30.6.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-06-2018

Não sou grande fã de Luís Miguel Cintra a dizer poesia - sofre do mal português de parecer que está a conter uma diarreia enquanto declama - mas ontem graças a uma senhora que não conheço (mas sei que é uma senhora) descobri a leitura de um sermão de António Vieira dito por ele.

Há tempos comprei a obra completa dos sermões e li alguns. Pensei imediatamente que a escrita é uma maravilha, mas ouvidos deviam ser melhores. São. Pelo menos a julgar por este (Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, no Youcoiso).

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Hoje depois da sesta fui pedalar por Palma: palmear, creio que lhe chamei um dia. Aterrei num café colombiano que tem Aguila (a dois e cinquenta, preço mais do que aceitável). Os colombianos fazem a melhor cerveja do mundo (com a óbvia excepção da Smithwicks, que não é deste mundo) e a Aguila é a melhor cerveja colombiana. Não muito longe há um restaurante mexicano. Imagino que os urugaios tenham o seu também, aqui perto. Gostava de saber onde: preciso de sair para comer qualquer coisa e prefiro evitá-los.

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Segunda vou para um apartamento durante dois meses. Deixo de andar a saltar de um lado para o outro, sem fazer e desfazer sacos, nem ter de descobrir as redondezas. Faço a mudança de carro (já tenho um lugar de garagem para ele e tudo, um  bocado longe de casa mas por este preço não vale a pena perder muito tempo à procura de outro).

Tudo isto é um treino para o que me espera. Sedentarização sim, mas em doses pequenas de cada vez.

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Isto dito estou com uma falta aguda de mar. Se me apanho no P. a caminho das Canárias nem acredito.

(O M. diz-me que terá talvez necessidade de mim de vez em quando para pilotar as lanchas de um amigo em day charter. Tento não pensar muito nisso para não apanhar uma desilusão).

29.6.18

Palma, milagres

Bom. Afrontemos a realidade: a caminho do Molta Barra peço direcções a uma senhora parada a frente de um café (estava a fumar, nada de interpretações), ela indica tudo direitinho, pergunto-lhe se aqui também se pode comer, diz que sim, "é igual ao Molta Barra" (não é), entro e aquele milagre chamado Palma acontece de novo.

Acontece quando entro num sítio que não conheço, invariavelmente: o milagre de Santa Palma.

[Adenda: chama-se Ca La Seu e é na Calle Corderia 17. Parece que é uma "Cafetería Museo" e "El local con más historia de Mallorca que sigue haciendo historia".]

O fundo de Palma e outras superfícies

É tão fácil uma pessoa apaixonar-se por Palma como é a um homem enamorar-se de uma senhora que nunca viu mas lê todos os dias: não caímos pelo que vemos, mas pelo que pensamos do que vemos.

Veja-se hoje, por exemplo (mas é assim todos os dias):
- Zero buzinadelas, carros a parar para me deixar passar, ou a pedirem desculpa por terem avançado um pouco, e assim por diante;
- Pintxos e um copo de tinto no meu "irmão" galego;
- Tapas e copos de tinto no Bar Rita;
- Complemento ao supra: o vinho está à temperatura correcta nos dois estabelecimentos;
- Vermutes na Sifoneria, que afinal não fechou;
- Palma, Palma, Palma por todos os lados;
- (Não menciono o trabalho, que está na raiz disto tudo e como as raízes deve ficar por trás, ou por baixo, ou seja onde for que não se veja).

Isto é. Clarificando: um gajo sabe que está à superfície de Palma como está à superfície da senhora que lê (sem jogo de palavras); mas sabe igualmente que uma superfície que começa assim não tem fundo, porque vê beleza e o que não vê é belo também, ele sabe.

O milagre da transformação de líquido em vinho

Um dos milagres favoritos dos crentes (para além, claro, do melhor de todos: miúdas giras a aparecer no céu em Fátima a putos intoxicados com sopas de cavalo cansado, coisa que só por si levou ao milagre da multiplicação dos pães) é o da transformação de água em vinho - que vai de mãos dadas com o anterior, passem-me as diacronias -.

Eu faço quotidianamente um milagre muito mais difícil e nunca ninguém me crucificou por isso: transformo dinheiro em vinho. Todos os dias. Repare-se que o dinheiro é líquido mas só no nome, enquanto a água é líquida na forma. Ou seja: muito mais difícil e trabalhoso.

Isto dito, esta história de nunca ninguém me ter crucificado não é totalmente verdade - pelo menos se adoptarmos o nível de discurso do dinheiro líquido-que-não-é-líquido, isto é, o nível metafórico: já muita gente me chateaou a cabeça, porque pensa que mesmo os milagres devem ter um limite.

Eu penso que não. Estar vivo é um milagre quotidiano e devemos ir à missa celebrá-lo, por assim dizer. Se nessa missa outro milagre se produzir - hallelujah! -. Venham mais cinco, de uma assentada.

(Para o Miguel da Fonseca, com um um copo de crianza na mão e o resto dos versos na cabeça).

28.6.18

Um passo

"Daí a pensar que a culpa foi minha ia um passo que eu não dei. Ando à beira do abismo como à dos cumes: não caio nem levanto voo. Chamavam-me Não-Nem: não vou por aí nem por aqui; não quero nem deixo de querer; não sofro nem me alegro. Limito-me a viver, percebes?, como um faquir numa cama de pregos com uma garrafa de rum: nem se pica nem se embebeda."

A noite seguia tardia e o faquir não se calava, coitado. Deixei-o a falar sozinho no British Bar. Quando aquilo fechasse alguém se encarregaria de o pôr na rua. É que da rua até minha casa vai um passo.

Adequações musicais

A um dia como o de hoje só duas músicas se adequam: a medieval e a barroca. Ou nos prosternamos perante o mistério da graça ou celebramos a graça dos mistérios.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-06-2018

A senhoria recomendou-me o Bar Michel, com uma ressalva: "é o melhor daqui e é barato, mas é de gays. O dono é gay e aquilo é o ponto de encontro deles". Estou-me completamente nas tintas, respondo em espanhol: "me da igual". Não da: é do conhecimento comum que "eles" têm bom gosto e "eles" são tão civilizados e "eles" isto e "eles" aquilo, como se viessem de outro planeta.

Não sei se o jovem que me serve é o dono, mas tenho a certeza absoluta de que antes de vir trabalhar hoje esteve a posar para o equivalente maricas da Playboy. E junto mais uma qualidade a "eles": fazem-me sentir em Marrocos ou na Arábia Saudita ou num pais "desses" ("esses" não sendo "eles",  claro. Os muçulmanos não são maricas, Deus nos livre, tratam as mulheres como tratam por questões culturais, etc.) - não há uma única mulher no bar.

Mas lá que me sinto num pais árabe sinto, com duas excepções: a quantidade de mulheres bonitas e meio vestidas (está calor) que passa a três palmos de mim - estou na esplanada, metro e meio acima do passeio - e o vinho excelente e à temperatura correcta que bebo. O Bar Michel ganhou um cliente.

De qualquer forma a Colômbia não ganha todos os dias e o grunho da mesa atrás não vai urrar muitas mais vezes "Viva a Colômbia". E continuará decerto a referir-se ao amigo como "este maricón", forma enternecedora e demonstrativa de que mesmo um apreciador de futebol é capaz de sentimentos.

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Bolas! Uma mulher sozinha, gira, sorridente e jovem a duas mesas! Estou em Palma e não em Rabat (espero que apreciem a subtileza).

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O refit do P. estava parado, encravado, a pedalar na semoule por causa de um fdp que me andava a dar baile há três semanas.

("Fdp" e "dar baile" são expressões manifestamente exageradas, provocadas por uma raiva mal digerida. Ainda em Lisboa pu-lo a andar. Hoje arranjei - tudo indica - um substituto. É preciso ter em mente um velho ditado do futebol (tantas vezes desviado para outras áreas): "Só conta quando está lá dentro". Mas tenho uma sensação tão forte de que este bloqueio vai saltar, tão forte como aposto que em Setembro estarei a caminho das Canárias montado num P. brilhante de novo e fogoso na gratidão).

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Das duas uma: ou a ilha está cheia de Colombianos ou eles moram todos nesta rua.

(A hipótese de eu ser hiper-sensível a manifestações ruidosas, públicas e lamentáveis e  estar a sobre-reagir deve ser liminarmente afastada).

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Se os dias fossem imperiais querê-los-ia como o de hoje: muita espuma bonita por cima de muita e boa cerveja.

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Ver passar o Verão com uma vista plongeant sobre os respectivos decotes, da esplanada do bar gay do quarteirão é uma das provas não-teológicas da existência de Deus.

E do Seu infinito sentido de humor.

26.6.18

Repentinamente

Repentinamente, mais de metade das mulheres que aprecias tem idade para ser tuas filhas; dessas, uma parte significativa podia ser tuas netas.

Insónia

Não se pode fazer seja o que for durante uma insónia porque se se fizer deixa de ser uma insónia. Experimentem - sei lá, ler, por exemplo; escrever; conversar com alguém no Facebook ou no WhatsApp: a insónia não aceita concorrência. À primeira frase lida, escrita, conversada o sono reaparece. É uma armadilha: felizes da vida apagamos a luz e ei-la, serena e sorridente. O sono recua como uma vaga que acaba de rebentar na praia, a insónia pisca-nos o olho e instala-se confortavelmente em nós. Veio para ficar, sózinha.

25.6.18

Uma casa para os livros do senhor Biswas

Passei o dia a calcorrear Lisboa. A maioria dos trajectos foi a pé. Não é tão bom como a bicicleta, mas é melhor do que o automóvel.

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Isto dito, tenho outra vez carta de condução. Junte-se-a à conta bancária e respectivo cartão e não tarda tenho um sitio para os livros.

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Por falar de livros: comprei um de Calasso que é uma seca sem fim. Chama-se Ka. É uma espécie de Núpcias... mas com as mitologias orientais como tema.

Vai ter de esperar, como o Núpcias esperou.

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Comprei também o Marcovaldo. Ando para o reler desde que vi uma encenação em Genebra. Os livros, os vinhos e os amores ganham com a espera.

Requiem, cachopa

Hoje ouvi um termo que já não ouvia há muitos anos: cachopa.

Pensei logo em duas ou três delas, amigas próximas e queridas. Infelizmente não acredito que saibam o que é. O que são, tão bonitas.

24.6.18

Tempo, chuínga

A imagem do tempo como pastilha elástica é velha, gasta, estafada. Deu o que tinha: mastigas as horas e colam-se a ti, fazes balões com elas, rebentam e enchem-te os lábios daquela matéria pegajosa que agora já perdeu o sabor, limita-se a ficar ali por manifesta incapacidade de ir mais longe, mais abaixo, em direcção ao teu tubo digestivo onde - imaginas - se vai colar às paredes de um orgão qualquer e vai ficar por lá agarrada dias, semanas, meses até o teu corpo conseguir finalmente expulsá-la, irreconhecível.

Passa-se porém o mesmo com a angústia, com a ansiedade, com as emoções todas, das mais simples às mais complexas. Não te largam, como um telhado bem construído numa casa devastada por uma catástrofe natural, cheias, ciclone, tromba de água, derrocada, seja o que for: olhas para a casa de longe, solitária no meio da planície, o telhado encarnado inteiro, as paredes brancas, cada cor no seu lugar e pensas que a casa está habitável.

Enganas-te. O tempo entrou naquela casa e nunca mais saiu, como entrou em ti e descobres que a pastilha elástica és tu e não ele.

Transfusões

Mais uma viagem pelo Portugal desconhecido. Desta vez perto de Vila Nova de Milfontes.

Este pais dói. Parece um atleta dos cem metros barreiras em plena saúde sentado numa cadeira de rodas a receber transfusões de sangue.

23.6.18

D. Sebastiana

Um dia, feita D. Sebastião, aparecerás num dia de nevoeiro.

Não foi hoje.

Sede

Deixa-me falar-te da sede. Posso? A que nos deixa seca a boca e sequioso o resto do corpo. Uma sede física, tangível.

Sede de ti.

Os dois

É mais ou menos assim, percebes? Ambos temos um par de braços, um par de olhos, de pernas e mãos. Não me peças que use apenas os meus: os teus são parte integrante do conjunto.

Ou nascemos os dois ou morremos. Os dois.

Simetrias

Não há só uma assimetria. Há muitas. Isto é: os eixos de simetria são mais do que os que pensamos.

Palhinhas

Quem pensa que os mitos morreram está enganado.

Trata-se apenas de escolher os que nos convêm.

"C'est alors qui arrive Nietzsche"

"...mais ici [le langage des romans et de la poésie dans le seconde moitié du XIXème siècle] le langage n'est pas l'agent créatif en soi, il n'est pas lui-même. C'est alors qui arrive Nietzsche et qui commence le langage, qui ne veut (et ne peut) rien d'autre que phosphorizer, luciférer, râvir, étourdir. Il s'auto-célèbre, entraîne tout l'humain à l'intérieur de son organisme fragile, mais aussi puissant, il devient monologique, et même monomaniaque. Un style hybride, tyranique et final..."

(Gottfried Benn, citado por Roberto Calasso in La Littérature et les Dieux.)

Nomadismo, periferias

Viajar não é ir ao "âmago" das coisas. Pelo contrário: um nómada é o homem da periferia, da fronteira, da superfície. O nómada "dá a volta", contorna, resolve porque sabe ver o outro lado, não por aprofundar.

Marinheiro é uma categoria especial do nómada. "A pátria é um acampamento no deserto", diz o provérbio berbere (ou equivalente) mencionado por Cioran. Podia ser "um navio no mar" ou "o porto onde amanhã estarei".

Sedentarizar um nómada, dar-lhe um lugar, um centro, uma profundidade é uma violência. Um poço. Uma tumba.

22.6.18

O que importa

"Ce qui importe, c'est que le monde continuera à être le lieu des épiphanies."

Roberto Calasso, in La Littérature et les Dieux

Retour à l'origine

""Les dieux sont devenus des maladies", écrivit une fois Jung avec une brutalité éclairante. L'informe masse psychique est le lieu où tous les dieux ont finit par se rassembler, comme autant de réfugiés du temps. Mais est-ce là une diminutio? Ne pourrait-elle pas etre au contraire considéré comme un retour à l'origine - ou du moins un repli à l'intérieur de l'enclos d'où, depuis toujours, les dieux s'étaient évadés ?"

O ateísmo é uma doença, um intervalo, uma fuga de prisão condenada a falhar? Ou a norma é a doença e e ateísmo a saúde?

20.6.18

Assimetria

É penoso assistir impotente ao definhar de uma amizade bonita. Nada resiste à assimetria, nem o mais lindo dos sentimentos.

19.6.18

Sem validade

"Estes vales fazem parte da comunicação da marca Nicola. Não têm validade". (Do outro lado do pacote de açúcar lê-se "Vale um fim-de-semana para dois").

Procuro um equivalente para "Vale sem validade". Café sem cafeína? Não. Café sem chávena? O "café vazio" que uma vez pedi num restaurante de Lisboa, porque a pessoa com quem almoçara pediu um café cheio? (A empregada trouxe o café do meu amigo e a mim uma chávena vazia. Quando a felicitei pelo sentido de humor ficou atrapalhada e disse-me "Mas o senhor pediu um café vazio...")

Alguém devia avisar a marca Nicola do absurdo que é um "vale sem validade". Ou pelo menos explicar-lhes o significado da palavra Vale. 

18.6.18

Deus e mar, o mar e Deus

"Es muy raro, ciertamente, que pueda haber capacidad de asombro en una actividad que repetimos a diario o, incluso, varias veces al día". (Pablo d'Ors, in Biografía del Silencio)

O senhor que escreveu isto visivelmente nunca trabalhou no mar. É padre e isso deixa-me perplexo (apesar de confirmar o que penso ou por causa disso): nem aos religiosos é dada esta "capacidade de assombração" quotidiana de que até o mais humilde e simples dos marinheiros goza todos os dias, todo o dia?

16.6.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-06-2018

Fui ao Forn Fondo comprar chocolates. Uma trufa e dois bombons, mais pequenos. A ideia era sentar-me e beber um café acompanhado pelos chocolates. Andei cinquenta metros e tive de voltar atrás para comprar mais: duas trufas e um bombom.

O Zomarist que se desenrasque; o problema é dele, não meu.

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Com os livros foi diferente. Pergunto-me se se pode resistir a um título como "Biografia do Silêncio". Não se pode nem muito menos deve. Ao lado estava um Steiner e acho que é tempo de ler o homem.

Uma pequena livraria desta cidade é pior do que uma grande em Lisboa. Pelo menos para um teso.

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O livro é um ensaio sobre a meditação, escrito por um padre. O homem escreve magnificamente e é convincente: tenho vontade de me sentar a meditar. Espero que passe depressa.

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D. e B. estão em Palma. Foi aqui que os conheci, há cinco ou seis anos. Ela é bastante mais velha do que ele e isso agora vê-se flagrantemente. Mas enfim, continuam juntos e parecem felizes, o que é mais do que eu posso dizer.

De certa forma invejo-o, mas é um tema sobre o qual não quero perorar demasiado. Está cá, é tudo.

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Como é aquele aforismo "Deus te guarde de obteres o que pedes"?

(Aqui entre nós: bem podia dar-me mais e compensar-me menos por tudo o que me sonega).

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Portugal esta tão longe e tão perto... Cada vez mais cada um dos dois: aproxima-se e afasta-se em igual medida. Parece uma ilusão óptica em duas metades. Só não sei qual delas é ilusão e qual a verdadeira.

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Hoje passei à frente do quarto onde há uns anos fiquei uma semana com uma mulher horrível.

A bem dizer não sei o que era pior: se ela se o meu engano a respeito dela. Se tivesse de escolher só um escolheria este último: não merece sequer o título de engano. Foi um engano medíocre, merdoso.

Bastar-me-ia ter a certeza de que não foi medíocre ao ponto de eu não ter aprendido nada para ficar mais aliviado.

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Penso muitas vezes na minha generosidade: há um sistema de vasos comunicantes entre a generosidade e a estupidez e em mim o circuito deve ter ficado bloqueado num dos lados.

Infelizmente o errado, claro.

13.6.18

Pergunta

"Sexo oral" é conversar a noite toda agarrado a ti, não é?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-06-2018

Não sei por onde começar. A série é: por que é que todos gostam de Palma?

- As almôndegas do café Junior. Palma deve ter cerca de oitenta mil cafés, bares, restaurantes, supermercados, quiosques, coisas, lugares a fazer almôndegas. As do café Junior são de longe as melhores que até hoje provei (cerca de vinte, talvez).

Bicicleta: ontem entrei numa loja e como de costume deixei a burra à porta. Como era para uma coisa rápida não a fechei. A senhora pediu-me (pedir é o verbo apropriado) para a pôr dentro da loja. Tinha medo que ma roubassem.

Hoje vou a outra loja. Mesmo cenário, mas a coisa começa a demorar e peço ao jovem empregado se posso pô-la dentro. "Claro", responde, no tom de voz de um farmacêutico a quem tivesse perguntado "têm aspirina?"

12.6.18

Bênção, dúvida

O passado não me faz muita falta. Nunca fez: prefiro o futuro desde que me conheço.

Com uma possível excepção: a ausência de dúvida era uma bênção. 

11.6.18

Por que esperas

Avinha-te, abespinha-te, arruma-te que sem vinho e sem rum só ficam as espinhas. Pensa depressa na noite que sem vagar para divagações devagar te deixa ao sopro desta ligeira brisa e te guia pelos becos a caminho do mar. Decide-te: a vida talvez espere, mas a noite essa não, de certeza.

Vida de noites, que de dias estamos satisfeitos: temos tudo o que é preciso. Um sonho, dois desejos, três visões, quatro objectivos. Um dos quais é quatro quartos: para ti, para mim, para os dias e para as noites. Convém que os objectivos não se misturem entre eles.

Já nós podemos, se formos devagar. Misturamo-nos lentamente: nós, a noite e o tempo, que inclui dias e menos dias. Passar-te por exemplo a mão pelo cabelo levaria décadas, se a noite fosse igualmente lenta. Poderíamos também pedir à vida que faça um desconto, mas não somos de pedir e menos ainda descontos. Quando muito desmais, demais, a mais, muito.

Amai-vos, diz a noite impaciente. Há-as assim: impetuosas e breves. Prefiro-as impetuosas e longas como quando em cima de mim cavalgavas um sonho e o sonho não acabava.

Longa noite foi a nossa: ainda dura. Não se pode apagar a luz que nunca se acendeu, não é? A nossa já estava acesa e acesa continua: por que esperas?

Nina Simone et al.

A única razão válida para um gajo se manter vivo é descobrir aos sessenta anos o que devia ter descoberto aos vinte: há uma vida lá para trás que deve ser vivida.

10.6.18

Diário de Bordos - Peguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-06-2018

Antes de mais nada: a iniciativa "Monnaie pleine" não passou. A Suíça tem o melhor sistema político do mundo.

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Convidei o I. para jantar. Bebemos uma garrafa de rum (Cacique, estranhamente quase bom) e contámos histórias (é marinheiro, como eu).

Não conheço as histórias das outras profissões, mas as de marinheiros têm duas coisas boas: o âmbito geográfico (falamos dos lugares que conhecemos como se falássemos da nossa cidade natal - "lembras-te da loja de electrónica que havia por baixo do bar do Leo?") e a demonstração de que há uma humanidade. Isto é, as histórias que ele me conta com um tripulante de Carriacou vivi-as com alemães (por exemplo e oposição).

A humanidade é só uma, os racistas não percebem nada e há racistas em todos os lados da barricada. Um preto idiota é idiota antes de ser preto, tal como um gordo inteligente é inteligente antes de ser gordo.

Não percebo nada das outras profissões (enfim, percebo pouco) mas uma coisa é segura: nenhuma chega aos calcanhares da de marinheiro. Isto não é uma profissão, é uma mundividência. Somos filósofos agarrados a cabos e cascos, a rumos e ventos. Um marinheiro analfabeto sabe tanto da vida e do mundo como qualquer professor universitário (dos vulgares, quero dizer. Dos outros talvez não). Somos uma espécie de antropólogos cum psicólogos cum sociólogos cum realizadores de cinema sem câmara: as histórias caem-nos já feitas aos pés, porque é a humanidade que as faz.

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É claro que não é a beber meia garrafa de rum numa noite que vou emagrecer, mas se tivesse de optar escolheria o rum.

Isto é: escolho. Quando morrer emagreço num instante, se as bactérias gostarem de mim.

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Dia de Portugal. Já lá estive. É porreiro.

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Revejo Rio Cuanza. "Falta-te alma", diz-me L. Como escrever sobre o nosso passado com "alma"? Que se foda a alma: não fui eu que vivi aquilo, foi outro e não me posso pôr na alma de outrém.

Talvez pudesse, mas seria mentira.

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Se o mundo fosse feito só de marinheiros seria um lugar melhor: só nós conhecemos a fórmula mágica, mescla de mudar e adaptarmo-nos. Há uma mistura subtil, milimétrica como o Painkiller do Soggy Dollar Bar: muda-se o que se pode e adaptamo-nos ao resto.

Não sei como formular isto: não é uma questão de mudar para que tudo fique na mesma. É deixar tudo na mesma para que mude o que for preciso.

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I. ia ao Mad Mongoose em Antigua. Sair com uma miúda que já foi namorada de alguém conhecido é chato, afasta-nos. Partilhar um bar é o contrário.

O Mad Mongoose que conheci já não existe.

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Não quero reviver a minha vida. Vivê-la chega-me.

Evoluções

Vou lá fora fumar um cigarro e vejo estas hordas de turistas gordos,velhos (a maioria com a minha idade ou lá perto, apresso-me a esclarecer), de calças verdes e ténis cor-de-rosa ou ao contrário, tatuagens e piercings nos ligeiramente mais novos e penso nos efeitos devastadores do tempo.

Depois lembro-me de mim mais novo e de devastadores os efeitos passam a benéficos.

Paciência, Portugal

Hoje é dia de Portugal. Entre mim e o patriotismo está a intransponível barreira da falta de paciência.

9.6.18

Frango existencialista (ex-metafísico)

A ver no que isto desagua:

  • Frango do campo (um peito);
  • Cerveja (meio litro);
  • Vermute (um copo);
  • Gengibre (algum);
  • Coentros (meio ramo);
  • Cebola (metade pequena);
  • Alho (dois);
  • Sal e pimenta;
  • Cominhos;
  • Paprika;
  • Tomilho;
  • Sábado chato (uma ou duas horas, provavelmente);
Vai marinar a dita quantidade de horas; depois há-de ir a fritar; irá à fogueira de um bom rum - não sei qual porque ainda não o tenho -; e finalmente vai guisar até ser hora de jantar. Provavelmente juntar-lhe-ei um pouco de chouriço que tenho aqui, mas não sei. Ele que se defina.

(Está a marinar há mais tempo do que o previsto).

7.6.18

As vagas e o sono

O meu sono desliza pela noite como um surfista pelas ondas gigantes da Nazaré.

O fim das coisas

Ainda um gajo mal acabou de lamentar o fim do Technorati e agora é o Networked Blogs que se vai.

Palma la Douce

Na série Porque é que todos gostam de Palma?, desta vez sem fotografias: um gajo ouve uma buzinadela estúpida e apercebe-se de que é a segunda em dois meses.

O mesmo gajo é atacado por fome súbita, vê uma tasca que anuncia "Pintxos y tapas", pensa que um pintxo e um copo de vinho estão mesmo a calhar, senta-se e já vai no terceiro de cada.

Porque o vinho é magnífico (Epica, Ribera del Duero) os pintxos excelentes, a música melhor e o patrão lhe pergunta "português?" "Sim". "Então somos irmãos. Sou galego".

Irma la Douce? Nao. Palma la Douce.

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Fazem-se previsões meteorológicas para corações assarapantados, olhos desfocados, mãos ansiosas, peles solitárias, amores caseiros e ausentes. Fique a saber onde estão as altas e baixas pressões, as cristas e os vales, frentes frias e quentes.

Um pântano de altas pressões pode mudar a sua vida. Informe-se atempadamente, saiba antes da aurora onde o encontrar ou, pelo contrário, como contorná-lo. Desassarapante o seu coração a tempo. Não se deixe apanhar de surpresa por uma crista de altas peles. Encontre rapidamente aquela frente quente e esqueça as costas frias.

Antecipe mãos ciclónicas, superfícies ventrais, sistemas capilares tórridos, amores dispersos, aguaceiros de curta duração, nebulosidade densa, chuvas de beijos, trovoadas desejosas.

Saiba isso tudo e muito mais em MeteoSente, a Meteorologia dos seus sentimentos, sonhos e devaneios. 

6.6.18

Paráfrase

Errei demais para poder continuar a errar.

5.6.18

Círculos

Amo-te é uma expressão circular. É tão bom dizê-la como ouvi-la.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-06-2018

Antigamente respondia "sou português" e a "mulher a dias portuguesa" seguia imediata e inevitavelmente. Hoje, a "beleza de Lisboa", a "simpatia do povo português", a "beleza de Portugal", "já estive em Portugal e quero voltar" substituíram-na.

Só por isto apetece-me urrar, espernear e dar gritos cada vez que vejo alguém queixar-se do "excesso de turismo".

.........
Os alemães de Peguera e Puerto de Andratx são velhos, gordos, feios, vestem-se mal e são um óptimo antídoto para os dias de cio descontrolado. Em Palma as alemãs são jovens, bonitas, bem vestidas, magras e mais vale não vir cá se as hormonas andarem à solta.

Infelizmente são em muito menor número.

........
Sou contra o aborto e a favor da legalização; a favor da eutanásia e penso que não deve ser legalizada. Há uma esfera na qual nem a Lei nem ninguém deve entrar, uma área na qual estamos ao abrigo do Outro, seja esse outro quem for.

........
"Já não tens idade para isso", diz-me C. A expressão não é tão negativa como parece: "isso" é o esforço deseperado que faço para gastar menos dinheiro em alojamento num sítio onde pura e simplesmente não há alojamento.

("La escasez de pisos provoca que locales y garajes de Palma se reconviertan en viviendas", titula o Diário de Mallorca na Primeira).

Faz eco a uma senhora que recentemente me disse "mantenha essa "adolescência" e essas dúvidas."

Nem tudo é mau na adolescência, por aterradora que possa ser. A minha foi.

........
Passo parte da tarde em Palma e apercebo-me de que se pode dizer: "Mallorca é Palma. O resto é paisagem".

Terra plana

É tudo muito complicado e agora é tarde, horas más para complicações, um gajo pensa "como é ter um trabalho em que amanhã sabes como será o teu dia daqui a seis meses?"

Bom, sem dúvida. Na condição, claro está, de daqui a seis meses ainda haver vida, gajo, trabalho e até "amanhã" (entre aspas para não se confundir).

A questão não é saber o que é melhor ou não: trata-se simplesmente de uma questão de solidão.

Mas aí um gajo só tem de lembrar-se que sem solidão a Terra seria plana.

3.6.18

Yuri (3)

Se tivesse alguém a quem escrever, quem seria? O Yuri foi-se embora. Morreu. Caiu de um andaime que tinha sido mal montado por um colega. Do José não tenho sequer a morada. Não sei onde vive, como, com quem. Não quero saber: se quisesse bastar-me-ia ir à faculdade. A maioria dos meus amigos deixou de o ser, coisa que não lhes critico; aos que ficaram posso telefonar, encontrar-me com eles, explicar o que é amar um bloco de granito hiper-sensível. O que foi. Hoje só posso explicar o que é amar um morto.

Não é a mesma coisa do que amar um vivo que não fala?

2.6.18

Yuri (2)

Das frases meândricas do meu marido passo para as pugilísticas de Yuri. Fala como se estivesse a abater uma parede a cada frase, como se o objectivo fosse afastar quem o ouve.

- Prefiro estar calado a mentir - disse-me um dia, quando lhe perguntei (foi a primeira vez):
- Amas-me?

Pelo silêncio descobri o amor, pelo amor a violência do silêncio: Yuri nada contra a corrente numa queda de água.

........
Não sei se me explico bem: sou uma mulher casada; nunca fui infiel ao meu marido, apesar de o nosso casamento já não existir na prática há muitos anos (não me refiro ao sexo, refiro-me ao que há à volta dele, antes, depois ou mesmo na ausência dele). Nada sobra se não uma mulher bonita e só, sem filhos, sem conversa, sem problemas. Tem:
- Uma "vida";
- Um carro;
- Muitos "amigos";
- Uma empregada doméstica.
- Uma biblioteca, três quartos da qual pertencem ao marido;
- A ideia de ser diferente de todas as mulheres na mesma situação.

E agora tem um amante pedreiro, calado, que a fode como se estivesse a deitar paredes abaixo, como se estivesse a salvar-lhe a vida, a saltar para o abismo no lugar dela.

Talvez seja isso a generosidade: "Não saltes comigo. Vou sozinho. Tu ficas aqui e vês-me cair e assim não precisas de cair também". Tudo isto em mau português, quando tem sorte.

........
- Yuri, alguma vez tentaste deixar de trabalhar nas obras?
- Para fazer o quê? Dar aulas de ucraniano em Lisboa?

Os meses passaram, o trabalho de Yuri em minha casa acabou e só nos víamos em casa dele, primeiro aos fins-de-semana e depois aos fins do dia também.

- Vou alugar uma casa e vamos viver juntos, queres?
- Não.
- Yuri...
- ...

Um dia descobri que ele gostava de pintura. Uma folha de um livro que encontrara numa das obras, um quadro de Mantegna. A folha tinha sido rasgada com cuidado, dobrada para caber no bolso e agora estava em sua casa, debaixo de um peso qualquer para se endireitar.

A nossa primeira saída em público foi ao Museu Nacional de Arte Antiga ver o Bosch. Senti-me como se estivesse a rebocar um camião até ao momento em que ele me disse "Vamos sentar-nos no jardim". Nesse instante soube que ia deixar o José e que a minha vida acabara de levar uma volta muito grande. A questão não é saber quando acabou a subida e começou a descida, mas sim: há um ponto de inflexão em tudo na vida. Seria este?

Horizontais, verticais e enganos

Deslizo gentilmente pela música gregoriana das Benedictinas, pelo vinho sem sulfitos do supermercado biológico de Port de Andratx e - uma vez mais - percebo que o tempo é um arco que se morde a sim mesmo: quando esta música foi feita os vinhos não tinham sulfitos [por favor corrijam-me se estiver enganado].

Uma linha no horizonte. Mas ao contrário do que pensamos horizontal, paralela ao horizonte e não vertical: o tempo não é a linha que o Sol persegue. O Sol engana-se e engana-nos.

Sorte, azar

Conheço uma senhora que cantaria esta canção bastante melhor. É uma sorte, imagino, porque se não fosse sorte seria azar.

Economia ciclista

Para além de serem uma fonte de prazer, de exercício e de liberdade as bicicletas são uma excelente escola de economia.

Por exemplo, aquele conceito de que "ser pobre é caríssimo": a burra que comprei aqui - uma adorável Órbita de que a cada dia gosto mais - pouco mais é do que um quadro.

Para a pôr como deve ser vou gastar o dobro do que teria gasto se a comprasse nova, ou pelo menos em bom estado.

Contudo assim posso gastar o dinheiro quando é possível: vem um dia de chuva e oops, entra um travão ou um avanço ou uma corrente. Para a comprar nova teria de gastar a massa toda de uma vez.

As pessoas sensíveis aos custos não deviam ser pobres. Ser rico sai muito mais barato.

Código, lugares, autocarro

A vida em sociedade é feita de códigos, todos o sabemos. Servem para tudo: para facilitar, identificar, comunicar.

Alguns desses códigos são explícitos e transversais; outros - sobretudo os identitários - conhecidos apenas dos grupos que ajudam a definir.

Aqui onde estou há um desses: no autocarro os turistas sentam-se à frente e os locais atrás.

Isto funciona muito bem até aparecerem turistas com a mania de que são locais. Ou - privilégio supremo - que não são turistas; são viajantes, coitados (também os há ignorantes, mas para isso não há remédio).

Vão lá para a frente, porra. Estes lugares são nossos. Aqui atrás fala-se espanhol e os putos chilreiam. Não se fala alemão nem se conversa gravemente de assuntos sérios.