Aqui onde estou só faço anos amanhã: no nome desta receita há uma ligeira assincronia. Aceitável: recebi os primeiros parabéns quando estava a começá-la.
Estamos a viver - finalmente - no HELENA S. Tudo é novo, excepto alguns perecíveis que trouxemos do Artie. E alguns desses perecíveis estavam quase mesmo perecidos, pelo que urgia cozinhá-los (detesto deitar comida fora, é mais forte do que eu).
Em Bocas comprara dois bocados de frango que pus inteiros na panela a fritar em azeite. Depois juntei os perecíveis quase perecidos: pimentos, cenouras, louro, alho e por fim muito no fim tomate.
Juntei as especiarias: cominhos e coentros moídos, garam masala, orégãos, paprika, muita pimenta, sumo de lima. Pouco depois foi a vez da água e do sal. Um bom bocado depois dei-lhe o arroz, deixei cozer metade em lume metade em auto-cozedura (sou pela auto-gestão) e por incrível que pareça estava óptimo.
Um dia farei um prato ao qual chamarei "... à Helena S.", mas terá de ser uma coisa mais sofisticada, mais bonita, mais elegante, como a Helena S. ela mesma.
30.9.13
Retrato improvável
Muito mais do que engatatão ele era engatatado. Mas nunca se apercebeu disso, coitado.
29.9.13
Remuneração dos políticos
A eleição do protegido de Isaltino demonstra que ao contrário do que se pensa os portugueses acham que os bons políticos devem ser bem remunerados.
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 29-09-2013.
Um dos piores anos da minha vida está quase a chegar ao fim. Fim não é amanhã, dia do meu quinquagésimo sexto aniversário; o calendário tem para mim o valor das outras regras todas: é importante que exista, mas só deve ser respeitado quando absolutamente necessário e outras pessoas dependem disso. Fim é um dia destes, quase, em breve; não sei bem quando mas sei que está ali ao virar da esquina.
Foi um ano mau numa vida que conta muitos e muito maus; contudo e como tudo teve os seus lados bons. Uns no plano pessoal - quando, finalmente, terminar serei uma pessoa melhor do que era quando começou -; outros no plano profissional - fiz uma viagem com a qual há muito sonhava, descobri coisas sobre mim que desconhecia ou esquecera, e - no fim porque na verdade é um mixed blessing, un cadeau empoisonné - sou armador de uma embarcação de vela na qual posso esperar passar muitas boas horas no mar (e por causa da qual antes passarei muitas más, mas isso é farinha para outro pão).
Um ano é pouco, é muito, é nada. Um vírgula pouco por cento de uma vida, sendo que o pouco varia consoante onde situemos os limites daquilo a que chamamos vida. É decididamente pouco. Foi - terá sido, quando acabar - muito. Foi muito mais do que um vírgula pouco por cento do sofrimento todo pelo qual passei (e espero que seja infinitamente mais, em termos absolutos, claro, do que aquele pelo qual passarei). E - seria desonesto não o reconhecer - o conjunto das coisas boas, incluindo a esperança, quase certeza, de que sou hoje uma pessoa melhor do que era há quase um ano representa também muito mais do que uma tão pequena percentagem faria supor.
........
Escrevo na esplanada do hotel Buena Vista, em Bocas del Toro, um arquipélago cum golfos no oeste da costa atlântica do Panamá. O sítio é bonito e as perspectivas de negócio bastante boas. O HELENA S. vai ficar aqui, entregue às mãos honestas e competentes do M. Eu vou fazer aquilo que planeara: passar o inverno nas Caraíbas. Na Primavera reunir-nos-emos os três e vamos para o Mediterrâneo. É preciso um plano se queremos poder não o respeitar, e este parece-me o mais fácil de cumprir e o mais agradável, se tal não for possível.
O cenário é adequado: ilhas, barcos, botes, rum, uma mesa por cima da água, calor e duas ou três sombras no quadro. Não se pode pedir mais para elaborar planos, nem para nos lembrarmos de quão falíveis eles são.
........
Morri em Antígua e vou muito provavelmente ressuscitar em Palma. Não sou dado a símbolos, sobretudo aos que me são enviados pelo acaso. Mas se isto não tem um sentido nada tem.
Foi um ano mau numa vida que conta muitos e muito maus; contudo e como tudo teve os seus lados bons. Uns no plano pessoal - quando, finalmente, terminar serei uma pessoa melhor do que era quando começou -; outros no plano profissional - fiz uma viagem com a qual há muito sonhava, descobri coisas sobre mim que desconhecia ou esquecera, e - no fim porque na verdade é um mixed blessing, un cadeau empoisonné - sou armador de uma embarcação de vela na qual posso esperar passar muitas boas horas no mar (e por causa da qual antes passarei muitas más, mas isso é farinha para outro pão).
Um ano é pouco, é muito, é nada. Um vírgula pouco por cento de uma vida, sendo que o pouco varia consoante onde situemos os limites daquilo a que chamamos vida. É decididamente pouco. Foi - terá sido, quando acabar - muito. Foi muito mais do que um vírgula pouco por cento do sofrimento todo pelo qual passei (e espero que seja infinitamente mais, em termos absolutos, claro, do que aquele pelo qual passarei). E - seria desonesto não o reconhecer - o conjunto das coisas boas, incluindo a esperança, quase certeza, de que sou hoje uma pessoa melhor do que era há quase um ano representa também muito mais do que uma tão pequena percentagem faria supor.
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Escrevo na esplanada do hotel Buena Vista, em Bocas del Toro, um arquipélago cum golfos no oeste da costa atlântica do Panamá. O sítio é bonito e as perspectivas de negócio bastante boas. O HELENA S. vai ficar aqui, entregue às mãos honestas e competentes do M. Eu vou fazer aquilo que planeara: passar o inverno nas Caraíbas. Na Primavera reunir-nos-emos os três e vamos para o Mediterrâneo. É preciso um plano se queremos poder não o respeitar, e este parece-me o mais fácil de cumprir e o mais agradável, se tal não for possível.
O cenário é adequado: ilhas, barcos, botes, rum, uma mesa por cima da água, calor e duas ou três sombras no quadro. Não se pode pedir mais para elaborar planos, nem para nos lembrarmos de quão falíveis eles são.
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Morri em Antígua e vou muito provavelmente ressuscitar em Palma. Não sou dado a símbolos, sobretudo aos que me são enviados pelo acaso. Mas se isto não tem um sentido nada tem.
27.9.13
Uma história bonita...
...que dedico aos meus amigos amigos dos animais (esta coisa de tentar evitar o inglês dá nisto :-); valha-me saber que sou um animal, e do piorio). A história vem de El Hablador, o livro de Vargas Llosa que estou agora a ler.
Uma tribo faz um prisioneiro; mas este anda livre e à vontade pela aldeia. Quem está preso e é vigiado cuidadosamente é o seu cão.
Uma tribo faz um prisioneiro; mas este anda livre e à vontade pela aldeia. Quem está preso e é vigiado cuidadosamente é o seu cão.
Santos e demónios
"...
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
..."
(Excerto da oração de S. Francisco de Assis)
O franciscano que vive comigo há dezenas de anos apanhou um pontapé nos tomates do qual só agora, coitado, recupera. Gostaria imenso que ele se matasse ou fosse desta para melhor, mas não há maneira. Os santos nunca morrem. Como os demónios, de resto.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
..."
(Excerto da oração de S. Francisco de Assis)
O franciscano que vive comigo há dezenas de anos apanhou um pontapé nos tomates do qual só agora, coitado, recupera. Gostaria imenso que ele se matasse ou fosse desta para melhor, mas não há maneira. Os santos nunca morrem. Como os demónios, de resto.
26.9.13
Catcher in the Rye
O que eu sempre quis dizer sobre o Catcher in the Rye e nunca consegui está aqui.
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 25-09-2013
Esta noite choveu. Isto é um understatement. Imagino que o episódio do dilúvio na Bíblia foi inventado por um tipo que assistiu a uma chuvada destas. E logo vai chover outra vez. Espero que toda a gente encha os tanques e páre de pedir chuva.
........
Há países em que perder um telefone é uma maçada; noutros é uma saga. Ou parte de outros - em Panamá as coisas terim sido diferentes, decerto. Caricatas - as lojas de atendimento da Digicel foram feitas para quando os Monthy Piton tiverem uma falha de ideias - mas enfim, eu já teria o meu telefone, o velho número e agora tratar-se-ia apenas de reencontrar os números perdidos.
Em Bocas del Toro não é tal. Tive de voltar a Changuinola - o telefone que lá comprei anteontem não funcionava -; e acabei na polícia de defesa do consumidor para conseguir reaver o dinheiro que paguei por ele. O qual me foi devolvido - finalmente e após uma certa por assim dizer insistência dos agentes da ACODECO (muito obrigado, de novo) - em cheque. Como o banco já estava fechado continuo sem o dinheiro do telefone, sem o telefone e sem o número que toda a gente tem.
Vou continuar a usar o bom velho Nokia que me foi dado há muitos anos por uma senhora que escrevia histórias de detectives. Não é smart mas é fiel.
........
Há países em que perder um telefone é uma maçada; noutros é uma saga. Ou parte de outros - em Panamá as coisas terim sido diferentes, decerto. Caricatas - as lojas de atendimento da Digicel foram feitas para quando os Monthy Piton tiverem uma falha de ideias - mas enfim, eu já teria o meu telefone, o velho número e agora tratar-se-ia apenas de reencontrar os números perdidos.
Em Bocas del Toro não é tal. Tive de voltar a Changuinola - o telefone que lá comprei anteontem não funcionava -; e acabei na polícia de defesa do consumidor para conseguir reaver o dinheiro que paguei por ele. O qual me foi devolvido - finalmente e após uma certa por assim dizer insistência dos agentes da ACODECO (muito obrigado, de novo) - em cheque. Como o banco já estava fechado continuo sem o dinheiro do telefone, sem o telefone e sem o número que toda a gente tem.
Vou continuar a usar o bom velho Nokia que me foi dado há muitos anos por uma senhora que escrevia histórias de detectives. Não é smart mas é fiel.
25.9.13
Tosse e corpos
Uma dor de cabeça não passa de uma dor de cabeça; uma tosse de uma tosse. O corpo é - ou devia ser - como as crianças: visto, mas não ouvido, ou sentido. Em caso algum se lhe deve dar demasiada atenção.
24.9.13
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 23-09-2013
O Panamá é o país dos projectos inacabados. Tudo aqui fica a meio, tudo demora uma eternidade a acabar. Hoje fui a Changuinola, a "cidade" de Bocas del Toro, para comprar um telefone novo e, sobretudo, pôr no novo chip o número do que perdi. Primeiro apanha-se um water taxi - enfim, neste caso mais water bus - até Almirante; depois um táxi. Ao todo, vinte dólares e uma hora.
A loja da Digicel em Changuinola não tinha nada: nem telefones, nem chips, nem sistema; tinha - e tive sorte em apanhá-los lá - dois empregados que estão a preparar a abertura, daqui a uma semana, da dita loja, até agora uma agência franquiada, a partir de dia um de Outubro uma agência plena da companhia.
É preciso começar por dizer que os jovens foram simpatiquíssimos, coisa rara neste país; e fizeram o que puderam para paliar o problema, minimizar-lhe as consequências e evitar a necessidde de uma nova deslocação minha.
Almirante e Changuinola são duas "cidades" das quais a parte mais interessante é a estrada que as liga.
Como a loja da Digicel não tinha telefones parei no centro comercial do terminal de autocarros - uma coisa que faz lembrar o "centro comercial" da Praça de Espanha em versão selvagem - e comprei um magnífico Samsung Duo, dois chips, dois números, pequeno, desbloqueado pelo dobro do que queria gastar (mas pelo menos tenho quase a certeza absoluta de que é um Samsung legítimo).
Quando cheguei a Bocas - mais de uma hora e um dólar menos do que vinte dólares depois (resolvi que sou residente e paguei a respectiva tarifa) - o telefone estava sem bateria. Pu-lo a carregar no Lilly's, o meu quartel-general aqui, e fui às compras.
Quando voltei para recolher o aparelho o restaurante estava fechado.
Ou seja, gastei um dia, quarenta dólares em transportes e outro tanto para o recarregar com minutos e com acesso à net e ainda não tenho telefone. E amanhã terei de ir a Bocas única e exclusivamente para o ir buscar - mais uma hora, pelo menos.
Transponha-se isto para a escala de um refit e ter-se-á uma ideia aproximada do que foram os quase quatro meses que aqui passei. Com a agravante de em Panamá não haver pessoas simpáticas que fazem tudo o que lhes é possível para minimizar os problemas de outrém - não fazem nada; mas se fizerem alguma coisa é tentar agravá-los.
........
Retomo com prazer os nossos jantares com a N. e o D., que vieram de tripulantes no Artie e agora ficaram a ajudar.
A loja da Digicel em Changuinola não tinha nada: nem telefones, nem chips, nem sistema; tinha - e tive sorte em apanhá-los lá - dois empregados que estão a preparar a abertura, daqui a uma semana, da dita loja, até agora uma agência franquiada, a partir de dia um de Outubro uma agência plena da companhia.
É preciso começar por dizer que os jovens foram simpatiquíssimos, coisa rara neste país; e fizeram o que puderam para paliar o problema, minimizar-lhe as consequências e evitar a necessidde de uma nova deslocação minha.
Almirante e Changuinola são duas "cidades" das quais a parte mais interessante é a estrada que as liga.
Como a loja da Digicel não tinha telefones parei no centro comercial do terminal de autocarros - uma coisa que faz lembrar o "centro comercial" da Praça de Espanha em versão selvagem - e comprei um magnífico Samsung Duo, dois chips, dois números, pequeno, desbloqueado pelo dobro do que queria gastar (mas pelo menos tenho quase a certeza absoluta de que é um Samsung legítimo).
Quando cheguei a Bocas - mais de uma hora e um dólar menos do que vinte dólares depois (resolvi que sou residente e paguei a respectiva tarifa) - o telefone estava sem bateria. Pu-lo a carregar no Lilly's, o meu quartel-general aqui, e fui às compras.
Quando voltei para recolher o aparelho o restaurante estava fechado.
Ou seja, gastei um dia, quarenta dólares em transportes e outro tanto para o recarregar com minutos e com acesso à net e ainda não tenho telefone. E amanhã terei de ir a Bocas única e exclusivamente para o ir buscar - mais uma hora, pelo menos.
Transponha-se isto para a escala de um refit e ter-se-á uma ideia aproximada do que foram os quase quatro meses que aqui passei. Com a agravante de em Panamá não haver pessoas simpáticas que fazem tudo o que lhes é possível para minimizar os problemas de outrém - não fazem nada; mas se fizerem alguma coisa é tentar agravá-los.
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Retomo com prazer os nossos jantares com a N. e o D., que vieram de tripulantes no Artie e agora ficaram a ajudar.
23.9.13
Só mais um bocadinho, só mais um bocadinho
Morreu António Ramos Rosa, um dos melhores poetas portugueses e eu vou atrás de meia dúzia de links para ver se encontro um poema bem dito. Não encontro um.
Os portugueses não sabem dizer poesia; pensam que é preciso declamá-la (se possível no tom de quem está aflito para ir à casa de banho e não pode falar com força, não vá a caganeira borrar a dicção). É pena porque a sabem escrever muito bem.
O coitado do António Ramos Rosa não merecia isto.
Os portugueses não sabem dizer poesia; pensam que é preciso declamá-la (se possível no tom de quem está aflito para ir à casa de banho e não pode falar com força, não vá a caganeira borrar a dicção). É pena porque a sabem escrever muito bem.
O coitado do António Ramos Rosa não merecia isto.
Lua, luas
A lua cheia existe para que os selenitas como eu possam ter saudades de casa, de vez em quando. E as outras luas também.
Liberdade et al.
Tenta conciliar liberdade, educação e correcção. Nem sempre é fácil, possível ou sequer desejável.
22.9.13
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 22-09-2013
É domingo e chove, finalmente, em Bocas del Toro. Finalmente não sou eu que o digo, claro. Por mim podem passar dois anos sem chover, ou vinte. Mas quem depende da chuva para encher os tanques de água está preocupado, naturalmente.
Enfim, foi chuva de pouca dura. Está sol outra vez, e eu como contente o meu brownie enquanto espero o café ("está a fazer" disse-me a senhora que me atendeu. Se fosse em Panamá ter-me-ia rosnado silenciosamente "é quase meio-dia, de que planeta és? Não sabes que a esta hora [agora audivelmente] não há café!"
A esplanada do hotel é bonita mas não merece o nome. Ou pelo menos não é a única a merecê-lo. Tem a mesma vista de todas estas esplanadas, construídas em palafitas em cima da água; e está um bocadinho recuada, de maneira o que vejo é a esplanada ao lado, também ela muito bonita, e do outro lado uma espécie de barco casa que deve fazer passeios com turistas, não sei.
Estou com sono, com vontade de pensar no trabalho que aí vem e de meia dúzia de coisas, mas sei que tudo se vai resumir a voltar para bordo e tentar dormir uma sesta naquele forno.
Forno esse que dia três de Outubro tem de estar pronto para trabalhar, porque tem trabalho.
Mais rápido do que isto só quando cheguei aos Açores, sem cheta ou pouca. Gastei quase tudo o que tinha a fazer seis cartazes que distribuí pela cidade. No dia seguinte tinha os primeiros clientes. Aqui tenho um bocadinho mais de chetas, mas os custos são incomensuravelmente maiores. Ou o HELENA S. começa a trabalhar ou vamos eu e ele passar um mau bocado.
Dia três de Outubro é logo à tarde... A lista de coisas que há para fazer é relativamente curta porque cada uma delas demora muito tempo. Vai estar pronto. Este barco tem uma boa vibração, bom feitio, boa onda
Enfim, foi chuva de pouca dura. Está sol outra vez, e eu como contente o meu brownie enquanto espero o café ("está a fazer" disse-me a senhora que me atendeu. Se fosse em Panamá ter-me-ia rosnado silenciosamente "é quase meio-dia, de que planeta és? Não sabes que a esta hora [agora audivelmente] não há café!"
A esplanada do hotel é bonita mas não merece o nome. Ou pelo menos não é a única a merecê-lo. Tem a mesma vista de todas estas esplanadas, construídas em palafitas em cima da água; e está um bocadinho recuada, de maneira o que vejo é a esplanada ao lado, também ela muito bonita, e do outro lado uma espécie de barco casa que deve fazer passeios com turistas, não sei.
Estou com sono, com vontade de pensar no trabalho que aí vem e de meia dúzia de coisas, mas sei que tudo se vai resumir a voltar para bordo e tentar dormir uma sesta naquele forno.
Forno esse que dia três de Outubro tem de estar pronto para trabalhar, porque tem trabalho.
Mais rápido do que isto só quando cheguei aos Açores, sem cheta ou pouca. Gastei quase tudo o que tinha a fazer seis cartazes que distribuí pela cidade. No dia seguinte tinha os primeiros clientes. Aqui tenho um bocadinho mais de chetas, mas os custos são incomensuravelmente maiores. Ou o HELENA S. começa a trabalhar ou vamos eu e ele passar um mau bocado.
Dia três de Outubro é logo à tarde... A lista de coisas que há para fazer é relativamente curta porque cada uma delas demora muito tempo. Vai estar pronto. Este barco tem uma boa vibração, bom feitio, boa onda
21.9.13
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 20-09-2013
Como se não chegassem as maleitas dos botes agora sou eu que ando avariado. Enfim, agora é uma maneira de dizer: há duas ou três semanas, pelo menos. Hoje, finalmente, alguém se prontificou a ajudar-me. Foi a M., a empregada simpática do Kaiukos. M. é namorada de R., o empregado do Point Lava Beach Club, o outro restaurante do Red Frog Resort, do qual a Marina é parte.
R. (que me levou de carrinho de golfe do restaurante de praia para o restaurante do albergue) disse-me para dizer a M. que vinha da parte dele, e para me preparar uma mistura de limão, alho e mel. M. obedeceu, eu também, e bebi aquela mistela de um trago só. Mas depois pedi um rum, deu-me um ataque de tosse, cuspi-o todo e ela foi buscar um blister com quatro comprimidos. Disse-me com voz de quem não estava a brincar "duas agora e duas amanhã de manhã", não me cobrou o rum e eu fiquei ali um bom bocado deitado (com os sapatos a fazer de travesseiro*) até B. acabar de falar com a namorada que é japonesa e vive no Japão.
Eu acho que nós os homens temos tendência para ficar doentes de vez em quando porque é a única maneira de atrair a atenção de uma senhora e ela perceber que comê-la é a última coisa que queremos naquele momento. Ou a antepenúltima, talvez.
A verdade é que não queria atrair a atenção de ninguém. B. entretanto estava a falar com duas miúdas do hostel, por sinal bastante giras, mas eu só pensava 'já estive morto cinco dias e senti-me muito melhor do que me sinto agora". O que é indubitavelmente verdade mas não inclui todas as variáveis, etc.
De maneira vim-me embora apesar do sorriso giro de uma das miúdas e agora estou a preparar-me para acordar amanhã e tomar os comprimidos da M., não vá um sacana qualquer dum micróbio dizer-lhe que desobedeci e castigar-me.
Não gosto nada de estar doente, é uma coisa que me chateia ao mais alto ponto, quase tanto como perder o raio do telefone, como perdi hoje. Acho que ninguém gosta, na verdade, excepto claro os gajos que lhes querem fazer crer que não estão a fazer aquelas cenas todas para as comer e na verdade estão.
Eu acho uma injustiça horrível estar doente: um gajo como eu leva uma vida sã, ao ar livre e natural; não devia adoecer, e muito menos ficar assim duas ou três semanas até encontrar um empregado de mesa cuja namorada tem comprimidos encarnados e uma voz de comando à qual é impossível sonhar sequer com fugir.
E tudo isto me leva a pensar que o M., o meu, ainda não chegou e que amanhã vou ter de falar da Red Frog Marina, da qual, seja Deus louvado, gosto muito. Mas isso fica para amanhã, quando a paciência tiver regressado e a ausência da necessidade de tossir também.
R. (que me levou de carrinho de golfe do restaurante de praia para o restaurante do albergue) disse-me para dizer a M. que vinha da parte dele, e para me preparar uma mistura de limão, alho e mel. M. obedeceu, eu também, e bebi aquela mistela de um trago só. Mas depois pedi um rum, deu-me um ataque de tosse, cuspi-o todo e ela foi buscar um blister com quatro comprimidos. Disse-me com voz de quem não estava a brincar "duas agora e duas amanhã de manhã", não me cobrou o rum e eu fiquei ali um bom bocado deitado (com os sapatos a fazer de travesseiro*) até B. acabar de falar com a namorada que é japonesa e vive no Japão.
Eu acho que nós os homens temos tendência para ficar doentes de vez em quando porque é a única maneira de atrair a atenção de uma senhora e ela perceber que comê-la é a última coisa que queremos naquele momento. Ou a antepenúltima, talvez.
A verdade é que não queria atrair a atenção de ninguém. B. entretanto estava a falar com duas miúdas do hostel, por sinal bastante giras, mas eu só pensava 'já estive morto cinco dias e senti-me muito melhor do que me sinto agora". O que é indubitavelmente verdade mas não inclui todas as variáveis, etc.
De maneira vim-me embora apesar do sorriso giro de uma das miúdas e agora estou a preparar-me para acordar amanhã e tomar os comprimidos da M., não vá um sacana qualquer dum micróbio dizer-lhe que desobedeci e castigar-me.
Não gosto nada de estar doente, é uma coisa que me chateia ao mais alto ponto, quase tanto como perder o raio do telefone, como perdi hoje. Acho que ninguém gosta, na verdade, excepto claro os gajos que lhes querem fazer crer que não estão a fazer aquelas cenas todas para as comer e na verdade estão.
Eu acho uma injustiça horrível estar doente: um gajo como eu leva uma vida sã, ao ar livre e natural; não devia adoecer, e muito menos ficar assim duas ou três semanas até encontrar um empregado de mesa cuja namorada tem comprimidos encarnados e uma voz de comando à qual é impossível sonhar sequer com fugir.
E tudo isto me leva a pensar que o M., o meu, ainda não chegou e que amanhã vou ter de falar da Red Frog Marina, da qual, seja Deus louvado, gosto muito. Mas isso fica para amanhã, quando a paciência tiver regressado e a ausência da necessidade de tossir também.
20.9.13
Saber, desconfiança
A atitude portuguesa face ao conhecimento é bastante interessante. Um povo que foi o que foi e fez o que fez porque absorveu, elaborou e construíu sobre o conhecimento alheio refere-se hoje a quem sabe como um burro carregado de livros, ou fala na universidade da vida como sendo a melhor.
O conhecimento é importante, o saber tem um custo mas traz benefícios incomparavelmente maiores. É talvez tempo de os portugueses se aperceberem disso, e deixarem de olhar para o conhecimento formal com desconfiança. (Sabendo que a desconfiança é o prisma pela qual eles olham para a vida em geral, para a vida toda.)
O conhecimento é importante, o saber tem um custo mas traz benefícios incomparavelmente maiores. É talvez tempo de os portugueses se aperceberem disso, e deixarem de olhar para o conhecimento formal com desconfiança. (Sabendo que a desconfiança é o prisma pela qual eles olham para a vida em geral, para a vida toda.)
A culpa e o pastis em Marselha
Pensei muitos anos nesta conversa; não sei onde a tive, nem com quem. Gosto de imaginar que foi com um senhor velho, muito magro, com umas barbas enormes. Falava muito, mas assim que o seu copo chegava ao fim calava-se e era preciso pagar-lhe outro para continuar. De que seria o copo? Fácil: ou ouzo, ou raki ou pastis. Mediterrâneo, portanto.
O homem era alto, magro, a voz saía-lhe filtrada pelas barbas e pelo bigode, que não viam uma tesoura há muitos anos. "Não sei", respondeu-me quando lhe perguntei quantos.
Estávamos portanto num bar de um porto do Mediterrâneo. Fica decidido que era Marselha, e o bar um restaurante judeu por trás da catedral. Vamos dar um nome ao meu interlocutor de uma noite. Kurt? Knut? Jean-François? Jean-François não. Fica ou Kurt ou Knut. A história, essa mistura de fantasias, passado e memórias que juntos se transformam em futuro, certezas e ficção decidirá.
Kurt, ou Knut era uma espécie de juke box que em vez de debitar canções debitava palavras; e em vez de consumir moedas consumia pastis.
A certa altura estava um bocadinho farto, ou insuficientemente grosso, e perguntei-lhe se podia escolher o tema do próximo copo (não perguntei assim, claro. Sou polido).
"A culpa? Perguntas-me se já senti culpa? Até aos trinta anos eu era um poço de culpa. Usava a culpa como proxy: substituía a compaixão, a empatia, o arrependimento, a vontade de mudar... Tudo. Tudo desaparecia debaixo do acolhedor e estranhamente confortável cobertor da culpa. Pedia desculpa à minha própria sombra, se necessário fosse. Mas um dia..." Knut deixara a frase a meio, sinal de que o copo tinha acabado. Encomendei dois.
"De que queres que te fale agora?", perguntou quando o copo chegou. "Sei lá. Estavas a falar da culpa. Ias dizer qualquer coisa. Deves ter feito muito mal, para te sentires tão culpado".
"Sempre preferi ser magoado a magoar". A voz de Knut tinha mudado. "E sentia-me culpado porque pensava que estava a magoar alguém, fosse quem fosse, pelo que quer que fosse."
"Um dia descobri que não era verdade. Conseguia muito bem magoar alguém e sobreviver. Outro dia, meia dúzia de meses depois, descobri que não só sobrevivia como vivia bastante bem."
"E depois finalmente que magoar alguém não é assim tão doloroso. É mesmo melhor do que ser magoado, tal como a ausência de dor é melhor do que a dor e pior do que o prazer."
"Nesse dia perdi a culpa e perdi-me. Agora falo em bares para viver. Sem a culpa não existo. E ela fugiu-me, a cabra".
O homem era alto, magro, a voz saía-lhe filtrada pelas barbas e pelo bigode, que não viam uma tesoura há muitos anos. "Não sei", respondeu-me quando lhe perguntei quantos.
Estávamos portanto num bar de um porto do Mediterrâneo. Fica decidido que era Marselha, e o bar um restaurante judeu por trás da catedral. Vamos dar um nome ao meu interlocutor de uma noite. Kurt? Knut? Jean-François? Jean-François não. Fica ou Kurt ou Knut. A história, essa mistura de fantasias, passado e memórias que juntos se transformam em futuro, certezas e ficção decidirá.
Kurt, ou Knut era uma espécie de juke box que em vez de debitar canções debitava palavras; e em vez de consumir moedas consumia pastis.
A certa altura estava um bocadinho farto, ou insuficientemente grosso, e perguntei-lhe se podia escolher o tema do próximo copo (não perguntei assim, claro. Sou polido).
"A culpa? Perguntas-me se já senti culpa? Até aos trinta anos eu era um poço de culpa. Usava a culpa como proxy: substituía a compaixão, a empatia, o arrependimento, a vontade de mudar... Tudo. Tudo desaparecia debaixo do acolhedor e estranhamente confortável cobertor da culpa. Pedia desculpa à minha própria sombra, se necessário fosse. Mas um dia..." Knut deixara a frase a meio, sinal de que o copo tinha acabado. Encomendei dois.
"De que queres que te fale agora?", perguntou quando o copo chegou. "Sei lá. Estavas a falar da culpa. Ias dizer qualquer coisa. Deves ter feito muito mal, para te sentires tão culpado".
"Sempre preferi ser magoado a magoar". A voz de Knut tinha mudado. "E sentia-me culpado porque pensava que estava a magoar alguém, fosse quem fosse, pelo que quer que fosse."
"Um dia descobri que não era verdade. Conseguia muito bem magoar alguém e sobreviver. Outro dia, meia dúzia de meses depois, descobri que não só sobrevivia como vivia bastante bem."
"E depois finalmente que magoar alguém não é assim tão doloroso. É mesmo melhor do que ser magoado, tal como a ausência de dor é melhor do que a dor e pior do que o prazer."
"Nesse dia perdi a culpa e perdi-me. Agora falo em bares para viver. Sem a culpa não existo. E ela fugiu-me, a cabra".
19.9.13
Français
Je devrais écrire plus souvent en français. Je ne sais pourquoi ni pour quoi, mais je suis sûr que le temps s'en chargera de me l'expliquer. Ne fût-ce que le passé.
Flora
Conheço uma senhora que gosta de árvores; seria feliz, aqui em Bocas del Toro (e na Costa Rica também, em Golfito ou no Parque Nacional Manuel António). Eu não percebo nada de flora. Não consigo entender seres que exultam felicidade apesar de não poderem sair de onde estão.
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 18-09-2013
Há coisas em Bocas del Toro que me dizem que estou no Panamá; mas são poucas. A chuva; o mau serviço, claro - não mudei de planeta, mas apesar de tudo é melhor do que em qualquer outro sítio onde tenha estado.
Hoje já vi duas ou três pessoas sorrir; e os water taxis, as águas transparentes, a atmosfera de cidade de fronteira. Não há ninguém que não esteja de passagem - mesmo que essa passagem dure há anos e anos.
Gosto particularmente dos water taxis, lanchas de todos os tamanhos e feitios que por um dólar, dois ou cinco (de Red Frog) nos levam a todo o lado, nesta paisagem marítima - aqui é a terra que é estranha, está de fora. O elemento primordial é o mar-.
Sobretudo à noite, eles conhecem isto como as palmas das mãos e aceleram direitos àquilo que nos parece uma barreira de mangal, na qual no último minuto se abre uma passagem minúscula, invisível; apesar de lá termos passado durante o dia várias vezes. Mas já durante o dia era estreito e mágico. À noite é mágico, estreito e invisível.
Dashing in the mangroves. Raramente utilizo o inglês, mas não vejo outro termo, seja em português seja em francês, para exprimir o que aqui vivo.
........
Onde sim mudei de planeta foi no que respeita à marina. Voltei à normalidade, após três semanas em Shelter Bay.
Hoje já vi duas ou três pessoas sorrir; e os water taxis, as águas transparentes, a atmosfera de cidade de fronteira. Não há ninguém que não esteja de passagem - mesmo que essa passagem dure há anos e anos.
Gosto particularmente dos water taxis, lanchas de todos os tamanhos e feitios que por um dólar, dois ou cinco (de Red Frog) nos levam a todo o lado, nesta paisagem marítima - aqui é a terra que é estranha, está de fora. O elemento primordial é o mar-.
Sobretudo à noite, eles conhecem isto como as palmas das mãos e aceleram direitos àquilo que nos parece uma barreira de mangal, na qual no último minuto se abre uma passagem minúscula, invisível; apesar de lá termos passado durante o dia várias vezes. Mas já durante o dia era estreito e mágico. À noite é mágico, estreito e invisível.
Dashing in the mangroves. Raramente utilizo o inglês, mas não vejo outro termo, seja em português seja em francês, para exprimir o que aqui vivo.
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Onde sim mudei de planeta foi no que respeita à marina. Voltei à normalidade, após três semanas em Shelter Bay.
Pedido
Em breve terei cinquenta e seis anos, estou às portas da velhice, eu sei; e apesar de tudo só há uma coisa que quero pedir: nunca ninguém me deixe usar um rabo de cavalo, por favor.
A bordo, 16-09-2013
Estou no mar, sozinho, feliz e nu; mas ainda não estou em Bocas del Toro, o meu Jerusalém, a transfiguração de Quepos, o meu destino existencial, simbólico.
Navego há três horas e até ver o HELENA S. tem-se portado bem. Bate um bocado, mas isso não é surpresa: a plataforma é baixa. Passa bem na vaga, e isso tão pouco é inesperado. Descobri nesta viagem que estou farto de barcos problemáticos, que o refit - pelo menos no Panamá - não é a minha praia; e contudo. Contudo gosto do HELENA, olho para ele como é e vejo o que será. Precisa de trabalho interno e externo, de refazer a electricidade e de ser pintado, de levar uma electrónica nova, de umas mexidelas no plano de convés. É um barco bom com mau aspecto, um barco bom que parece mau. E eu, que tinha jurado para nunca mais, deixo-me ir, cedo àquilo que não se vê mas se sente.
E de caminho encontro a resposta que me foge há tantos meses.
.........
O vento continua ponteiro, claro; e está a crescer, como não podia deixar de ser. Estou a fazer quatro nós de VMG em árvore seca; se içar a grande e tirar bordos apoiado com o motor faço os mesmos quatro nós e poupo gasóleo.
(Ao contrário do que parece, isto é uma pergunta, não uma afirmação).
E quando parar para içar a grande aproveito e dobro a boça do dinghy. (Isto sim, é uma afirmação. A ver se e quando páro. A perspectiva de passar meia-hora a içar pano para depois o vento cair atrai-me pouco).
A resposta é sim e não. O meu VMG não aumentou significativamente e tenho de ir quase às mesmas rotações. Mas não levei meia hora a içar o pano.
Deve haver outras profissões que ensinem as pessoas a lidar com a ambiguidade, a ambivalência, a incerteza; mas eu não sei de nenhuma que o faça tão profunda e eficazmente como a navegação à vela.
Meia hora depois - voltou tudo ao statu quo ante. Grande arreada, motores nas 2800, rumo directo. De qualquer forma se não se experimentar não se tem a certeza.
........
Um dia hei-de andar num barco que não cheire a gasóleo; que não tenha fugas de gasóleo. O cheiro no casco de bombordo que tínhamos sentido durante as provas de mar e atribuído aos navios fundeados na baía vem de um dos injectores. Mais um exercício de recolha de gasóleo. Felizmente o mar está calmo e não vou enjoar como enjoei à saída da Isla de San Andrés*.
São pequenas coisas, pequenos passos, pequenas avarias que nos levam a conhecer um barco, a gostar dele, a apreciá-lo, a vê-lo pelo que é e não pelo que dele se vê.
A noite chega, o vento cai, a velocidade aumenta; muito pouco, mas aumenta. Qualquer ganho é bem vindo, por pequeno que seja. Não consegui encontrar gás em Shelter Bay e decidi sair (teria de espera três dias, três!, caso contrário). Pensava que tinha gás para uma refeição ou duas, mas nem para amostra. Tenho comida fria, pouco apetitosa.
Que raio de sequência - o gerador do BELLE AVENTURE que se recusa a funcionar e agora esta. Entre os dois, um jantar miserável e um bom pequeno almoço. Já decidi que entro à noite, se for preciso (vai ser). Quantas vezes estive no mar sem comida, ou sem gás? Antes desta uma só, quase vintre e quatro horas à frente de Dieppe, sem vento e sem motor. Teria vinte e cinco ou vinte e seis anos. Uma lição que durou trinta anos; esta vai decerto durar outros tantos.
........
B. liga-me freneticamente. Quer notícias, compreensivelmente: está à nossa espera há uma semana (isto desde a última actualização. A nossa espera está vai para um mês). Mas não me apetecia falar-lhe, dizer-lhe estamos com problemas, saímos amanhã, afinal não, a saída foi adiada mais um dia ou dois, olhe apareceu outra coisa e vams ter de ficar aqui mais um dia.
Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti? Sim e não. Começo por tentar encontrar uma justificação, uma desculpa, mas rapidamente troco essa actividade por tentar, simplesmente, perceber porque o fiz. Peço profusamente desculpa a B. quando finalmente lhe ligo e digo que estou a caminho; mas não são verdadeiras, as desculpas. Não me sinto culpado. Não lhe liguei porque tinha outras coisas em que pensar, ponto.
Não é verdade. Pensava nele, e na S. muitas vezes. Dizer-lhes afinal não saio hoje, ligo-te quando souber uma data certa demoraria 5 segundos, e poria a bola no campo deles. Na verdade não lhe ligo porque o meu problema é enorme, é o maior do mundo, é maior do que o deles a esperar-me. A única maneira que tenho de lhes mostrar isso é não ligando, e pedindo desculpas quando o fizer.
Será? Não será? Estarei à procura de psicologias caseiras para esconder uma simples - e rara - má educação? Talvez no fundo tenha simplesmente vontade de ser mal educado e as circunstâncias permitem-mo. A educação é uma trela que trazemos permanentemente ao pescoço. Os outros têm-na na mão.
De vez em quando temos de a desapertar de deitá-la para o lixo (mas depois algo nos compele a ir buscá-la de novo, uma maçada que prova que na verdade não a deitámos fora. Só a desapertámos um bocadinho).
........
A verdade é que já passei muita fome. Às vezes apesar de ter dinheiro, como no Burundi ou no Zaire; outras por não o ter. Um dia sem comer - enfim, a comer cereais, latas e assim - não é uma tragédia. É uma chatice, só. Se forem dois dias seguidos é uma dupla chatice. E continua a não ser uma tragédia.
........
*- Que horror! Lembras-te, Helena?
Navego há três horas e até ver o HELENA S. tem-se portado bem. Bate um bocado, mas isso não é surpresa: a plataforma é baixa. Passa bem na vaga, e isso tão pouco é inesperado. Descobri nesta viagem que estou farto de barcos problemáticos, que o refit - pelo menos no Panamá - não é a minha praia; e contudo. Contudo gosto do HELENA, olho para ele como é e vejo o que será. Precisa de trabalho interno e externo, de refazer a electricidade e de ser pintado, de levar uma electrónica nova, de umas mexidelas no plano de convés. É um barco bom com mau aspecto, um barco bom que parece mau. E eu, que tinha jurado para nunca mais, deixo-me ir, cedo àquilo que não se vê mas se sente.
E de caminho encontro a resposta que me foge há tantos meses.
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O vento continua ponteiro, claro; e está a crescer, como não podia deixar de ser. Estou a fazer quatro nós de VMG em árvore seca; se içar a grande e tirar bordos apoiado com o motor faço os mesmos quatro nós e poupo gasóleo.
(Ao contrário do que parece, isto é uma pergunta, não uma afirmação).
E quando parar para içar a grande aproveito e dobro a boça do dinghy. (Isto sim, é uma afirmação. A ver se e quando páro. A perspectiva de passar meia-hora a içar pano para depois o vento cair atrai-me pouco).
A resposta é sim e não. O meu VMG não aumentou significativamente e tenho de ir quase às mesmas rotações. Mas não levei meia hora a içar o pano.
Deve haver outras profissões que ensinem as pessoas a lidar com a ambiguidade, a ambivalência, a incerteza; mas eu não sei de nenhuma que o faça tão profunda e eficazmente como a navegação à vela.
Meia hora depois - voltou tudo ao statu quo ante. Grande arreada, motores nas 2800, rumo directo. De qualquer forma se não se experimentar não se tem a certeza.
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Um dia hei-de andar num barco que não cheire a gasóleo; que não tenha fugas de gasóleo. O cheiro no casco de bombordo que tínhamos sentido durante as provas de mar e atribuído aos navios fundeados na baía vem de um dos injectores. Mais um exercício de recolha de gasóleo. Felizmente o mar está calmo e não vou enjoar como enjoei à saída da Isla de San Andrés*.
São pequenas coisas, pequenos passos, pequenas avarias que nos levam a conhecer um barco, a gostar dele, a apreciá-lo, a vê-lo pelo que é e não pelo que dele se vê.
A noite chega, o vento cai, a velocidade aumenta; muito pouco, mas aumenta. Qualquer ganho é bem vindo, por pequeno que seja. Não consegui encontrar gás em Shelter Bay e decidi sair (teria de espera três dias, três!, caso contrário). Pensava que tinha gás para uma refeição ou duas, mas nem para amostra. Tenho comida fria, pouco apetitosa.
Que raio de sequência - o gerador do BELLE AVENTURE que se recusa a funcionar e agora esta. Entre os dois, um jantar miserável e um bom pequeno almoço. Já decidi que entro à noite, se for preciso (vai ser). Quantas vezes estive no mar sem comida, ou sem gás? Antes desta uma só, quase vintre e quatro horas à frente de Dieppe, sem vento e sem motor. Teria vinte e cinco ou vinte e seis anos. Uma lição que durou trinta anos; esta vai decerto durar outros tantos.
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B. liga-me freneticamente. Quer notícias, compreensivelmente: está à nossa espera há uma semana (isto desde a última actualização. A nossa espera está vai para um mês). Mas não me apetecia falar-lhe, dizer-lhe estamos com problemas, saímos amanhã, afinal não, a saída foi adiada mais um dia ou dois, olhe apareceu outra coisa e vams ter de ficar aqui mais um dia.
Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti? Sim e não. Começo por tentar encontrar uma justificação, uma desculpa, mas rapidamente troco essa actividade por tentar, simplesmente, perceber porque o fiz. Peço profusamente desculpa a B. quando finalmente lhe ligo e digo que estou a caminho; mas não são verdadeiras, as desculpas. Não me sinto culpado. Não lhe liguei porque tinha outras coisas em que pensar, ponto.
Não é verdade. Pensava nele, e na S. muitas vezes. Dizer-lhes afinal não saio hoje, ligo-te quando souber uma data certa demoraria 5 segundos, e poria a bola no campo deles. Na verdade não lhe ligo porque o meu problema é enorme, é o maior do mundo, é maior do que o deles a esperar-me. A única maneira que tenho de lhes mostrar isso é não ligando, e pedindo desculpas quando o fizer.
Será? Não será? Estarei à procura de psicologias caseiras para esconder uma simples - e rara - má educação? Talvez no fundo tenha simplesmente vontade de ser mal educado e as circunstâncias permitem-mo. A educação é uma trela que trazemos permanentemente ao pescoço. Os outros têm-na na mão.
De vez em quando temos de a desapertar de deitá-la para o lixo (mas depois algo nos compele a ir buscá-la de novo, uma maçada que prova que na verdade não a deitámos fora. Só a desapertámos um bocadinho).
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A verdade é que já passei muita fome. Às vezes apesar de ter dinheiro, como no Burundi ou no Zaire; outras por não o ter. Um dia sem comer - enfim, a comer cereais, latas e assim - não é uma tragédia. É uma chatice, só. Se forem dois dias seguidos é uma dupla chatice. E continua a não ser uma tragédia.
........
*- Que horror! Lembras-te, Helena?
16.9.13
Modos
Passo de modo chegada para modo largada quase sem transição. É bom. Entre os dois só conheço o modo espera e o modo desespero.
12.9.13
Até amanhã
Até amanhã é a frase mais bonita da língua portuguesa. Quando se sabe que amanhã será melhor do que hoje e pior do que depois de amanhã.
Simplicidades
Dormir sozinho numa cama finalmente vazia. Ninguém imagina o prazer das coisas simples.
Tempo, de novo
Livros para ler, música para ouvir, vento para navegar, corpos para amar: ninguém conseguirá nunca convencer-me de que o tempo acaba.
Tempo
Reaprendo a distinguir ontem de amanhã. Já era tempo. Só espero não estar a cantar uma vez mais antes de tempo.
Ripanços
Gravo os meus discos (ripar é uma palavra horrível). Comecei com o jazz, muito ordenado, linear. Agora passei para a mala do blues, rock, étnico e a ordem foi-se. Gravo aquilo que quero ouvir agora. Já vi boas analogias, mas esta é inexcedível.
Maçãs
Um inventor esgrouviado entra no escritório de patentes e diz ao funcionário que o atende:
- Quero patentear esta maçã! Quero patentear esta maçã!
- Mas eu não posso patentear uma maçã.
- Homem, prove-a, prove-a - retorque o inventor, cada vez mais excitado.
O funcionário prova a maçã.
- Mas isto sabe a maçã.
- Volte-a, volte-a.
- Humm, sabe a morango.
- Aí está! Sabe a morango. Quero patenteá-la.
- Não posso. Tanto a maçã como o morango são sabores naturais, não podem ser patenteados.
O inventor está desesperado. Tenta argumentar, mas o funcionário das patentes é inflexível. Não pode patentear uma maçã, tenha metade dela o gosto de morango. Finalmente o inventor resigna-se a explicar ao funcionário que aquela maçã não passa do primeiro passo de um grandioso projecto: fazer uma maçã com gosto a sexo de mulher.
- Você já imaginou? Vou ficar rico. Uma maçã com gosto a sexo de mulher. Se você me patentear esta, dou-lhe metade do que ganhar com a outra.
O funcionário deixa-se convencer e patenteia a maçã. Seis meses depois o inventor entra no escritório de patentes, ainda mais excitado, e diz ao funcionário:
- Consegui. Consegui. Prove-a.
O homem prova a maçã, faz uma careta horrível, e diz:
- Mas isto sabe a merda!
- Volte-a, volte-a!
- Quero patentear esta maçã! Quero patentear esta maçã!
- Mas eu não posso patentear uma maçã.
- Homem, prove-a, prove-a - retorque o inventor, cada vez mais excitado.
O funcionário prova a maçã.
- Mas isto sabe a maçã.
- Volte-a, volte-a.
- Humm, sabe a morango.
- Aí está! Sabe a morango. Quero patenteá-la.
- Não posso. Tanto a maçã como o morango são sabores naturais, não podem ser patenteados.
O inventor está desesperado. Tenta argumentar, mas o funcionário das patentes é inflexível. Não pode patentear uma maçã, tenha metade dela o gosto de morango. Finalmente o inventor resigna-se a explicar ao funcionário que aquela maçã não passa do primeiro passo de um grandioso projecto: fazer uma maçã com gosto a sexo de mulher.
- Você já imaginou? Vou ficar rico. Uma maçã com gosto a sexo de mulher. Se você me patentear esta, dou-lhe metade do que ganhar com a outra.
O funcionário deixa-se convencer e patenteia a maçã. Seis meses depois o inventor entra no escritório de patentes, ainda mais excitado, e diz ao funcionário:
- Consegui. Consegui. Prove-a.
O homem prova a maçã, faz uma careta horrível, e diz:
- Mas isto sabe a merda!
- Volte-a, volte-a!
Desejo, dois
Assisto ao reaparecer do desejo como a um nascer do sol no mar: sabemos que o frio está para trás, mas não o que nos espera.
Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 11-09-2013
Se um dia a vontade de escrever esta viagem se concretizasse poderia intitular o livro "De S. Francisco a Bocas del Toro, uma viagem pela rejeição, depressão e ressurreição"; ou talvez simplifique e lhe venha a chamar, simplesmemte, Ressurreição, como a segunda sinfonia de Mahler,
ao som da qual escrevo este post.
Ainda não estou em Bocas del Toro e ainda não ressuscitei; mas em ambos quase estou. Talvez tenha sido esta a viagem mais difícil da minha vida - incluindo nas viagens da minha vida a do ciclone em 85, aquela em que ia afundando em 76 ou o transporte de Cherbourg a Dunkerque, duzentas milhas e uma semana que dariam para fazer um compêndio de vela -.
A mais rica: numa viagem as dificuldades transformam-se em riqueza, interesse, vida, experiência, aprendizagem. Coisas boas. Saio desta mais perto de mim, mais perto do que serei porque é o que quero ser. Penso num dos livros de Jules Verne, a Viagem ao Centro da Terra, numa frase de James Baldwin "O mundo é sempre mais pequeno do que o viajante que nele viaja", em Rilke "A única viagem é interior": cada viagem é uma espiral ascendente. Quanto mais "difícil" maior a inclinação, mais perto do vértice ficamos.
........
Eu não sei se isto se passa noutras profissões - sei que de médico e de louco todos temos um pouco, e que dantes - nos tempos gloriosos do MS-DOS - toda a gente sabia programar, desde que soubesse fazer um "programa" .bat de três linhas - ; na vela é impressionante a quantidade de gente que sabe fazer tudo, vírgula bem (um marinheiro, nunca é demais recordá-lo, sabe fazer tudo, vírgula mal).
Pessoas que provavelmente são muito exigentes com quem lhes fornece serviços em terra entretêm-se nos seus barcos a fazer disparates atrás de disparates - não para poupar dinheiro, aquilo acaba sempre por ficar mais caro, a eles e aos seguintes - mas para demonstrar que são capazes, que sabem, que são auto-suficientes.
Depois sai merda, claro. A diferença entre um marinheiro e um "elefante" (só não gosto desta designação francesa para quem não navega porque gosto muito de elefantes) é que o marinheiro sabe o que vem depois da vírgula: mal. O outro crê-se um génio.
Isto aplica-se tanto ao Artie como ao Lena; e a milhares e milhares de outras pobres embarcações de vela por esse mundo fora. Uso de vela propositadamente: nos barcos a motor este fenómeno manifesta-se menos (o que não signfica, longe disso, que não exista).
Enfim, amanhã (ou hoje à noite, mas não quero provocar quem manda nestas coisas) fico com os dois botes prontos a navegar. Faltam-me só os papéis do Lena, deve faltar pouco.
Tal como Bocas del Toro, ou o fim do túnel.
ao som da qual escrevo este post.
Ainda não estou em Bocas del Toro e ainda não ressuscitei; mas em ambos quase estou. Talvez tenha sido esta a viagem mais difícil da minha vida - incluindo nas viagens da minha vida a do ciclone em 85, aquela em que ia afundando em 76 ou o transporte de Cherbourg a Dunkerque, duzentas milhas e uma semana que dariam para fazer um compêndio de vela -.
A mais rica: numa viagem as dificuldades transformam-se em riqueza, interesse, vida, experiência, aprendizagem. Coisas boas. Saio desta mais perto de mim, mais perto do que serei porque é o que quero ser. Penso num dos livros de Jules Verne, a Viagem ao Centro da Terra, numa frase de James Baldwin "O mundo é sempre mais pequeno do que o viajante que nele viaja", em Rilke "A única viagem é interior": cada viagem é uma espiral ascendente. Quanto mais "difícil" maior a inclinação, mais perto do vértice ficamos.
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Eu não sei se isto se passa noutras profissões - sei que de médico e de louco todos temos um pouco, e que dantes - nos tempos gloriosos do MS-DOS - toda a gente sabia programar, desde que soubesse fazer um "programa" .bat de três linhas - ; na vela é impressionante a quantidade de gente que sabe fazer tudo, vírgula bem (um marinheiro, nunca é demais recordá-lo, sabe fazer tudo, vírgula mal).
Pessoas que provavelmente são muito exigentes com quem lhes fornece serviços em terra entretêm-se nos seus barcos a fazer disparates atrás de disparates - não para poupar dinheiro, aquilo acaba sempre por ficar mais caro, a eles e aos seguintes - mas para demonstrar que são capazes, que sabem, que são auto-suficientes.
Depois sai merda, claro. A diferença entre um marinheiro e um "elefante" (só não gosto desta designação francesa para quem não navega porque gosto muito de elefantes) é que o marinheiro sabe o que vem depois da vírgula: mal. O outro crê-se um génio.
Isto aplica-se tanto ao Artie como ao Lena; e a milhares e milhares de outras pobres embarcações de vela por esse mundo fora. Uso de vela propositadamente: nos barcos a motor este fenómeno manifesta-se menos (o que não signfica, longe disso, que não exista).
Enfim, amanhã (ou hoje à noite, mas não quero provocar quem manda nestas coisas) fico com os dois botes prontos a navegar. Faltam-me só os papéis do Lena, deve faltar pouco.
Tal como Bocas del Toro, ou o fim do túnel.
11.9.13
Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 10-09-2013
Hoje o HELENA S. fez o seu teste de mar, que passou brilhantemente. Amanhã, se não houver grandes surpresas, o Artie fica com o motor a funcionar. Três semanas e quase doze mil dólares depois estamos a um passo de sair de Shelter Bay.
10.9.13
Retratos improváveis
Era um poço de contradições; queria ser fiel e era infiel, não queria magoar e magoava, queria amar e sugava o outro. Resolvia essas contradições embrulhando-as num saco de culpabilidade, depressão e kalimerice que o tornava irrestível e insuportável, simultaneamente. Era a sua maior contradição, a única que não conseguia resolver: não dependia dele.
9.9.13
Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 09-09-2013
A maior qualidade de um marinheiro é a humildade, todos os dias algo ou alguém mo recorda. Um marinheiro é o último elo de uma cadeia de factores totalmente fora do seu controle: começa com o tempo, passa por fornecedores incompetentes, alfândegas arbitrárias e um longo encadeamento de coisas, pessoas, acontecimentos, acasos, imprevistos, imponderáveis - quantas vezes piorados por dificuldades de língua, costumes e práticas de trabalho diferentes. Há decerto outras profissões assim, mas eu não estou a ver muitas.
As peças que esperamos vai para duas semanas e deviam ter chegado hoje não chegaram: por uma dessas incompreensíveis e inelutáveis razões ficaram retidas na alfândega de Panamá. J., o competentíssimo senhor que trata da nossa logística dizia-me "Luís, sinto-me um tonto. Estou farto do Panamá hasta los huevos". Como te compreendo, J.
De maneira vamos, a continuar assim, voltar à primeira forma e rebocar o Artie com o HELENA S. Neste o trabalho deu hoje mais um daqueles pulos para a frente: estamos com a mecânica e a electricidade resolvidas (enfim, esta muito assim assim, mas pelo menos o suficiente para já). Amanhã vai ser dia de provas de mar, acabar de montar as velas e em princípio - se os papéis chegarem ou conseguirmos sair sem eles, o que não é nem desejável nem impossível - saímos na quarta feira. Se bem me lembro chegámos a Shelter Bay dia 19 de Agosto. Três semanas num lugar onde pensava passar uma.
Aceito que seja difícil para muita gente compreender isto, quanto mais adaptar-se ou gostar. Eu gosto. Sou o pedante mais humilde do mundo.
As peças que esperamos vai para duas semanas e deviam ter chegado hoje não chegaram: por uma dessas incompreensíveis e inelutáveis razões ficaram retidas na alfândega de Panamá. J., o competentíssimo senhor que trata da nossa logística dizia-me "Luís, sinto-me um tonto. Estou farto do Panamá hasta los huevos". Como te compreendo, J.
De maneira vamos, a continuar assim, voltar à primeira forma e rebocar o Artie com o HELENA S. Neste o trabalho deu hoje mais um daqueles pulos para a frente: estamos com a mecânica e a electricidade resolvidas (enfim, esta muito assim assim, mas pelo menos o suficiente para já). Amanhã vai ser dia de provas de mar, acabar de montar as velas e em princípio - se os papéis chegarem ou conseguirmos sair sem eles, o que não é nem desejável nem impossível - saímos na quarta feira. Se bem me lembro chegámos a Shelter Bay dia 19 de Agosto. Três semanas num lugar onde pensava passar uma.
Aceito que seja difícil para muita gente compreender isto, quanto mais adaptar-se ou gostar. Eu gosto. Sou o pedante mais humilde do mundo.
Oxímoro
"Só quero ter paz", diz-me uma amiga. Mas a paz que ela procura só se encontra com luta; o que a torna (à paz, não à amiga) um oxímoro.
8.9.13
Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 07-09-2013
São sete da noite e ainda não choveu; quase tenho medo de o dizer, não vá o céu cobrir-se de nuvens e desabar numa daquelas chuvadas cataratas súbitas que têm sido o nosso lote quotidiano aqui desde que chegámos. E não só não choveu, mas o fim do dia estava lindo, ensolarado, quase a deixar-nos prever como será isto na época seca, com vento (havia um pouco à tarde; agora caíu) e sem chuva.
Bonito, sem dúvida.
Está na hora de largar, e a hora nunca mais chega: num dos barcos por uma série de razões, no outro por outra; tudo serve para nos lembrar de que as fontes de problemas com barcos - sobretudo velhos - são inúmeras, intermináveis e que não há experiência que chegue para as prever todas. Quem iria, por exemplo, pensar que a loja em Miami onde encomendei as peças do Artie não ligou nenhuma ao número de série que lhe enviei e me mandou as peças para o modelo recente do motor, em vez de me mandar as do modelo de 1986; ou que o antigo armador do agora HELENA S. navegava numa espécie de bomba flutuante, com cabos eléctricos em cima dos motores, tanques de gasóleo com buracos, e outras coisas. Trabalhar no HELENA tem sido uma espécie de tango, um passo para a frente dois para os lados um para trás e depois uma repentina corrida para a frente.
Já adiei a largada algumas duzentas vezes e só agora começo a ter a impressão de que cheguei a metade delas.
........
Shelter Bay Marina fica na entrada atlântica do Canal do Panamá, numa antiga base militar americana, hoje devolvida aos Panamianos e meio em ruínas. Todos os dias de manhã ouvimos (pelo menos os que acordam cedo) os gritos dos militares nas suas actividades de team building.
Quando se vai a Colon passa-se pelas eclusas de Gatun. Por vezes temos de esperar muito tempo, se há navios a entrar ou sair; outras é rápido, e a viagem demora o tempo normal, cerca de três quartos de hora.
A marina é uma seca, cara e com poucos barcos. Quem aqui vem vem porque vai atravessar o canal e precisa de esperar ou porque precisa de fazer reparações - é o único estaleiro com capacidade de levantar barcos em muitas muitas milhas.
Felizmente encontrámos Nike e Dimitrios. Já fizemos dois jantares com eles; agora decidimos que podem usar o nosso barco como base logística: não têm frigorífico nem fogão. Hoje fazem o jantar; amanhã nós. E assim até nos irmos embora - Nike está à espera dos papéis do seu ex-VELA BIANCA, futuro KARL para ir, como nós, para Bocas del Toro.
É uma jovem de 32 anos que comprou um barco sem ter grande experiência de vela; Dimitrios um amigo que veio cá ajudá-la na preparação. Admiro muito a personalidade de Nike e a maneira como está a gerir o seu projecto. Ela ainda não sabe, mas vai para a galeria dos Encontros.
........
Não se pode mentir ao mar; ele não engole tretas. Esta viagem tem sido uma viagem aos e nos limites, os meus limites. Estão muito mais perto do que eu pensava e só por isso estou-lhe grato, ao mar, que ao fim destes anos todos me relembra que a principal qualidade de um marinheiro - qualidade não é bem o termo, mas por agora fica - é a humildade; conhecer-se e aos seus limites.
Bonito, sem dúvida.
Está na hora de largar, e a hora nunca mais chega: num dos barcos por uma série de razões, no outro por outra; tudo serve para nos lembrar de que as fontes de problemas com barcos - sobretudo velhos - são inúmeras, intermináveis e que não há experiência que chegue para as prever todas. Quem iria, por exemplo, pensar que a loja em Miami onde encomendei as peças do Artie não ligou nenhuma ao número de série que lhe enviei e me mandou as peças para o modelo recente do motor, em vez de me mandar as do modelo de 1986; ou que o antigo armador do agora HELENA S. navegava numa espécie de bomba flutuante, com cabos eléctricos em cima dos motores, tanques de gasóleo com buracos, e outras coisas. Trabalhar no HELENA tem sido uma espécie de tango, um passo para a frente dois para os lados um para trás e depois uma repentina corrida para a frente.
Já adiei a largada algumas duzentas vezes e só agora começo a ter a impressão de que cheguei a metade delas.
........
Shelter Bay Marina fica na entrada atlântica do Canal do Panamá, numa antiga base militar americana, hoje devolvida aos Panamianos e meio em ruínas. Todos os dias de manhã ouvimos (pelo menos os que acordam cedo) os gritos dos militares nas suas actividades de team building.
Quando se vai a Colon passa-se pelas eclusas de Gatun. Por vezes temos de esperar muito tempo, se há navios a entrar ou sair; outras é rápido, e a viagem demora o tempo normal, cerca de três quartos de hora.
A marina é uma seca, cara e com poucos barcos. Quem aqui vem vem porque vai atravessar o canal e precisa de esperar ou porque precisa de fazer reparações - é o único estaleiro com capacidade de levantar barcos em muitas muitas milhas.
Felizmente encontrámos Nike e Dimitrios. Já fizemos dois jantares com eles; agora decidimos que podem usar o nosso barco como base logística: não têm frigorífico nem fogão. Hoje fazem o jantar; amanhã nós. E assim até nos irmos embora - Nike está à espera dos papéis do seu ex-VELA BIANCA, futuro KARL para ir, como nós, para Bocas del Toro.
É uma jovem de 32 anos que comprou um barco sem ter grande experiência de vela; Dimitrios um amigo que veio cá ajudá-la na preparação. Admiro muito a personalidade de Nike e a maneira como está a gerir o seu projecto. Ela ainda não sabe, mas vai para a galeria dos Encontros.
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Não se pode mentir ao mar; ele não engole tretas. Esta viagem tem sido uma viagem aos e nos limites, os meus limites. Estão muito mais perto do que eu pensava e só por isso estou-lhe grato, ao mar, que ao fim destes anos todos me relembra que a principal qualidade de um marinheiro - qualidade não é bem o termo, mas por agora fica - é a humildade; conhecer-se e aos seus limites.
7.9.13
Retratos prováveis
Usava a culpa como os outros usam desodorizante: para esconder o mau cheiro. Infelizmente, tal como com o desodorizante, esconder um cheiro não acaba com ele.
6.9.13
4.9.13
Numa palavra; tu
As prisões têm nome, os nomes cores, as palavras esperam, as esperas palavreiam. Nada é como devia ser: palavras sem nome, nomes sem esperança, cores sem prisões. Seria preciso ensinar as palavras a viver sem esperança; impossível. As cores sem vida, a vida sem cores, as prisões sem o azul do mar, o calor, por exemplo. A humidade, irmã mais nova da humildade, ou o vento.
Numa palavra a liberdade pegajosa repelente liberdade. Numa palavra as palavras todas: liberdade, esperança, mar, cores. Numa palavra a vida toda, o tempo. Tu.
Tu numa palavra numa redoma numa nuvem tu sorris por vezes triste tu redonda tu.
No vento os cabelos no olhar o vento nas mãos o mágico brinquedo o medo. Numa palavra tu a quem o mundo deu o nome vida vento cor culpa espaço espaço espaço tempo. Numa palavra.
Ser.
És, sou, somos a cor entre silêncios, o medo entre palavras, a espera entre ventos.
Há o mar as prisões as palavras os interstícios por onde por vezes jorra um fio uma luz uma palavra. Tu.
Ou lua, também há a lua, fenda prateada do vento. Há tudo numa palavra. Ou seja: tu.
Numa palavra a liberdade pegajosa repelente liberdade. Numa palavra as palavras todas: liberdade, esperança, mar, cores. Numa palavra a vida toda, o tempo. Tu.
Tu numa palavra numa redoma numa nuvem tu sorris por vezes triste tu redonda tu.
No vento os cabelos no olhar o vento nas mãos o mágico brinquedo o medo. Numa palavra tu a quem o mundo deu o nome vida vento cor culpa espaço espaço espaço tempo. Numa palavra.
Ser.
És, sou, somos a cor entre silêncios, o medo entre palavras, a espera entre ventos.
Há o mar as prisões as palavras os interstícios por onde por vezes jorra um fio uma luz uma palavra. Tu.
Ou lua, também há a lua, fenda prateada do vento. Há tudo numa palavra. Ou seja: tu.
2.9.13
Quimeras
As quimeras são a coisa mais fácil de encontrar; quem as procura encontra-as, inevitavelmente.
Clareza, confusão
Como dizer claramente que nada é claro? Como dizer claramente o que não tem clareza, o que é confuso, indefinido, hesitante?
1.9.13
Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 01-09-2013
Nem o mastro nem a grande nem o lazy bag do em breve HELENA S. são os maiores da marina; mas são grandes e não tenho de me envergonhar: passei metade da manhã a aparelhar aquilo sozinho e só me apercebi de quão cansado estava quando um providencial aguaceiro me mandou para o café. Os preparativos vão avançando: M. agora nos molinetes, que precisavam de uma limpeza há muitos anos, C. na electricidade enquanto esperamos as peças para o motor do do Artie, N. e G. na assistência geral e na cozinha, eu nas velas e na administração.
O pêndulo voltou atrás e já sou armador de uma só embarcação, o HELENA S.. O outro voltou para o seu antigo armador. O barco é bom: sanduíche de espuma de alta densidade, leve, uma superfície de pano considerável. Precisa de duas ou três operações cosméticas e pouco mais. Mas pouco mais num barco é uma expressão que engana muito e mantê-lo vai ser um desafio. A ver, como dizia o ceguinho à mulher que era surda, coitada.
Entretanto o dia da largada de Shelter Bay aproxima-se a passos largos. Já estou a planear a viagem, a falar de zarpes e a pensar nas provisões. "A cada um a sua Ítaca", pensei no outro dia, inspirado numa exposição da minha amiga, se bem quase invisível Isabel. A minha tem variado ao longo desta viagem; mais parece miragem do que destino. Começou por ser Quepos, depois Panamá, depois isto e aquilo e depois e depois até voltar a ser o que na realidade nunca deixara de ser, só agora me apercebo: Caraíbas e Mediterrâneo.
Sou dois, sou muitos, "sou o que sou e é tudo o que sou": sou das Caraíbas e sou europeu e sou do mar que os une. O resto é ilusão.
O pêndulo voltou atrás e já sou armador de uma só embarcação, o HELENA S.. O outro voltou para o seu antigo armador. O barco é bom: sanduíche de espuma de alta densidade, leve, uma superfície de pano considerável. Precisa de duas ou três operações cosméticas e pouco mais. Mas pouco mais num barco é uma expressão que engana muito e mantê-lo vai ser um desafio. A ver, como dizia o ceguinho à mulher que era surda, coitada.
Entretanto o dia da largada de Shelter Bay aproxima-se a passos largos. Já estou a planear a viagem, a falar de zarpes e a pensar nas provisões. "A cada um a sua Ítaca", pensei no outro dia, inspirado numa exposição da minha amiga, se bem quase invisível Isabel. A minha tem variado ao longo desta viagem; mais parece miragem do que destino. Começou por ser Quepos, depois Panamá, depois isto e aquilo e depois e depois até voltar a ser o que na realidade nunca deixara de ser, só agora me apercebo: Caraíbas e Mediterrâneo.
Sou dois, sou muitos, "sou o que sou e é tudo o que sou": sou das Caraíbas e sou europeu e sou do mar que os une. O resto é ilusão.
Colaborações
Muito provavelmente uma das razões pelas quais a colaboração é tão apreciada é ser muito difícil de conseguir. A dificuldade começa com os orgãos internos: como seria a minha vida se o meu fígado colaborasse um bocadinho com o pâncreas, por exemplo? E o coração com a cabeça?
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