30.6.14

Telefotos





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Palavras, flechas, pássaros

Palavras sem alvo voam ao acaso; como flechas tontas ou pássaros de asas cortadas.

Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 28 a 30-06-2014

As festas juaninas, que estão para S. Luís como as de Sto. António para Lisboa acabaram, finalmente.

Finalmente. As roupas dos Bois (o nome das bandas que tocam no Bumba-meu-boi, ou aqui) são lindas; mas a música é um horror. É só percussões e voz, mas a quem tenha ouvido as steel band das Caraíbas as músicas aparecem primárias, primitivas, básicas.

Que saudades da steel band  que ouvi em Bequia uma das vezes que lá passei, subtil, fina, encantadora.

........
No Brasil aprendo a relativizar os meus problemas com Portugal. Na verdade, bastar-me-ia gostar um bocadinho menos do país e estaria lá no paraíso.

Bastar-me-á e estarei.

........
O Reviver está vazio. Tudo fechado. No Mercado as poucas tascas abertas têm poucos clientes ou funcionários e todso estão agarrados aos televisores como náufragos a um salva-vidas. O jogo está empatado. Se o Brasil estiver como o Reviver o Brasil está imobilizado. A tensão nas ruas desertas é tal que parece ser necessário ums catana na mão para avançar.

Agora devem estar nos pénaltis, a julgar pelo ritmo das exclamações de alegria.

Não percebo como se pode depositar o orgulho nacional num jogo de futebol, mas respeito; por conseguinte morro de fome. Não tenho coragem para pedir seja a quem for que me dê de comer (apesar de a tia Rosa insistir. Recuso). Seria uma falta de respeito, de empatia, educação, tacto, jeito, sensibilidade. Seria torturar a empregada da senhora só porque estou com fome.

...........
As pessoas são pobres e nem sempre é culpa dos outros; pode discutir-se a dimensão do nem sempre, mas isso fica para depois. Agora interessa-me uma história que se passou ontem e ajuda a perceber porque são muitos brasileiros pobres e porque estou tão farto de países do terceiro mundo.

Uma rapariga que não ganha mil reais por mês pede-me cinquenta para lavar meia dúzia de peças de roupa. Aborreço-me, claro. Normalmente pago entre quatorze (Panamá) e vinte e cinco (Antigua); porquê cinquenta aqui?

A culpa é minha: como estava de saída não sei para onde e não havia ninguém na pousada que me pudesse dizer quanto ia custar e porque porque porque (resumindo: não planeei com antecedência) não combinei o preço antes.

Tento explicar-lhe que cinquenta reais é de mais, coisa em que ela não acredita: Para si não é nada, diz-me. É, Regiane, é. E pergunto-lhe: que prefere você? Ganhar cinquenta reais agora e nunca mais ganhar um centavo meu, ou fazer-me um preço correcto e ganhar cem reais por mês? Regiane prefere os cinquenta agora.

Do ponto de vista dela faz sentido. Mais vale cinquenta na mão agora do que cem depois. E o seu objectivo não é visivelmente lavar roupa ou trabalhar numa Pousada o resto da sua vida.

Eu enfureço-me, mas comigo. Regiane não é burra. Burro fui eu, que não planeei as coisas a tempo. E aqui no Brasil - como em todo o lado - a falta de planeamento paga-se.

Teste de memória

"Time is a fake healer, anyway".

Malcolm Lowry, Under the volcano.

Resultado:


"Time is a fake healer,  anyhow".

Tristeza, tristezas

Há tristezas mais tristes do que outras. Há mesmo tristezas alegres, agradáveis, leves como a luz do sol coada por nuvens altas. Não se sabe bem se está sol ou se ele se foi, se volta ou se as nuvens vão ficar mais espessas e tapá-lo por completo.

Não é desagradável porque de repente fica menos calor e a luz fica um bocadinho menos contrastante, mais cinzenta e triste. Mas pouco.

É uma tristeza que nos ajuda a ver melhor as coisas que nos rodeiam.

E há a outra, feia e negra, pesada, como as noites de lua nova. Avançamos e parece que estamos parados; estamos parados e parece que alguém nos enterrou por engano. Não se vê nada, nem para fora nem para dentro.

É muito chata e cansativa, esta. Gosto mais da outra, tão frequente.

28.6.14

Teste de memória

"Mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te indique a direcção das nascentes"

Eugénio de Andrade

Resposta:

"Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direcção das nascentes."

Eugénio de Andrade, Do Outro Lado, in 'Poesia e Prosa [1940-1980]'

Incêndios, água

- Não ateies incêndios que não possas apagar - disse-lhe ele.
- Apaga-o sozinho; eu fiquei sem água - respondeu-lhe ela, anos mais tarde.

Vontade, medo

Há algum tempo que sinto necessidade de parar um bocadinho. Hoje tive a prova da sinceridade desse sentimento: a ideia aterrorizou-me.

Só onde há vontade há medo.

27.6.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 27-06-2014

São quatro irmãos. Três têm Carlos no nome e três são chauffeurs de táxi. Não são os mesmo três. António Carlos é polícia. Sei isto tudo - e mais uma quantidade inimaginável de coisas, cada um mais desinteressante do que a precedente - por Wellington, que não só não tem Carlos no nome mas também fala sem parar, e é o único dos irmão que o faz. São os três evangelistas - ou serão os quatro? Não me lembro.

Carlos primeiro, como comecei a designá-lo hoje enquanto Wellington falava, é o mais calado deles. Foi por isso que lhe pedi o número de telefone. Um chauffeur de táxi que não fala, é competente e sério, tem um carro em bom estado e está pronto a negociar as tarifas (mas não demasiado; desconfio das pessoas que como eu fazem grandes descontos. Ou são tolos, ou não se valorizam ou são desonestos) é uma dádiva.

Infelizmente não devo ser o único a pensar assim e da vez seguinte quem veio foi Luis Carlos. É menos calado e o carro está em piores condições, mas ainda bastante aceitável. Hoje calhou-me Wellington (eu telefono para Carlos primeiro e ele distribui o trabalho pelos irmãos).

É um inferno. Chama-me  a atenção para qualquer coisa com um toque no braço ou na perna; e qualquer coisa é realmente qualquer coisa: desde a casa que pertencia a um senhor cujo barco se afundou - seguem-se pormenores mendespintianos sobre o número de pessoas e de búfalos que morreram - ao senhor que é polícia velado (polícia à paisana) e quanto é que ele cobra para não prender um traficante (entre trinta e cinquenta mil reais). Isto depois de me precisar que o homem é um matador - mata quem não tem dinheiro e cobra aos outros, deduzo.

Enfim, não deve ser assim tão linear, mas tão pouco deve estar muito longe.

Fiquei com o número de telefone de Wellington, mas vou continuar a telefonar ao primeiro Carlos. Um chauffeur de táxi que não fala prova que não devemos perder toda a esperança, nós que entramos em táxis.

Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 26-06-2014

Mais do que um viajante sou um desenraizado.

Sinto-me bem com isso, confortável. É o que sou e é tudo o que sou. É bom. Significa que me dou bem comigo próprio. Fico aliviado porque sou um gajo difícil e chato,  e saber que há alguém com quem me dou bem - apesar de me conhecer - é reconfortante.

As pessoas que não me conhecem gostam de mim (há excepções,  claro, graças a deus) . Hoje foi a vez da cozinheira da pousada: ouviu falar em ovos estrelados e pensou logo que era eu.

Não estou a brincar. Ou sou o único cliente em dois anos que pede ovos estrelados ou peço-os - pedia-os, até agora tenho-me aguentado com os ovos mexidos que são a norma da casa - de uma forma especial.

A verdade é que a senhora saiu da cozinha mal a empregada com quem falei lá entrou e veio saudar-me, sorriso de uma parede da sala à outra, mão estendida.

Que era bom saber-me de volta, e que infelizmente o senhor Alessandro cortou o bacon mas que quando eu quiser ovos estrelados (ela diz fritos) é só pedir.

Amanhã vou comer ovos estrelados ao pequeno-almoço. Infelizmente sem bacon, mas enfim.  Já vi pior.

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Trabalhar em S. Luis é como andar numa escada rolante no mau sentido. Ou melhor: é como tentar subir uma escada rolante descendente. Só que não serve de nada tentar andar mais depressa do que os degraus. A escada adapta a velocidade à nossa, e quando nós aceleramos ela acelera também. E ou não saímos do mesmo sítio ou saímos a uma velocidade estonteante de tão lenta. Nauseante.  Enfim, amanhã talvez consiga dar um passo em frente. Talvez. Se há uma coisa que aprendi aqui é a não esperar nada que não dependa directa e unicamente de mim.

26.6.14

Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 25-06-2014 (post a posteriori)

Hoje consegui pela primeira vez não passar por ET.  Li não sei onde que Portugal tem de ganhar por cinco golos ao Gana; quando a primeira pessoa com quem falei logo de manhã exprimiu a sua pena por a nossa selecção estar prestes a regressar a casa fiz um ar entendido e repliquei Ora, só precisamos de ganhar por cinco a zero.

Uma das coisas que aprecio no Brasil é que a ironia é entendida e apreciada. A piada teve sucesso e usei-a mais duas ou três vezes durante o dia. Não posso ainda dizer Sou um deles. Mas pelo menos evitei esgares atónitos, sorrisos mais ou menos trocistas e explicações desconchavadas, que me fazem sentir como se estivesse a falar chinês a um gajo que só fala espanhol.

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Ontem conversava com o Sérgio sobre o assoreamento da baía. Faz dó, este lamaçal enorme, absurdo, prejudicial. Explicou-me que o marido da Governadora - uma Sarney, ou seja uma versão pior e ainda mais corrupta dos Soares - tem uma lancha a motor e já falou diversas vezes nas vantagens de dragar aquilo.

A baía começou a assorear há cinquenta anos, quando alguém mandou construir uma barragem no rio Bakanga. As consequências foram catastróficas: ash pessoas que viviam da pesca tiveram de mudar de ofício, a baía começou a assorear a um ritmo alucinante e o Bakanga transformou-se numa espécie de cano de esgoto sem saída.

Um dos organismos que se opõem à dragagem da baía é o IBAMA, o instituto brasileiro cuja função oficial é proteger o meio ambiente. A verdadeira missão, claro, é diferente: consiste em servir de coito a milhares de pequenos déspotas e dar-lhes oportunidade de exercer a sua autoridade sem qualquer espécie de controle e em total impunidade. O IBAMA é um organismo fascistóide, ditatorial, tirânico, cheio de Hitlers em potência.

Mas como sempre a história é complicada: quando começou a falar disso o marido da governadora - que por mera coincidência é filha do homem que mandou construir a barragem - começou a ser acusado de querer encher os bolsos e ao fim de um bocado abandonou a ideia. Ou seja; o homem queria fazer - ou que se fizesse, ele não tem nenhum cargo oficial - uma coisa boa; mas a sua paciência é menor do que a desconfiança dos brasileiros de tudo o que cheire a político, e do que os tiques fascistas de um organismo público, cujo lema é (cá como em todo o lado) não fazer nem deixar fazer.

Um dia li um artigo segundo o qual as pessoas desconfiadas são mais enganadas do que as que confiam nos outros. Esta história é uma maneira estranha de confirmar a validade dessa tese, ou a sua aplicabilidade a outras áreas.

Se bem, no Brasil, a desconfiança de tudo o que cheire a político seja mais do que justificada. Como me dizia ontem um condutor de táxi, S. Luís tem azar com os prefeitos. Sai um ruim para entrar outro pior.

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Hoje fui à ponta da Areia, um dos bairros chiques de S. Luís. Ia a uma reunião do clube de vela do qual Sérgio faz parte. Qundo cheguei não estava ninguém e resolvi ir dar uma volta pelo bairro. Parece outra cidade. Assim percebe-se porque tanta gente gosta do Brasil. A música não está aos berros, as pessoas não estão ou cheias de crack ou a tentar encher-se dele, os bares e restaurantes são bonitos e bem tratados, o ar não cheira a mijo. Podia estar em qualquer cidade americana ou europeia. Limpeza, silêncio, mesas e cadeiras de qualidade.

A gentrificação dos centros das cidades é uma constante em todo o lado. Pergunto-me quanto tempo vai levar em S. Luís. Uma vida ou duas, no mínimo.

O Brasil é um país que constrói aviões e vende armas à França. Na Ponta da Areia e na Lagoa da Jansen é fácil ter isso presente. No Reviver é impossível.

25.6.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 24-06-2014

(É preciso ter muita vontade para escrever estas merdas num tablet manhoso, caracterial e instável de sete polegadas na cama. Ou não ter mais nada que fazer. Infelizmente tenho: devia estar a ler coisas boas em vez de escrever más.

Enfim, foram escritas ao jantar. À mão. Com uma caneta de tinta permanente num bloco notas da Paperblanks, o qual não chega aos calcanhares da Clairefontaine mas tem muito mais pinta. E de qualquer forma ninguém é obrigado a ler.)

Noite de terça-feira. Cheguei na madrugada de sexta. Cinco dias. Tenho finalmente a impressão de que as coisas estão a avançar. "As coisas" é um conjunto díspare de coisas: o barco, a logística, os canais de financiamento, o Fernão Mendes Pinto e outras de que não falo porque não me apetece.

Cada uma destas "coisas" tem sub-coisas. E algumas delas sub-sub-coisas. Todas elas estão a andar. Devagar, claro. É uma máquina silenciosa e lenta e desde Kepler sabemos que nada há de mais bonito do que um mecanismo coordenado, síncrono, oleado. Um universo.

Uma sensação ausente no Panamá ("as a man is so he sees").

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Quando era miúdo gostava - como todos os garotos - de andar nas poças de água. Saltava de uma para a outra; ou escolhia as maiores para maximizar (peço perdão por este barbarismo) a minha permanência, ou a dos meus sapatos, dentro de água.

A intermitente sensação de bem estar - o mais perto que consigo estar da felicidade - que actualmente vivo traz-me à memória as poças de água da minha infância, na pluviosa Quelimane.

Não me queixo. Uma sucessão de poças de água é melhor do que um deserto (e pior do que o mar, claro). Basta ser realista e aproveitar o que há. As coisas são o que são, sejam elas oceanos, charcos nas ruas, desertos ou projectos de construção naval.

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S. Luís está mais perigoso agora do que há dois anos. Hoje falei com um jovem francês que foi assaltado logo a seguir à ponte que da outra vez eu atravessava quase todos os dias.

E a Pizzeria foi assaltada mais duas vezes.

Não há nada a fazer. Não gosto do país, nem da cidade e muito menos do bairro. É uma antipatia fractal: começa no barulho e daí vai para o cheiro, para esta permanente necessidade de festa.

Gosto da simpatia das pessoas - depois do Panamá sinto-me na Lua - da comida de rua (ditto) - e dos rabos das senhoras, que são redondos e cultivados como os arbustos podados dos jardins à francesa. E detesto tantas outras...

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Por mais que faça não consigo não gostar da vida.

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Por uma razão qualquer os ludovicenses gostam de pensar que S. Luis foi fundada por franceses; e não por portugueses. É uma patetice, claro. E patético, se calhar. Não sei. Talvez. Nem sempre a patetice é patética. Oiço a música do S. João - um horror de tambores, mau som e letras que oscilam entre o incompreensível e o indigente e penso que se os franceses soubessem que esta gente se reclama de sua descendência se matariam em massa.

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Às vezes penso nas mulheres que amei; outras, naquelas por quem fui amado.

Muito raramente penso nas que não me quiseram.

Fui feliz com a maioria das mulheres que amei ou me amaram. Mas ainda mais o fui com aquelas que não me quiseram.

"Não posso ser sócio de um clube que me aceita como sócio"; e agradeço àqueles que começam logo por não me aceitarem.

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Nas horas pares detesto o Reviver. Nas ímpares adoro-o.

Talvez não tenha que ver com o bairro.

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Este país respira sexo como eu bebo cachaça aromatizada: todas as alternativas são piores.

24.6.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 23-06-2014

O jogo e o silêncio acabaram mais ou menos ao mesmo tempo. A vitória era esperada, portanto não houve a explosão para a qual me preparara. Ainda bem. O nível habitual de ruído chega largamente.

Os jogos de futebol - pelo menos os importantes - deviam durar dezoito horas, ou qualquer coisa lá perto. Alguém imagina o que este país seria melhor se percebesse o que é o silêncio? Se imaginasse que o silêncio existe?

Fazem-se apostas em todos os bares, da Pizzeria à tasca da Rosinha, no Tamancão. O bar guarda vinte por cento e o resto divide-se por quem ganhou. Mas não sei quais são os critérios para determinar o que é ganhar, ou como se partilha.

Sei que é levado a sério. Os apostadores falam, cogitam, concentram-se, comentam-se. Infelizmente nunca assisti a uma distribuição do prémio.

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As caipirinhas sem açúcar da Pizzeria são quase tão boas como os mojitos da Rana Dourada. Quase porque prefiro o rum à cachaça.

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"Nós somos penta campeões", diz-me a rapariga ou jovem senhora. Devia andar pelos trinta e quase muitos, gordos e pesados (não é uma redundância). "Se ganharmos seremos hexa, é isso?" A pergunta não é completamente inocente, ela ouviu-me falar com o empregado e sabe que sou português. "Sim. Hexacampeões. É isso" respondo. "E entretanto as pessoas vão continuar a viver na miséria" (ando a reler Dale Carnegie).

A miséria é alucinante, o crack devasta o país, os políticos fazem os nossos passar por ícones de competência e seriedade, a cidade está em ruínas e desabaria não fossem o mijo, a merda e os respectivos cheiros - e o que interessa àquela gaja (e a milhões doutras e outros) é saber se vão ser campeões do mundo outra vez. Vai foder, mulher. E tenta manter a boca fechada, que às vezes até os suspiros são irritantes.

Isto dito, admiro no ser humano esta capacidade de se desviar do que realmente importa. Um cão quando tem fome concentra-se em comer; não inventa campeonatos de hóquei em patins nem sonha com cadelas promíscuas e meio despidas a dançar no meio da rua.

E não inventa deuses, santos, anjos, rezas, missas e vidas depois da morte. Preocupa-se com a vida antes dela, é tudo.

É tudo e é pouco, claro.

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Dúvida existencial.

Em França, e depois na Suíça aprendi francês o melhor possível. Num país de língua inglesa tento falar e escrever correctamente inglês. A mesma coisa num país hispanófono.

Por que raio de carga de água me recuso a falar "brasileiro"? Não haverá por aqui traços de uma arrogância colonialista, ou paternalista ou outra?

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Porque será que poucas pessoas gostam de pedantes? Preferem os demagogos, populistas e incultos? Simples e modestos? Ignorantes e chorosos?

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O Reviver (o bairro no qual se encontra a Pousada na qual me encontro) é uma versão rasca do Bairro Alto. O qual é a versão rasca de um bairro lisboeta.

Possivelmente gostarei muito mais de S. Luís se um dia for viver para outro lado.

Estou farto do povo. Parafraseando a minha filha: ele fede, o vosso povo.

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Em breve estes posts passarão de novo para o Diário de Bordos. Está quase. Ou dito de outro modo: já faltou mais.

22.6.14

Paradoxais paradoxos

Escolhi a solidão que me impuseste, recusei a liberdade que me deste.

Diário de Bordos - São Luís, Maranhão, Brasil, 21-06-2014

Eu sei que sou de direita, liberal sem prefixos ou sufixos e não tenho portanto o direito de me indignar com isto. Mas hoje vi uma senhora, velhota, de cócoras na saída do esgoto. Parecia uma versão triste do Happy Days. Só que ali ela não tinha audiência, ninguém ao lado, nem uma sombrinha. Estava meio nua, de cócoras, quase imóvel, à saída de um dos principais esgotos da cidade.

Era horrível de ver, aterrador. Até onde pode chegar a miséria?

Estava agachada, água pela cintura.  Não percebi se se lavava ou se fazia cocó.  Não percebi nada, na verdade. Há coisas que não se percebem. Uma senhora de cócoras à saída de um esgoto infecto é a uma delas.

(Só espero que os esquerdistas que lêem isto me perdoem a incursão pelas terras deles. Foi sem querer).

O Brasil é um país de contrastes. Todos o sabemos.

Quero que os contrastes se fodam.

20.6.14

Diário de Bordos - São Luís, Maranhão, Brasil, 20-06-2014

Finalmente em S. Luís. Foi até ao último minuto: em Brasília quase falhava a ligação para aqui por causa de uma multa que tinha de pagar (estive noventa e três dias no Brasil em vez dos noventa a que tinha direito, da última vez que aqui estive). Quase quatro horas no escritório da polícia federal por causa de vinte e cinco reais. Havia um problema com o código de barras e não se conseguia fazer o pagamento nos ATM. Finalmente alguém se lembrou de o fazer via net. Estou grato a uma senhora chamada Carolina, de onde saiu a massa. E à funcionária de TAM que já tinha anulado a minha reserva e conseguiu repô-la. E ao senhor que ao fim de três horas me foi buscar comida, estava a morrer de fome.

Enfim, é sempre bom vermos países onde a burocracia é mais estúpida do que em Portugal - ajuda-nos a relativizar as coisas.

Tal como as ruas, por exemplo. Cheguei às três da manhã. Chovia que metia nojo. As ruas estavam inundadas - coisa que se compreende facilmente, em S. Luís só chove oito meses por ano, não estão habituados. Estava tudo inundado.

O percurso para o Tamancão, onde fica o estaleiro, é pior. Parece um troço de treino para o Paris - Dakar. Como não gosto muito de ar condicionado ando sempre com as janelas abertas, e volta e meia um cheiro horrível, uma mistura de esgoto e de carne putrefacta entra pelo carro dentro e faz-me pensar que tenho sorte. Não enjoo.

Enfim, cheguei à Pousada e fiquei  dormir no edifício principal porque não me apetecia molhar-me mais do que já estava. Hoje de manhã acordei, fui ao estaleiro e depois ao centro comercial, duas vezes. Correu tudo bem. Tenho um número local.

Fui bem recebido pelas pessoas que se lembravam de mim. É muito infantil, eu sei, mas é verdade que gosto. O senhor que me vende a castanha de caju lamentou a minha ausência, apesar de lhe comprar uma quantidade ridícula, para aquilo que ele vende. Fez-me uma grande festa, uma cara triste quando me falou de Portugal. respondi-lhe que já estamos a sair da crise, mas não era a isso que ele se referia. era ao futebol.

O único problema que Portugal tem neste momento são os quatro a zero que levou já não sei de quem. abençoado país. (E isto não vem só do senhor do caju, que é português, ou ex-português, ou quase, ou assim).

A Lenny da tasca (perdão, restaurante bar) Tia Amélia, no mercado também fez um grande sorriso quando me viu. Continua a usar soutiens dois números abaixo do que devia. Cada vez que me traz uma cerveja penso no que se passaria se as mamas fizessem aquilo que querem fazer e explodissem. Aposto que o mercado todo ficaria coberto de bocadinhos de mama. A Rosa (filha da Tia Amélia e patroa da Lenny) também me fez um bonito sorriso, deu-me as boas vindas, disse-me é bom vê-lo, mas olhe , não tenho molho picante, você ficou tanto tempo sem cá vir.

O mais efusivo de todos foi o Valmir, da pizzeria da pousada. Eu retribuo. Há dois anos tive de passar uma semana a comer aqui (é na pizzeria que escrevo este acrescento) e fiquei fan. Se não fosse o écran à escala um por um e o altifalante mesmo ao lado da minha mesa estaria feliz (lá fora festejam o S. João. A cacofonia continua igual).

Até o moto-táxi me reconheceu, e não era dos que apanhava mais vezes.

........
Hoje vi o barco. tirei um monte de fotografias com o tablet. O desafio é ainda maior do que eu pensava.

É bom estar de volta.

(Cont.)

19.6.14

Mulheres, mundo

O mundo cheio de mulheres bonitas, e eu fora do mundo.

Take Another Plane, ou As alegrias das empresas públicas

Terça-feira o aviao voltou para trás porque a TAP nao qui correr o risco de ter o aparelho imobilizado em Brasília até ao fim do campeonato de futebol. Parece-me bem.

Terça-feira uma funcionária de TAP telefonou-me às onze da noite para me dizer a nova hora do voo, mas tinha-se esquecido do voo de ligaçao. Acontece.

Quarta-feira a senhora da TAP disse-me simpaticamente que afinal o voo era amanha (nao dissse porque, mas obviamente foi devido ao facto incontestavel de os voos internos no Brasil estarem cheios) e fez-me logo um cartao de embarque para o dia seguinte. Foi chato ter ido para o aeroporto às seis da manha, mas pelo menos a senhora foi eficaz e competente. A colega da véspera podia evidentemente ter-me enviado um SMS a avisar-me, mas enfim. Acontece.

Quinta-feira chego ao aeroporto e vou ao check in para mudar o lugar que a senhora me tinha dado na véspera. A mudança foi rápida e eficaz. Passei a segurança e vou para a área de embarque.

O voo deixou de ser às 09;35 e passou para as 15;30.

Três perguntas:
a) A TAP tinha o meu número de telefone desde terça-feira. Nao teria sido possível avisar-me da mudança de hora?

Vamos aceitar que nao sabiam. Ok.

b) A senhora do check in de hoje de manha nao podia ter-me avisado de que o voo estava atrasado e que eu devia voltar às duas e meia, em vez de me deixar entrar para a zona de segurança? Nao sei. Talvez a TAP tenha esperança ou informaçao de que o voo pode partir ais cedo. Duvido, mas nao é impossível.

c) Nao estará na altura de privatizar a TAP e a transformar numa low cost? Sim. Já. Nem a Ryanair teria mostrado tanto desprezo e falta de competência.

18.6.14

Empréstimos, oxímoros

Há dias mais bonitos do que outros. Hoje foi um deles. Consegui comprar uma caneta de tinta permanente e ir buscar a minha mochila verde.

Estou de empréstimo em Lisboa; na verdade, estou sempre de empréstimo em todo o lado.

Por isso é que paisagens familiares me soa sempre como se fosse um oxímoro. E não é; ou pelo menos não devia ser.

Como se

Sempre admirei as feministas e os masculinistas e toda a gente que pensa que a mente é uma coisa diferente, independente do corpo.

Como se o cérebro fosse feito de matéria diferente, tivesse uma origem divina, distinta da do resto do corpo, tão suja.

Retratos implausíveis

A senhora tem as pernas curtas e gordas de mais. Está de óculos escuros no metro. Bem vestida, pelo menos para quem como eu percebe pouco de vestimentas. Fala bem - disso percebo. Sei distinguir o vocabulário de uma peixeira do de uma secretária de administração, que é o que esta deve ser.

Fala muito bem; e no meio da conversa diz Qua ganda tanga. E depois continua a falar muito bem.

Mães, idades

Nunca liguei muito à idade, seja minha, seja dos outros seja das mulheres. O único problema que vejo nas mulheres da minha idade é que podiam todas ser minhas mães. E mãe há só uma.

Diário de Bordos - Lisboa, Portugal, 18-06-2014

Há coisas que nascem tortas, e por mais que se faça ficam inquinadas até ao fim. Esta viagem para São Luís é uma dessas coisas. Ontem, ao fim de quatro horas de voo o avião voltou para trás, por razões técnicas. Eu estava sentado à altura das asas e ouvi realmente um barulho no motor, uma espécie de pancada. Pouco depois fazíamos meia-volta, rumo a Lisboa. Quase oito horas no ar para nada. (Ou seja, já nem estar "sentado no avião, portas fechadas e cabo de energia desligado" chega).

Às onze da noite uma funcionária da TAP ligou-me a avisar que o voo era às oito da manhã, e que eu devia estar no aeroporto às seis.

- E a ligação Brasília - São Luís?
- Ah, desculpe, isso ainda não fiz. Vou fazê-la agora e depois telefono a dizer-lhe.
- Minha senhora, não me telefone, por favor. Faça a reserva e amanhã eu saberei.

Hoje chego ao aeroporto e afinal o voo é para amanhã, dois dias depois da data prevista. Provavelmente por causa da ligação interna. Os voos no Brasil estão cheios, claro, por causa de um campeonato de futebol. Mas a senhora podia ter enviado um SMS a prevenir, não? Não sei. Provavelmente não.

A verdade é que hoje lá passei mais uma hora e meia na loja da TAP a ver se havia alternativas e não há; vou amanhã. O desinteresse e a falta de empatia da senhora que me atendeu ao balcão da loja da TAP no aeroporto mereciam uma medalha, um filme, um monumento. Dois dias de atraso - os dois dias que eu queria ter em Lisboa acabaram por chegar, por portas e vias travessas. Ou um, pelo menos, que o de ontem foi passado no ar.

Reconheçamos: ter de acordar duas vezes às seis da manhã para nada é um preço ligeiro para mais um dia em Lisboa. Mas a verdade é que não consigo deixar de me chatear. Não vou para São Luís de férias, e quanto mais depressa aquele barco estiver pronto melhor.

Já estou em São Luís, na verdade. E Lisboa assim não é Lisboa, é só metade. Lis.

Quase provérbios

Quem vê mamas não vê cabeças.

15.6.14

Diário de Bordos - Lisboa, Portugal, 15-06-2014

Estou de saída outra vez, de novo para São Luís. Só acredito quando estiver sentado no avião, portas fechadas e cabo de energia desligado. Até lá não se sabe.

Algumas coisas mudaram: o meu peso, por exemplo. O coiso no sangue. Outras estão na mesma: os dentes - abençoada água oxigenada -, a vontade de voltar para Lisboa (ou pelo menos Portugal). Bebi rios de vinho e tanto café que não sei como consigo dormir todas as noites, comi toneladas de torradas com manteiga, vi amigas e amigos, família e pessoas que conheço, gente que aprecio e gente que me é indiferente. Comi sardinhas, bacalhau, alheiras, chouriço e todos os tipos de enchidos, lancei um projecto que me é querido e penso noutros para quando regressar. Talvez a pertença seja isso. Espero que sim. Mais de um mês em Lisboa chega para me fazer ver que nunca serei verdadeiramente daqui. Nem de lado nenhum. Começo finalmente a estar em paz com isso. É como viver com um amor não correspondido, ou com uma doença crónica: só nos chateiam quando nos lembramos (desde que a doença crónica não seja um tinnitus, claro).

Portugal permite-me misturar as três coisas de que gosto: o mar, a cultura e a gastronomia. É isso a pertença: poder ser o que somos. Finalmente, ia acrescentar. Mas não seria justo: vem no tempo certo.

Ou virá, ainda não cheguei. Mas pela primeira vez em muito tempo saio de Portugal  a pensar no dia em que regressarei.

14.6.14

Frango para ti

A noite é de sardinhada, mas como há alguns não-apreciadores fiz um frango também. Ainda não está pronto, mas tudo indica que vai ficar comestível.

Comecei refogar em azeite e óleo de palma cebola, chouriço mouro e meia-dúzia de alhos pequenos en chemise. Na frigideira do lado fritei o frango numa mistura semelhante de azeite e óleo de palma, isto é um frango tou aqui tou ali.

Quando o frango estava quase frito flambeei-o em brandy e pu-lo na panela, por sinal de barro, onde o chouriço, a cebola já transparente e alho quase nu o esperavam.

Um pouco de vinho tinto e água para cobrir; um splash de vinagre balsâmico; deixei cozer. Depois juntei grelos, um bom meio molho; e batatas cortadas em metades.

Tudo aquilo coze na paz do senhor, ou da senhora, ou na tua, se é que a encontraste.


Especiarias: paprika, rosmaninho, orégãos, noz moscada (por ordem decrescente de quantidade).

Pálpebras, olhos

Há pessoas que não conseguem dormir com luz. Têm de fechar os estores, correr as cortinas, fechar as portas para adormecer. Pergunto-me se terão pálpebras? Ou têm e são transparentes, as pálpebras dessas pessoas? Não sei. Acho curioso. Os olhos vêm equipados com mecanismos para a luz não entrar, mecanismos bons, testados por centenas de milhares de anos. E trazem pestanas, tão bonitas quando são grandes como as tuas.

As pálpebras são muito boas, muito eficazes. Mas eu detesto-as: não me deixam ver os teus olhos.

13.6.14

A rua, de mãos dadas

Vamos de mão dada pela rua fora. Mas a rua muda. Nós não. A rua. Alarga-se, estreita-se convoluta-se, volta para a frente e para trás como se nós, tu e eu, fôssemos nada.

Talvez sejamos nada, quem sabe? E a rua saiba mais do que nós.

12.6.14

Devagar

Faz devagar tudo o que podes, e depressa o que se deve fazer depressa. São poucas, as coisas que se devem fazer depressa: bater, por exemplo. Amar. Um bife. Tudo o mais se faz devagar. Cozinhar. Foder. Ler. Escrever. Fotografar. Viver. Dormir.

Deixa a carne marinar devagar. A inquietude, o desassossego, a dúvida. Que o tempo passe por ti sem se atardar e sem se apressar.

Vive muito, mas devagar. Como se a vida fosse um vinho bom, que insiste em permanecer no palato o tempo que lhe apraz. Como o corpo que amas no silêncio. Ama devagar. Espera devagar. Espera.

Devagar.

[Mas não deixes a carne queimar, porra.]

11.6.14

Deserto

O sol deixa marcas no deserto.
Indeléveis.
O sol queima a areia do deserto.

O sol é a vida e a morte no deserto.


O deserto atravessa-se a pé, lentamente.
É preciso sair queimado do deserto.
Lentamente, desfeito, em ossos.

Só os ossos resistem ao sol do deserto.

10.6.14

Dogmas, doxas e climas

Os mais velhos de entre nós (ou seja, provavelmente quem tem mais de cinquenta anos) ainda se lembram dos tempos em que o clima era estável e o comunismo ia salvar o mundo. Como os coitados dos comunistas se ficaram pela fome, miséria e assassinatos em massa foi preciso arranjar outra coisa.

Essoutra coisa são as mudanças climáticas. Os bons, agora, podem tentar lixar toda a gente e mostrar que são bons, que estão do lado bom da barricada, são sensíveis, atentos às desgraças do mundo e não querem beneficiar do que este mundo lhes dá sem um pouco de má-consciência, essa irritante e ineficaz forma de retribuição; só têm de invocar duas palavras mágicas: mudanças climáticas.

Convenhamos que é mais simples do que luta de classes, que tinha três palavras. Ou proletários de todo o mundo, uni-vos (oito palavras, das quais uma é um pentassílabo - enfim para os que não acreditam em ditongos crescentes, mas isto é mais um divertimento post-prandial de boa sociedade, não é? - Para quem acha esses ditongos ditongos como os outros é um tetrassílabo, o que de qualquer forma continuava a ser complicado para os bons que esperavam por coisas simples como o homem novo ou criam nas virtudes regeneradoras do Gulag).

Vivam portanto as mudanças climáticas. Chateiam toda a gente, mas - pelo menos até ver - ainda não mataram ninguém.

(Se bem eu preferisse de longe que à morte do comunismo não tivesse sucedido outro dogma. Mas isso seria pedir de mais. On n'avance pas vers la vérité, on change de dogme, c'est tout).

9.6.14

Lombo de porco com tapenade

Começa-se por se fazer uma meia tapenade - sem anchovas e sem alcaparras (por decisão das ditas, que não compareceram à chamada) - e com ela barra-se um lombo de porco numa travessa de ir ao forno; a qual se enche, uma vez nela a carne, de vinho branco (Dão, neste caso). Por cima da tapenade - carreguei um bocadinho no brandy para compensar a falta de anchovas - pus alecrim, cortado em bocados pequeninos.

Deixa-se marinar o que se puder - hoje meia hora, amanhã uma noite, quem sabe? - e leva-se ao forno. Hoje quarenta minutos com o forno a 200º, amanhã uma tarde inteira com ele a 60º. Quem sabe? Quem sabe?

Eu por mim pessoalmente gostei bastante. Mas muito mais importante: os dois pequenos super-críticos gastronómicos que gentilmente me acolhem na sua (deles) casa também.

(O cânone aconselha quem o lê a misturar um ovo na tapenade quando ela vai servir para isto. Eu sempre fui mais de nikons).

Húbris

Dos pecados capitais, o pior é a soberba: é aquele ao qual se sucumbe mais facilmente, e o único que nos traz o inferno em vida.

7.6.14

Under the volcano

"Adiós," she added in Spanish, "I have no house, only a shadow. But whenever you are in need of a shadow, my shadow is yours."

Teias, poços

A teia de amores que foram e serão e poderiam e deveriam ter sido; a de afectos idem; a teia de ternuras, de gestos, carícias. Idem.

O poço sem fim dos olhares que se perderam, das mãos que se falharam, das peles que se desencontraram. Dos olhos que não viram, não te viram.

Razões para amar a vida

Nunca diz não, não tens dores de cabeça, não está com o período, não tem dúvidas sobre nós ou o nosso futuro ou o futuro da nossa relação, não quer ter filhos, não quer não ter filhos, não está cansada, exausta ou de regresso de uma viagem, não se acha velha ou nova ou feia ou bonita, não nos acha insistentes ou longínquos ou indiferentes ou pesados, não acha que estamos a ir demasiado depressa ou demasiado devagar, não tem ciúmes, não quer ler, e - sobretudo - sabe sempre qual a música que devemos ouvir.

(Para a Nike, com um beijo).

6.6.14

Devoto

A minha devoção à água oxigenada cresce a cada dia (seguinte ao que me esqueço dela).

Em aberto

Uma poderosa ferramenta nas relações humanas - todas, sejam elas quais forem - é uma frase simples, composta como todas as frases simples por sujeito, predicado e complemento directo. A sua eficácia não tem comparação com a sua simplicidade. Consegue mesmo ser mais eficaz do que amo-te, por exemplo  (não é difícil, eu sei. Quase todas são).

É um utensílio mágico mas muito pouco utilizado (em todo o lado, não é só em Portugal). Alguém me pode dizer qual é essa frase? Oiço-a tão pouco que se me escapou da memória.


Écoute l'eunuque

Faut faire come l'aveugle qui dit à sa femme voyons voir: parler remplace aisément l'acte. Écoute l'eunuque, si t'en doutes.

Le poids du vide

Vide oui, mais lourd; salaud de vide. Y en a point comme lui, ce vide qui me remplit. Et me noie, m'asfixie, m'arrache les couilles, me les vide.

Parenthèses, guillemets

Plein de parenthèses, partout. Le corps, je veux dire. La tête. Partout. Faudrait bien qu'ils sortent, un jour. Oui, je sais bien, je t'ai dit que tu étais une parenthèse dans ma vie. Je ne l'oublierai jamais, moi non plus. Certains jours je ne suis pas con; mais il sont rares, ces jours-là. Maintenant j'ai la tête remplie de parenthèses, le corps, tu es loin et ces putains de parenthèses ne me lâchent pas.

Rien ne me lâche, d'ailleurs. Les virgules, les points de suspension, les interrogations. Et les guillemets, putains de guillemets. Une vie entre guillemets. Très peu de points d'exclamation, au moins. Enfin, peut-être faudrait-il en avoir davantage, non?

Sais pas. M'en fous, d'ailleurs. Point de je. Je ne suis pas. Parenthèses, guillemets. Et le vide au milieu.

5.6.14

Lisboa

Ganhei peso. Imagino como anda o coiso no sangue.  Lisboa é óptima para o cavalo e péssima para a cavalariça.

Paradoxos, bagagem, tracinhos-te.

Cada conjunto hífen - pronome reflexo anula e invalida o anterior mas não o apaga, nem o elimina.

Diálogos imaginários

- Agora vê lá, não me deixes pendurado no amor como um macaco num ramo.
- Se não fizeres de macaco eu não faço de árvore.

4.6.14

A Lancheira

Fui ver A Lancheira, um esplêndido filme indiano. É um filme epistolar: duas pessoas que não se conhecem apaixonam-se devido aos bilhetes que trocam numa lancheira enviada a uma delas por engano.

Lembrei-me da Casa e do Mundo, um romance epistolar do qual Satyajit Ray fez um filme "normal" (isto é, não epistolar) e cuja história tem alguns pontos de contacto.

A Lancheira é um filme bonito, um encontro de duas solidões numa Bombaim sobrepopulada. O tema preocupa-me há muito tempo: o que amamos em quem amamos? Uma história de amor pode começar com um almoço melhor do que o habitual e acabar com uma fuga para o Butão, mesmo antes de as pessoas se encontarem fisicamente?

A minha resposta é sim, pode. Mas aconselho o filme, para verem se está correcta.

2.6.14

Coisas da vida

Ritmos, simetria e luz.

Lisboa - últimos dias, 2

No céu cirrus, nas ruas jacarandás e no ar calor.

1.6.14

Onde estou

Pertenço a um grupo de pessoas a quem não é indiscrição perguntar "onde estás?"

Vidas, dias

A vida de família é muito boa, se não for todos os dias. A vida no mar também, se tão-pouco (mas menos) for todos os dias; a vida contigo é boa, se não for todos os dias.

Todos as vidas são boas, se não forem todos os dias.