Um jovem e simpática leitora fez-me ver um erro crasso de concepção deste Tratado: comecei pela loiça, quando a montante há - como pude não o ver? - a divisão geral das tarefas domésticas; na qual a lavagem de loiça se inclui, naturalmente.
O problema parece no mínimo espinhoso (não é, como se verá) - daí provavelmente o meu lapso que assim adquire uma aura freudiana, de respeitabilidade. O ponto de partida para a sua resolução deve portanto ser - não é novidade - conceptual: os jovens casais devem começar por ter em conta que a igualdade absoluta não só não existe - nem no casamento, nem no amor, nem na generalidade dos afectos humanos - como pode até, se perseguida cegamente, ser perniciosa. Cito, para exemplo, o casamento que há anos conheci de uma jovem suiça-alemã com um igualmente jovem alemão que acabou em fanicos dada a procura obsessiva, racional, quantificada ao centésimo de igualdade na divisão das tarefas domésticas. Nesta área (e só nesta) o bom-senso é quem deve mandar - e do bom-senso faz parte integrante a aceitação de certas assimetrias (se virmos bem, não há nada mais maravilhosamente assimétrico do que um homem e uma mulher - peço desculpa aos dias que correm, mas não sou muito bom em casais simétricos, se bem não tenha nada contra).
A primeira pergunta a fazer é saber quais as tarefas de que cada um gosta, e quais as que lhe são essenciais (já partilhei, por exemplo - por breves, muito breves meses, verdade seja dita - a vida de uma senhora para quem fazer a cama era imprescindível. Para mim, nessa altura, não era). Aprendemos assim que um não suporta o pó nos livros, outro a roupa do dia nas costas do sofá da sala - e pode estabelecer-se uma lista (mais ou menos informal e flexível) das coisas a evitar ou a fazer absolutamente. Esta lista pode ir-se fazendo, não é necessário estarem os dois, entre o padre e o notário, sentados num degrau das escadas a decidir se pode viver sem aspirador ou com camisas mal passadas (a resposta é "não", em ambos os casos).
Podemos, também, definir as coisas que só podem ser feitas por um dos membros do casal (nesta área nós, homens, temos a vantagem da força: quando é preciso mudar o piano de sítio, quem é que o vai mudar? Já coser um botão ou passar uma camisa a ferro qualquer pessoa pode fazer - se souber, claro. E desde já aconselho todos os jovens de sexo masculino a aprender estas tarefas básicas, tradicionalmente reservadas às senhoras. Não imaginam quão úteis poderão vir a ser). A partir daqui torna-se relativamente fácil passar para o segundo ponto:
O qual é baixamente comparativo. O que é melhor? - Retomando o exemplo acima: Viver sem a senhora, ou fazer a cama todos os dias? Mudar de roupa no quarto ou vê-la ir-se embora? Insistir em ter a loiça lavada no dia do jantar, ou ... (esta pergunta não é boa)?
O terceiro item nesta lista de pontos prévios é quantitativo: de todas as tarefas, quais as que se podem externalizar, contribuindo assim para a economia e para o bem estar de uma família na Ucrânia, ou no Brasil?
Estas etapas concluídas, a divisão das tarefas domésticas torna-se um jogo de crianças (o que ela é, verdade seja dita): as tarefas vitais para que o casal se mantenha durante os previsivelmente 7 ou 8 anos que vai estar junto devem absolutamente ser feitas - ou por uma pessoa externa, ou por aquele dos dois que é mais apto (ou retira mais prazer) da sua execução, ou pelos dois, alternadamente. As outras podem ser objecto de negociações au cas-par-cas. Deve sempre ter-se em conta, como dizia o Marquês de Sade, que de todos os actos humanos se pode retirar prazer (ele exceptuava a acção de se barbear, quotidiana e matinalmente - o que só demonstra que sabia do que falava); e poder: a minha Avó, que já aqui mencionei uma vez a propósito de uma outra confusão que frequentemente envenena a vida dos jovens casais, proibia-me, por exemplo, terminantemente de entrar numa cozinha - com o pretexto, para ela irrefutável e para mim, naquela altura, bastante aprazível, de que "a cozinha não é para os homens".
Claro que a divisão de tarefas domésticas não passa, o mais das vezes, de um repositório de tudo o que não funciona num casal - e muitos preferem limitar as suas discussões a esse tópico e não abordar os outros, mais importantes. É uma opção válida; se bem, para mim, um pouco triste: entre acabar um casamento por causa da loiça ou porque o amor, essa maravilhosa tragédia que de vez em quando se abate sobre nós (e nos abate, mas isso é outra história) não funcionou, ou acabou, ou nos sufoca, quem prefere a primeira?