31.8.19

Conversas de apetecer

Aqueles tempos em que íamos para a cama com quem nos apetecia só porque nos apetecia ir para a cama com quem nos aparecia disposta a isso eram tão bons.

Eram? Não sei. Não me queixo, mas tão pouco me queixo de agora precisar de algo mais do que apetecer-me, por muito bonita que a senhora em frente seja.

(A senhora lá ao fundo é muito mais bonita, essa é que é essa. O resto é conversa de apetecer.)

Casamento

Engrossa-te lentamente ao meio-dia de sábado, ouvindo Leonard Cohen, bebendo um bom vinho branco e pensando em invisibilidades. Isto é, naquilo que torna o que devia ser visível em ausências, ou nas ausências que transformam o visível em invisível. Há um mundo por detrás desse véu de ausência que só tu vês, que só tu sentes. Depois vai dormir, leva contigo a ausência (de qualquer forma ela nunca te deixa).

Vives com a ausência como se fosses casado com ela.

30.8.19

"Mantém-me feliz com nada. Apenas toma a minha mão na tua mão. "

Naqueles dias em que um gajo precisa dolorosamente de ler Tagore e não tem os livros: obrigado, Google.

"Keep me fully glad with nothing. Only take my hand in your hand.
In the gloom of the deepening night take up my heart and play with it as you list. Bind me close to you with nothing.
I will spread myself out at your feet and lie still. Under this clouded sky I will meet silence with silence. I will become one with the night clasping the earth in my breast.
Make my life glad with nothing.
The rains sweep the sky from end to end. Jasmines in the wet untamable wind revel in their own perfume. The cloud-hidden stars thrill in secret. Let me fill to the full my heart with nothing but my own depth of joy."


.........

“I am the boat, you are the sea, and also the boatman.
Though you never make the shore, though you let me sink, why should I be foolish and afraid?
Is reaching the shore a greater prize than losing myself with you?
If you are only the haven, as they say, then what is the sea?
Let it surge and toss me on its waves, I shall be content.
I live in you whatever and however you appear.
Save me or kill me as you wish, only never leave me in other hands.”

........
"Where roads are made I lose my way.
In the wide water, in the blue sky there is no line of a track.
The pathway is hidden by the birds' wings, by the star-fires, by the flowers of the wayfaring seasons.
And I ask my heart if its blood carries the wisdom of the unseen way.”

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-08-2019

O Brie está naquele ponto, exterior ao mundo, para onde tendem os queijos: melhor do que ontem e melhor do que amanhã. Acompanho-o com o Intense (?) do Es 20 Bonaire. Já recentemente me aconteceu a mesma coisa, quando pela primeira vez, finalmente entrei no Cric & Croc, andava para lá ir há pelo menos meia dúzia de séculos: "a quatro euros e cinquenta cêntimos não pode haver Margaritas más". Hoje comprei trinta gramas do presunto mais caro do mercado e fui beber um fino (em itálico porque me refiro a um Jerez e não a uma cerveja no Porto). Consegui finalmente encontrar sal grosso, no El Corte Inglés. Sacana do Brie está a olhar para mim com aquela cara de parvo, toda engelhada, estreada de castanho "Vá lá, só mais um bocadinho, falta tão poco, amanhã vais ter de me deitar fora, bebe mais um copo de tinto" e eu a pensar que isto ia era com um bom Porto, robusto, um LBV da Warres ou o da Quinta do Noval. O tinto custa (+6.75/4) a garrafa e é bom, o sacana, tire-se-o do frigorífico e espera-se um bocadinho, a temperatura exterior depressa o leva ao sítio e tudo isto acompanhado pelo Pablo Casals a tocar as Suites para Violoncelo do Bach...

Espera, preciso de um ponto de ordem, um resumo, um ponto final, um fio condutor. pobre sim, miserável não.

Bom não posso dizer que seja pobre, pelo menos se nos ativermos a um lapso temporal curto, de qualquer foma vá lá saber-se o que é ser pobre, eu sei mas também sei o que é ser miserável e entre os dois prefiro primeiro, seja-o ou não.

Que se lixe, isto é um almoço, não é uma sessão de introspecção.

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"Só me apaixono pelas mulheres certas", explicava há bocadinho a uma amiga. "Isto é, aquelas por quem não devia apaixonar-me". Bem, desta vez tenho pelo menos a desculpa de ter tentado evitar, tentei o mais que pude até o elástico rebentar e pôr a nu a verdade crua. Nua não, infelizmente, porque estou muito longe mas lá chegaremos.

.........
Depois da sesta vou verificar se as Margaritas do Cric & Croc são verdadeiramente boas e vou pensar nesta coisa dos amores como ponteiros de um relógio parado.

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O P. está a ficar lindo de morrer. Lindo. Isto pode parecer exagerado, mas às vezes parece-me que a única coisa mais bonita do que ele que até hoje fiz foram os meus filhos - no caso deles graças à S., no do P. graças ao I. Que coisa mailinda aquilo vai ficar, San Telmo. Obrigado a ti, à armadora e ao I., a todos os que têm dado tempo, paciência e saber àquela obra de arte.

Obrigado sobretudo a quem o deixou chegar àquele ponto.

Incompreensão

Os dias - não só as noites, como até aqui pensava - correm tranquilos até que esbarram numa ausência de ti. As malditas ausências escondem-se em qualquer sitio, é impossível vê-las até que me saltam aos olhos, à pele, às mãos que ficam a abanar como se quisessem agarrar-se ao vento.

Mal as horas esbarram com o sem-ti perdem o sentido, esboroam-se por aí abaixo e lá tenho eu de lhes agarrar os cacos e tentar colá-los, fingir que nada se passou.

Impossível: as fissuras nos cacos colados são cada vez mais. Bem pode o Cohen cantar que por elas entra a luz, eu só vejo negrume. Como pode alguém tão luminosa como tu roubar tanta claridade é incompreensível, não achas?

27.8.19

Rachmaninov e o gelo

Não faz mal. Escrever, já o sabias, é escorregadio. Como viver: uma fina capa de gelo sobre água gelada. Nada que Rachmaninov não resolva, dir-me-ás. Concordo parcialmente: pergunto-me se ele torna o gelo mais espesso se a água menos fria.

Belezas

Por muito bonito que seja tudo o que já se viu nesta terra, nada o é mais do que uma pessoa bonita.

Maya traz em si todas as paisagens que já vi, tem nela a humanidade toda.

26.8.19

Às escuras

Assim vamos pela noite esvoaçando: eu no dorso da águia, tu a águia. Por baixo de nós as luzes da cidade, pontos dispersos que nunca uniríamos mesmo que fosse preciso. Não é: tu sabes e eu também que aquilo é passado. Para a frente, o caminho está às escuras.

24.8.19

Noite, feras

Assim me estendo em ti na noite, essa noite que ao contrário de ti me espera, me acolhe e - como tu, se aqui estivesses - se prepara para não me deixar dormir. Percorro-lhe o vasto e inexplorado território da tua pele, beijo-te os olhos escuros, fechados, acaricio-te o cabelo negro, espesso como esta noite pela qual as panteras se passeiam à solta. Faço de ti a noite, da noite tu e entre as duas terei a companhia das silenciosas feras.

Música, árvores

Olhas para a música e vês uma árvore. Talvez seja ao contrário, pouco importa: vês música na árvore à qual em criança subias para te esconderes, a ler o que te caía na mão. Era uma mangueira, lembras-te perfeitamente dos pregos  que tu e os teus amigos da praceta lhe puseram para conseguirem chegar aos primeiros ramos. Uma vez caíste mas não disseste nada aos teus pais, não fossem eles proibirem-te de subir outra vez para te aninhares na bifurcação de ramos, meio deitado meio sentado, onde sonhaste as primeiras viagens e viste os primeiros camaleões passar cautelosamente de um ramo para outro.

Hoje, essa árvore é a música de que gostas, um vasto território que se estende pelo mundo todo, que vai da Idade Média à música de hoje.

Só há uma diferença: todos os dias descobres um ramo novo. Os da mangueira já os conhecias todos, de alto a baixo. 

Descrição aleatória

Esmaciado não existe em língua nenhuma que eu conheça. Espapaçado sim, por isso é menos adequado do que o outro, o que não existe. Esmacio-me por dentro e por fora, escorrego por mim como bocados de lama pela ribanceira abaixo, tento agarrar-me a qualquer coisa sólida mas tudo está igualmente esmaciado, tudo se desfaz, deve ser assim que um leproso vê os seus membros desfazerem-se, o corpo partir sem o estrépito dos icebergues, ajudado pelo olhar de repulsa dos outros, como se este o ajudasse a desfazer-se e não a salvar-se, reconstituir-se, um olhar sólido e afiado como lanças, mudo porque tudo isto dispensa sons, tudo se passa em silêncio, nada a dizer nada a ouvir.

Terá cheiro? Não sei, penso que não, nada acrescentaria, todos sabem que a tê-lo seria purulento, branco como pus fresco, para quê juntar o que já todos intuiram?

Não sou só eu que me desfaço. O tempo também cai em grandes e pequenos  bocados, os grandes são pedaços de vida os pequenos de dias ou semanas ou meses, deslizam uns pelos outros como caracóis por uma placa de gelo inclinada, nem a baba os salva.

A esta mistura de carne e de tempo alguns tentam dar nome, mas sem voz não conseguem, nem um mísero ai são capazes de articular e Deus sabe se o querem dizer, gritar, esbracejar, insinuar mudamente com as pálpebras (que se põem elas também a cair, isto espalhou-se por todos os que me olham, alastrou por essa cidade fora e agora são os prédios as casas as ruas sinais de trânsito bancos onde há pouco um casal de velhos descansava e um outro se beijava postes de iluminação pública de publicidade paragens de autocarros bocas de combate a incêndios pilaretes).

Tudo se mistura num magma silencioso e triste, sem morte e sem vida, sem luz nem som, viscoso, simultaneamente peganhento e repelente. 

Ecologia, pensamento mágico e histeria

No princípio dos anos 80 fui viver para Genebra. Durante as primeiras semanas - não foram muitas, se bem me lembro não cheguei a dois ou três meses - vivi num apartamento com mais duas pessoas: um auto-designado althusseriano (na verdade era mais leninista do que Lenin) e um ecologista e sindicalista de esquerda. Dávamo-nos bem, apesar das frequentes discussões políticas e de eles não conseguirem perceber como é que um emigrante sem papéis como eu era de direita (o althusserianismo tinha limites...).

Mas do que quero aqui falar é das minhas conversas com o ecologista. O planeta, dizia ele, morria cada dia mais. O homem estava a matá-lo. Mais meia dúzia de anos e viveríamos num deserto. Eu dizia-lhe que ele teria razão em algumas coisas, mas achava contraproducente o exagero do discurso, a histeria dos ecologistas. Era evidente que o objectivo deles não era defender o planeta, mas sim acabar com o capitalismo. Que não, respondia. O primeiro objectivo era salvar o planeta da morte iminente; o fim do capitalismo viria em consequência disso.

Isto foi há quarenta anos. O planeta continua à beira da morte e os ecologistas ainda não aprenderam que a histeria acabará por lhes retirar credibilidade, mais tarde ou mais cedo.

Neste momento, estão reduzidos a propagar notícias falsas, deificar uma adolescente autista e raciocinar de uma forma que faz o pensamento mágico passar por lógica cartesiana de primeira ordem.

Entretanto, o planeta lá vai sobrevivendo e o capitalismo está bem e recomenda-se.

23.8.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-08-2019

E sexta-feira, já o fim do Verão cheira à janela, cada dia mais fresca. Passei uma manhã surreal a tentar encontrar um ânodo (dois, quero ter um de reserva) para o sail-drive. Acabei por desistir, disse ao M. que tratasse ele do assunto. Há dias em que Palma me fascina; depois pergunto-me se isto é de Palma se é da náutica de recreio e entre os dois o meu coração hesita, pergunta-se e acaba a gostar ainda mais de cada um deles, juntos ou separados.

M. prometeu-me que na segunda teria os ânodos, de maneira passei à procura de uma estante para o meu quarto. Não é bem um quarto, é mais um oitavo ou mesmo um dezasseis avos, mas por enquanto é o que há e o que há é sempre melhor do que o que poderia haver, vírgula, se. Estou farto de ter as coisas todas em sacos de supermercado, parece um quarto de sem-abrigo a quem saiu uma Misericórdia ou uma Caritas. Infelizmente, gosto ainda menos de comprar estantes do que de comprar camisas, de maneira opto por um vermute na Bodega Can Rigo, que tem a melhor selecção de vermutes de Palma, música a condizer e simpatia idem.

..........
As peças do Lego que andei a espalhar nestes sessenta anos - quarenta e sete, vá lá - parece alinharem-se como a limalha de ferro nas experiências do liceu, só mais devagar, felizmente. Um íman para as migalhas todas de mim que fui espalhando por esse mundo, essa vida, esse tempo?

21.8.19

Sinestesia e débardeurs

A sinestisia está subavaliada. "Não gosto deste músico porque detesto t-shirts sem mangas" (débardeurs, em francês, muito mais apropriado) devia ser um argumento válido e não uma boutade.

20.8.19

Cansaço

O cansaço é cansativo. Um gajo farta-se de estar cansado, mas quanto mais se farta mais cansado fica.

Há uma neguentropia no cansaço que não há, por exemplo, no amor. O amor não se alimenta de si próprio.

Só não percebo por que raio de carga de água o amor, que se gasta - e desgasta - é preferível ao cansaço, que parece alimentado a pilhas Duracell.

18.8.19

Sentimentos e outras coisas

A inveja que eu tenho das pessoas que têm sentimentos simples, rectilíneos, previsíveis como o voo de um foguete. É uma inveja boa, note-se, nada dessa inveja mesquinha que só conheço de ouvir falar, não sei o que é a inveja, é uma pena, não é? Talvez ela me levasse para cima, me aspirasse, empurrasse. Não sei. Não acredito muito nesta hipótese: haveria muitos mais ricos, se a inveja enriquecesse.

Nada disso. Penso apenas nos sentimentos simples, sem dúvidas: o amor, a amizade, a tristeza, o medo, a compaixão... Há pessoas capazes de os sentir simplesmente, branco, azul, preto, encarnado. Eu não sou assim, sou um troca-tintas dos sentimentos, ando às voltas, um passo atrás outro à frente o seguinte ao lado. Danço melhor os sentimentos do que o tango ou a valsa.

E depois esta mistura de sentimento e memória, não se vão embora, parecem squatters - não parecem, são. Ficam para sempre. Ainda há pouco ouvia Chick Corea e pensava na miúda por quem um dia me apaixonei: era o seu pianista favorito. Agora oiço My Spanish Heart, não sei por quanto tempo. Nunca sei nada por quanto tempo. Ainda hoje amo a miúda que aos dezanove anos amei. Nenhum marinheiro sabe, dir-me-ás e é verdade. Os sentimentos são como o vento que nos impulsiona: hoje daqui, amanhã dali, depois de amanhã nada e no dia a seguir demasiado.

Talvez seja por isso que sou tão sentimental: gosto de todos os sentimentos como gosto de todos os ventos; gosto de todas as memórias, mesmo as feias; gosto de tudo ao mesmo tempo, mesmo do que não gosto. No fundo é simples, repara: consiste em pensar que tudo na vida é uma moeda. Tem duas faces, nunca sabes de que lado vai cair mas sabes que te saiu a face boa, seja ela qual for.

Sentimentos voláteis, expansivos, contraditórios, imensos. Vastos territórios inexplorados, percorridos aos ziguezagues. Prefiro Miles a Corea.

Cores, infinito

"O azul infinito da Grécia", diz a legenda de uma fotografia daquele país. É uma fotografia turística, nunca se sabe quantas horas de pós-produção aquilo tem. Penso nisso e em todos os azuis infinitos de todos os sitios por onde já passei. O azul é a única cor que suporta o infinito, não é?

Não. Há o amarelo do deserto, mas só o vi uma vez, na Namíbia.  Ou verde da Costa Rica, do Zaire, do Brasil...  Há poucas cores infinitas, na verdade, o azul não é a única, se bem por vezes pense que há mais infinito no azul do que nas outras.

E depois há outra coisa: pode tocar-se o infinito do azul, mas o verde, mal nos aproximamos da floresta deixa de ser verde. Já o amarelo do deserto continua amarelo se for visto de perto. Enfim, pelo menos suponho. Em Lüderitz não se podia sair dos limites da cidade, de maneira só o viquando o sobrevoei, de regresso a Cape Town. Pareceu-me que sobrevoava o mar, um mar pálido, mortal - aquela costa tem um nome tétrico, chama-se costa dos Esqueletos, ou coisa que o valha. Eu próprio vinha de cinco dias de coma num hospital, não voava num estado de espírito muito alegre.

Nunca mais vi o deserto. Uma vez voei de Tânger para Casablanca, mas dormi a viagem toda. O deserto não me atrai  muito. Prefiro o azul do mar, o seu infinito poder hipnotizante.

Já o sono não tem esse poder. Foge come um gato mal educado, ou um cão daqueles que desaparecem e só reaparecem quando lhes apetece, quando têm fome. Ainda há bocadinho fui passear a insónia mas tudo o que consegui foi aperceber-me da sua infinita capacidade de me chatear. Bebi uma cerveja no Antiquari, dei um curto passeio na bicicleta, tentei aliciar o sono como se chama um cão fugitivo.

Por isso penso nas cores, no infinito, em tudo o que mobile estas horas vazias, infinitas.

17.8.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-08-2019

Não gosto, não sei e não quero aprender a fazer compras. Ir a lojas, escolher roupa, experimentá-la, devolvê-la são coisas penosas. A única forma aceitável de fazer compras é quando tenho uma mulher que chega a casa e me diz "Olha, encontrei esta camisa, vê lá se te fica bem. Se não ficar podes trocá-la" (sabendo muito bem que a) não faço a mais pequena ideia do que seja uma camisa ficar-me bem - quem diz camisa diz calças, calções, seja o que for; e b) só com uma pistola apontada à cabeça iria à loja trocar a peça que não me "fica bem" por outra que me ficaria igualmente mal). Como todas as teimosias, esta paga-se: comprei uma série de pólos brancos para o meu trabalho de charter e os malditos estão-me pequenos. Não muito pequenos, mas pequenos. Deviam ter um X a mais. Agora não sei o que fazer. Há três alternativas: 1- emagrecer; 2 - as camisas alargam ou 3 - voltar às lojas. Aceitam-se apostas.

Verdade seja dita que o trabalho para o qual comprei os pólos me permite comprar mais alguns, nos saldos das lojas baratas; a questão não é financeira. É: o que farei com os pólos que me estão pequenos, se comprar outros com mais um X no tamanho? Um pólo dura-me em média três a quatro anos (os que não se perdem, caem à água ou se sujam indelevelmente). Não sei, não quero saber e tenho raiva a quem sabe.

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Para já o problema tem solução relativamente simples: não tenho tempo nem dinheiro para comprar mais pólos. Mandei a massa deste charter para o banco, só lá chega na terça-feira e os clientes (visivelmente não se importaram com o tamanho dos desgraçados pólos) pediram-me para trabalhar mais três ou quatro dias.

Vou passar mais uns dias com uma família deliciosa, educada, atenta. Fosse eu os pólos e trataria de alargar.

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A possibilidade de voltar às Caraíbas este inverno deu mais um gigantesco passo em frente. Serão duas ou três semanas, talvez quatro, no máximo. Mas isso chega para matar saudades e ver o que mudou.

(NOTA: estão abertas as inscrições, manifestações de interesse, perguntas, etc., se bem não haja muitas respostas. Neste momento só tenho as datas do primeiro cruzeiro: 9 a 23 de Janeiro e o percurso - Martinique - Grenada - Martinique. O e-mail Lserpa@gmail.com recebe todas as questões que lhe quiserem fazer.)

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Regresso ao charter com prazer, mas não perdi o gosto pelos transportes. Preciso de uns dias de mar, é tudo. Quantos mais melhor.

15.8.19

Diário de Bordos - No mar, Baleares, Espanha, 14-0i-2019

Força três a um largo e o Hanse galopa entre os sete e os oito nós, apesar de ter um lenço de assoar a fazer de estai, uma grande de enrolar no mastro e o bote a reboque, com o motor em baixo (não o consegui levantar, vá lá saber-se porquê). Pode ser uma merda, estar cheio de rodriguinhos, mas que anda anda.

Na verdade ê injusto dizer que é uma merda: é feito para o que é. Quem compra um Hanse sabe que poupa na compra o que vai gastar em manutenção - se o utilizar demasiado - mas esta é aos poucos e aquela de uma vez. Vá lá que pelo menos o gerador é um Panda.

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Lua cheia, mar chão: as senhoras estavam deliciadas. Eu também.

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Pus a máquina a trabalhar,  devagarinho. Não serve de nada chegar às cinco da manhã, tanto mais que vamos fundear numa praia bastante exposta e ainda haverá ondulação residual de certeza. Pedido do senhor, um tipo cinco estrelas e meia. Quer fazer uma surpresa à mulher, que merece as surpresas todas e mais alguma.

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Estes dias foram confusos, do ponto de vista da meteo, mas é impossível não reconhecer (no sentido de agradecer) a enorme evolução dos últimos vinte anos. O aumento da capacidade de cálculo transformou uma actividade que oscilava entre o cara ou coroa e o abracadabra numa ciência quase exacta.

Agora só falta liquidar o quase.

A verdade é que hoje o vento respeitou as previsões: a meio da noite caiu e agora - quatro da manhã - ainda estrebucha. Não tarda tenho de enrolar os trapos, salvo seja que são novinhos, o barco é deste ano.

Feito. Força zero, mar chão, Lua cheia: quando penso que já detestei o motor...

Sonho, ditadura

Não foram nem os hippies nem muito menos os soixante-huitards que trouxeram "o sonho" para a política, mas foram eles que o validaram, o tornaram uma forma "aceitável" de organização social, um objectivo "responsável".

Ela por ela, antes esse sonho do que a ditadura que o vai, pouco a pouco, substituindo. 

14.8.19

Diário de Bordos - Sant Antoni, Ibiza, Baleares, Espanha, 14-08-2019

Viemos a Sant Antoni fazer água. Vinte minutos de espera na estação do porto para ouvir dizer que só têm combustível e para me fazerem festinhas ao ego. Interesso-me muito pelo que as pessoas pensam e nada pelo que pensam de mim, com uma ou duas excepções: ouvir um elogio a uma manobra feito por um funcionário de uma estação de combustível, por exemplo; ou um marinheiro de uma marina. Enche-me de felicidade, porque se há coisa de que gosto é de manobrar e se há coisa bonita é uma manobra bem feita.

Enfim, fiquei com o saco do orgulho cheio para os próximos três meses.

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Os clientes foram a terra. Primeiro às compras e agora comer. Paguei a marina - para fazer água tem que se ir para um lugar na marina. Quinze euros cada meia-hora para uma embarcação de quinze metros e setenta e cinco (omitiram os decimais. Ficaram só quinze). Paguei duas horas e algo me diz que vou ter de aplicar a minha mojo hand. Quando o marinheiro veio a bordo encaixar a massa ouvi-o a falar pela radio com um colega:
- Ele disse-me que ia ficar uma hora e já está há hora e meia. Diz-lhe que ou se vai embora ou paga o dia todo.

Não é a primeira vez que tenho pegas com o pessoal desta marina - a outra vez foi por causa de um embarque de passageiros....

Ooops. Os clientes mudaram de planos e querem ir directamente daqui para Mallorca. Largo às sete e posso ir a terra comer qualquer coisa. Até já. 

Diário de Bordos - Cala Bassa, Ibiza, Baleares, Espanha, 14-08-2019

Durmo no poço porque os camarotes estão todos ocupados. De manhã acordo e dou um mergulho. Ainda estão todos a dormir, os meus e os outros. Hoje peguei no bote e fui até à praia. Só havia uma pessoa - uma nadadora, vi depois. A melhor parte do dia é quando ele ainda não é, ainda não esqueceu a noite por completo, ainda hesita no que há-de ser.

Depois estraga-se: começa o barulho na praia, os clientes acordam, em breve virá o corropio de lanchas, turistas, barcos a fundearem para o dia. Os clientes vão mata-bichar a terra. Abençoados sejam, tanto como o dia o será.

13.8.19

Diário de Bordos - Cala Bassa, Ibiza, Baleares, Espanha, 13-0i-2019

"Imagina que o barco é um berço e alguém te está a embalar", digo à senhora preocupada com o balanço. O vento caiu por completo e temos vaga residual por bombordo. A cala é bonita, chama-se Bassa, fica perto de Sant Antoni. Vim para aqui porque durante a noite deve entrar sul e a cala Talida é-lhe muito exposta.

A viagem devia ter durado uma hora mas acabou por levar mais do dobro: tive de rebocar um jet-ski para Sant Antoni, deve ter ficado sem combustível; e andei a saltar de cala em cala, à procura de uma simultaneamente bonita e confortável (isto é conversa da treta. Queria simplesmente fundear o mais tarde possível por causa do vento, que teimava em não cair. Mas os passageiros gostam de ver as coisas formuladas favoravelmente).

"Isto é um berço e alguém te está a embalar." Acho que nunca disse nada mais verdadeiro.

Diário de Bordos- Cala Jondal, Ibiza, Baleares, Espanha, 13-08-2019

Cala Jondal... Tive mesmo de me vir embora, aquilo ficou insuportável. Vim para Cala Jondal, onde fica o Blue Marlin Beach Club. Caso haja interessados: um "cama grande" (duas pessoas, creio. Não sei) custa cem euros por dia e tem um consumo mínimo de trezentos euros. Nunca lá comi mas conheço o sítio: trezentos euros deve dar para pouco mais de duas cervejas, mas passemos. Duzentos euros por um dia numa praia de merda não é mau para quem estiver en dia de potlatch (desde que não seja eu o beneficiário, nao retribuiria).

Foi uma boa decisão. Arranjámos lugar para fundear e passámos uma noite tranquila. Daqui a pouco, levanto ferro para ir à praia...

12.8.19

Diário de Bordos - Cala Talamanca, Ibiza, Baleares, Espanha, 12-08-2019

Estou fundeado em Talamanca. Os passageiros foram para Ibiza e - previsivelmente - decidiram passar o dia lá. Uma das previsões que vi dava chuva; a outra não. A chuva ela própria não sabe a qual dar ouvidos. O dia está cinzento, os vinte e cinco - trinta nós previstos baixaram para quinze -vinte, o motor do dinghy hoje pegou lindamente (enfim, quase lindamente), o óleo do motor estava ok e o do grupo também - mas este não o vi, que está muito longe. Disse-mo o painel. Quem sabe o que é bom compra Panda. Basta ter massa, que sem ela saber é ignorância.

Comecei a escrever e a chuva apareceu, prova de que sabe muito bem o que faz. Venha ela, por aqui está tudo pronto. Também pouco havia a fazer: fechar meia dúzia de escotilhas e o painel da frente da capuchana.

Tenho quatro apps de previsão do tempo. Duas dizem que vai entrar leste durante a noite; as outras dizem que se vai manter NE. Gostaria muito que não acontecesse o que se passou com a chuva e que o E não entre, mas a verdade é que o Murphy era marinheiro, de certeza, depois de ter deixado a Celia.

Ou antes, vá lá saber-se. Seja o que for, estou a preparar planos para ou ter de sair durante a noite, ou passar um ferro à popa ou - sonhar é grátis - não ter de fazer nada disto.

A julgar pela vaga que entrou agora vou ter de me pôr a pirar. Só esperando. Seca, gostava de ir a Ibiza beber uma cerveja.

.........
Um dia passado a trabalhar, dormir, escrever (pouco, é certo; mas escrever) é um bom dia não é? A pergunta não é inteiramente retórica. Noventa por cento do trabalho foram tarefas que já prometi a mim mesmo mil vezes não voltaria a fazer: empandeirar cabos, pôr ordem nas mangueiras, queimar chicotes. Bolas, estou no barco mais quatro dias, já devia ser capaz de viver numa merda assim, mas não sou e agora parece-me que é tarde para aprender. Os cabos estavam uma desgraça, a arrumação só por excesso de generosidade ou falta de vocabulário se pode chamar assim. Esta porcaria destes paióis de dinghy são um fourre-tout sem qualquer espécie de lógica.

É importante, agradável e exige menos esforço navegar numa embarcação a) arrumada e b) arrumada com lógica (não pôr num paiol que abre para a popa coisas de que só se necessitam num cais, por exemplo. Não estivar um ferro suplente num paiol do cockpit se há o acima mencionado paiol para o bote. Coisas assim.)  

11.8.19

Diário de Bordos- Cala Talamanca, Ibiza, Baleares, Espanha, 11-07-2019

Se há uma coisa que detesto, uma coisa que me deita abaixo quando estou com clientes e me enche de raiva quando não, essa coisa é um motor fora de borda que se recusa a pegar. Aconteceu hoje, depois de um jantar impecável no chiringuito da Cala Talamanca. Foi um suíço,  armador de um Dean 500, que nos rebocou até bordo.

Os suíços têm a arte de esconder a altivez por detrás de um manto de simpatia e é preciso conhecê-los bem para detectar as duas  - a simpatia (é real) e a arrogância. Ou então sou eu que estou fodido dos cornos. Porra, trata-se de afinar um carburador. Não deve ser o fim do mundo. Estas porras destas companhias de charter não o podem fazer como deve ser? O barco - um Hanse 548 - até está em condições, apesar de ser Hanse até à medula e fazer lembrar aquela piada dos marinheiros  franceses sobre eles próprios: "um marinheiro sabe fazer tudo, virgula, mal". Um Hanse tem tudo, vírgula, pela metade.

Tem uma plataforma de banhos à popa mas está demasiado baixa e a cada vaguinha parte-se toda (depois reconstitui-se, é certo, mas só até um certo ponto. O resto fica ali partido, fora da vista, até um dia. Só a baixo por curtos períodos, entrar e sair do dinghy, dar um mergulho e subir imediatamente). Tem ar condicionado,  mas só no salão. Os passageiros querem dormir al fresco? Abram as portas dos camarotes. De qualquer forma, com o barulho do gerador ninguém ouve os ais e os uis (esta é má-fé. O grupo é um Panda e basta o nome para se saber que é bom e faz pouco barulho).

[Acaba de parar. Diz que está com falta de óleo. Amanhã os clientes vão para Ibiza e eu fico a trabalhar para a empresa de charter.]

Vou dormir. Já chega.

A verdade é que tive uma tarde regalada: estivemos em Formentera,  eles foram almoçar ao Juan y André e eu fiquei a bordo sozinho. Se isto não é uma versão profana do Céu não sei o que é o céu. 

10.8.19

Hospital

Não saltei o suficiente. Às duas e dez da manhã meti-me  um táxi e vim para o hospital. Não vale a pena falar das diferenças. Basta mencionar que de Gaulle se enganou: África não começa nos Pirinéus.

Já estou anestesiado e cheio de vontade de voltar para casa. Um hospital - por bonito, limpo, moderno, eficaz que seja e este é isso tudo e muito mais - só é acolhedor quando se sofre. Mal a dor desapareça (ou se atenue bastante, como é o caso agora) deixa de o ser. Como se de uma força centrípeta se passasse a uma centrífuga pelo simples efeito da ausência de dor.

Agora espero os resultados das análises. Se tudo correr bem amanhã ao meio-dia recebo os passageiros e não há razão para que não corra tudo bem. A carcaça não é vingativa, pois não?

Não.

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Actualização 0348: hummmm....

Actualização 0439: não é uma, não são duas, são três pedras. A maior é a última, não podia deixar de ser. Todas podem sair pela via natural. Tento dizer ao jovem médico que o melhor remédio é um analgésico poderoso e casa. Não precisa de saber que daqui a pouco mais de sete horas tenho clientes.

O médico já me explicara que é um residente e não pode tomar decisões. Vai perguntar ao compañero.

Quando tinha isto regularmente andava sempre com duas ou três embalagens de Clonix, mas delois deixou de ser preciso, aquilo começou a dar-me cabo do estômago, deixaram de mo vender sem receita médica...  Não sei. Sei que nunca mais o tive e até hoje passei muito bem sem.

Actualização 0525: à frente do hospital, à espera do táxi. A dor voltou, mas a primeira pedra já deve estar no corredor. Merda de noite. Vá lá que o táxi chegou rapidamente.

0539: em casa, na cama. Fim da história. Espero que o hospital me compre o livro. A morada já a têm. 

9.8.19

Dar saltos, carcaça

Os cálculos renais reapareceram. Já os esperava, desde que recomecei a beber água. Hoje no supermercado encontrei água pouco mineralizada, mas fora de casa vou ter de voltar à cerveja. Amanhã começo um charter. Algo me diz que vou passar a noite a dar saltos, para ver se a porra da pedra desce. Foi o que fiz em S. Luis, com uma dor muito pior e funcionou. A de hoje ainda está no limite do suportável. Espero enganar-me. Espero que esta merda passe depressa. Espero que não piore. Espero que um dia ganhe juízo e me deixe de braços de ferro com a carcaça.

Guia de Palma, parte 1

Em Palma há imensos sítios para almoçar piores do que a Bodeguita del Centro. Quase todos, na verdade. O que me levou lá foi o nome, claro: gosto de piscares de olhos inteligentes (enfim, gosto de todos, mas aprecio especialmente os inteligentes). Lá dentro a inteligência (e o bom gosto; nem sempre andam juntos, mas quando andam é um gozo) manifestam-se de novo. Na decoração, na lista, sempre reduzida mas cheia de sentido, na cozinha aberta, à vista da sala. Se um dia tiver um restaurante vai ser assim, com uma diferença: os clientes ter-lhe-ão acesso fácil, como na Atenas dos anos oitenta. E na qualidade da cozinha. A especialidade da casa é o Tártaro, feito à máquina mas excelente de sabor. Hoje uma das entradas era um Arroz Negro simplesmente esmagador.

Não muito longe fica o Ca na Chinchilla, a casa da Chinchilla. A Isabel (de que Chinchila é o diminutivo) percebe de vinhos como ninguém, tem presunto fabuloso e tem o melhor empregado de mesa de Mallora: um senhor chamado Angel que é isso mesmo, um anjo. Ele não anda, voa de mesa para mesa, destas para o bar, tem sempre uma palavra amável, um conselho, uma sugestão a dar com graça e distinção. A casa bem pode ser da Chinchilla, mas é uma das minhas casas aqui.

Escrevo na Tasquita d'Esquina, outra das minhas casas, o meu escritório nocturno. A Sandra conseguiu o prodígio de ter um café português que não é uma tasca portuguesa (já por aqui o escrevi, eu sei). Faz uma francesinha de que não sou grande fã, mas assim que de repente me ocorra só há uma de que o sou, a de um café em Vila Real cujo nome não recordo. Alguém mais experiente na matéria será melhor avaliador do que eu. Venho aqui à noite escrever disparates e beber orujos (e medronho, quando o há), duas coisas que vão bem juntas. Às vezes como umas pataniscas, um prego, um pica-pau. A música é quase sempre boa, o ambiente agradável, a simpatia e a eficiência da Sandra admiráveis.


(Cont.)

  • Café Palma;
  • Antiquari, onde tudo continuou;
  • Il Divino, onde vou recomeçar os jantares literários;
  • Bodega Belver;
  • Quinta Puñeta;
  • Bodega Can Rigo;
  • Chocolateria Can Joan de S'Aigo, a Versailles de Palma (a léguas da nossa);
  • Café Os Maños, no Mercat del Olivar;
  • O stand do Luca, no mesmo mercado;
  • Moltabarra - para beber um copo, só. A comida está intragável;
  • Café Flexas;
  • Bar Rita;
  • A Sifoneria (Bodega de Sta. Clara);
  • Bono Bono, para se comer italiano decente;
  • Vermú Pintxos y Latas, para depois do trabalho;
  • Sete Machos, para as noites com (ou sem, depende de que se fala);
  • Bar Dia;
  • Café Santa Fé, para os domingos de manhã;
  • La Fabrique (ex-Smack), para se falar francês com gente culta, bonita - e comer optimamente;
  • No Es Bonaire 20 pode provar-se vinho, vermute e tortilla e depois comprar-se o que se gostou e levar para casa;
  • Vermuteria Vi-xet;
  • Restaurante Gustar.

8.8.19

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 08-08-2019

Mais de hora e meia de marcha e um trajecto ziguezagueante. Estou peganhento mas não cansado. Isto é Barcelona que se me cola à pele, a cidade é quente mas leve. Transporta-se tanto quanto me transporta. Passei por lugares dos quais me lembrava perfeitamente, por outros de que tinha uma vaga ideia, por muitos que desconhecia totalmente. Percorro-lhe as ruas tanto quanto a memória que delas tenho.

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O Xampanyet estava fechado para férias. Há uma certa nobreza em estabelecimentos do ramo da restauração que fecham para férias em Agosto, numa cidade como esta. Este indicador vale mais do que duzentas recomendações em outros tantos guias. Ao meio-dia, a Bodega Casa Quimet também estava fechada, mas essa pelo menos valeu-nos uma rica descoberta: La Taberna del Cura, na Gran de Graciá 83. Um clássico (de antigo e de classe) com menus a onze euros, serviço impecável, comida mais do que decente, decoração a condizer com o nome.

Não conheço o Xampanyet. Um brasileiro que estava ao nosso lado na Xampaneria falou-me nele porque me ouviu reclamar contra a enchente de gente. Quando voltar a Barcelona vou lá, estará aberto de certeza.

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Voltei à Tasca el Corral para jantar. Não me apetecia apanhar uma desilusão num sítio qualquer, nem procurar sugestões por aqui. Ou então, mais provável, queria simplesmente ir a um sitio em que alguém me reconhecesse, me dissesse boa noite, ¡hola! sem ser por razões comerciais.

Ao balcão estava um casal giro. Ela era alta, gorda, feia e alemã ou mais norte ainda, trinta trinta e poucos. Ele pequeno, fazia metade do volume dela, cigano, cabelos pretos retintos até aos ombros, quarentas quase cinquentas. O que me fascinou foi a expressão dele: nunca vi cara mais "especialista-em-gordas-e-feias" do que esta. Lembrei-me do A. e da história que me contou: foi acampar com um amigo e sacaram duas miúdas. A dele era feia, a do amigo bonita. Resultado: o A. comia todos os dias, o amigo só conseguiu molhar o pincel no último dia. Este cigano deve tê-lo molhado em permanência.

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Volto para Palma de ferry. Uma sugestão aos meus leitores: Trasmediterránea. A Baleària não é para tesos (pelo menos este navio).

Só espero que quando isto largar a maioria desta gente tenha camarotes, que o espaço para dormir no salão é escasso (e tresanda a comida, mas isso passa).

O preço dos camarotes pareceu-me exagerado. Se isto continua assim, é de borla.

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O P. está de novo varado. Aquilo vai avançando, quase imperceptivelmente mas avançando. Já as mudanças na marina são mais do que perceptíveis: parece-me que mudei de planeta. Se o palerma de Puerto d'Andratx soubesse quanto lhe estou grato arrepender-se-ia de me ter posto na rua. Nunca vi tanta incompetência concentrada numa pessoa só. Quando penso nele lembro-me de quando éramos putos e brincávamos com lentes para incendiar bocados de papel: o homem deve ter em cima dele uma lente que concentra os raios de incompetência do sol dos palermas.

7.8.19

Farinha, rolo da massa

A ideia de base é a da minha Mãe a "estender a massa". Vai entre aspas porque não me lembro: estender? Esticar? Outra coisa qualquer? Talvez. Ela fazia a massa desde o início,  desde a água, farinha e (provavelmente) sal. Depois era preciso estendê-la: uma mesa enfarinhada, rolo da massa nas duas mãos e ai massa, coitada de ti: era esticada até mais não poder, ate à transparência. Lá chegada, era dobrada em dois ou em quatro e tudo recomeçava, até à transparência final.

Nunca o fiz. Ocorre-me muitas vezes porque me parece uma analogia fantástica, adequada a montes de situações. Como querer dormir, por exemplo.

Mãe, onde puseste o rolo da massa?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-08-2019

Fui ao bar España, um local que frequento dolorosa - ou melhor, estupidamente - pouco (a estupidez dói, sobretudo a nossa). Pedi uma Palomita. O homem sabia o que é. O bar España é um dos poucos locais populares (no sentido sociológico de popular, não no de um concurso televisivo) que resistiram no centro de Palma. Vou lá de vez em quando, quando preciso de ver mulheres feias, homens estúpidos e um resumo da via quando era vida, não uma montra de nádegas e tetas.

Foi tão bom que prometi voltar amanhã, promessa que não poderei manter porque vou a Barcelona. Mas se tomarmos amanhã por uma metonímia: voltarei muitas vezes. Aprendi montes de coisas. Fiquei a saber que Très Caires significa "três cantos" e se refere à forma triangular da garrafa, por exemplo; que a maneira tradicional de beber Palo é com umas gotas de Gin; que os maiorquinos nos falam, se falarmos com eles (esta é caca de boi. Toda a gente nos fala, se lhes falarmos). Fiquei, sobretudo, a saber que Mallorca se dá. Basta querê-la, muito e muito tempo. E que é imperdoável ter levado tanto tempo, por mais compreensível que seja.

.........
Depois: jantar no Volta Dos. Fica para amanhã.

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Ficou decidido que vou escrever um guia da minha Palma. A vergonha de ser tão guiazinho far-me-á certamente explorar melhor esta cidade.

5.8.19

Os donos do silêncio

É que não se pode resistir a isto.

"...
Y cuando es de noche, siempre,
una tribu de palabras mutiladas
busca asilo en mi garganta,
para que no canten ellos, 
los funestos, los dueños del silencio."

Antinomias

Talvez não seja má ideia dizer agora que essa tão badalada diferença entre a forma e o conteúdo, a superfície e o ser, as aparências e a verdade nunca me apareceu tão evidente como dizes.

Tens a inteligência plasmada nas mamas, no cabelo, na pele, no sorriso e - obviamente - no olhar.

O resto é conversa de encher chouriços. 

"Palabras muy puras"

Voltemos a coisas sérias,  pode ser?

"explicar con palabras de este mundo
que partió de mi un barco llevandome"

"He dado el salto de mí al alba.
He dejado mi cuerpo junto a la luz
y he cantado la tristeza de lo que nace."

"Verde paraíso 

extraña que fui
cuando vecina de lejanas luces
atesoraba palabras muy puras
para crear nuevos silencios"

(Alejandra Pizarnik, claro.)

Escrever, talento

É inútil acariciar um verbo: eles não se deixam levar com festas. Já os adjectivos sim. Os advérbios de modo passam a vida a convidar-se para onde ninguém os quer, como os artigos e algumas preposições. Os substantivos gostam de se fazer desejar, as vírgulas parecem mosquitos ou aqueles criados nos restaurantes que não nos largam.

Escrever tem mais de relações públicas do que de talento.

4.8.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-08-2019

Saí para ver os gatos, passear a cadela, beber Mojitos no Door 13, pensar na falta de juízo que é amar quem o tem, no juízo que é não esperar nada de quem o tem... O juízo é como o clube do Groucho.

Sou o único cliente do bar. O guitarrista toca para mim e não para ele, o que é admirável e me traz à memória aqueles músicos que por vezes ouvia no Tati, ao lado do Gonçalo: a casa estava a abarrotar e tocavam para si próprios. Um deles é hoje um grande  saxofonista, parece. Chama-se Ricardo Toscano. Não o oiço há muito tempo. O outro era um baixo. Não me lembro do nome. Romeu, Romão, algo assim. Tocavam maravilhosamente, mas ouviam-se tocar. Não sei como definir isto, mas sei o que sinto quando escrevo algo rebuscado, algo que tive de procurar muito tempo. (Depois, acabo a procurar ainda mais tempo por qualquer coisa menos trinca-fininho, mas este é um tema de que não percebo nada. Não sei discutir impressões. Fiquemos por aqui.)

Chegaram mais clientes. Mojito vence plural: mojitos. O juízo deixa de ser uma questão, diz boa noite, põe o chapéu e vai-se embora - devido à música e à escrita, não às bebidas (a segunda ainda nem sequer chegou, de resto).

Pouco a pouco o dia recompõe-se: passei-o a fazer limpezas. Domingo é o dia do Senhor e da senhora, mas aqui a senhora sou eu. Limpei e arrumei a despensa e a cozinha a fundo. Sou o mais doméstico dos nómadas.

Ou o mais vagabundo dos domésticos?

Não sei. Não tenho uma opinião definida sobre a maioria das coisas. Para mim, formar uma opinião é como subir uma montanha ou fazer quinze dias de bolina cerrada com ventos de vinte nós ou mais. Por isso é tão difícil fazer-me mudar de ideias (se bem não seja impossivel, claro: não sou homem de recusar um desafio, infelizmente.)

Invejo muito quem consegue ter opiniões no armário, à espera do dia em que devem ser usadas. As minhas estão todas en desordem, parecem um bando de gatos selvagens e esfomeados: é preciso dar-lhes de comer para os acalmar. Depois de muito comer lá se ordenam um pouco, como este guitarrista que agora toca também para os outros clientes, pacificado. Ter só um ouvinte dava-lhe energia.

Não sei. Divago. Digato. Diz, gato. Juízo!

3.8.19

Lixa

Imagina um olhar sólido como o tacto: cada vez que olhas alguém, cada vez que uma mulher te olha seria como se a tocasses, como se ela te tocasse. Pensa, sente, olha. Talvez consigas pôr no olhar a lixa que tens na mente, nas mãos. 

Ontem, sono, amanhã

Em acabando o dia, isto é: quando não há mais dia, quando tudo o que tens pela proa é um bocejo e uma série de lugares fechados, uma cama que sem ti estaria vazia, uma ventoínha indecisa (desligada queres ligá-la, ligada queres pará-la)... Em ficando o dia pela popa começas a pensar no de amanhã. Entre os dois dormes. Mulheres fellinianas de tetas enormes, aconchegantes. É isso que te embala: a carícia quente de ontem, a ainda mais quente de amanhã. Hoje é o sono que as une. 

Jantar improvisado - frango em leite de coco

A receita é antiga, já por aqui deve andar. Mas desta vez tinha uma missão ou duas: romper o ciclo de má cozinha, celebrar o meu regresso a Palma - a caixeira do Mercadona alegrou-se quando me viu na fila, se isto não é pertença não sei o que pertença é. Comecei pr marinar o frango (do campo, deixei de comer frango de cidade) em sumo de limão, alho, sal e louro. Meia hora depois levei aquilo tudo a uma frigideira com azeite no qual tinha frito dois dentes de alho. Já com tudo bem dourado inundei de rum - meio copo bem cheio até metade - e flambeei. Tudo isto na frigideira, claro, enquanto na panela ao lado refogavam dois pimentos daqueles do Mediterrâneo e uma boa dose de gengibre em rodelas. Uma vez tudo juntei tudo, cobri com leite de coco, polvilhei com curcuma, cominhos, pimenta e pimentão fumado. Acrescentei um pouco de cardamoma, uma especiaria vítima de injustiça gastronómica - a haver quotas, sugiro que sejam para a cardamoma, que alegra um mau café e dá gosto a qualquer prato em que se meta, um gosto subtil, fino, chic. Deixei cozer, servi com couscous, acompanhei com vinho branco e Chick Corea (substituído, mal acabei, pelo Ornette que agora oiço, o de Dancing in your head, que só não é o melhor disco de jazz de sempre porque isso não existe: há cerca de dez mil candidatos ao título e todos o merecem).

Agora vou à Sandra, salvo seja. Talvez já tenha medronho, orujo ou Bailey's, tudo coisas que não sobreviveram às minhas sucessivas visitas e talvez tenham renascido, depois destas duas semanas de ausência.

Calor, tempo e pleonasmos

O calor é uma parede contra a qual o tempo esbarra e pára, atordoado. Este fenómeno é sensível em qualquer lugar quente, do Alentejo a Maputo, de Nosi Bé ao Marin ou a S. Luís do Maranhão. Em Palma, o tempo não esbarra com muita força no calor devido ao vento, às inúmeras praças cheias de árvores e de mulheres bonitas, elegantes, à luz, diferente da de Lisboa mas igualmente poderosa. Aqui o tempo e o calor enrodilham-se um no outro, numa espécie de braço-de-ferro amigável que o calor invariavelmente vence.

O tempo pára e eu páro com ele. Dou os primeiros passos numa coisa que tenho de fazer para Mértola, bebo um vermute, penso na roupa que há pouco estendi (aposto que está seca), na carta que quase não escrevi nas já está no seu envelope. Penso em tudo - devagarinho, sinapse a sinapse, quase sinto o salto do pensamento de uma para outra, camaleão a passar de um ramo para o do lado.

O ar é denso, entra-me pelos poros abertos, ansiosos, agradecidos. O tempo hesita, a luz ziguezagueia entre as folhas de árvore agitadas pelo vento e os olhos das duas senhoras da mesa ao lado, pós-balzaquianas recentes e atraentes.

Em mim, tudo isto se transforma numa sesta que, apropriadamente, vai ter de esperar até eu chegar a casa.

"Viver devagar" é um pleonasmo, não é?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-08-2019

Desenrolemos da frente para trás - assumindo, claro, que a frente é agora, é estar sentado no avião de Barcelona para Palma num lugar de saida de emergência pelo qual tive de pagar treze euros, apesar de a companhia dizer que seriam doze e eu não querer pagar nenhum. Apanhei este voo com uma classe digna de um Bond, James. Não precisei sequer de correr. O avião de Madrid para Barcelona estava quarenta minutos atrasado e este vinte. Junte-se a esta feliz conjunção a proximidade das portas: desembarquei do um pela B63 e o seguinte saiu de B55. Quatro portas de diferença (e não oito como se poderia pensar, já que estão organizadas por ímpares de um lado e pares do outro). Tão perto que tive tempo de receber a factura da entrega do carro e mudar a massa toda para o outro banco: este aluguer foi um barrete que enfiei até aos calcanhares. Bom, tinha viseiras para os olhos: sabia que ia ser embarretado, só não sabia era a extensão do desastre, a minúcia com que o alugador de automóveis e o "intermediário" - obviamente conluiados - extraem a massa aos clientes atraídos pela etiqueta low-cost. Pelo menos para se pagarem desta última golpada terão de falar comigo.

Antes: magnífica viagem de Lisboa para Madrid no tal carro da discórdia (refiro-me à minha discórdia existencial, a incurável incompreensão perante a desonestidade, a aldrabice, que de todo não se coaduna com a facilidade com que sou enganado, mesmo quando sei que o vou ser. É vertiginosa.) Os passageiros eram um casal relativamente jovem, ele antropólogo, professor universitário, cineasta, fotógrafo, leitor vasto e atento. Ela bela adormecida: dormiu a viagem toda. Sempre é melhor do que bruxa acordada. A verdade é que foi uma das conversas mais agradáveis dos ultimos tempos. Quase lamentei ter de os deixar em Madrid. Falámos de tudo e mais alguma coisa, da atomização da sociedade à literatura passando pela esterilidade do moralismo no debate de ideias, pela antropomorfização dos animais, trocámos sugestões de livros e saímos da viagem inesperadamente felizes.

Antes: viagem rodoviária por terras portuguesas: fui à Vala Real, onde está o Palácio (ou melhor, as respectivas ruínas) das Obras Novas, a Valada, a Torres Novas. Tudo isto,  salvo o regresso, por estradas secundárias, terciárias, caminhos e por aí fora. Portugal é um bocadinho de África que emigrou para a Europa, qual jangada de pedra. Acreditem.

Antes: dias soberbos com a S. e a H.: praia, Ericeira, almoços de marisco e jantares de peixe, zangas domésticas e conversas familiares. Nada a dizer, com a possível excepção de reconhecer que tenho muita sorte (e já tive mais).

Antes: almoço com a fratria quase completa. Ditto.

De maneira agora bebo um copo de vinho na Volta Dos, depois de ter ido jantar a Santa Catalina, a uma tasca nova que popr lá abriu. A mesa ao lado só falava de Lisboa, de Portugal, de como uma das miúdas era portuguesa na alma (mas só na alma, que no resto era espanhola até à medula).

Ou seja. de volta. A viagem foi longa, chata, linda, bonita... Quando desembarquei pareceu-me que tinha saído daqui há mais de um ano: bom sinal.

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- Como estás?
- Bronzeado, gordo e cansado. Mas já estive mais de cada um deles.

Muitos projectos e uma definição

- Reler os livros que li e precisam de ser relidos;
- Ver os filmes todos que não vi e devia ter visto;
- Rever filmes que merecem ser revistos;
- Conhecer alguns lugares que não conheço;
- Visitar outros que conheço e onde tenho amigos;
- Revisitar os lugares onde já estive e onde quero regressar, mesmo que não tenha amigos;

O futuro não passa de uma oscilação entre o que somos e o que fomos.  Dessa mistura é feito o que seremos.