27.4.11

Reino

O meu reino tem doze metros de comprido, sete de largura, um jardim infinito, azul profundo, e um telhado feito de estrelas quando não há nuvens e de nuvens quando não há estrelas.

O meu reino tem uma rainha, mas não tem rei; tem tempo, mas não tem passado, nem futuro; tem beleza, mas não fealdade; tem alegrias, tristezas, chatices mas só tem felicidade: a infelicidade é-lhe tão estranha como um parafuso no corpo de uma ave, ou a palavra errada no silêncio certo.

25.4.11

Livro de bordos - 22 (notas)

Hoje passei de novo pelos Deux Pitons, não de madrugada mas de manhã muito cedo. O sol já não estava atrás deles: ia ligeiramente acima.  A camada de nuvens estava lá e o Grand Piton destacava-se, massa escura rodeada pelos raios de sol que conseguiram trespassar as nuvens, e pareciam escorregar por aquelas íngremes encostas como uma avalanche de luz, imóvel.

Perspectiva

É sempre bom ver as coisas com uma certa perspectiva. Não alinhar em rebanhos (ou em manadas, infelizmente tão frequentes). Este post devia ser lido nas celebrações do 25 de Abril, em todo o lado.

24.4.11

Estereótipos e discriminação de género

Há um estereótipo frequente: o da mulher mal-fodida. Uma senhora tem o azar de ser seca, áspera, pouco feminina e ooops, lá a coitada leva com o "mal-fodida" em cima (ou mais frequentemente atrás). Como todos os estereótipos tem a sua razão de ser, se bem por vezes seja abusado, usado sem razão.

Determinados comportamentos masculinos deviam ter sido estereotipados, também, e não foram, não sei porquê. Por exemplo, o gajo mal-esmurrado. Um gajo que não tenha levado um sopapo ou dois na altura certa passa bastante tempo, posteriormente, a chatear as pessoas para tentar compensar essa lacuna; o objectivo final, se bem por vezes não seja claro, é levar um bom murro, ou mesmo dois, que o indemnizem daquela falha original, e (mas tantas vezes não só) parental.

Infelizmente a prática do murro quase desapareceu, ou está bastante vilipendiada. Porque gajos mal-esmurrados não faltam.

Figs

Figos

D. H. Lawrence

A maneira correcta de comer um figo à mesa
É parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,
E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida,
desabrochada em quatro espessas pétalas.

Depois põe-se de lado a casca
Que é como um cálice quadrissépalo,
E colhe-se a flor com os lábios.

Mas a maneira vulgar
É pôr a boca na fenda, e de um sorvo só aspirar toda a carne.

Cada fruta tem o seu segredo.

O figo é uma fruta muito secreta.
Quando se vê como desponta direito, sente-se logo que é simbólico:
Parece masculino.
Mas quando se conhece melhor, pensa-se como os romanos que é
uma fruta feminina.

Os italianos apelidam de figo os órgãos sexuais de fêmea:
A fenda, o yoni, magnífica via húmida que conduz ao centro.
Enredada,
Inflectida,
Florescendo toda para dentro com suas fibras matriciais;
Com um orifício apenas.

O figo, a ferradura, a flor da abóbora.
Símbolos.
Era uma flor que brotava para dentro, para a matriz;
Agora é uma fruta, a matriz madura.

Foi sempre um segredo.
E assim deveria ser,
A fêmea deveria manter-se para sempre
secreta.

Nunca foi evidente, expandida num galho
Como outras flores, numa revelação de pétalas;
Rosa-prateado das flores do pessegueiro, verde vidraria veneziana
das flores da nespereira e da sorveira,
Taças de vinho pouco profundas em curtos caules túmidos,
Clara promessa do paraíso:
Ao espinheiro florido! À Revelação!
A corajosa, a aventurosa rosácea.

Dobrado sobre si mesmo, indizível segredo,
A seiva leitosa que coalha o leite quando se faz a ricotta, *
Seiva tão estranhamente impregnando os dedos que afugenta as
próprias cabras;
Dobrado sobre si mesmo, velado como uma mulher muçulmana,
A nudez oculta, a floração para sempre invisível,
Apenas uma estreita via de acesso, cortinas corridas diante da luz;
Figo, fruta do mistério feminino, escondida e íntima,
Fruta do Mediterrâneo com tua nudez coberta,
Onde tudo se passa no invisível, floração e fecundação, e maturação
Na intimidade mais profunda, que nenhuns olhos conseguem
devassar
Antes que tudo acabe, e demasiado madura te abras entregando
a alma.

Até que a gota da matura exsude,
E o ano chegue ao fim.

O figo guardou muito tempo o seu segredo.
Então abre-se e vê-se o escarlate através da fenda.
E o figo está completo, fechou-se o ano.

Assim morre o figo, revelando o carmesim através da fenda púrpura
Como uma ferida, a exposição do segredo à luz do dia.
Como uma prostituta, a fruta aberta mostra o segredo.

Assim também morrem as mulheres.

Demasiado maduro, esgotou-se o ano,
O ano das nossas mulheres.
Demasiado maduro, esgotou-se o ano das nossas mulheres.
Foi desvendado o segredo.
E em breve tudo estará podre.
Demasiado maduro, esgotou-se o ano das nossas mulheres.

Quando no seu espírito Eva soube que estava nua
Coseu folhas de figueira para si e para o homem.
Sempre estivera nua,
Mas nunca se importara com isso antes da maçã da ciência.

Soube-o no seu espírito, e coseu folhas de figueira.
E desde então as mulheres não pararam de coser.
Agora bordam não para esconder, mas para adornar o figo aberto.
Têm agora mais que nunca a sua nudez no espírito,
E não hão-de nunca deixar que o esqueçamos.

Agora, o segredo
Tornou-se uma afirmação através dos lábios húmidos e escarlates
Que riem perante a indignação do Senhor.

Pois quê, bom Deus! gritam as mulheres.
Muito tempo guardámos o nosso segredo.
Somos um figo maduro.
Deixa-nos abrir em afirmação.

Elas esquecem que os figos maduros não se ocultam.
Os figos maduros não se ocultam.

Figos branco-mel do Norte, negros figos de entranhas escarlates do Sul.
Os figos maduros não se ocultam, não se ocultam sob nenhum clima.
Que fazer então quando todas as mulheres do mundo se abrirem na
sua afirmação?
Quando os figos abertos se não ocultarem.

(in As Magias, versões de Herberto Helder, Assírio e Alvim, Lisboa, 1988, pp.42-45)

* Requeijão.

Regresso

"Tenho pena de tudo o que morri, do tempo em que estive morta, mas é bom renascer. Não prometo nada, mas tentarei tudo - tudo, entenda-se, o que quiser."

É bom ter o Terapia Metatísica de regresso.

Retratos potenciais

Era um poço de defeitos e tinha uma qualidade, uma só: convivia bem com eles todos.

Contabilidade, chungaria

Para diminuir o défice o Governo usou um truque ao qual já recorri, na minha micro-empresa: fazer passar por investimento aquilo que na verdade é um custo de exploração.

Isto perturba-me um bocadinho, porque eu acho que o Governo não se deve pôr ao mesmo nível do que as micro-empresas. Isto é: um gajo olha para aquela malta na televisão, nos jornais e às vezes na rua, todos eles fatos gravatas e carros topo de gama e aceita mal que recorram aos truques de um gajo que anda de bicicleta, não sabe o que é uma gravata há anos e para sobreviver teve de emigrar.

Isto é: um gajo aceita ser chunga, mas não aceita ser governado por chungas. Não sei porquê.

Livro de bordos - 21

Posso de novo dizer a minha segunda frase favorita em portugês (a primeira inclui um nome próprio e é reservada): "amanhã embarco".

Vou de novo ver o nascer do sol nos Deux Pitons, beber um copo no Captain Mack's em Bequia, comer lagosta nas Tobago Cays, conversar em Clifton com os rastas do Greenlight.

Há coisas de que não me canso; e mesmo se partilhadas seriam melhores, assim como estão são boas.

23.4.11

Fidelização

Hoje recebi um presente do restaurante A La Maison, situado, como alguns dos leitores mais resistentes (e generosos e tolerantes) sabem no Marché Couvert do Marin. Foi uma t-shirt amarelo-canário (verdade seja dita que me deram a escolher entre esta e uma bordeaux. Fui eu que escolhi a amarela).

O presente comoveu-me muito (sou um homem dado a comoções) e trouxe-me à memória uma outra t-shirt, há muitos muitos anos.

Foi a bordo de um veleiro chamado "OPTIMIST", um plano Carter em aço que é um dos marcos da arquitectura naval. O João P. chega  e anuncia, orgulhoso "o John Bull ofereceu-me uma t-shirt", e mostra-a. De dentro ouve-se a voz do RR: "é, eles dão uma t-shirt a cada 3'000 whiskies que um gajo consome".

Redifusão

"Refúgios

Talvez devido às nossas origens animais, temos tendência a ver um refúgio como um lugar físico, uma paisagem, uma casa, uma gruta. Não é necessariamente assim: podemos por exemplo refugiar-nos na música (particularmente na de uma cantora de jazz chamada Jeanne Lee, ou na música medieval, e mística, de Hildegarde von Bingen, ou na 5ª sinfonia de Mahler; ou em tantas outras). Podemos também refugiar-nos no álcool, especialmente no vinho ou no whisky, numa tentativa camusiana - isto é, inútil mas necessária - de afogar os demónios; podemos refugiar-nos nos livros, ou num corpo feminino (desde que esse corpo tenha uma alma, porque um corpo sem alma não é um refúgio, é um poço, é como cair a um poço). Muitos de nós refugiam-se na solidão: não é um bom refúgio, para mim. É o lugar da memória, da abjecção (“Solo una cosa no hay: es el olvido./ Diós, que crió el metal, crió la escória / y cifra, en su profética memória / las lunas que seran, y las que han sido”, dizia esse outro gande refúgio argentino).

A depressão é um refúgio, também; o pior e o melhor deles: é o mais doloroso, o mais cruel, o mais indescritivelmente maldoso, e o mais eficaz, porque nos isola de metade do mundo, do prazer, da felicidade, do bem-estar. E só nos deixa ver a dor, a miséria, a escuridão. A depressão é como ter que andar com uma fractura exposta que não se vê, não se vêem as feridas dilaceradas, não se vêem as carnes rasgadas, não se vê o sangue, não se pode cortar o mal pela raiz sem cortar o mal tout court, ou a raiz. A amizade tão-pouco é um bom refúgio: não depende só de nós, e num bom refúgio devemos ser autónomos, por definição, sozinhos.

(Alguém dizia que a liberdade é a possibilidade de cada um escolher as suas própias prisões; um refúgio devia ser a versão optimista de uma prisão - como se houvesse versões optimistas do que quer que fosse...)

Mas enfim, devo reconhecer que tenho um refúgio secreto em Portugal, e que esse refúgio é um lugar físico: é o mar; em especial aquele pedaço de mar que vai do Cabo da Roca ao Cabo Raso, do qual nunca me canso, no qual nunca me canso. Gosto do contraste entre as linhas verticais do Cabo (que não são bem verticais, são oblíquas e um pouco grosseiras, como se estivesse a chover rocha) e a curva graciosa e horizontal da praia. Gosto do Guincho a pé, a cavalo ou de bicicleta, de carro ou de avião. Gosto de passar o Raso quando venho a navegar do norte porque é quando se começa a cheirar a terra, e a serra de Sintra tem um cheiro bonito, a pinhais e a maquis – um pouco como o da Córsega, mas mais bonito, porque esta é a minha terra, e o cheiro vem carregado de passado; o da Córsega só tem presente. Gosto de estar no mar a olhar para a terra e na terra a olhar para o mar. Gosto do Guincho nos dias de vento, que são muitos, e nos dias sem vento, que são mágicos. Gosto do Guincho aos domingos, nos dias de procissão automóvel, e às segundas-feiras à noite, quando não há ninguém para ver o facho luminoso do farol apontar para a América, para o mundo. E isto apesar de não gostar de praia. Mas o Guincho, e aquela zona da qual ele é a alma, se não o centro, não é só uma praia: e ainda bem, porque como praia deixa um pouco a desejar, não é?, com aquelas correntes, a água glacial, as rochas, as ondas desencontradas, o vento.

Gosto daquele bocadinho de mar porque nele me refugio desde a infância, e os refúgios da infância nunca mais nos abandonam, sejam eles uma paisagem ou uma cabana nas árvores. Gosto daquele bocadinho de mar: e é nele que gostaria de me refugiar, um dia. Para sempre."

(Um post assíncrono para esta fotografia.)

Redifusão

Um texto de 2005 que sinto uma furiosa vontade de aqui repor e (é estranho) não precisa de actualização (se bem necessitasse de uma ediçãozita, ou duas):

"A receita é simples: põem-se num caldeirão meia dúzia de estrelas, uma desenfreada capacidade de sonhar, algumas cervejas, uma garrafa de vinho tinto Haut Marbuzet (1996 de preferência, se faz favor, obrigado), uma furiosa vontade de trabalhar e outra de amar ou ser amado, algumas mulheres bonitas (e outras feias), a ideia básica e irrefutável que amanhã será melhor do que hoje e pior do que depois de amanhã; cobre-se com água do mar. Deixa-se apurar durante uma boa parte do tempo. No momento de servir chamam-se bancos, burocratas, administradores diversos e os chatos, todos. A coisa esturrica. Antes que queime completamente avisam-se os amigos, abre-se uma garrafa de champagne, faz-se um filho ou dois e serve-se no Lago Tanganika, em Cape Town, num bistrot parisiense, num pub londrino, em plena Gulf Stream, numa paisagem gelada do Extremo Oriente russo, num dia de calma podre no Oceano Atlântico, numa tasca de Lisboa, na praia do Guincho, na serra de Sintra, num daqueles sítios do Zaire nos quais somos obrigados a reconhecer a profunda e fundamental incoerência de Deus, nos teus olhos, no Canal de Panamá, ao largo de Istambul, em Al Iskandiriah, numa estrada da Patagónia, nas Tobago Cays.

Deixa-se arrefecer lentamente - se necessário, soprar com os alíseos, com a nortada, com o meltem, com um sudoeste na Gasconha, com a tramontana, com as tuas mãos nas minhas costas, com um passeio ao longo do Rift, com um whisky ao pôr do sol, com o choro de uma criança que nasce ou o riso de outra que cresce, com uma evacuação de urgência debaixo de fogo, com uma festa à vida num planalto do Burundi, com uma cena de pancadaria num porto do Mar Negro, com os cânticos de Hildegarde von Bingen, a 2ª sinfonia de Mahler, o trompete de Miles Davis, os madrigais de Gesualdo, com os poemas de Pedro Tamen ou um romance do Thomas Pynchon, uma lagosta grelhada numa praia das Grenadines.

Nunca chega, por mais que se faça."

Neo-sebastianismo

Estava nevoeiro, quando os homens do FMI desembarcaram? E por onde chegaram eles - pela praia?

Pró-corrupção

A principal fonte de corrupção é, na minha opinião, a legislação opaca, confusa, incompetente e (ou; acho mais correcto) irresponsável que sai do nosso legislador.

Como amanhã não será decerto a véspera do dia em que essa utilíssima prática vai terminar, acho que em vez de reclamarmos contra a corrupção a devíamos encorajar.

Isto é: a cada projecto desses que cheiram a corrupção a milhas, à vista desarmada (nunca chega aos olhos da polícia) os cidadãos do local ou área de actividade onde ele ameaça deviam juntar-se e oferecer ao respectivo autarca (ou responsável governamental, ou inspector-geral, ou o que quer que seja) uma soma igual, ou melhor ainda, ligeiramente superior, para que o projecto não se faça.

Claro que isto tem riscos - alguém se lembra da Oeiras de há trinta anos? Alguém lá quereria viver? Penso que não; se há uma pessoa que demonstre que corrupção e incompetência são coisas diferentes essa pessoa é Isaltino de Morais.

Mas também é verdade que sendo diferentes andam a maioria das vezes juntas. E por isso um movimento de cidadãos pró-corrupção me parece a melhor solução, não para acabar com ela mas para minorar os seus inconvenientes.

Já imaginaram: um país em que autarcas e responsáveis administrativos se deixam corromper não para fazer, mas para não fazer?

22.4.11

Amor, engano

Será que o amor se engana? Penso que não. O problema é que tendemos a chamar amor ao que ainda não é. Por isso pensamos que nos enganámos, e tal. Essa babugem de amor, chamemos-lhe assim engana-se. O amor não (ou raramente).

(Isto traz imediatamente ao espírito as perguntas "e porque não a penugem, em vez de babugem? E já agora, quando é que a penugem se transforma em penas a sério?) Mas isso são perguntas de céptico, coisa que não sou de todo.

Amor, igualdade

- Um amor de iguais entre pessoas tão diferentes? Não acredito.

- Conheces coisas mais diferentes do que um homem e uma mulher?

Distingue-se um crente de um descrente porque este diz "sesta" e aquele "santa sesta".

Citação

"The pessimist complains about the wind; the optimist expects it to change; the realist adjusts the sails. - William Arthur Ward"

Livro de bordos - 20

Está calor em Paris. Excepcionalmente quente (a excepção é a época do ano, não o nível de temperatura). As esplanadas estão cheias, as parisienses saem aos magotes e os conterrâneos masculinos seguem-nas, claro. Fui jantar ao Chez Janou, no Marais, um dos meus favoritos daqui e de toda a parte. Come-se bem, a decoração é gira, francesa, o serviço é rápido e impecável, profissional até à medula, apesar do ar descontraído dos jovens empregados. São de certeza estudantes ou aspirantes a artista, mas são bons empregados de mesa.

Uma vez estava ali a almoçar; tinha um avião ao fim da tarde para Lisboa. Pensei que devia prolongar a refeição, dar-lhe continuidade em Lisboa, e telefonei para o Café Malacca, que é um dos restaurantes mais parisienses de Lisboa. E foi face ao Tejo (ainda era no Clube Naval) que jantei, uma linha directa Marais - Tejo, Place des Vosges - Cais do Sodré.

À espera do embarque para Fort-de-France.

O meu saco perdeu um quilo e meio, apesar de ter ganho duas mudas de roupa.

II
Chego à Martinica com sentimentos mixtos, confusos, entremelados, indefiníveis. A leste uma nuvem ameaça chuva e dentro de mim chove também, intermitentemente. Há duas maneiras de ir para o Marin: um táxi privado, e uma mistura de boleia e táxi co. Ou seja, só há uma maneira de ir para o Marin.

A primeira boleia é rápida, e a nuvem resolveu ir chover para outro lado. O carro deixa-me a meio caminho. Logo a seguir aparece um táxi co. Uma hora e meia depois de ter desembarcado do avião estou no Marin, um bocadinho menos confuso - não sei se por causa do mar, se por causa do cansaço. Não consigo estar cansado e confuso ao mesmo tempo, é uma limitação trágica. Acontece o mesmo com a fome, aliás.

Vou dar uma volta pelos pontões, a tentar resolver a díade mágica - trabalho e alojamento. Nem um nem outro - é Páscoa, e as pessoas que conheço não estão cá. Acabo no "meu" apartamento, o das janelas que dão para o vento. Fui lá metido à força, quase: mal o senhorio me viu disse-me, "espera, vou buscar as chaves"; e logo a seguir "estão aqui. Falamos depois". Foi tudo.

E hoje arranjei um embarque. É Switch? É. Mas é melhor do que nada. Embarco no domingo.

Às vezes lembro-me de quando a minha vida era complicada. Foi há muito tempo, num país estrangeiro.

21.4.11

Estatísticas, matemática e ADN

O Sud-Expresso pára em 14 estações em Portugal, 12 em Espanha e 8 em França (incluindo as estações de partida e chegada). O DNA persegue-nos, a nós e às coisas.

(Se fosse à Alemanha já não pararia em estação alguma).

Ouvido no carro

"Tudo muda. Até a surda muda".

Política e palhaços

Parece-me perfeitamente plausível - e não o digo por causa das sondagens - que Sócrates venha a ser reeleito. O homem é mau; mas é, forçoso é reconhecer, um aldrabão excelentíssimo. Pedro Passos Coelho parece um menino de coro a ser gozado por uma puta velha. Não há nada a fazer, infelizmente (excepto, claro, emigrar e esperar que um senhor do Porto se digne descer a Lisboa).

O PSD devia convencer-se, de uma vez por todas, de que é um partido de governo, e não um circo; e de que os palhaços são óptimos - mas não a fazer política.

Jornalismo

"A Salamanca siempre llega la primavera con dos meses de retraso. El pelo de invierno de los toros lo delata y la piedra vetusta de la ciudad desprende un frio de siglos.

...

Habla como con un eco de catedral en silencio, como si su voz reververase en las bóvedas de su pasado.
"

De um artigo do El Mundo de 18 de Abril sobre um toureiro. Não consigo lembrar-me de um só jornalista português capaz de começar uma entrevista com frases como estas.

Estudos e outras coisas

Segundo um estudo que partilhei ontem no Facebook, e li atentamente, desfazer camas é bom para a saúde. Até aqui tudo bem. A dificuldade começa em cama: o que é ou não é uma cama é objecto de debate entre várias comunidades de cientistas, que se dedicam a estudar as coisas mais espantosas.

Por exemplo, a redondez da terra (há também quem lhe estude a esfericidade), ou o imperfeito movimento dos astros.

Eu sei as respostas, mesmo sem ter ido à escola: uma cama só é cama se tu lá estiveres; se não estiveres, deixa de ser cama e passa a ser outra coisa qualquer: plataforma para dormir, por exemplo; ou plataforma de entendimento, às vezes. A redondez da terra é perfeita, mesmo sendo imperfeita, porque a terra é perfeita, mesmo sendo imperfeita; e os astros... que se lixem os astros. Amar-te é outra coisa, sideral e siderante.

20.4.11

Os dias do dia

Da manhã gosto de amar-te, do cheiro do café, da manteiga salgada da Bretanha a derreter-se em cascatas para a toalha. Gosto do ar fresco, quase líquido, que saiu da noite e é estimulante, picante.

Da tarde gosto de amar-te, da luz, das paisagens que se escondem debaixo de uma chuva tímida, tão tímida que não chove, quase.

À noite gosto de pôr uma das minhas mãos, a que tem sorte, sobre um dos teus seios, depois de amar-te, e de esperar acordado que tu acordes. À espera de que volte a ser manhã.

A ética e a força

A ética só interessa se for a escolha da força, e  não o refúgio da fraqueza.

Definição

Cavalheiro é o homem que fecha a porta de todos os quartos por onde passou. Mesmo - sobretudo - aqueles dos quais ficou à porta.

Livro de bordos - 19

A viagem até começou bem: gosto de iniciar uma viagem da mesma forma que inicio todos os dias o trajecto quotidiano, perdoem-me a redundância, sabendo que ele vai acabar do outro lado do mundo; os percursos que conhecemos de gingeira ganham outra cara, outra vida. Como se a realidade resvalasse, escorregasse numa casca de banana e a queda fosse a cinco fusos horários.

Infelizmente escorreguei numa casca de banana, mas a queda foi em Sta. Apolónia. O preço que a CP me tinha dado era falso; mais valia ter apanhado um avião. E os lugares, que segundo a senhora eram tantos, afinal não são. Só tenho lugar até Hendaye - e o tal preço miraculoso também era só para a estação onde, há muitos anos, tive de saltar uma rede para entrar em França. Lembro-me de uma estação entre o glauco e o cinzento, fria; uma atmosfera que  anos mais tarde reencontraria num filme chamado Stalker, de Tarkovsky. Trepei a rede, que era alta, depois de ter mandado a mochila. Estava convencido de que me tinham visto e em breve seria cercado por uma matilha de cães ululantes e polícias matraqueadores, mas não fui. Lembro-me distintamente de o ter feito; não me lembro porquê, nem de onde vinha ou para onde ia.

Mudou, com certeza, a estação; o meu estatuto também. Mas a verdade é que me preparo para me perguntar como irei de Hendaye para Paris. Já viajei várias vezes de TGV sem bilhete, mas por culpa minha - ou porque não tinha dinheiro, ou porque não havia lugar e eu tinha absolutamente de chegar ao destino.

Uma vez atravessei a França toda, da Bretanha a Genève, com 5 euros no bolso. A verdadeira ironia é que tinha ido à Bretanha negociar um contrato bastante importante (e que acabou por se concretizar). O regresso foi curioso, mas nessa altura andava de casaco e gravata, o que torna certas práticas mais fáceis. Em Genève tinha casa e jantar à espera. De outra vez vim da Argentina com um pouco menos - a diferença é que os meios de transporte já estavam pagos; e o que tinha à espera em Genève era uma festa de aniversário, trinta e seis, trinta e sete.

Mas estas coisas fazem-se quando há razões poderosas para elas. É pouca a vontade de repetir as audácias porque a CP, para cortar custos (cortar custos? A CP? deve ser para os pôr no desenvolvimento das linhas regionais, e assim), entrega as informações a miúdos de call center e provavelmente não lhes dá formação adequada; ou a miúda que me atendeu estava à rasca. Não sei. Pouco ou nada me apetece pensar nisso agora. Como tento não pensar que na Aigle Azur o bilhete me teria custado o mesmo que Lisboa - Paris, Páscoa ou não.

Uma empresa que não sabe dar informações correctas aos seus clientes quer fazer TGVs. Deviam começar por treinar com redes Märklin, e só depois brincar aos grandes.

II
O tempo passa depressa depois de ter passado; antes demora imenso. Assim é com as viagens longas de comboio ou autocarro: nunca mais acabam, e passaram num instante. Chegámos à hora a Hendaye. A cerca que há não sei quantas vidas saltei parece-me mais baixa do que a que tinha na memória. Tudo o resto é igual. Menos glauco: o dia nasce lindo, repousante como uma jovem senhora apaixonada, e saciada.

III
Acabei por encontrar um bilhete no TGV. Feitas as contas, a viagem ficou mais cara do que teria ficado na Aigle Azur. O comboio tem de facto um grande futuro junto dos eurocratas e das burguesias ocidentais, fartas do avião e com vergonha de serem vistas nas low cost. Viajar de comboio tornou-se chic; não há eurocrata ou quadro superior que não diga "prefiro de longe o caminho de ferro" com o ar enfadado e enfadante dos entendidos. Eu não gosto de aviões, estou farto deles até à medula. Mas pelo mesmo preço tê-lo-ia escolhido. Os comboios ocidentais são aviões que demoram mais tempo (e, admitidamente, voam mais baixo. Algumas paisagens são lindas de nos liquefazer).

IV
Chego a Montparnasse e vou direito ao Cana'Bar, ali ao lado, na rua Raymond Losserand. Já por aqui falei dele. É bom e barato, se não se beber vinho, mesmo da casa. Já me tinha esquecido dos preços de Paris. Mas é agradável, ver que desembarco em Paris como se estivesse em Lisboa. Gosto deste desenraizamento, de sentir que a minha cidade é aquela onde estou (se bem haja certos assuntos nos quais não me imisco, onde quer que esteja; mas isso é outra história). A rapariga que servia há três anos é a mesma; só se lhe mudou o rabo, ligeira mas compreensivelmente (está maior, agora, mas menos bonito). Interpreta mal as minhas tentativas de conversa, mas isso é Paris, não é ela.

Está calor, e Paris é doce, na Primavera. Amanhã estarei em Fort-de-France, que não é doce e não tem Primavera. Mas tem mar e trabalho, e isso são duas coisas que juntas justificam mil vidas e mil viagens.

19.4.11

Serviço público - restaurantes Évora

Uma palavra de fugida, já muito de fugida para vos aconselhar, do fundo do coração, o restaurante O Cantinho, em Évora. Fica no Largo Álvaro Velho, perto do Giraldo, e é uma casa pequena com pratos locais de cantar laudas, serviço de uma simpatia que nos fez sentir clientes desde pequeninos. E, cereja no bolo, o largo Álvaro Velho é uma praça harmoniosa, tão bonita que resiste mesmo à presença selvagem de automóveis (e às vezes não os tem, o que ainda é melhor).

Serviço público - receitas das Antilhas (accras e féroce)

Accras de bacalhau

(Aperitivo, para acompanhar o ti'punch ou o planteur)

250g de bacalhau / 1 cebola / 2 dentes de alho / piripiri / salsa picada / 250g de farinha / 2 ovos / 1 copo de leite

Demolhar o bacalhau, tirar-lhe pele e espinhas; passar no mixer  com a cebla, o alho, o piripiri, a salsa, sal (se necessário) e pimenta.

Pôr num recipiente, juntar a farinha, os ovos um a um e depois o leite. Misturar bem. Formar em bolas pequenas qu se fritam cerca de 3 minutos.

Féroce de abacate

(Uma entrada clássica da cozinha antilhesa)

3 Peras-abacate maduras / 500 g de bacalhau / 6 c. de sopa de farinha de mandioca / piripiri / 3 dentes de alho / pimenta

Pré-aquecer o grill do forno. Pôr o bacalhau no forno 10 minutos e depois colocá-lo de molho. Secá-lo, tirar espinhas e pele, desfiá-lo. Descascar e picar o alho, descascar as peras-abacate e esmagar-lhes a polpa com um garfo. Juntar a farinha de mandioca, o piripiri, o alho e a pimenta. Juntar o bacalhau desfiado, colocar no frigorífico num recipiente tapado. Servir frio.

(É delicioso).

Livro de bordos - 18

O bordo a norte está quase a acabar. Em breve apanharei o comboio para Paris, e de lá o avião para a Martinique, de onde saí há duas semanas. Antevejo com prazer a viagem de comboio, se bem a escolha tenha sido decidida pela carestia dos bilhetes aéreos, mais do que pela vontade de passar vinte horas e quarenta minutos, antes de atrasos, em comboios.

Fiz essa viagem, em sentido inverso, uma só vez, há mais de trinta anos; lembro-me de uma "máquina de filmar" de cinco litros que um vizinho de compartimento trazia, e que acompanhou enchidos trazidos por outro - ou seria o mesmo? Não me lembro. Desta, como daquela vez vou sentado: a perspectiva de dormir com mais três gordos a ressonar, eu que sou magro e não ressono, assusta-me (além de que durmo a mesma coisa - pouco - quer vá sentado quer vá deitado; e, sobretudo, já que é para não gastar, então leva-se a opção até ao fim).

Lembro-me também de ter jantado bem, num vagão restaurante que me fazia lembrar os dos cargueiros do antigamente (antigamente de há trinta anos, não antigamente de agora. São diferentes).

O bilhete em segunda classe custa ligeiramente mais caro do que um bilhete de avião na Ryanair se tivesse feito a reserva a tempo,  e pouco mais barato do que os da easyJet ou Aigle Azur se não fosse Páscoa. Espero que o TGV de Lisboa páre onde está: já nos custou uma barrica de dinheiro, já alimentou muitos amigos, já afagou o ego a meia dúzia de ministros e decisores. Não é preciso mais.

Do Marin o bordo continuará para oeste, provavelmente; não sei. Lá para o fim da semana estarei de novo no Mango Bay. A cerveja e o rum substituirão o vinho e o whisky; a um amor antigo junta-se um novo, tão poderoso. Nenhum dos meus grandes amores soube o que é a proximidade: todos foram vividos à distância, ou dela incluíram uma forte dose. O meu sonho é apaixonar-me pela vizinha de patamar (mas agora é tarde: não tenho patamar, quanto mais vizinha).

Volto para de onde vim; não vi todos os amigos que gostaria de ter visto e alguns dos assuntos que vim tratar não estão completamente resolvidos (se bem um deles, longo e penoso, esteja com uma pedra em cima. Em breve estará enterrado e esquecido); o meu saco vai mais leve, o meu coração mais pesado. As viagens não são circulares. Nem lineares são, sequer.

Cheiro, tempo

Cheiras a terra molhada, mulher; a terra fértil, infinita. És presente e cheiras a futuro: navego-te e perco-me no tempo, perco o tempo.

17.4.11

Rente

Amo-te rente ao chão e rente ao céu, amo-te rente às nuvens e rente ao mundo, amo-te rente às árvores e ao vento e ao mar, amo-te rente à vida e ao tempo. Porque tu és a vida e o tempo e leve como a vida rente ao tempo. 

(Para a T., porque é assim).

15.4.11

Ressentimento, má-fé.

O ressentimento é fétido, falso, amnésico e cego. Nietzsche tinha todo um capítulo contra aqueles a quem ele chamava Os Homens do Ressentimento. A má-fé é bonita quando é elegante, voluntária, controlada; e feia quando se deixa confundir com o ressentimento.

14.4.11

Diversos dispersos

Olha, meu amor deixa-me dizer-te que, postas assim as coisas Não há nada a fazer. O nosso amor esvaíu-se-nos pela ferida da Disse-te quando nos conhecemos: um amor é um encontro de duas Dois mundos, dois universos encontram-se por acaso ou vá Deus saber porquê

Mas sabemos porque se desencontram, não é? Sabemos sempre porque se desencontram aqueles que se amaram

Viste o sol hoje, que lindo que estava? A temperatura, o vento? Achas que o Sol ama a Terra, ou esta a ele? Achas que o vento Os universos encontraram-se à volta de uma mesa de chouriço Merda, isto está a descambar

Não tenho de te fazer um desenho nem explicar-te o que é um metadiálogo Não se deve confundir metadiálogo e monólogo tal como não se deve confundir amor e sei lá uma maçã que cai da árvore, um meltem que sopra nas ilhas gregas

É, meu amor: autonomia O meltem sopra no verão, só no verão, quando o calor e essa merda toda e a terra e depois vem o vento e lá se vai tudo cada um para seu lado uma ilha que és tu outra ilha que sou eu Isto está a descambar para a pieguice Detesto pieguice Gosto mais da violência da clarividência da maldade meu amor Maldade Soberania tu és o chefe dos teus sentimentos e estás no controle das tuas emoções E sabes perfeitamente que a comoção é uma puta que se vende por uma palha, um sol um vento forte num mar azul um E por isso te comoves tanto com a tua soberania reencontrada, não é?

"And now the end is near..."

«OS VERDADEIROS FACTOS DA CAMPANHA

1) Na última década, Portugal teve o pior crescimento económico dos últimos 90 anos

2) Temos a pior dívida pública (em % do PIB) dos últimos 160 anos. A dívida pública este ano vai rondar os 100% do PIB

3) Esta dívida pública histórica não inclui as dívidas das empresas públicas (mais 25% do PIB nacional)

4) Esta dívida pública sem precedentes não inclui os 60 mil milhões de euros das PPPs (35% do PIB adicionais), que foram utilizadas pelos nosso governantes para fazer obra (auto-estradas, hospitais, etc.) enquanto se adiava o seu pagamento para os próximos governos e as gerações futuras. As escolas também foram construídas a crédito.

5) Temos a pior taxa de desemprego dos últimos 90 anos (desde que há registos). Em 2005, a taxa de desemprego era de 6,6%. Em 2011, a taxa de desemprego chegou aos 11,1% e continua a aumentar.

6) Temos 620 mil desempregados, dos quais mais de 300 mil estão desempregados há mais de 12 meses

7) Temos a maior dívida externa dos últimos 120 anos.

8) A nossa dívida externa bruta é quase 8 vezes maior do que as nossas exportações

9) Estamos no top 10 dos países mais endividados do mundo em praticamente todos os indicadores possíveis

10) A nossa dívida externa bruta em 1995 era inferior a 40% do PIB. Hoje é de 240% do PIB

11) A nossa dívida externa líquida em 1995 era de 10% do PIB. Hoje é de quase 110% do PIB

12) As dívidas das famílias são cerca de 100% do PIB e 135% do rendimento disponível

13) As dívidas das empresas são equivalente a 150% do PIB

14) Cerca de 50% de todo endividamento nacional deve-se, directa ou indirectamente, ao nosso Estado

15) Temos a segunda maior vaga de emigração dos últimos 160 anos

16) Temos a segunda maior fuga de cérebros de toda a OCDE

17) Temos a pior taxa de poupança dos últimos 50 anos

18) Nos últimos 10 anos, tivemos défices da balança corrente que rondaram entre os 8% e os 10% do PIB

19) Há 1,6 milhões de casos pendentes nos tribunais civis. Em 1995, havia 63 mil. Portugal é ainda um dos países que mais gasta com os tribunais por habitante na Europa

20) Temos a terceira pior taxa de abandono escolar de toda a OCDE (só melhor do que o México e a Turquia)

21) Temos um Estado desproporcionado para o nosso país, um Estado cujo peso já ultrapassa os 50% do PIB

22) As entidades e organismos públicos contam-se aos milhares.Há 349 Institutos Públicos, 87 Direcções Regionais, 68 Direcções-Gerais, 25 Estruturas de Missões, 100 Estruturas Atípicas, 10 Entidades Administrativas Independentes, 2 Forças de Segurança, 8 entidades e sub-entidades das Forças Armadas, 3 Entidades Empresariais regionais, 6 Gabinetes, 1 Gabinete do Primeiro Ministro, 16 Gabinetes de Ministros, 38 Gabinetes de Secretários de Estado, 15 Gabinetes dos Secretários Regionais, 2 Gabinetes do Presidente Regional, 2 Gabinetes da Vice-Presidência dos Governos Regionais, 18 Governos Civis, 2 Áreas Metropolitanas, 9 Inspecções Regionais, 16 Inspecções-Gerais, 31 Órgãos Consultivos, 350 Órgãos Independentes (tribunais e afins), 17 Secretarias-Gerais, 17 Serviços de Apoio, 2 Gabinetes dos Representantes da República nas regiões autónomas, e ainda 308 Câmaras Municipais, 4260 Juntas de Freguesias. Há ainda as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, e as Comunidades Inter-Municipais.

23) Nos últimos anos, nada foi feito para cortar neste Estado omnipresente e despesista, embora já se cortaram salários, já se subiram impostos, já se reduziram pensões e já se impuseram vários pacotes de austeridade aos portugueses. O Estado tem ficado imune à austeridade.»

(Roubado a Jacinto Bettencourt que o roubou a Francisco Teixeira que o roubou aqui.)

13.4.11

"A culpa foi do macaco"

"...Não será por mal. Os portugueses parecem sofrer de uma dificuldade congénita em lidar com a finitude das coisas (que melhor exemplo do que o mito sebastianista?), o que talvez possa advir, sabe-se lá, do facto de termos nascido num país aberto à imensidão oceânica.

..."

A ler, todo, aqui.

Ausência

Há, não sei se já repararam, ausências tão grandes que se tornam uma presença.

10.4.11

Soberania

O indíviduo é soberano. Ponto final. Viver consiste em negociar os limites dessa soberania.

Cascaiagem

O termo surgiu-me por oposição a shangaiagem, essa prática que consistia em embebedar os vadios das tabernas dos portos, levá-los para bordo e largar, de forma a que eles acordassem já no mar e não tivessem outra alternativa se não integrar a tripulação. Quem a fazia não eram apenas os oficiais dos navios - em alguns portos havia redes organizadas de "ladrões de homens".

Cascaiagem é o contrário - consiste em embebedarmo-nos (pouco,voluntária e gentilmente) para ficarmos presos a Cascais. Mas também pode ser entendido, pelos leitores mais terráqueos, como uma mistura de vadiagem e de Cascais.

Ontem Cascaiei, nas duas acepções do termo: descobri a papelaria Griffe, visitei o meu amigo Jorge no Golfinho, bebi um vinho soberbo no Hemingway, jantei em casa de um amigo grande e querido, acabei a noite na Casa do Largo, que agora tem um nome infeliz mas que conseguiu o prodígio de mudar radicalmente para continuar a ser o que era quando a conheci: um local acolhedor, com gente bonita e uma boa vibração, que me perdoem os leitores menos dados a estes malabarismos de linguagem (enfim, não era só isto, mas agora não interessa). Foi um dia bom. É curioso: escrevem-se tratados, organizam-se conferências, fazem-se filmes sobre a felicidade, e é tão simples: tu, meia dúzia de bons amigos, um dia de sol em Cascais.

9.4.11

Serviço público - Papelarias

Na minha humilde e admitidamente troglodita opinião o melhor papel para se escrever não é o Moleskine, que é marca de pessoas que compram marcas. A marca das pessoas que compram produtos, na - repito - modesta opinião que é a minha é a Clairefontaine.

Os cadernos Clairefontaine 9 x 14 cm, 196 páginas (ou 96, para quem quer um produto mais pequeno) são os meus bloco-notas favoritos, por causa do papel, da capa, que é dura mas não rígida e se adapta a todas as circunstâncias, lugares, horas e actividades, e do preço, que é reduzido e não tem nada a ver com o Moleskine.

Os blocos-nota Clairefontaine só têm, para quem vive em Portugal, um defeito: é impossível encontrá-los. De tal forma que há até papelarias que não conhecem a marca (mais ou menos equivalente a um vendedor de automóveis que desconheça a Aston Martin, por exemplo).

Era impossível. Na papelaria Griffe, em Cascais - deixo a morada, de tão comovido que estou: Av. Valbom, nº 5, 2750-508 Cascais, 214 830 707 - encontrei hoje toda uma série de produtos da Clairefontaine.

A honestidade obriga-me a reconhecer que hoje não havia calepins de 9 x 14 cm, 196 páginas. Mas já sei que haverá, na próxima remessa. E nunca, nunca mais ficarei, como tenho andado estes últimos meses, sem o meu bloco-notas favorito na algibeira.

Para além da Clairefontaine a papelaria Griffe tem os melhores papéis do mundo; tem um serviço atencioso e, o que é importante, conhecedor. Não sei quando abriu ; espere que nunca feche. Como um amor recente, o Paredão, ou os quibes da Paulinha, também em Cascais mas noutra secção.

Mudar Portugal

Outra das razões pelas quais não acredito que Portugal venha a mudar é que essa mudança teria de ser radical, fundamental. Ora os portugueses não gostam de rupturas; preferem a continuidade. Mesmo em coisas simples preferimos perseverar no erro a corrigi-lo - veja-se, não é preciso ir mais longe, a maneira como as nossas leis são emendadas, remendadas, cerzidas, cosidas, em vez de ser refeitas do zero (e continuam a merda que eram antes do remendo).

Tem sido sempre assim, ao longo da história; e quando ousamos uma ruptura as coisas não melhoram, o que ainda torna mais patética qualquer veleidade de mudança - o fim da Monarquia, por exemplo.

Mais vale continuar como sempre fomos: uns aos tachos cá dentro, outros ao trabalho lá fora; e outros ainda, coitados, que nem aqueles nem este. Honra lhes seja feita: são quem aguenta o país.

Cada tempo no seu galho

Não se trata de negar a importância do futuro, o que seria infantil; nem de ignorar a do passado, ingenuidade perigosa. Trata-se tão-só de dialogar com cada um deles como deve ser: nós falamos e eles ouvem. Nós agimos e eles registam. As coisas só se estragam quando é ao contrário, quando os deixamos falar e agir no nosso lugar.

Diálogos potenciais

- És forte.
- Não: sou apenas demasiado frágil para poder permitir-me ser frágil.

Consciência de classe

Uma das desvantagens de viver em Cascais é que há sempre uma Sacolinha perto de si.

(Mas hoje acabei na Ribeiro: pelo menos têm pão à hora a que o lumpenproletariat se levanta).

Cascais

"Esta terra não é para quem se levanta cedo", digo ao senhor da padaria. "Nem para quem se deita tarde", responde.

Uma história de sucesso

"Prometeu pôr o País a crescer 3% ao ano e deixa o País em recessão. Prometeu criar 150 mil postos de trabalho e deixa o País com o maior índice de desempregados de que há registo. Prometeu baixar os impostos e deixa o País com a maior carga fiscal de sempre. Prometeu estancar o défice das contas públicas, que era de 5,9% em 2005, e deixa o País com um défice de 8,6%. Prometeu o comboio de alta velocidade e deixa o País com menos quilómetros de linha férrea. Prometeu aumentar o poder de compra dos portugueses e acaba o mandato a cortar salários, deixando o País mais pobre."

(Daqui, com a vénia devida.)

8.4.11

Vastas angústias e dilemas imperfeitos

Hesitei bastante em fazer um blog chamado Livro de Bordos, no qual poria os posts que agora vêm para aqui com esse nome. Acabo de decidir que fiz bem. É bom fazer a coisa certa, mesmo que só o confirmemos um mês depois. Que fosse um ano, ou uma vida.

6.4.11

Auto-retrato

Parece-me mais ou menos evidente, mas creio que apesar disso nunca é de mais lembrar: sou um marinheiro que sabe ler, não um intelectual que sabe navegar.

Chegada

Chego a qualquer sítio que conheço bem (Lisboa, Genève, Paris) e a primeira coisa que me ocorre é "eu conheço estas caras". Não conheço as pessoas, claro, mas conheço as caras, os traços são-me familiares. Depois o efeito desaparece e começo a ver as pessoas, e não as caras.

Lisboa recebeu-me de braços abertos, hospitaleira, jovial. Vai ser mais difícil desfazer-me desta cidade do que da língua.

(Os jovens fumam muito, em Portugal.)

As pessoas são simpáticas, descontraídas. É só profissionalmente que isto não funciona. Os portugueses deviam ser proibidos de trabalhar (seriam na mesma pagos pelos alemães, mas para os alegrar, não para dilapidar os "pacotes" sem pés nem cabeça).

Livro de bordos - 17

(Em rigor, acho que o livro de bordos pode continuar mais um dia ou dois.)

Passemos a viagem de avião: foi igual a todas. Não deve haver objecto, moderno ou antigo, que eu mais e mais injustamente deteste. Passo a vida neles (ou pelo menos passei); não há maneira de os apreciar. Salvo raras e honrosas excepções não me lembro de uma viagem de que tenha gostado do princípio ao fim - se bem algumas tenham passado depressa, inegavelmente. (Não incluo, claro, os voos em DC3, Caravan ou King Air do Burundi ou do Zaire, nem os voos de reconhecimento de barras que, adolescente, fazia com o meu Pai em Moçambique. Mas isso são outros ares, outras asas).

Chego a Paris às 7 da manhã e nos dois minutos que levo de Orly Sud a Orly Ouest vejo mais gravatas e mais bâton do que vi nos últimos cinco meses. E mais gente apressada. Este mundo já não é o meu; nada a fazer: cheguei ao ponto para lá do qual tudo o que está para trás deixa de contar. Com a t-shirt e as sandálias (com meias, está frio) os outros devem ver-me da mesma forma.

No aeroporto os portugueses reconhecem-se de longe. Têm o facies fechado, carregado, como se viajassem num mundo só deles, de que só eles identificam os horrores (isto quando vão sozinhos. Em grupo são sorridentes, abertos e falam muito alto); e os fatos mal cortados, com aquele vinco horizontal atrás do pescoço que se resolve com cinco minutos de alfaiate e um bocadinho de educação.

Pela primeira vez em muito tempo chego a Orly num modo neutro, ansioso por me ir embora mas sem relação com o aeroporto ou Paris. Estão no outro mundo, no que já foi. Só me interessa o que aí vem. Sinto-me como se fosse a um enterro precedido de um baptizado: só este me apaixona. [Esta imagem é boa de mais para se minha; só não leva aspas porque não sei de quem é].

Antecipo os prazeres e os horrores de Lisboa: reencontrar os amigos, as ruas, os cheiros, a cordialidade do nosso povo; e as demoras da burocracia, a incapacidade (ou, pior ainda, a falta de vontade) de tomar decisões rapidamente. Sei que partirei sem que tudo o que tenho para resolver fique resolvido. Paciência. Há um mundo novo à espera; que o velho vá para o diabo que o carregue.

5.4.11

Livro de bordos - 16

Chego à Anse Mitan e tenho um choque. Não consigo identificar-lhe a origem. A paisagem é linda, mas não é a beleza que me comove desta forma. É - apercebo-me ao fim de um certo tempo - o horizonte. No Marin não havia horizonte. É um cul-de-sac, um golfo relativamente profundo e quando estamos na aldeia o plano de água acaba logo ali à frente. Na Anse Mitan vejo o mar vasto, e o mar tem um horizonte. O dia chega ao fim; sento-me num café de praia a beber um pastis. entre mim e o sol que se põe tenho a areia, uma palmeira em contra-luz, o mar e respectivo horizonte. Há pessoas de quem menos coisas me separam - um oceano, só; e uma península, se quisermos ser precisos.

Vou dormir ao LUCERO de novo; um plano Frers (pai) com 54 anos. O barco é lindo, com umas linhas finas, tensas. Se fosse um cavalo seria um puro-sangue árabe. A beleza não tem idade. É bom reencontrar o Ricardo, alegre e em forma como sempre.

O livro de bordos vai interromper-se por uns dias. Se Deus quiser a próxima etapa é o Brasil, que me espera com uma ansiedade que não lhe conhecia. Eu não estou ansioso; estou tenso porque tenho de fazer escolhas. Assim estejam feitas a tensão desaparecerá. Agora, espera-me uma viagem de avião, um regresso que espero breve a Lisboa. Penso nas ilhas dos Açores, que desaparecem no horizonte e de repente reaparecem como se tivéssemos andado para trás. Não andámos - foi apenas uma mudança das condições atmosféricas que as tornou de novo visíveis. Portugal afasta-se de mim, inexoravelmente. Resta-me a língua, um projecto e uma pessoa; - resta-me tudo, dir-me-ão. É verdade.

4.4.11

Deuses

Nenhum povo politeísta percebeu o que quer que seja dos deuses. Um deus é por natureza solitário. Só os monoteístas o compreenderam.

(E um jovem deus ainda mais solitário é, mas isso é outra história, outros deuses.)

Verdades mágicas

Nunca é demasiado tarde para se aprender que uma coisa é a mentira e outra a magia.

3.4.11

Amèlie

Para a T., porque mo pediu.
Amélie é uma mestiça alta e magra; consegue ser simultaneamente feia e bonita. Vista de alguns lados o seu rosto magro e ossudo é feio; de outros, aquele conjunto de olhos, cabelos curtíssimos e ângulos duros suaviza-se, arredonda-se, e fica linda. Claro que ao princípio tentava vê-la sempre de um bom ponto de vista; abandonei rapidamente: para além de ser cansativo cheguei à conclusão de que de que uma beleza inesperada é melhor do que uma que se espera, muito melhor.

Amélie vive numa goeleta de 16 metros que está fundeada em Pointe-à-Pitre. Há muito tempo que o ferro não sai do fundo, nem as velas dos sacos. "Agora as minhas viagens são os homens", explica-me. "Estou farta de sal e de mim; prefiro uma boa barba, outros dedos, a mão calejada de um marinheiro. Enfim, várias; quantas mais melhor". A referência à mão calejada é para mim: não uso luvas, e tenho as mãos que parecem pele de tubarão. Falar de outros homens também é para mim: Amélie não acredita que eu não tenho a mais pequena necessidade de exclusividade, "desde", disse-lhe, "que a partilha não seja síncrona".

Amèlie é senhora de um vasto vocabulário; e de um monte-de-vénus completamente rapado, coisa que abomino. Gosto deles amazónicos, como antigamente; parece-me que a modernidade consiste em rapar os pelos a tudo o que os tem. É triste, tão triste como um ventre que desagua naqueles dois lábios fechados, quase sempre feios. Nada como escondê-los atrás de uma floresta dura como arame, uma floresta que dá luta e nos deixa a boca cheia durante dias.

Enfim, outra ideia que abandonei. Amèlie só faz aquilo que quer, quando quer e como quer. "É pegar ou largar". A maioria dos homens pega, e tem imensa dificuldade em largar, de passagem seja dito. Penso que é por isso que Amélie gosta de mim: não só não sou possessivo como não me pego a ela como as nuvens ao Pico. De tal forma que agora é ela que me telefona, quase sempre.

A goeleta chama-se POCAHONTA, "a coisa mais perto de pouca vergonha que encontrei". É mentira, eu sei, mas importo-me pouco. Amèlie teve uma paixão grande por um índio da Costa Rica, ou coisa que o valha, e o nome vem daí. É preciso reconhecer que todas estas informações são dúbias: ela não fala de si própria se não quando está bêbeda, coisa que acontece raramente. Conheço-a e "frequento-a" (não consigo não pôr aspas) há dois anos.

A coisa que mais me seduz numa mulher não são os seios, nem as pernas nem essa balela dos olhos, ou do olhar; é a voz. A voz, aquilo que elas usam para nos dizer que nos amam, ou nos mandar embora. E Amèlie tem a voz mais bonita que jamais ouvi numa mulher: grave e jocosa, como se troçasse de tudo o que diz no preciso instante em que o diz, profunda, bem colocada (a certa altura teve aulas de representação, ou foi actriz. Ficou-lhe a colocação da voz e a forma de se mexer. Desloca-se mas não lhe vemos qualquer movimento nas pernas ou nos braços, como se andasse sobre rodas, ou pelo ar).

É também assim que faz amor: paira na cama, uma espécie de levitação que ainda hoje, dois anos depois, me induz em erro. Parece-me que vou penetrar um bloco de gelo triste, e entro numa siderurgia hiper-activa, uma espécie de hidra invisível, que me acaricia o corpo todo ao mesmo tempo sem se mexer, ou sem qualquer movimento perceptível.

Como ela gosta de rum ensinei-lhe o que é uma "rolhinha". Desenroscar a rolha da garrafa, enchê-la e bebê-la quase no mesmo gesto, sem quebras. É fácil, com um bocadinho de prática: desenroscar, verter, beber, tudo num só movimento.

Amélie apropriou-se da palavra para outros contextos. Quando a penetro diz-me "só a rolhinha". E eu ali fico, com a glande apenas naquelas coisas pendentes durante um tempo que me parece uma eternidade. "Só a rolhinha", diz-me com aquela voz cavernosa, rouca de sensualidade e de rum, "só a rolhinha". E depois, quando estamos os dois já quase a explodir e "conter-se" se transforma num verbo cómico ri-se: "manda a garrafa".

E eu obedeço. Enfio-me por ela toda adentro até aos copos, até me parecer que vou jorrar tripas, até me esquecer das florestas amazónicas ou da modernidade, até o tempo desaparecer e no seu lugar ficar um buraco, um buraco negro, um buraco no qual tudo entra e nada sai.

Amélie faz a mesma coisa nas felações: em vez de tentar, como todas as outras mulheres que conheci, meter a pila toda na boca ela deixa-a de fora, e faz "uma rolhinha". Qualquer homem sabe onde esta técnica leva: a uma erecção tal que fico à espera de ver sangue sair em geiser pela pele do pau, a um nível de prazer que faria medo, se pudesse sentir outra coisa qualquer ao mesmo tempo.

Uma rolhinha.

II

Amélie está diferente. Telefona-me menos frequentemente; a sua voz grave e trocista já não me diz "uma rolhinha", nem "vem jantar a bordo hoje, tenho uma nova para te apresentar". "Uma nova" são as empregadas temporárias que ele coloca nos escritórios da cidade, nas empresas cujos patrões ela conhece por dentro e por fora. Qando vê uma que acha mais bonita ou mais inteligente convida-a para jantar, com dois ou três amigos. "Gosto de combates de galos, nada como ver dois gajos à porfia por uma mulher. Para não dizer que aprendo imenso".

Eu tenho pouca vontade de lhe ligar. Fico com a sensação de que estou a pedir-lhe "uma rolhinha", e não gosto de pedir essas coisas. Acho que devem vir como a chuva, o vento ou um dia de sol.

III

Hoje não resisti. Não a vejo há mais de três semanas, e descobri para grande espanto e aflição que não posso viver sem ela. Quase um mês sem a ver e as mulheres tornaram-se feias, todas sem excepção; os homens ainda mais desinteressantes; e esta cidade, da qual tanto gosto, um horror. A terra sem Amélie é aterradora, e isto é mais do que um jogo de palavras. É uma descoberta medonha.

- Amélie, viva. Jantamo-nos, hoje?
- Não, meu querido. Adeus. Take care.

"Ela nunca disse sequer que me amava", pensei ao desligar o telefone. "E eu tão pouco lho disse".

Livro de bordos - 15

Fui dormir ao Auberge du Marin. Não tem baratas, o que para quem acaba de passar três semanas numa embarcação infestada delas não é despiciendo. De resto, não tem nada, mas nada mais que o recomende: é escuro - o que pode ser visto como uma vantagem, porque a sujidade vê-se menos -, feio e o preço, se bem seja o mais barato da aldeia, não é nada por além: 34 euros por noite é o que eu pagava num apartamento bem equipado, limpo e também não muito longe da Marina. Bem, podemos acrescentar esta à lista de vantagens: não é longe da Marina. O meu quarto era grande, tinha duas camas de casal e uma mais pequena. A casa de banho não fica muito longe e também está muito suja. Felizmente acordo cedo e fui o primeiro a usá-la.

Em breve tudo isto será passado. Quero voltar depressa para o mar. Querer não é o verbo apropriado. Há momentos em que a terra é aterradora.

1.4.11

Livro de bordos - 14 (notas)

Resta um consolo: ver os Deux Pitons ao nascer do sol, ou Petit Tabac ao longe na bruma contra Carriacou; nadar em Palm Island; beber runs e fumar um charro com o Gentille na sua Happy Island; largar de St. Vincent e chegar a st. Lucia no mesmo rumo; ver as mudanças de cor da água, do azul turquesa ao azul marinho, em meia dúzia de metros; fazer uma manobra difícil no cais do gasóleo do Marin e ser felicitado pelo tipo da bomba, que já viu outras; ser reconhecido como amigo pelo rasta de Mayreau, ou pelo Lucifer em Bequia; ter conhecido o Amiel e com ele navegado num iate de 80 pés, ter conhecido o Ricardo, o Eric, a Eva, o Joel, o Bernie... - a lista é interminável, seja Deus louvado - é um privilégio.

Um privilégio do qual dou graças todos os dias, todo o dia.

E não há chatices com camarotes, motores, pilotos automáticos ou clientes imbecis, nem nada, nada, que me faça esquecer esta verdade simples, linear, fundamental: é um privilégio, uma sorte, uma bênção.

Livro de bordos - 13 (notas)

E depois seria necessário explicar o que é a Switch. Uma vez comparei-a à McDo, mas a analogia é má: a McDo tem qualidade, pense-se o que se pensar dos hamburgers. A Switch não: o conceito é vender cruzeiros à cabine o mais barato possível. Mas os barcos estão num estado lamentável, os percursos são de endoidecer (fazemos numa semana o que não fiz com os alemães em duas, por "falta de tempo"), a contenção de custos um regra que está tão perto do ridículo que por vezes se confunde com ele.

A certa altura lembrei-me de uma conversa que tive há muitos anos com um financeiro, o qual me explicava, muito sério, que "uma empresa nas mãos da malta do marketing vai à falência em dois tempos". Se tivesse sido hoje ter-lhe-ia dito que os financeiros demoraram um bocadinho mais de tempo - mas o que eles puseram na falência não foi uma empresa, foram vários países. Sempre gostei de gente que vê grande.

A Switch está nas mãos de financeiros, e pergunto-me se se vai aguentar assim muito tempo. "Assim" sendo sem pessoas que se preocupem com os clientes, coisa que a "malta do marketing" faz. Porque em três semanas e 23 passageiros (vinte e três; na primeira semana uma das senhoras estava sozinha) ainda não vi um retour client (comentários dos passageiros) positivo (excepto no que diz respeito ao skipper, mas isso é outra história - se bem seja agradável, deixemo-nos de rococós).

Enfim, por agora acabou. Sábado devo ir à Guadeloupe em transporte, mas ainda não sei se vou, nem qual o bote. E qualquer dia vou para o Brasil, se deus quiser.

Livro de bordos - 12 (Notas)

I
Seria preciso começar por explicar o que e como são as Tobago Cays: um conjunto de ilhotas desabitadas e recifes protegido dos alízeos por dois recifes grandes: o World's End Reef - o que está por fora de tudo - e o Horseshoe Reef. A maioria das embarcações vai para o interior do Horseshoe, fundear entre as ilhas de Baradal e Jamesby. Desta vez vim para Petit Tabac, uma ilhota que fica entre os dois recifes. Somos o únco barco, pois o fundeadouro rola um bocadinho e porque as pessoas gostam de estar em manada.

A lua nasceu tarde, já devia passar da meia-noite. Até lá a escuridão era total: ao longe as luzes de Clifton, a sul; de Canouan, a norte; e entre as duas as luzes de fundeadouro dos barcos que estavam dentro do Horseshoe Reef. Eu vim para fora, para Petit Tabac. Somos o único barco, numa laguna rodeada de recifes.

Quando a lua apareceu era um niquinho de luz, uma unha que alguém esqueceu de cortar; mas chegava para iluminar a praia, da qual estávamos a menos de cem metros. Não se via nada, mas ouvia-se perfeitamente o mar a quebrar no recife de um lado e na praia, de outro. De repente a luz era suficiente para distinguir a rebentação e dar um corpo apaziguador àqueles barulhos, dos quais qualquer marinheiro desconfia.

A noite estava de tal forma escura que as estrelas apareciam em três D.

Entrei à vela; o passe não é muito difícil, mas dá gozo. Pensei em duas ou três pessoas que gostaria de ter aqui comigo; é chato fazer isto com gente que nos diz pouco ou a quem isto pouco diz.

Mas é melhor fazer isto do que fazer outra coisa qualquer.

II
Continua a chocar-me ver pessoas a jogar às cartas, ou a um jogo de sociedade qualquer, quando passamos por paisagens que a mim, que por elas passo todas as semanas, me comovem sempre e não cansam nunca, de tão lindas.

III
À chegada a Rodey Bay vimos baleias. Duas, mãe e filho. É outro espectáculo do qual não me canso - se bem nunca deixe de estar apreensivo, com a história do George.

(Já aqui a contei: o George era o skipper do GUIA, um desses clássicos italianos que ainda hoje me faz chorar, quando penso nele. Uma noite em pleno Atlântico uma baleia afundou-ou, clara e propositadamente. Uma porrada na quilha que a fez subir dois metros; em cinco minutos o barco afundou-se. Felizmente a tripulação foi reolhida menos de 24 horas depois.

Encontrei o George nos Açores. Teve um ataque de coração e levei-o ao hospital da Horta, depois de passar uns dias connosco).

Toco na madeira - já estive pertíssimo de dezenas de baleias e nunca nenhuma se lembrou de me subir a quilha. Inch'Allah.

A mãe era enorme. Numa das vezes que veio à superfície parecia um submarino. Mas o sopro era baixo. Não sei de que espécie eram - provavelmente baleias de bossa, mas não tenho a certeza.

IV
Rodney Bay é uma escala civilizada. A civilização é bom - caro, mas bom.