-vu repousam sobre pilares feitos de consenso social, que requer primeiro um reconhecimento (para não dizer conhecimento, que é mais o meu caso) e depois sobre uma valorização de factores aos quais não atribuo muita importância - por exemplo, ter dinheiro e necessidade de o dizer (não tenho e não tenho).

Ontem vesti uns Vilebrequin emprestados e recusei a proposta de ficar com eles. Algumas mentiras não são defensáveis. Não quero induzir ninguém em erro. [Escrevo isto e penso nos meus calções Napapijri. Concluo que não é a mesma coisa. Para começar só os compro nos saldos; depois a marca não é imediatamente visível; depois ainda, há razões objectivas para se comprar bermudas dessa marca. São objectiva e inegavelmente melhores do que os outros. Nos Vilebrequin não notei qualquer diferença que justificasse o preço astronómico que custam.]

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-07-2024

Estou em Palma e não estou em Palma. Estou em Cascais a ver netos, filha, ex-mulher (e presente amiga) e o resto da tribo: irmãos, amigos, sobrinhos e por aí fora. Vagabundeio sem direcção. Deixo a burra decidir -  normalmente escolhe melhor do que eu. Desta vez viemos à Rambla, a uma esplanada perto de onde era a saudosa Ca na Chinchilla. Nunca comi aqui, mas a conversa com o empregado dá-me vontade de experimentar. A cena passa-se quando ele vê que o meu tinto de verano acabou e me vem perguntar se quero mais alguma coisa. Hesito, pergunto-lhe qual o vermute que tem.
- Rivera, de grifo. - Diz-me isto como se estivesse a propor-me o supra-sumo dos vermutes, coisa que o Rivera está longe de ser. 
- Quanto é que custa?
- Não sei. Deixa-me ver. Creio que é cinco e cinquenta, mas não tenho a certeza. 
- Cinco e cinquenta? Um Rivera? Nem penses nisso. - De repente a dúvida invade-me. - Quanto custa o tinto de verano?
Aqui chegados ele já encontrou os preços: 
- Quatro e cinquenta o vermute e cinco o vinho.
Olho para ele e faço um comentário qualquer sobre o preço absurdo do tinto e rimo-nos os dois, descrentes deste absurdo. Uma bebida composta pelo pior vinho tinto da casa e gasosa cinco euros? Só a rir é que se acredita. Não há mais nada a fazer. Claro que peço o vermute. É feito na Galicia e tem um marketing agressivo. Está em todo o lado. Não é grande coisa.

Já a Rambla é. Adoro esta avenida, mais pequena e bonita do que a de Barcelona. O vento ainda não caiu, está fresco, o meu cansaço espairece e espalha-se por estas filas de plátanos fora enquanto vê a cidade passar por ele, por mim, por este domingo suave em Palma-a-calma.

..........
O dia começou mal: cheguei demasiado cedo ao aeroporto e o taxista que aqui me trouxe roubou-me dez euros.

(Era para ter continuado, mas não continuou. Paciência.)

21.7.24

Diálogos

- O futuro não existe. Só há hoje e a eternidade.

- E o passado, aonde o pões?

- No presente, claro. Não passa de uma acumulação de passados.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-07-2024

Vista de um ponto elevado, como por exemplo o quinto andar do El Corte Inglés da Jaume III, a catedral de Palma é ainda mais imponente e mais bonita. Agora que a conheço por dentro olho para ela com outros olhos.

.........
Hoje tomei outra decisão difícil: vou começar a trabalhar na continuação da publicação do DV. Que se lixem as vendas dos dois anteriores. Nunca passarão do que está. Em terra não sou viável. Só o sou no mar e mesmo disso não estou certo.

.........


(Cont.)

Coisas que se encontram quando procuramos coisas que não se encontram

 CINCO MICRO-CONTOS

Desejo

No dia em que me roubaram a bicicleta estava a chover e eu cheio de dores num joelho. Além disso estava de ressaca, porque na noite anterior tinha bebido uma quantidade razoável de Bailey's. Espero que saibam como se bebe Bailey's: com um bocadinho de whisky, muito pouco, duas gotas para cortar o excesso de doce e uma pedra de gelo, não mais.

Foi nesse dia que a Isabel me levou a casa pela última vez. Ainda me vejo a sair do carro dela: miserável, devastado, curvado, a coxear e a pensar que nunca, mas nunca mais andaria com uma miúda sem estar apaixonado por ela. Já que é para sofrer, ao menos que se sofra por uma razão que valha a pena. E o desejo não é uma razão suficiente.

Lua

Não sei se já viram a lua a nascer nos trópicos, quando está cheia: parece muito grande e é de um encarnado vivo, brilhante. Dá a impressão de se lhe poder tocar com as mãos - bastaria estendê-las. Escolhia sempre essas noites para engatar uma miúda. A partir do momento em que ela acedesse a ir para a praia comigo era fácil: a lua dá-lhes volta à cabeça, toda a gente sabe. Claro que me podem dizer que se elas foram para a praia ... - tretas. O que lhes dá a volta é estarem ali deitadas e ver um enorme círculo encarnado sair da água como - suponho, nunca vi nenhum - um submarino incandescente a emergir.

Foi isso que fiz com a Ângela: levei-a para a praia e fui-lhe contando histórias de coisas que não me tinham acontecido, mas podiam ter. Elas gostam de ouvir histórias, eu de as contar; não me parece que o facto de serem  inventadas de uma ponta à outra tenha muita importância. Enfim, se analisarmos o caso de um ponto de vista da eficácia não tem com certeza: elas iam e vinham como baldes numa nora (faço esta analogia porque por vezes me sentia um bocadinho burro: sair da discoteca, levar uma mulher - que na maior parte dos casos nunca tinha visto - para a praia, contar-lhe meia dúzia de histórias, comê-la e vir-me embora - se isto não é como um burro às voltas numa nora não sei o que é. Verdade seja dita que, por questões de ética pessoal, nunca repetia uma história).

Onde é que ia? Ah, na Ângela. Era uma miúda pequena, nervosa, seca, com umas mamas muito grandes (tudo era pequeno nela. Só as mamas eram grandes). Quando estava a iniciar a minha segunda ou terceira história (parece-me. Se calhar foram mais) ela disse-me "ainda vais contar muitas, antes de foder? Estou a marimbar-me nos crocodilos e nos hipopótamos que mataste não sei onde. Podes calar-te e foder-me, por favor?"

Política

Não sou muito de manifestações, greves, movimentos colectivos, "futuros radiosos" ou "novos homens". Não gosto de engenharia social, de activistas - sejam eles monárquicos, de esquerda, de direita, a favor ou contra os animais, contra as marés ou por uma lua cheia aos fins-de-semana. Por isso, quando conheci a Anabela e me apaixonei por ela - foi quase simultâneo - sabia que estava a fazer uma asneira.

Anabela era sindicalista, dirigente de um partido de extrema-esquerda e professora de sociologia numa faculdade pública, boa. Conhecia-a porque veio ter aulas de ténis comigo. Ao fim da terceira lição eu estava completamente colhido por ela. Já o inverso demorou um bocadinho mais - e exigiu, sobretudo, que me calasse com as minhas piadas anti-esquerda, anti-maricas, racistas e machistas. É verdade; espero que não me confrontem muitas vezes com esta admissão: calei-me - ou melhor, mudei - por causa dela.

Era muito grande, mais alta que eu; loira, com um corpo ginasticado, tenso, elástico. Foi muito difícil convencê-la a ficar comigo mais do que a primeira ou segunda vez de cama. Todas as nossas conversas iam invariavelmente parar à política - até que eu tomei a decisão de não tocar no assunto, nunca mais. Anabela tinha um certo ascendente sobre mim, reconheço-o sem dificuldade de maior. Era eu que a amava; ela deixava-se amar.

Uma noite estávamos na cama e fui-me abaixo. Fiz-lhe uma observação - é verdade que totalmente gratuita, inútil, não provocada. Mas inócua; qualquer coisa do género "este palerma do [segue-se o nome de um sindicalista qualquer] só diz asneiras". "Imbecil", retorquiu.

Eu tinha um ano de pressão para sair. Comecei a bater-lhe - murros e pontapés, só. Mas foram muitos, é verdade. Só parei quando ela estava morta - os polícias que me invadiram a casa é que me fizeram parar, porque eu continuava a bater-lhe. Não sabia que se pode matar alguém com murros e pontapés, mas parece que sim.

 

Elevador da Glória

Não cabe na cabeça de ninguém cair de bicicleta num dia de chuva. Foi porém o que me aconteceu hoje de manhã. Estava atrasado e resolvi descer a Calçada da Glória. Por azar, apanhei o elevador a subir e quis desviar-me dele. Não consegui e caí. Magoei-me bastante, mas o pior foi o vexame: o elevador estava cheio, e aquela gente toda a olhar - saíram todos e precipitaram-se para mim; feriu-me mais do que a queda, claro.

Madalena começou por afastar toda a gente: "eu sou médica. É melhor afastarem-se. Eu trato dele. Senhor condutor, é melhor continuar a sua viagem". O wattman aceitou, visivelmente aliviado. Quando estávamos sozinhos disse-me "continuas o mesmo idiota, não é? Como é que te lembras de descer isto de bicicleta? Deixa-me adivinhar - estavas atrasado".

Madalena viveu comigo dez anos. Sei que não vale a pena contrariá-la, sobretudo quando tem razão. E não, não é médica: é dona de uma agência de publicidade. "Consegues levantar-te?"

Levantei-me a coxear, cheio de sangue e de óleo dos carris. Não estava atrasado: sabia que ela apanhara aquele elevador - paguei a um miúdo, filho de um amigo meu, para me dar um toque no portátil quando a visse entrar no elevador. A queda foi propositada. Não funcionou: quando lhe pedi o número de telefone ela respondeu-me "nem penses nisso". O pior, como disse, foi o vexame.

 

Lombo de porco

Vamos voltar atrás e recomeçar onde ficámos, queres? Eu chego a casa, ponho o chapéu no sítio do costume, tiro o sobretudo; tiro os sapatos. Vou à cozinha dar-te um beijo; pergunto-te se queres ajuda e tu dizes "não, obrigada, está tudo pronto. É só pôr no forno". Volto para a sala e vou ao bar preparar um whisky. Pouco depois tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. E agora vou-me embora.

Começo por não perceber.

- Vais-te embora?

- Vou.

- Não percebo. Vais-te embora como, porquê, para onde, como? Quando é que voltas?

- Não volto. Vou-me embora. Vou deixar-te. Como sabes não gosto de lutar contra o que é, quando me parece que é e não pode ser de outra forma.

- Está bem. Adeus - e continuei a beber o meu whisky.

 

Foste-te embora e nunca mais te vi. É aqui, se não te importas, que gostaria de rebobinar e começar de novo. Assim, por exemplo:

Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. Fazes-me um gin tónico? - Levanto-me e faço-o, como tu gostas (é - ou melhor, era - um ping pong permanente, este "como tu gostas"), com bitter Angostura. Tu sentas-te no braço do sofá e dás-me um beijo.

Ou:
Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

-O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Vamos para a cama? - Respondo "sim" e vamos para a cama.

Tudo, menos:

- Está bem. Adeus.

20.7.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-07-2024

E provável que todas as cidades tenham uma rue Daguerre, uma rua que concentra tudo aquilo de que nelas (cidades) gostamos. Em Paris, para mim, é essa tal rua Daguerre. Tem uma queijaria que o Le Point classificou há anos - tantos que ainda os jornalistas não se vendiam por meia dúzia de amendoins - de "a segunda melhor de Paris"; tem um café/ cave à vins aonde se come, se bebe e se lê mais do que decentemente; tem uma livraria, que dantes se chamava Arbre à Lettres, para mim (repito-me, eu sei) um dos melhores nomes de livraria que conheço; dantes, ainda dantes, tinha a (para mim, ditto) melhor tasca da cidade, chamada apropriadamente Au Vin des Rues. Fechou, desgraçadamente. 

Em Palma, a minha rue Daguerre chama-se carrer Arabi. É mais pequena do que a rue Daguerre - não é bem sequer uma rua, é mais uma praça - e só tem três lojas. Para grande desgraça minha, são as melhores lojas de Palma, na respectiva categoria. Começo por cima (a rua é inclinada): En mi maleta, uma loja de presentes. Pertence a uma senhora chamada Paloma. Não é uma loja de fancaria, de recuerdos à la bimba. Tem objectos lindos e hoje lá deixei outra vez uma pipa de massa porque quero levar presentes à família; a seguir vem a Biblioteca de Babel, que o FT classifica de "uma das vinte melhores livrarias do mundo" e eu concordo. Cada vez que lá vou sinto-me na Citylights, versão reduzida. A Biblioteca de Babel é uma daquelas livrarias em que um gajo entra e cinco minutos depois está a pensar "quero comprar todos os livros, por favor".

Este "por favor" é dirigido ao dono, um senhor que para além de perceber de literatura percebe muito de literatura e tem um pequeno e simples bar aonde se pode dar aos livros os preliminares que normalmente reservamos às senhoras. Livros e vinhos excelentes. Que mais se pode pedir? Um bom vermute, José Luis, por favor. 

Ao lado fica o Antiquari, que hoje graças a Deus estava fechado.

São os cinquenta metros de rua mais caros de Palma. (Para mim, claro. Em cinquenta metros do Passeig des Born é possível gastar dez vezes o que hoje deixei na carrer Arabi. A diferença sendo que no Born seria deitar dinheiro à rua.)

........
Segunda-feira vou a Lisboa ver a família e amigos, fazer uma ecografia e tentar ser visto por um médico do SNS. Aviso aos cépticos: eu acredito. (Refiro-me claro ao último objectivo. Os outros são do sector privado.)

........
Bicha de vinte metros no Rivarena da Plaza de la Lontja. Penso: estes gelados são uma merda. Espero que os mentecaptos nunca descubram o Claudio.

18.7.24

Diário de Bordos - Portocolom, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-07-2024

A noite foi fácil e os sonhos alegres. É espantoso a influência que tomar uma decisão difícil e penosa tem na qualidade do sono. Antigamente, durante os temporais alijava-se carga, prática essa que consistia em deitar carga ao mar para garantir a sobrevivência do navio. Hoje isso já não se faz: uns senhores resolveram criar normas e regulações para nos protejer, como se não tivéssemos o direito de morrer como e quando queremos. Espero que esses senhores - ou alguém por eles - não se lembrem de regulamentar as más decisões, quando se tomam e quando nos livramos delas, por mais pele que se deixe no processo.

.........
Se por acaso algum dos meus leitores vier a Portocolom, uma má notícia: o restaurante do clube náutico fechou. História de rendas (e de estupidez, claro. O local está fechado). E uma boa: o restaurante Volare é excelente, tem um serviço impecável e não é mais caro do que os outros.

........
Jantar com o S. R. ontem. O homem é enorme, deve andar pelos cento e vinte ou cento e trinta quilos, é veterinário (isto é, a mulher é veterinária e os dois são donos de um clínica que trata exclusivamente cães e gatos) e caçador, leitor e dono de uma enorme biblioteca (ele diz e eu acredito), maiorquino de boas famílias, estudioso de náutica e da sua história. [Adenda: também é um bocadinho chato, às vezes.]

........
Os miúdos deste grupo são de uma boa educação notável. Pergunto-me até quando a América Latina resistirá.

.........

Soberbo jantar no Noray, Ses Covetes (praia de Es Trenc). Encontrei finalmente um arroz negro à altura do do Es Raor.

.........

O mar parece o lago de Genebra (ou Léman, consoante o lado da fronteira de onde se o considera), o EVE mal se mexe e como há muito espaço ferrei-lhe com quase trinta metros de corrente para menos de quatro metros de fundo, que ainda por cima é de areia da boa. Será preciso um tsunami para me tirar daqui.

........ 

As minhas aventuras com (uma funcionária d)o SNS continuam. A formulação está um bocado bacoca - a senhora não representa o SNS. Representa-se a si própria e à parte da humanidade para quem ter poder é dizer não. O centro de saúde de Cascais tem pessoas adoráveis a trabalhar. Calhar-me esta senhora na rifa é azar, só azar. A ver se na semana que vem tenho mais sorte. 

(A menos que o problema sejam médicos de férias, no que não acredito. Essas devem estar marcadas há tempo suficiente para... para... Enfim, para.)

[Adenda: não sei aonde foram buscar essa ideia de que a saúde é um direito. É, sem dúvida, mas para quem tem dinheiro para a pagar. Quem está sujeito ao SNS tem o direito de esperar e é um pau por uma pedra.]

16.7.24

Diário de Bordos - Portocolom, Mallorca, Baleares, 16-07-2024

A isto chama-se falhar redondamente. Tanto que vem-me à memória aquela canção do redondo vocábulo, do primeiro dia e por aí adiante. O objectivo era ir ao restaurante do Clube Náutico de Portocolom, o meu favorito (é um dos poucos que conheço, acrescento não vá alguém tomar-me por guia). Fechado. (Há dois anos, diz-me o S. R., que é maiorquino.) A cidade, vila, aldeia, seja lá o que for está cheia a abarrotar. É a sua festa, informa-me um segurança destacado para controlar os contentores de lixo (não é piada. Aqueles contentores - cheios e com o lixo já por fora - são unicamente para uso dos iates e ele está ali com uma lista de nomes dos barcos. O EVE não consta dessa lista mas o homem deixa-me, após uma breve conversa, depositar os sacos.) As ruas estão insuportáveis,  cheias, intransitáveis. Encontro uma tasca que em dias normais deve ser óptima. Abrevio muito: hoje não é. O senhor que me serve tem cara de dono e está simplesmente esgotado e mal criado.

Pensar que ia para o restaurante do clube escrever faz-me rir. A tasca esvaziou-se de repente, só fica a música, abominável. Os gritos foram-se. Consigo pelo menos pegar no telefone e esboçar - isto não passa de um rascunho - o fim falhado de um dia porreiro. Enfim, mais ou menos porreiro. Um dia do qual um gajo não pode queixar-se senão de ninharias ou dele próprio é um dia chato.

R., o puto mais puto da família, adiantado mental - tem onze anos, mais coisa menos semana e parece ter dezoito - pergunta-me de que gosto mais no meu trabalho vírgula no mar, acrescenta.

"Primeiro: da liberdade", respondo. "Apesar de isto" - aponto para o barco e para o mar - "parecer uma prisão. Segundo: da complexidade. O que faço parece simples e fácil e não é."

O puto fica convencido e eu também. Consegui resumir uma vida em duas frases.

Há dias em que me sinto o Cônsul do livro do Lowry mas agora não consigo explicar porquê. Nem uma burra tenho lá fora, quanto mais um cavalo morto. Não há veículo que nos livre de nós, Geoffrey.

Apercebo-me - só agora - de que Geoffrey é a combinação de Terra e Livre. Não reli o livro vezes suficientes.

A tasca está quase vazia. Ele há milagres, Geoffrey. Bastar-nos-ia não acreditar neles. Nas nós somos incuráveis, não é? Vá lá, estou em Maiorca e não no México. Não arrisco a vida, com ou sem burra.

Apesar de vazia, volta e meia irrompem gritos na tasca. Desta vez provocados por duas mulheres que, diga-se de passagem, os justificam. Foram recebidas por um dos empregados com um justificado entusiasmo. Felizmente compraram cigarros e foram-se embora.

E assim quase acaba um dia que acaba quase falhado. Quase é uma palavra que engana muito. Agora vou ter com o resto da malta e depois vou para bordo, quase dormir.

É quando me queixo

«É quando te queixas que és melhor», diz-me S. F. (mais ou menos, cito de memória). Que desafio! Só posso queixar-me ou de ninharias ou de coisas de que não serve de nada queixar-me, como eu, por exemplo. Queixar-me de mim é, de todos os exercícios que pratico, simultaneamente um dos mais antigos e o mais inútil: não mudei significativamente nos últimos cinquenta anos e é pouco provável que tenha mais cinquenta para experimentar-me noutro formato. Por significativamente quero dizer estruturalmente. Há pormenores que mudaram, claro. Algum uso haveria de ter a quantidade de erros, asneiras, disparates que fiz e por vezes ainda faço, verdade seja dita.

Melhorei, sem dúvida. Mas não mudei. Como uma pedra que rola: fica mais redondinha mas mantém a forma.

ADENDA: S. F. esclarece-me qyue não é quando me queixo. É quando estou «em dor». Fica queixo-me, desporto preferido da minha gente. 

14.7.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2024

Sempre desconfiei de homens que vestem cor-de-rosa, mas ontem vi o superlativo: um tipo dos seus sessenta e muitos setenta e poucos de calções cor-de-rosa e faixa do chapéu da mesma cor.

........
Ontem falhei desastrosamente a manobra de atracagem. (Enfim, desastrosamente é um exagero. Não houve estragos, excepto no meu ego.) Foi a primeira vez em anos. Penso que de vez em quando nós, marinheiros, temos um anjo da guarda com um martelo na mão e quando começa tudo a correr demasiado bem ele dá-nos uma martelada na cabeça, para não nos enganarmos nem esquecermos.

........
Mais uma semana de charter, mais uma semana de desespero. O ano de dois mil e vinte e três ainda não acabou, por mais que eu lhe implore que se ponha a andar de uma vez por todas.

........ 

Hoje ainda há um jogo dessa merda desse campeonato, diz-me a A. I. Tê-lo-ia deduzido: as ruas começam a encher-se de gente com bandeiras de Espanha aos ombros. Acho insuportável, lamentável e desgostante esta manifestação de gregarismo, que não é senão um termo chic para carneirismo. Percebo a necessidade de pertença, mas não que ela se manifeste através de um jogo de futebol. 

........

(Cont.)

13.7.24

Da escrita das gazelas

A escrita de Maria Belmonte é elegante, ágil e leve. Se as gazelas soubessem escrever, escreveriam como ela.

Felizmente não sabem e ela não tem concorrência. 

12.7.24

Dispersos diversos

Sonhos de infância

Na lista de coisas a proibir urgente e absolutamente deve incluir-se os trabalhos dos quais é impossível não gostar, correctamente pagos e que provam que os sonhos mais verdadeiros e mais válidos são os da infância. 

..........
Magia, beleza e dinheiro.

Três gatos pingados na cala Ses Ortigues: dois monocascos pequenitos e eu, num cata idem. Garrei um bocado (cerca de vinte e cinco metros, diz-me o GPS) e fiquei mais perto de um deles do que queria. Não é suficiente para estragar a magia do lugar, a qual faz parte do meu salário, juntamente com a beleza e a massa.

Nem os pilotos de avião podem dizer o mesmo.

........

Num grupo de oito pessoas: um come tomate mas não cebola, outro cebola mas não tomate, todos comem abacate menos uma. Há o inevitável alérgico ao glúten. H., o pai – que acaba de me dar uma seca do tamanho do Sahara – atarefa-se na cozinha e impressiona-me – positivamente, desta vez. Começou a cozinhar cm o filho, o puto mais novo, mas este arredou-se depressa. Pergunto a H.:

- O teu assistente abandonou-te?
- Não é meu assistente, é o meu chefe.
- Esse é um dos dramas da modernidade.

 Cala Ses Ortigues, 10-07-2024

Diário de Bordos - Magaluf, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-07-2024

Os clientes queriam jantar em terra porque é o último dia do grupo: amanhã uma das famílias vai-se embora, um dia antes do fim do charter, que é sábado. Raio que os parta. O único sítio possível é Magaluf. Exacta e diametralmente o oposto do que gostam. Que se lixem. Pelo menos assim têm uma visão circular de Mallorca. Acordar em Sas Hortigas e adormecer em Magaluf é como começar uma viagem num carro de luxo e acabá-la num tuktuk a pedais.

Nunca conseguirei perceber as pessoas que vêm passar férias a sítios como este. Ao meu lado está uma família portuguesa: pai, mãe e dois putos pré-adolescentes. Que raio de carga de água vão eles levar deste jantar? O restaurante chama-se Ibizza, comi um arroz negro que estava simultaneamente negro e uma merda, vou pagar um balúrdio, a música (que não é tão má quanto seria de temer) está alta de mais. Talvez levem boas recordações: são frugais e usam três telefones entre os quatro - a mãe e o mais novo partilham um. A mulher é bonita e parece-me bem vestida. Isto é: não tem um decote espampanante, o vestido é comprido e não muito feio (pelo menos a parte que vejo), os cabelos são pretos ou castanho escuro e não tem adereços em demasia. 

Só venho a Magaluf se for pago para isso. Pagar para vir aqui parece-me o epítoma da bimbolice. Mas isto sou eu, pedante e solitário, marinheiro e desencantado.

..........
Pedi um gelado. Só têm baunilha. Paciência. Depois bebo um rum noutro lugar qualquer, aonde a música será de certeza pior mas pelo menos terei a impressão de não gastar tanto. Parcelar, meu caro, é a melhor maneira de passear o enfado.

[Acabei por beber o rum ali e o jantar afinal não foi tão caro quanto temia.]

.........
Eles foram jantar ao Pargos e dizem que gostaram. A ver se dá próxima vez me lembro.

(Espero que não seja tão cedo.)

........
Cruzei outros dois grupos de portugueses, mais condizentes com o local.

11.7.24

Carta aberta a uma mulher casada (e fechada)

Que raio de bicho te mordeu, mulher, para te casares sem ser comigo? Não percebes tu que enganar desta maneira os desígnios divinos tem consequências graves?

Pelo menos para mim, claro. Sei lá se para ti é a mesma coisa...

É que, repara, não é só uma questão de cabelos, mamas ou olhos (eu sei, mas isto não é uma lição de anatomia), ventre, coxas e o que lhes fica por baixo ou entre, depende do referencial que escolheres. Eu já escolhi: o meu referencial és toda tu. Isto é: toda inclui essas coisas que já mencionei e mais, outras que não se vêem sempre. Só se manifestam às vezes.

Fazer amor com uma mulher que sabe escrever não é fundamentalmente diferente de o fazer com uma analfabeta. Na aparência. Na verdade é completamente diferente. Acariciar uma mama, beijar uns lábios, olhar para uns olhos que sabem ler, ser acariciado por uma mão que sabe escrever, calar o grito «amo-te» mesmo que ela nos queime a língua e apagar esse incêndio entre as coxas de quem sabe manejar palavras é foder a vida, a história, a humanidade. É como ler um livro cujas páginas são feitas de pele; e os cotovelos servem para não me esmagares enquanto os bicos das mamas desenham letras no meu peito.

Isto é: saber escrever e ler não é tudo. É também preciso ter humor, saber rir e encantar com esse saber. Os chineses bem dizem que quando se olha para alguém só se vê metade dessa pessoa. Bem podiam dizer que ou se fode a mulher toda ou mais vale limpar as mãos à parede.

«Toda». É isso que acabei de dizer. Não é por acaso que toda e foda são tão parecidas. São siameses, mulher, é o que te digo: siameses.

Por isso acho deplorável a ideia de te casares sem ser comigo: o meu «toda» fica amputado e as minhas fodas sabem a nada. Todas.

Sa Calobra, 09-07-2024

9.7.24

Diário de Bordos - Sa Calobra, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-07-2024

Há coisa de alguns dias aprendi a falar biquiniquês. Agora procuro alguém para umas lições de monoquinês, se faz favor. Com aulas práticas, se possível. 

.........

Outra vez em Sa Calobra, outra vez em estado de maravilhamento. O fascínio continua intacto, por mais que faça esta costa. Hoje lembrei-me da primeira vez que o fiz, a T. e eu sozinhos a bordo, ambos como viemos ao mundo.

Dois anos depois a miúda deixou-me e fiz a pior e mais longa depressão da minha vida. A felicidade paga-se caro.

........

Mais uma semana de charter. Já só faltam duas para chegar ao meu objectivo de cinco. Com o transporte da Holanda para o Algarve fico com o Verão composto e algumas asneiras deste interminável ano de dois mil e vinte e três tapadas. 

Gostaria de lhe pôr uma tampa em cima, das tantas que recebo. 

........

Fundeado e amarrado pela popa a uma rocha, no meu canto favorito da cala. Sorte? Ou será por causa do futebol? Se for, fica comprovado que mesmo da mais gigantesca das merdas alguma coisa boa pode sair. Como se fosse preciso.

.........

Esqueci-me do comprimido. Qual a relação disto com a sorte, a merda ou a capacidade que esta tem de a gerar?

Levanto-me ou deixo para amanhã? Estou na conejera, mas sim, levanto-me. Tenho de dar atenção à carcaça,  que anda conflituosa, a cabra.

ADENDA: A ponte entre a merda e o comprimido foi a dor no joelho. Tenho a memória concreta.

8.7.24

Diário de Bordos - Palma e Sant Elmo, Baleares, Mallorca, Espanha, 06 a 08-07-2024

06-07 - Palma

Venho ao mercado biológico da praça Patins apesar de não precisar de comprar nada: hoje começo um charter. Aquilo é pequeno, atravessa-se rapidamente e num ápice estou no café Sa Caravana, que me faz lembrar o Marchand de Sable apesar de fisicamente ser o oposto: espaçoso e luminoso. Porém o intangível tem tanto ou mais peso do que o que se vê, não é? É. 

........
Tenho de acabar o que comecei ontem para o Cravo, ideia que me entusiasma mais do que a disponibilidade que para ela tenho.

........
A minha relação com os patriotismos é igual à que tenho com as diferentes fés religiosas: não as partilho mas reconheço-lhes as razões e a validade. E acho que umas são melhores do que outras.

.........
08-07 - Amarrados a uma bóia em Sant Elmo.

A esquerda ganhou as eleições em França. Entre Mélenchon e Le Pen venha o diabo e escolha. Como não sou o diabo não consigo escolher.

.......
Clientes: dois casais argentinos unidos pelas senhoras, que são irmãs mais dois adolescentes  de um dos casais e uma rapariga, do outro. Uma das famílias vive na Flórida a outra em Barcelona, ambas há bastantes anos. Mantêm um sotaque argentino cerrado. Os quatro são professores universitários: musicologia, química e artes performativas. Os putos são adoráveis.

Ouve-se os adultos explicar qualquer coisa aos putos e percebe-se que a "igualdade" com que a esquerda sonha não passa de uma fantasia.

(Nb.: há muito tempo que não tenho clientes tão agradáveis e com quem me dê tanto gosto navegar. Parece-me que voltei aos meus primeiros tempos em Genebra, os tempos em que a S. era assistente na universidade e o nosso círculo social era composto por esquerdistas de luxo... ai, perdão. Por universitários. 

..........
Aviso à navegação: se algum dos meus leitores estiver a pensar comprar um cata, não compre um Excess 11.

Quatrocentos mil euros por um cata de onze metros é uma pechincha caríssima. Para merda só lhe falta o cheiro.

........


6.7.24

María Ángeles López e por aí fora

"Si las rocas respiran, ¿no habrás de hacerlo tú? Brama el mar en su nombre y en el tuyo. Entra y rompe, imprudente, las costuras, el cuidadoso atado de los cuerpos. ..."

"En tu piel abre el mar sus pasadizos, la llamada impaciente de los pájaros. ... És el norte de ti, te rompe y entra. Te llena con disturbio y con amor."

María Ángeles Pérez López, in Libro Mediterráneo de los Muertos.

Não sabia que a Pizarnik deixou descendência.

Sair à noite e coisas que ficam para amanhã

Sair à noite para ver mulheres bonitas e beber copos não é pecado. Parece-me mesmo uma actividade defensável. Palma está cheia de uns e de outras. A estas actividades há que acrescentar a compra de dois livros: Peregrinos de la belleza, Viajeros por Italia y Grecia, de Maria Belfonte e Livro Mediterráneo de los Muertos, de María Ángeles Pérez López. Ambos muito bons, daqueles de que apetece citar páginas inteiras.

Fica para amanhã.

Jogos de palavras, eucaristias e outras coisas

- É tarde. Devias deitar-te.
- Estou deitada, caso não tenhas reparado.
- Não é isso que quero dizer. É deitar-te, deitar-te mesmo, dormir.
- Achas que estou a levitar?
- E se me amasses?
- Esse é provavelmente o único jogo de palavras da língua portuguesa que detesto, como sabes.
- Pensava que era "alma minha".
- Não. Essa ainda não partiu. Ainda a tenho.
- Aos pares. Dorme.
- Só durmo depois de me foderes.
- Sou assim tão suporífero?
- És. A minha irmã chamava-te "o Xanax".
- ...
- Ficaste sem palavras?
- ...
- Não te preocupes. E sim, vou amar-te, sem jogo de palavras. Sempre gostei de foder contigo e quando a Elsa se vinha queixar-se de ti mandava-a bugiar. É preciso saber foder-te. Por isso não me importo nada de que andes por aí a plantar Joõezinhos em tudo quanto é cona. Não passam de receptáculos, como os cestos que os padres passam na missa para as esmolas. Foder-te é outra coisa. É a eucaristia toda.

5.7.24

Retratos possíveis

Tinha aquela forma de loucura que muitas vezes se torna impossível distinguir da estupidez.

Um dia ocorreu-me que se pode ser simultaneamente louco e estúpido. Por vezes os dois anulam-se e fica-se com a impressão de que a pessoa não é nem um nem outro. Outras adicionam-se - ou pior ainda, potenciam-se - e aí sim, fica-se com a certeza de que é os dois.

4.7.24

Hildegarde e a teologia

A música de Hildegarde von Bingen mantém-me acordado. O mezcal do 7 Machos está digerido. Vou buscar um rum - Santa Teresa, o nome é adequado - e tento afastar o P. do pensamento. Até agora tenho conseguido. Ouve-se esta música e percebe-se facilmente que há muito mais para além daquilo que se vê e se vive.

Escrevo isto e pergunto-me como concilio o meu fundamental ateísmo com o sentimento que esta majestade - equivalente à da catedral que visitei recentemente e me esmagou, literalmente - provoca. A resposta é fácil, parece-me: pode não se acreditar na existência de Deus e acreditar-se na grandiosidade dos espíritos que O inventaram. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-07-2024 / 2

Fui jantar ao 7 Machos. Fizeram-me de novo um desconto monumental. Saí tão comovido que ia caindo da BH (Glasgow Vintage). Às vezes pergunto-me se de um ponto de vista comercial isto é uma boa política: quase fico com vergonha de lá ir. Felizmente este quase cobre largamente a vergonha e sei pertinentemente que lá voltarei. Aqueles tacos e a Margarita são superlativos e eu não sou rapazinho para deixar passar essas coisas em branco. Só uma vez na vida bebi uma Margarita melhor do que esta. Foi em Puerto Vallarta, num bar cujo nome não recordo mas deve estar algures nos fundos do DV, coitado. E mesmo assim não me lembro se eram melhores por serem melhores se por serem ainda maiores. Aquilo não eram copos, eram aquários, mini-piscinas. Nessa altura ainda conseguia beber várias. Hoje não: estou reduzido a uma. Tenho pelo menos a sorte de ser sublime e ainda por cima não ser cara. Pelo menos a mim. Obrigado, todos no 7 Machos. Voltarei em breve e não apenas por causa do desconto.

.........
Chegado a bordo ponho a Hildegarde a cantar e a acompanhar os balanços deste sacana deste P., que não pára de me pregar rasteiras, umas a seguir às outras. 

Isto dito, a burra voltou ao seu lugar no pontão. Não se deve ceder à adversidade sem lutar. Há alguns dias - quase duas semanas - veio um segurança dizer-me que não podia ter a bicicleta no pontão porque se todos bláblábla´. Acedi e voltei a pô-la no parque de burras. Porém, contudo, todavia os gajos do fim do pontão continuaram com elas lá. Esperei estes dias todos porque sou bem educado. Voltei a pôr a burra no seu lugar porque sou pela igualdade. Além de estar à porta, aqui não preciso de a trancar (verdade seja dita que no parque delas tão pouco, mas não estamos aqui para dizer «as verdades»).

........
Comprei mais luz e mais material de cozinha para o P. Nunca gostei de campismo, não é agora que vou começar.

........
Tive a A. I. aqui durante quatro dias e vi a ilha pelos seus olhos. Levei-a à Tramuntana (ou a parte dela), passeei-a por Palma, fomos a Colonia San Jordi (não exactamente a parte mais conseguida da viagem: a paella do Hostal Playa estava péssima), a Sineu e à praia de Son Serra de Marina. Tudo isto se resume em três palavras: Adoro esta ilha.

........
P. S. - Em Sineu recomendo vivamente o restaurante / café / bar Ca'n Paco.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-07-2024 (Roupa velha e nova, misturadas)

Dei recentemente os primeiros passos no biquiniquês. Aprendi que os biquinis falam para tias, tias-avós, avós, com dourados ou sem dourados. Imagino que o façam também para outros grupos etários ou de parentesco. 

Falo e escrevo relativamente bem - ou pelo menos aceitavelmente - quatro línguas. A junção de mais uma a este grupo é no mínimo enriquecedora. Além disso, é um indubitável passo na direccção desse mundo do qual me sinto tão auto-excluído. Isto dito, os fonemas de um biquini são inegavelmente mais interessantes do que os da palavra «sentido», por exemplo. É igualmente certo que do biquiniquês passarei não tarda para o camisês, sapatês ou - assunto que me apaixona - chapeusês. É toda uma nova gramática que me espera.

Não posso esperar o momento de lhe pôr os olhos em cima.

.........
Penso no prazo de validade dos amores tardios mas daí voa-me o pensamento para a sua validade tout court. Ocorre-me que só são válidos se lhes tirarmos o ridículo, como fazem à espuma do guisado os cozinheiros. Além de ficarem mais bonitos, aumenta-lhes a longevidade.

Como se fosse preciso.

........
Não leio mas escrevo. Antes assim. Por mau que seja, sempre é melhor do que não fazer nem um nem outro.

........
Dois cafés e duas hierbas secas e o cansaço atenua-se. É um cansaço solúvel, está visto.

........
Trago a A. a Colonia San Jordi e enquanto ela vai para a praia eu vou ao Es Cani, cujo empregado me parece mais antipático do que o habitual. Não é antipático, é só maiorquino. Ou seja, poupado: se sorri tem de pagar mais impostos. O lugar está cheio de turistas jovens e bonitas mas estão sentadas na esplanada do outro lado da rua e só as vejo quando por qualquer razão têm de ir ao balcão. Isto é: quando o rei faz anos ou o empregado esboça um sorriso, o que acontecer primeiro.

.........
Colonia de San Jordi tem em mim o mesmo efeito do que Cascais ou Sant Elm: parece que estou em férias mal aqui chego. Hoje estou, o que só potencia a sensação.

.........
O P. pregou-me mais uma rasteira. Tenho as canelas cheias de nódoas negras. Não tarda chegam à cabeça.

3.7.24

Dúvidas de vidas

Não sei se um dia terei biógrafos se hagiógrafos. Ambos terão muita dificuldade em fazer o seu trabalho.

Um por excesso de material, o outro por falta dele.

2.7.24

Cheias e vazios ou vazias e cheios?

A. diz a mesma coisa do que a S.: bebo muito. Inteligentes como são, não percebem duas coisas:

1 - Muito é diferente de de mais;
2 - A razão pela qual bebo muito (mas não de mais, insisto) é o altruísmo.  Quero doar o meu fígado e o meu cérebro à ciência, ver se se consegue provar de uma vez por todas que as cabeças vazias aguentam melhor os fígados cheios do que as cheias os vazios.

(Além de que não se deve passar horas - nem sequer minutos - numa mesa de café com um copo vazio à frente.)

Cumes, vales e solidões

Acordo com dor de cabeça (leve e felizmente passageira), coberto de picadas de mosquitos (insuportáveis), triste e não consigo voltar a adormecer, o que dada a hora a que acordei ontem não é de espantar. Leio um texto bastante  bonito do M. S. O. sobre Cristiano Ronaldo (só este nome seria suficiente para me fazer fugir a sete pés), Frank Sinatra e a "solidão das alturas", a perseverança, o esforço ou a obsessão que ela exige e penso que quem habita nos vales profundos desses cumes elevados precisa igualmente de muita força e teimosia para neles se manter. Só, tanto como os outros.

1.7.24

Números do futebol

Jesus tinha doze apóstolos e uma equipa de futebol onze jogadores. Apesar disso, qualquer jogo de futebol tem mais assistência do que uma missa e suscita mais reacções, paixões, emoções e outra tralha. O futebol tem um século de idade, a missa vinte. 

A questão não está no jogador a menos e sim nos dezanove séculos a mais.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2024

Volto a Sant Elm como guia, mas desta vez de uma pessoa a quem quero muito. A cozinha do Can Verde só abre às duas. Ela foi para a praia e eu fiquei no café a beber cerveja e a "guardar a mesa". O objectivo era fazer o passeio habitual pela Tramuntana, mas a estrada está fechada por causa de um rally automóvel. Ainda hesitei uns segundos entre Peguera e San Telmo mas esta acabou por ganhar. Está a abarrotar, claro - à multidão habitual veio juntar-se a dos frustrados da Tramuntana.

(30-06-2024)

.........
Primeira visita à catedral. Resumo um: paga-se dez euros para ser esmagado por esta mistura de beleza e grandiosidade. Resumo dois: preciso de comprar um livro sobre a catedral e voltar cá depois de o ler.

.........
Jantar sublime no Fidel e no Tom, passe o pleonasmo. Acabou com um gelado no Claudio. Para a A., framboesa não sei de onde com pimenta idem e limão de Mallorca. Para mim, açafrão do Irão. Se alguém um dia me tivesse dito que um dia eu gostaria de gelados como gosto destes mandá-lo-ia para o Inferno dos mentirosos (e resolvi dar uma folga ao meu conservadorismo em matéria gastronómica: não pedi o de avelã, prova gelada não da existência de Deus mas da Sua bondade).

O jantar termina com a A. a ver atentamente o jogo de futebol e comigo a beber rum, divisão de tarefas que me parece justa. Só lamento que seja na Plaza Mayor. Merece melhor uso.

.........
Dia bom de trabalhos: um charter este sábado e um transporte confirmado da Holanda para o Algarve em Agosto. Não tarda estou a queixar-me de ter trabalho a mais. Bastar-me-iam umas semanitas mais de charter e uns transportes. Sei lá, das Seychelles para o Japão, por exemplo. 

.........
O guarda-redes adversário defendeu um penalty do Ronaldo. Não sei que pensar. Estou de rastos. Felizmente já pedira mais um rum, não fossem estas emoções inundar-me de angústias. 

........
«Ganhámos», diz-me A. quando o jogo acabou. «Ganharam», respondo. «Eu não ganhei nada. Quem ganhou foram eles.» O homem é definitivamente um animal gregário. Tirem-lhe a missa, fica uma bola, as alterações climáticas ou outra crença qualquer. Esta até tem um demónio: dióxido de carbono. Pergunto-me quem será o demónio da bola? Deve ser a outra equipa. É um demónio flutuante. Variável. Oscilante.

.........

Começo a compreender toda a velha hesitação que tinha quanto a definições do amor. A ideia de que o amor é eterno e imutável sempre me pareceu dúbia. Hoje, final e felizmente, sei que não há amor, tal como não há liberdade, felicidade ou cerveja. Há amores, liberdades, felicidades e cervejas. E muitas outras coisas, claro: tudo na vida tem um plural. Nada existe no singular. 

Excepto cada um de nós.