31.7.14
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 30-07-2014
As minhas aventuras pelo sistema de saúde brasileiro continuam. Depois do atendimento de urgência no Socorrinho trata-se agora de ir a um especialista (ou dois, mais provavelmente. Veremos).
A primeira tentativa, segunda-feira, falhou porque era feriado. Um feriado selectivo - estava tudo aberto menos os serviços públicos - mas feriado. Terça-feira falhou porque a unidade de saúde que me tinham indicado não tem a especialidade que procuro; e porque o hospital público faz qualquer dos nossos passar por um hospital alemão.
De modo hoje fui a uma clínica privada. Há-as para todas as bolsas. A primeira que contactei custava duzentos reais. Maciel disse-me que nem pensar. Sugeriu-me outra, procurou-me o número de telefone e ecco, por metade fui atendido hoje mesmo.
A consulta foi cara: o médico mal me ouviu. Passou-me uma série de análises e disse-me para voltar lá quando as tivesse. Ciao, à la revoyure.
Quero um médico, não um psicólogo. Vamos ver o seguimento.
Infelizmente tudo indica que vou precisar doutro especialista, porque o antibiótico que o de sábado me receitou não parece estar a fazer muito efeito. Volta e meia ainda tenho acessos de febre que são uma porra.
A carcaça quer atenção. Vai tê-la.
A primeira tentativa, segunda-feira, falhou porque era feriado. Um feriado selectivo - estava tudo aberto menos os serviços públicos - mas feriado. Terça-feira falhou porque a unidade de saúde que me tinham indicado não tem a especialidade que procuro; e porque o hospital público faz qualquer dos nossos passar por um hospital alemão.
De modo hoje fui a uma clínica privada. Há-as para todas as bolsas. A primeira que contactei custava duzentos reais. Maciel disse-me que nem pensar. Sugeriu-me outra, procurou-me o número de telefone e ecco, por metade fui atendido hoje mesmo.
A consulta foi cara: o médico mal me ouviu. Passou-me uma série de análises e disse-me para voltar lá quando as tivesse. Ciao, à la revoyure.
Quero um médico, não um psicólogo. Vamos ver o seguimento.
Infelizmente tudo indica que vou precisar doutro especialista, porque o antibiótico que o de sábado me receitou não parece estar a fazer muito efeito. Volta e meia ainda tenho acessos de febre que são uma porra.
A carcaça quer atenção. Vai tê-la.
30.7.14
27.7.14
Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 27-07-2014
E hoje foram mais sessenta. Quilómetros, quero dizer. De bicicleta. A cavalariça pecisa de movimento, o cavalo dá um jeito.
São José de Ribamar é melhor do que Raposa, de muito muito longe. E um bocadinho mais perto. Mas a diferença não se nota, porque a estrada tem mais subidas e descidas. De resto é igual: completamente desinteressante. Feia, mal-cheirosa, com bastante trânsito - devo dizer que aqui pelo menos só há falta de educação, falta de respeito, ignorância e indiferença para com os ciclistas. Não há animosidade, como em Panamá. Ou desleixo assassino como em Lisboa. Sinto-me mais à vontade em S. Luís do que em certos troços da Marginal, por exemplo. Aqui os carros passam a rasar só quando não têm outra hipótese; e nestes dois dias e centro e trinta quilómetros só ouvi uma observação desagradável -.
De qualquer forma deve ser o último destes grandes passeios. Para a semana inscrevo-me num curso de kitesurf. A cavalariça precisa de água. Depois a burra fica reservada para os percursos urbanos.
Pelo menos encontrei o que procurava: um sítio bonito, lindo, bem arranjado, com boa comida e um melhor serviço. Chama-se Mediterrânea (e pertence a um italiano, claro).
........
Como a muitas pessoas, esta última crise em Gaza fez-me ver uma série de coisas. E confirmar outras. Uma delas é de o homem é um animal racional até abraçar uma causa. Seja ela qual for: as crianças de Gaza, os Palestinos de Gaza, os direitos dos animais, o ódio às touradas ou - vá lá saber-se, qualquer dia - o direito de as farmácias venderem fraldas usadas (depois de devidamente desinfectadas, claro) para poupar o ambiente.
O que é espantoso é que as pessoas mantém a capacidade de raciocinar e pensar em todas as outras áreas. Só a perdem quando se chega à causa; é aí que deixam de poder raciocinar (algumas são poli-causais. É um bocadinho mais complicado. Outras são de esquerda e aí fica praticamente impossível falar do que quer que seja excepto de livros, música e cinema. E comida. E mais meia dúzia de coisas. Enfim, é muito, reconheça-se).
Que teria sido da Europa se os pacifistas dos anos trinta tivessem ganho? Porque é que a Segunda Guerra Mundial foi necessária? Será que todas as pessoas que defendem Israel gostam de ver crianças mortas? Os pacifistas pensam que a guerra desaparecerá por artes encantatórias, tal como muitos deles acreditam que basta controlar os preços para que a inflacção desapareça?
Será falta de bom senso fazer estas perguntas? Serei um facínora desumano porque acho que o Hamas está a provocar estas mortes precisamente porque sabe que pode contar com a opinião pública ocidental (incluindo neste ocidental a "esquerda pacifista israelita", felizmente longe do poder em Israel)?
Deve haver poucas pessoas (das que lêem este blog. Alexandra Lucas Coelho não o lê, claro) que tenham visto mais crianças vítimas de barbaridades do que eu - o que de passagem me faz pensar que os disléxicos, ou ignorantes que chamam a isto um genocídio deviam ter passado uns meses no Rwanda e no Burundi em 1994, para verem o que é um genocídio e ganharem tento na língua e vergonha, duas coisas das quais se anda muito escasso por estes dias -. Ninguém tem mais horror à vista de uma criança morta ou sofredora do que eu. Mas porra, isso não me impede de ver que se estão a morrer crianças é porque o Hamas quer que elas morram. E não me força a embarcar em manipulações.
Isto é óbvio ululantemente, mas de nada serve repeti-lo. A causa está lá. E quem não está com a causa não é uma pessoa. É uma besta.
E entretanto as crianças e as vítimas civis vão morrendo, e vão continuar a morrer precisamente por causa do apoio daqueles que Lenine, que sabia do que falava, apodava de idiotas úteis. A idiotice não mudou; só mudou a utilidade: agora, perpetuar a mortandade de inocentes.
São José de Ribamar é melhor do que Raposa, de muito muito longe. E um bocadinho mais perto. Mas a diferença não se nota, porque a estrada tem mais subidas e descidas. De resto é igual: completamente desinteressante. Feia, mal-cheirosa, com bastante trânsito - devo dizer que aqui pelo menos só há falta de educação, falta de respeito, ignorância e indiferença para com os ciclistas. Não há animosidade, como em Panamá. Ou desleixo assassino como em Lisboa. Sinto-me mais à vontade em S. Luís do que em certos troços da Marginal, por exemplo. Aqui os carros passam a rasar só quando não têm outra hipótese; e nestes dois dias e centro e trinta quilómetros só ouvi uma observação desagradável -.
De qualquer forma deve ser o último destes grandes passeios. Para a semana inscrevo-me num curso de kitesurf. A cavalariça precisa de água. Depois a burra fica reservada para os percursos urbanos.
Pelo menos encontrei o que procurava: um sítio bonito, lindo, bem arranjado, com boa comida e um melhor serviço. Chama-se Mediterrânea (e pertence a um italiano, claro).
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Como a muitas pessoas, esta última crise em Gaza fez-me ver uma série de coisas. E confirmar outras. Uma delas é de o homem é um animal racional até abraçar uma causa. Seja ela qual for: as crianças de Gaza, os Palestinos de Gaza, os direitos dos animais, o ódio às touradas ou - vá lá saber-se, qualquer dia - o direito de as farmácias venderem fraldas usadas (depois de devidamente desinfectadas, claro) para poupar o ambiente.
O que é espantoso é que as pessoas mantém a capacidade de raciocinar e pensar em todas as outras áreas. Só a perdem quando se chega à causa; é aí que deixam de poder raciocinar (algumas são poli-causais. É um bocadinho mais complicado. Outras são de esquerda e aí fica praticamente impossível falar do que quer que seja excepto de livros, música e cinema. E comida. E mais meia dúzia de coisas. Enfim, é muito, reconheça-se).
Que teria sido da Europa se os pacifistas dos anos trinta tivessem ganho? Porque é que a Segunda Guerra Mundial foi necessária? Será que todas as pessoas que defendem Israel gostam de ver crianças mortas? Os pacifistas pensam que a guerra desaparecerá por artes encantatórias, tal como muitos deles acreditam que basta controlar os preços para que a inflacção desapareça?
Será falta de bom senso fazer estas perguntas? Serei um facínora desumano porque acho que o Hamas está a provocar estas mortes precisamente porque sabe que pode contar com a opinião pública ocidental (incluindo neste ocidental a "esquerda pacifista israelita", felizmente longe do poder em Israel)?
Deve haver poucas pessoas (das que lêem este blog. Alexandra Lucas Coelho não o lê, claro) que tenham visto mais crianças vítimas de barbaridades do que eu - o que de passagem me faz pensar que os disléxicos, ou ignorantes que chamam a isto um genocídio deviam ter passado uns meses no Rwanda e no Burundi em 1994, para verem o que é um genocídio e ganharem tento na língua e vergonha, duas coisas das quais se anda muito escasso por estes dias -. Ninguém tem mais horror à vista de uma criança morta ou sofredora do que eu. Mas porra, isso não me impede de ver que se estão a morrer crianças é porque o Hamas quer que elas morram. E não me força a embarcar em manipulações.
Isto é óbvio ululantemente, mas de nada serve repeti-lo. A causa está lá. E quem não está com a causa não é uma pessoa. É uma besta.
E entretanto as crianças e as vítimas civis vão morrendo, e vão continuar a morrer precisamente por causa do apoio daqueles que Lenine, que sabia do que falava, apodava de idiotas úteis. A idiotice não mudou; só mudou a utilidade: agora, perpetuar a mortandade de inocentes.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 26-07-2014
Acabei por me render à evidência e fui ao médico. Ontem I. sugeriu-me um centro de saúde não muito longe da pousada e foi lá que passei a manhã de hoje. O centro (Socorrinho, os brasileiros têm as nomenclaturas imagéticas) é simples mas foi rápido, eficaz, cordato e gratuito.
Protela-se a ida ao médico porque não se quer admitir que a carcaça sozinha não sabe tratar-se. E perde-se tempo para nada. Desta vez quase uma semana de dores e febre.
Enfim, esta passou. Que a próxima venha longe.
.........
Agradabilíssimo serão em casa de Celso Borges, excelente poeta, músico e pessoa. Estava também Bruno Azevêdo, autor dessa obra-prima da literatura gore que é O Monstro Souza, "romance festifud", "história de um cachorro quente de 1,80m que trabalha como loverbói e serial killer em São Luís do Maranhão", etc.
Mistura de quadradinhos, recortes de jornal, prosa e mais meia dúzia de formas de expressão, o Monstro Souza é uma deambulação quase situacionista por S. Luís.
Não esperava encontrar tanto conhecimento da poesia portuguesa, aliado a uma ainda maior vontade de a conhecer mais e melhor. A ideia de organizar uma viagem de poetas e autores de S. Luis a Lisboa em Fevereiro começa a tomar forma e corpo.
........
Quinta~feira fui ao dentista. Não me chegava a febre. No regresso hesitei em apanhar um táxi, mas acabei por vir de autocarro. Uma das grandes decisões dos últimos tempos.
O condutor era formado em condução desportiva de autocarros, especialidadeguerrilha condução urbana. Conduzia aquele veículo como se estivesse numa pista de corridas. A certa altura chegámos a um engarrafamento monstro, provocado por trabalhos na rua e o homem quase explodia. "Este prefeito", explicava-me (estava ao lado dele, de pé ) "não é só ladrão. Ele é também pilantra. Safado. Fazer obras nesta rua a esta hora".
Eu estava indeciso: S. Luís precisa de obras em praticamente todas as ruas (menos as que servem os bons quarteirões e mesmo assim só as principais) e se um prefeito que seja só ladrão - coisa aceitável pela inevitabilidade - quiser fazê-las vai precisar das vinte e quatro horas de todos os dias de largos anos: por outro lado era difícil não estar do lado do meu condutor de corridas.
Que a certa altura não tem meias medidas e mete o autocarro por uma ruazinha paralela à rua engarrafada e por ali vai dois ou três quarteirões.
Quando regressamos ao percurso estamos muito perto da causa do engarrafamento. Faz sinais a um colega (mas de outra companhia, os transportes urbanos são privados e estão distribuídos por várias empresas) que simpaticamente o deixa entar; uma senhora num ligeiro não faz o mesmo e quase temos um acidente. Enfim, ganhámos bastante tempo.
O condutor está contente. Guia concentrado, mas de vez em quando relaxa e dialoga comigo. "De onde você vem?" por exemplo. Ou monologa: "A amizade é a coisa mais importante do mundo. Não é o dinheiro nem o amor. É a amizade. Viu aquele colega? Ele deixou-me passar por amizade. Não nos conhecemos, mas ele está para sempe no meu coração". Depois concentra-se de novo na condução e puxa por aquele motor, esqueira-se pelo trânsito, acelera e trava como se quisesse demonstrar aos passageiros e ao mundo que pouco interessa o veículo, o que importa é o que com ele fazemos e somos.
Já perto do sítio onde ia descer entrou uma jovem a comer uma maçaroca. O condutor pede-lhe um bocadinho, ela estende-lhe a maçaroca ele diz "Não, parte um bocadinho", ela parte, ele come, a rapariga segue para trás e ele diz-me "Eu não lhe dizia? A amizade é o mais importante". Ao princípio pensei que se conheciam, mas não. O homem não só conduz como um ás, mas faz amigos também.
Protela-se a ida ao médico porque não se quer admitir que a carcaça sozinha não sabe tratar-se. E perde-se tempo para nada. Desta vez quase uma semana de dores e febre.
Enfim, esta passou. Que a próxima venha longe.
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Agradabilíssimo serão em casa de Celso Borges, excelente poeta, músico e pessoa. Estava também Bruno Azevêdo, autor dessa obra-prima da literatura gore que é O Monstro Souza, "romance festifud", "história de um cachorro quente de 1,80m que trabalha como loverbói e serial killer em São Luís do Maranhão", etc.
Mistura de quadradinhos, recortes de jornal, prosa e mais meia dúzia de formas de expressão, o Monstro Souza é uma deambulação quase situacionista por S. Luís.
Não esperava encontrar tanto conhecimento da poesia portuguesa, aliado a uma ainda maior vontade de a conhecer mais e melhor. A ideia de organizar uma viagem de poetas e autores de S. Luis a Lisboa em Fevereiro começa a tomar forma e corpo.
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Quinta~feira fui ao dentista. Não me chegava a febre. No regresso hesitei em apanhar um táxi, mas acabei por vir de autocarro. Uma das grandes decisões dos últimos tempos.
O condutor era formado em condução desportiva de autocarros, especialidade
Eu estava indeciso: S. Luís precisa de obras em praticamente todas as ruas (menos as que servem os bons quarteirões e mesmo assim só as principais) e se um prefeito que seja só ladrão - coisa aceitável pela inevitabilidade - quiser fazê-las vai precisar das vinte e quatro horas de todos os dias de largos anos: por outro lado era difícil não estar do lado do meu condutor de corridas.
Que a certa altura não tem meias medidas e mete o autocarro por uma ruazinha paralela à rua engarrafada e por ali vai dois ou três quarteirões.
Quando regressamos ao percurso estamos muito perto da causa do engarrafamento. Faz sinais a um colega (mas de outra companhia, os transportes urbanos são privados e estão distribuídos por várias empresas) que simpaticamente o deixa entar; uma senhora num ligeiro não faz o mesmo e quase temos um acidente. Enfim, ganhámos bastante tempo.
O condutor está contente. Guia concentrado, mas de vez em quando relaxa e dialoga comigo. "De onde você vem?" por exemplo. Ou monologa: "A amizade é a coisa mais importante do mundo. Não é o dinheiro nem o amor. É a amizade. Viu aquele colega? Ele deixou-me passar por amizade. Não nos conhecemos, mas ele está para sempe no meu coração". Depois concentra-se de novo na condução e puxa por aquele motor, esqueira-se pelo trânsito, acelera e trava como se quisesse demonstrar aos passageiros e ao mundo que pouco interessa o veículo, o que importa é o que com ele fazemos e somos.
Já perto do sítio onde ia descer entrou uma jovem a comer uma maçaroca. O condutor pede-lhe um bocadinho, ela estende-lhe a maçaroca ele diz "Não, parte um bocadinho", ela parte, ele come, a rapariga segue para trás e ele diz-me "Eu não lhe dizia? A amizade é o mais importante". Ao princípio pensei que se conheciam, mas não. O homem não só conduz como um ás, mas faz amigos também.
25.7.14
Os inimigos da liberdade
Dos seis filósofos que Isaiah Berlin analisa nesse livro básico, fundamental, incompreensivelmente pouco conhecido que é Freedom and its Betrayal: Six Ennemies of Human Liberty o pior, o mais pernicioso, o que mais danos provocou foi Rousseau.
Insinuou-se no ar do tempo e não sai de lá.
Insinuou-se no ar do tempo e não sai de lá.
24.7.14
Da liberdade e dos costumes
"This all but universal illusion is one of the examples of the magical influence of custom, which is not only, as the proverb says, a second nature, but is continually mistaken for the first."
Da Liberdade, do tempo
"Protection, therefore, against the tyranny of the magistrate is not enough: there needs protection also against the tyranny of the prevailing opinion and feeling; against the tendency of society to impose, by other means than civil penalties, its own ideas and practices as rules of conduct on those who dissent from them; to fetter the development, and, if possible, prevent the formation, of any individuality not in harmony with its ways, and compel all characters to fashion themselves upon the model of its own. There is a limit to the legitimate interference of collective opinion with individual independence: and to find that limit, and maintain it against encroachment, is as indispensable to a good condition of human affairs, as protection against political despotism."
Redescubro On Liberty com o mesmo prazer, o mesmo gozo com que há pouco menos de quarenta anos o descobri.
Nunca mais o reli do princípio ao fim, como faço agora. Umas citações aqui e ali, umas páginas se por acaso o livro me aparecia à frente.
Há verdades muito feias; também as há lindas. Mas todas são perenes.
Redescubro On Liberty com o mesmo prazer, o mesmo gozo com que há pouco menos de quarenta anos o descobri.
Nunca mais o reli do princípio ao fim, como faço agora. Umas citações aqui e ali, umas páginas se por acaso o livro me aparecia à frente.
Há verdades muito feias; também as há lindas. Mas todas são perenes.
Emprenhar pelos ouvidos
"Se queres conhecer alguém não escutes o que ele diz; vê o que ele faz", diz o Dalai Lama num meme que circula pelo Facebook.
A ideia não é nova, nem limitada a uma dada área geográfica ou do conhecimento. É eterna e universal. Não deve haver uma cultura que não tenha um aforismo, provérbio ou dito semelhante.
É por isso que fico espantado com a quantidade de pessoas que emprenham pelos ouvidos.
Emprenham, claro, nos dois sentidos do termo: o passivo e o activo.
A ideia não é nova, nem limitada a uma dada área geográfica ou do conhecimento. É eterna e universal. Não deve haver uma cultura que não tenha um aforismo, provérbio ou dito semelhante.
É por isso que fico espantado com a quantidade de pessoas que emprenham pelos ouvidos.
Emprenham, claro, nos dois sentidos do termo: o passivo e o activo.
23.7.14
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 23-07-2014
Já lá vão muitos dias sem Diário de Bordos. Não que não se tenha passado nada; antes pelo contrário. Infelizmente nada avançou em proporção dos passos que foram dados - Os Passos em Volta podia ter sido um título feito para o trabalho em S. Luís do Maranhão -.
De tudo, paradoxal e felizmente, o que mais progride é o B.: mastro comprado e no estaleiro, pronto para se começar a trabalhar nele; lemes quase prontos - enfim, melhor dizendo: primeira etapa dos lemes quase terminada. Amanhã começamos a laminação. Daí a instalação, a conexão dos hidráulicos, instalar a roda do leme. Digamos três semanas, para dizer qualquer coisa.
O mesmo para o mastro. Como uma parte destes trabalhos se pode sobrepôr e outra não, vamos dizer um mês e meio, para estarmos seguros (ainda falta a impermeabilização: dois meses, vá). Até finais de Setembro estou fora daqui.
Já no resto tudo parece um filme cómico. Não há nada que seja fluido, que se faça à primeira, que fique resolvido imediatamente.
Eis uma pequena súmula:
- Bicicleta: comprei-a, finalmente. Uma pessoa que em tempos conheci dizia que sem bicicleta sou como um barco a motor. É verdade. Comprei-a num sábado. Na segunda-feira estava de volta à loja porque as mudanças não funcionavam. Na terça fui buscá-la. As velocidades estão marginalmente melhores, mas longe de funcionar. Não volto lá, não vale a pena: isso não me impediu de fazer setenta quilómetros nela no domingo seguinte. Basta não querer utilizar todas as mudanças.
- Tablet: levei-o a reparar numa sexta-feira. Ficaria pronto no sábado; preço: oitenta reais. Ficou pronto na quarta-feira. Preço: sessenta reais. Está exactamente na mesma. Sem tirar nem pôr. Igual.
- Telefone portátil: há quinze dias fiquei sem a possibilidade de enviar SMS. Recebe-os, mas não envia. (Também não liga para um, e só um número. Infelizmente é aquele de que mais preciso aqui. Parece que é frequente).
Telefonei para o serviço técnico. Isto é uma sinédoque grosseira, uma elipse: telefonar para o serviço técnico e conseguir falar com ele levou-me aproximadamente três dias.
Nada.
Fui à loja onde comprei o chip. Não têm serviço técnico mas o rapaz é adorável (isto no Brasil é uma redundância). Deram-me um prazo de cinco dias para o problema ficar resolvido. Não ficou.
Ontem voltei à loja. O rapaz disse-me desolado que não podia fazer mais nada. Para ir a outra loja, num centro comercial que fica atrás do sol posto. Lá têm atendimento técnico e poderão ajudá-lo.
Não têm, Cleyton. Esperei duas horas (preciso mesmo dos SMS). Ao fim das quais a rapariga falou com o serviço técnico. O qual não pode fazer nada porque está sem sistema.
- Computador portátil: comprei-o na segunda-feira. O rapaz é adorável (ditto). Disse-lhe que queria o Windows e o Office em inglês. Não tem problema. O Office faço agora; o Windows só na quarta-feira. Ok, Josué, volto cá na quarta-feira.
O Windows está em Português. Para o reinstalar e instalar o Office tive de deixar lá o computador. Vou buscá-lo amanhã.
- Pousada: senhor Luís, importa-se de mudar de quarto... Domingo: almoço em Raposa (uma hora e vinte minutos de espera...)
¡Qué vaya!
Dito assim, de forma sintética, parece só uma piada. Quando se incluem as horas de táxi e de trânsito, o calor, as horas de espera a piada desaparece como por milagre.
Mais vale pensar no que correu bem:
- Um magnífico passeio de barco no sábado. O STERNA P. é rápido, o vento forte e constante, a tripulação e convidados simpatiquíssimos. Um sábado grandioso que me fez temer por como será quando deixar o mar. Não o posso deixar. Tenho de encontrar uma solução intermédia.
- O meu círculo social aumenta, graças principalmente a R. o dono da livraria Poeme-se, onde tenho o meu "escritório". Jornalistas, escritores, cantores: estranhamente é muito mais a minha tribo do que os "marinheiros" (entre aspas porque a maioria não é marinheira; são pessoas que estão em barcos. Com os marinheiros sem aspas entendo-me às mil maravilhas).
Pouco a pouco integro-me em S. Luís e integro a cidade. Como diz R., o Brasil começa sempre por apresentar o seu pior lado.
- Maciel: à terceira encontrei um motorista digno desse nome. Maciel pára nas passadeiras, trava quando os semáforos estão cor-de-laranja, não fala excepto quando eu lhe falo, sabe onde são as lojas e fornecedores e - seja Deus louvado - tem milhares de CD de música brasileira. Amanhã vai começar mais uma sessão de gravações. Encontrei-o à terceira tentativa.
- Adaílson: excelente carpinteiro, pontual, calado. À segunda. Não me posso queixar.
- Dentista: das quatro cáries, a pior já está tratada; as outras estão a caminho, e o resto dos serviços. Vou ficar com uma boca nova pelo mesmo preço do que me teria custado o tratamento desta cárie em Bocas del Toro. Na Policlínica da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Sou ateu e anticlerical, mas não sou primário e reconheço que a igreja tem coisas muito boas. Esta policlínica é uma delas. Há muitas outras.
Talvez se devesse mesmo criar uma devoção à água oxigenada. Nossa Senhora da Água Oxigenada que me salvaste das dores e me permitiste manter a sanidade todos estes meses...
Não se poderá injectá-la nos rins?
........
Apercebo-me a cada dia que passa da profunda tontice do Acordo Ortográfico: daqui a cem anos o brasileiro será uma língua diferente, com ou sem acordo. Estamos a dar cabo da nossa para nada.
........
Uma coisa que descubro: o fascínio dos brasileiros pelos sotaques, pela língua. Falam dela com o desvelo de franceses a falar do francês e da origem das pessoas.
(Não resisto):
De caminho, aprendo que os brasileirismos de que tanto me queixo em Portugal (o desparecimento do verbo pôr, por exemplo) são na verdade Globismos: a TV Globo está a uniformizar os sotaques (nisto não acredito muito) e o vocabulário do Brasil, e a substituí-los por uma espécie de pâtois de S. Paulo e Rio.
........
Mais uma noite de cálculos renais. Preciso realmente de perceber de onde vêm. A cavalariça não pode deixar o cavalo desabrigado.
De tudo, paradoxal e felizmente, o que mais progride é o B.: mastro comprado e no estaleiro, pronto para se começar a trabalhar nele; lemes quase prontos - enfim, melhor dizendo: primeira etapa dos lemes quase terminada. Amanhã começamos a laminação. Daí a instalação, a conexão dos hidráulicos, instalar a roda do leme. Digamos três semanas, para dizer qualquer coisa.
O mesmo para o mastro. Como uma parte destes trabalhos se pode sobrepôr e outra não, vamos dizer um mês e meio, para estarmos seguros (ainda falta a impermeabilização: dois meses, vá). Até finais de Setembro estou fora daqui.
Já no resto tudo parece um filme cómico. Não há nada que seja fluido, que se faça à primeira, que fique resolvido imediatamente.
Eis uma pequena súmula:
- Bicicleta: comprei-a, finalmente. Uma pessoa que em tempos conheci dizia que sem bicicleta sou como um barco a motor. É verdade. Comprei-a num sábado. Na segunda-feira estava de volta à loja porque as mudanças não funcionavam. Na terça fui buscá-la. As velocidades estão marginalmente melhores, mas longe de funcionar. Não volto lá, não vale a pena: isso não me impediu de fazer setenta quilómetros nela no domingo seguinte. Basta não querer utilizar todas as mudanças.
- Tablet: levei-o a reparar numa sexta-feira. Ficaria pronto no sábado; preço: oitenta reais. Ficou pronto na quarta-feira. Preço: sessenta reais. Está exactamente na mesma. Sem tirar nem pôr. Igual.
- Telefone portátil: há quinze dias fiquei sem a possibilidade de enviar SMS. Recebe-os, mas não envia. (Também não liga para um, e só um número. Infelizmente é aquele de que mais preciso aqui. Parece que é frequente).
Telefonei para o serviço técnico. Isto é uma sinédoque grosseira, uma elipse: telefonar para o serviço técnico e conseguir falar com ele levou-me aproximadamente três dias.
Nada.
Fui à loja onde comprei o chip. Não têm serviço técnico mas o rapaz é adorável (isto no Brasil é uma redundância). Deram-me um prazo de cinco dias para o problema ficar resolvido. Não ficou.
Ontem voltei à loja. O rapaz disse-me desolado que não podia fazer mais nada. Para ir a outra loja, num centro comercial que fica atrás do sol posto. Lá têm atendimento técnico e poderão ajudá-lo.
Não têm, Cleyton. Esperei duas horas (preciso mesmo dos SMS). Ao fim das quais a rapariga falou com o serviço técnico. O qual não pode fazer nada porque está sem sistema.
- Computador portátil: comprei-o na segunda-feira. O rapaz é adorável (ditto). Disse-lhe que queria o Windows e o Office em inglês. Não tem problema. O Office faço agora; o Windows só na quarta-feira. Ok, Josué, volto cá na quarta-feira.
O Windows está em Português. Para o reinstalar e instalar o Office tive de deixar lá o computador. Vou buscá-lo amanhã.
- Pousada: senhor Luís, importa-se de mudar de quarto... Domingo: almoço em Raposa (uma hora e vinte minutos de espera...)
¡Qué vaya!
Dito assim, de forma sintética, parece só uma piada. Quando se incluem as horas de táxi e de trânsito, o calor, as horas de espera a piada desaparece como por milagre.
Mais vale pensar no que correu bem:
- Um magnífico passeio de barco no sábado. O STERNA P. é rápido, o vento forte e constante, a tripulação e convidados simpatiquíssimos. Um sábado grandioso que me fez temer por como será quando deixar o mar. Não o posso deixar. Tenho de encontrar uma solução intermédia.
- O meu círculo social aumenta, graças principalmente a R. o dono da livraria Poeme-se, onde tenho o meu "escritório". Jornalistas, escritores, cantores: estranhamente é muito mais a minha tribo do que os "marinheiros" (entre aspas porque a maioria não é marinheira; são pessoas que estão em barcos. Com os marinheiros sem aspas entendo-me às mil maravilhas).
Pouco a pouco integro-me em S. Luís e integro a cidade. Como diz R., o Brasil começa sempre por apresentar o seu pior lado.
- Maciel: à terceira encontrei um motorista digno desse nome. Maciel pára nas passadeiras, trava quando os semáforos estão cor-de-laranja, não fala excepto quando eu lhe falo, sabe onde são as lojas e fornecedores e - seja Deus louvado - tem milhares de CD de música brasileira. Amanhã vai começar mais uma sessão de gravações. Encontrei-o à terceira tentativa.
- Adaílson: excelente carpinteiro, pontual, calado. À segunda. Não me posso queixar.
- Dentista: das quatro cáries, a pior já está tratada; as outras estão a caminho, e o resto dos serviços. Vou ficar com uma boca nova pelo mesmo preço do que me teria custado o tratamento desta cárie em Bocas del Toro. Na Policlínica da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Sou ateu e anticlerical, mas não sou primário e reconheço que a igreja tem coisas muito boas. Esta policlínica é uma delas. Há muitas outras.
Talvez se devesse mesmo criar uma devoção à água oxigenada. Nossa Senhora da Água Oxigenada que me salvaste das dores e me permitiste manter a sanidade todos estes meses...
Não se poderá injectá-la nos rins?
........
Apercebo-me a cada dia que passa da profunda tontice do Acordo Ortográfico: daqui a cem anos o brasileiro será uma língua diferente, com ou sem acordo. Estamos a dar cabo da nossa para nada.
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Uma coisa que descubro: o fascínio dos brasileiros pelos sotaques, pela língua. Falam dela com o desvelo de franceses a falar do francês e da origem das pessoas.
(Não resisto):
De caminho, aprendo que os brasileirismos de que tanto me queixo em Portugal (o desparecimento do verbo pôr, por exemplo) são na verdade Globismos: a TV Globo está a uniformizar os sotaques (nisto não acredito muito) e o vocabulário do Brasil, e a substituí-los por uma espécie de pâtois de S. Paulo e Rio.
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Mais uma noite de cálculos renais. Preciso realmente de perceber de onde vêm. A cavalariça não pode deixar o cavalo desabrigado.
22.7.14
Calculista
Muito calculistas andam os meus rins. Se conseguisse descobrir porquê seria um homem bastante feliz.
Dizer, tocar
Nada me digas que não tenhas na pele e nas mãos; nada que eu tenha de ouvir e não possa tocar.
21.7.14
Ao princípio era o verbo
Seria preciso voltarmos ao que éramos. Ao princípio. Ao verbo.
O que éramos morreu. Nunca mais será: ressuscitar é para loucos, sonhadores e messias.
O que éramos morreu. Nunca mais será: ressuscitar é para loucos, sonhadores e messias.
20.7.14
Toda a gente, pouca gente
Pode enganar-se toda a gente pouco tempo, ou pouca gente todo o tempo. Mas não se pode enganar toda a gente todo o tempo.
O aforismo é conhecido. Apesar disso há quem duvide da sua veracidade, porque por vezes vemos pessoas enganar toda a gente por tanto tempo que pensamos Este conseguiu. Como fez?
Uma das maneiras é enganar-se a si mesmo. Mas se isso é necessário não é suficiente. Chegará sempre, inexorável, o momento em que "toda a gente" perde uma pessoa.
E outro em que de "toda a gente" só fica a pessoa que se engana a si própria.
O aforismo é conhecido. Apesar disso há quem duvide da sua veracidade, porque por vezes vemos pessoas enganar toda a gente por tanto tempo que pensamos Este conseguiu. Como fez?
Uma das maneiras é enganar-se a si mesmo. Mas se isso é necessário não é suficiente. Chegará sempre, inexorável, o momento em que "toda a gente" perde uma pessoa.
E outro em que de "toda a gente" só fica a pessoa que se engana a si própria.
Almoço improvisado - Salada
Hoje fui navegar. O dia foi bom de mais para ser descrito num tablet à pressa.
Fica a receita da salada, a que C., um cabo-verdiano adorável deu o nome de Salada Boqueirão - estávamos no Boqueirão quando a comecei-.
Os ingredientes são:
- Pepino
- Cebola
- Tomate
- Bacon frito com alho
- Maracujá.
Fiz uma maionese e misturei-lhe umas gemas cozidas esmagadas com um dos maracujás.
Fica a receita da salada, a que C., um cabo-verdiano adorável deu o nome de Salada Boqueirão - estávamos no Boqueirão quando a comecei-.
Os ingredientes são:
- Pepino
- Cebola
- Tomate
- Bacon frito com alho
- Maracujá.
Fiz uma maionese e misturei-lhe umas gemas cozidas esmagadas com um dos maracujás.
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Receitas
19.7.14
As coisas e a vida
As coisas são como são e não como pensamos que deviam ser.
Viver consiste em encontrar o frágil e instável equilíbrio entre este facto e o seu contrário.
Viver consiste em encontrar o frágil e instável equilíbrio entre este facto e o seu contrário.
Assimetrias, fontes
As assimetrias são irritantes para as pessoas de bem e fonte de prazer para as outras.
Arrogâncias, medo
Há muitas arrogâncias e todas elas têm ingredientes diferentes.
Só há um comum, sempre, a todas: medo.
Só há um comum, sempre, a todas: medo.
17.7.14
Auto-retrato parcial
"Há coisas das quais me posso orgulhar: a liberdade, a independência, a incapacidade total, absoluta de emprenhar pelos ouvidos. Mais do que imune, sou alérgico ao zeitgeist. Sempre fui. A opinião dos outros nunca me interessou se não para aprender e ser capaz de fazer as minhas próprias opiniões.
Duvido a priori de tudo o que é consensual - não porque seja contra os consensos, mas porque acho que devem ser investigados e avaliados -.
Nunca me submeti à pressão de um grupo, fosse essa pressão de que natureza fosse. Não alinho em grupos, modas, clubes, partidos, facções ou seja o que for.
Respeito quem sabe mais do que eu quando me demonstra que sabe mais do que eu (ainda por cima nem é muito difícil, portanto não me parece que seja pedir de mais).
Não aceito argumentos ab auctoritate, não reconheço valor aos nomes das pessoas, às suas origens sociais, ao dinheiro que têm ou não têm; - reconheço sim e só ao que fazem."
(De um comentário no FB, ligeiramente editado).
Duvido a priori de tudo o que é consensual - não porque seja contra os consensos, mas porque acho que devem ser investigados e avaliados -.
Nunca me submeti à pressão de um grupo, fosse essa pressão de que natureza fosse. Não alinho em grupos, modas, clubes, partidos, facções ou seja o que for.
Respeito quem sabe mais do que eu quando me demonstra que sabe mais do que eu (ainda por cima nem é muito difícil, portanto não me parece que seja pedir de mais).
Não aceito argumentos ab auctoritate, não reconheço valor aos nomes das pessoas, às suas origens sociais, ao dinheiro que têm ou não têm; - reconheço sim e só ao que fazem."
(De um comentário no FB, ligeiramente editado).
On Liberty
Há tempos havia uma corrente já não sei onde perguntando-nos quais os dez livros que tinham mudado a nossa vida. Não é frequente integrar correntes, mas àquela respondi, já não sei porquê.
Esqueci-me de mencionar meia dúzia de livros, e mais um: chama-se On Liberty. É de um Senhor chamado John Stuart Mill e foi publicado em 1863.
A posteriori apercebo-me de que não foi bem um esquecimento. On Liberty não mudou a minha vida: formou-a.
Esqueci-me de mencionar meia dúzia de livros, e mais um: chama-se On Liberty. É de um Senhor chamado John Stuart Mill e foi publicado em 1863.
A posteriori apercebo-me de que não foi bem um esquecimento. On Liberty não mudou a minha vida: formou-a.
16.7.14
Querer, tintas
Alguns posts do Don Vivo são bons. É natural: em quase onze anos um ou dois hão-de escapar. Em contrapartida nunca é de mais frisar que os poemas são execráveis. Eu sei. Infelizmente estou-me nas tintas. Ponho-os aqui porque quero, da mesma forma que digo maricas em vez de gay e faço o que faço como faço: porque quero e porque me estou nas tintas.
Talvez não seja uma boa definição de liberdade; mas é a que quero.
Talvez não seja uma boa definição de liberdade; mas é a que quero.
Auto-retratos alheios: S. Tomé
Indubitavelmente consequência de ser um bocadinho surdo (não tanto quanto gostaria, mas lá chegarei) só acredito no que vejo. O que oiço só não me entra por um lado e sai por outro porque não chega sequer a entrar.
Grupo Insomníaco Dorme Tu
O Grupo Insomníaco Dorme Tu reúne-se na nossa cidade todas as noites a partir das vinte e três horas (alguns membros do grupo insistem em chegar mais cedo. A Direcção aceita, mas não muda a hora do início das sessões). Fica situado na rua bastante inclinada. Para se entrar é obrigatório ter chegado no sentido ascendente - o Grupo aceita insomnes amadores, mas a insónia tem de ser séria. Insónias descansadas não entram -.
A direcção é eleita todos os anos ou desde que pelo menos um membro tenha encontrado o sono. O que acontecer primeiro.
Estamos a pensar mudar as regras: ninguém quer fazer parte da direcção porque para além de zelar pelas insónias dos outros deve zelar-se pela sua.
O café e o chá estão terminantemente proibidos, claro.
Fui um dos membros fundadores e tenho frequentemente feito parte da direcção. Mas volta e meia lá encontro o sono (é preciso dormir-se bem uma semana seguida para se deixar de ser director; com dois meses de sono regular é-se expulso do Grupo).
Expulso não é o termo adequado, claro. Mas isso fica para depois. Agora vou dormir. Há muitos meses que faço parte da direcção e gostaria de passar o lugar a outro.
A direcção é eleita todos os anos ou desde que pelo menos um membro tenha encontrado o sono. O que acontecer primeiro.
Estamos a pensar mudar as regras: ninguém quer fazer parte da direcção porque para além de zelar pelas insónias dos outros deve zelar-se pela sua.
O café e o chá estão terminantemente proibidos, claro.
Fui um dos membros fundadores e tenho frequentemente feito parte da direcção. Mas volta e meia lá encontro o sono (é preciso dormir-se bem uma semana seguida para se deixar de ser director; com dois meses de sono regular é-se expulso do Grupo).
Expulso não é o termo adequado, claro. Mas isso fica para depois. Agora vou dormir. Há muitos meses que faço parte da direcção e gostaria de passar o lugar a outro.
15.7.14
Recôndito
Dóis-me quando te leio e não te leio,
Quando te escrevo e não escrevo,
Quando te lembro e esqueço.
Dóis-me quando estás
E quando não estás.
Só não dói saber-te reconciliada.
E mesmo assim dóis-me.
Quando te escrevo e não escrevo,
Quando te lembro e esqueço.
Dóis-me quando estás
E quando não estás.
Só não dói saber-te reconciliada.
E mesmo assim dóis-me.
14.7.14
Diversões
Tenho à minha frente meia dúzia de escorregas, daqueles que se vêem nos parques de diversões. Grandes, encaracolados - nenhum é linear - de várias cores.
Tento perceber de onde vêm. Para onde vão eu sei: um poço negro na paisagem, longe mas bem visível.
Cada um deles leva coisas diferentes: este palavras, aquele desejos (e sonhos. Quem quer que os tenha feito misturou sonhos e desejos) outro raivas e ódios, aqueloutro amores e fantasias.
Vejo-me sentado de pernas cruzadas a separar estas coisas como quem separa roupa. Não é tão fácil como parece. Esta foi amor ou foram só palavras? E esta, vai para os ódios ou para as indiferenças? Aquela, um sonho?
E a vida? Para qual dos tubos vai?
Tento perceber de onde vêm. Para onde vão eu sei: um poço negro na paisagem, longe mas bem visível.
Cada um deles leva coisas diferentes: este palavras, aquele desejos (e sonhos. Quem quer que os tenha feito misturou sonhos e desejos) outro raivas e ódios, aqueloutro amores e fantasias.
Vejo-me sentado de pernas cruzadas a separar estas coisas como quem separa roupa. Não é tão fácil como parece. Esta foi amor ou foram só palavras? E esta, vai para os ódios ou para as indiferenças? Aquela, um sonho?
E a vida? Para qual dos tubos vai?
Ar
Penso: preciso de te ler
Como de ar para respirar.
Digo: preciso de te ler
Como de veneno para morrer.
Penso: preciso de te ver.
Digo: preciso de viver.
Entre o que penso e
O que digo
Há uma vida e
A morte.
Uma ferida e
A lua cheia como
Se houvesse ar
Em mim para respirar
Sem te ler.
Como se houvesse ar
Sem ti.
Como de ar para respirar.
Digo: preciso de te ler
Como de veneno para morrer.
Penso: preciso de te ver.
Digo: preciso de viver.
Entre o que penso e
O que digo
Há uma vida e
A morte.
Uma ferida e
A lua cheia como
Se houvesse ar
Em mim para respirar
Sem te ler.
Como se houvesse ar
Sem ti.
13.7.14
O tubarão vai ao barbeiro
O tubarão perdera a barbatana havia muito tempo, mas mesmo assim ainda lhe custava nadar a direito. Foi uma galinha que me debicou a puta da barbatana. Tornara-se carnívora e eu não dei por nada, explicava a quem o queria ouvir.
Ninguém o queria ouvir.
Estava na rua das Chagas (abertas). Ao fundo da rua há um barbeiro desses que imitam os barbeiros de antigamente.
Estou farto do antigamente. Quando é que estes gajos começarão a imitar o futuro?
Mas entrou. Barba, cabelo e poucas palavras, pediu.
Na parede havia um cartaz. Corte o cabelo cinco vezes e deixamo-lo sair para a rua das Chagas (fechadas).
Não seria má ideia. Estou farto de andar às voltas na porra da Chagas (abertas). Mas sem a barbatana não faço senão andar às rodas. Puta da galinha carnívora.
O barbeiro estava com medo de lhe fazer o bigode.
O senhor promete que não me come o braço?
O tubarão acenou. Agora sou herbívoro, sua besta. E quando acabar recomece tantas vezes quantas as necessárias para eu poder sair pela ruas das Chagas (fechadas).
Se o senhor tubarão me deixasse falar talvez eu pudesse dar um jeitinho...
Estes cabrões mai-los jeitinhos. Irritado comeu o braço ao barbeiro.
A porta da rua das Chagas (fechadas) abriu-se.
Ninguém o queria ouvir.
Estava na rua das Chagas (abertas). Ao fundo da rua há um barbeiro desses que imitam os barbeiros de antigamente.
Estou farto do antigamente. Quando é que estes gajos começarão a imitar o futuro?
Mas entrou. Barba, cabelo e poucas palavras, pediu.
Na parede havia um cartaz. Corte o cabelo cinco vezes e deixamo-lo sair para a rua das Chagas (fechadas).
Não seria má ideia. Estou farto de andar às voltas na porra da Chagas (abertas). Mas sem a barbatana não faço senão andar às rodas. Puta da galinha carnívora.
O barbeiro estava com medo de lhe fazer o bigode.
O senhor promete que não me come o braço?
O tubarão acenou. Agora sou herbívoro, sua besta. E quando acabar recomece tantas vezes quantas as necessárias para eu poder sair pela ruas das Chagas (fechadas).
Se o senhor tubarão me deixasse falar talvez eu pudesse dar um jeitinho...
Estes cabrões mai-los jeitinhos. Irritado comeu o braço ao barbeiro.
A porta da rua das Chagas (fechadas) abriu-se.
Micro-dialogos
- Mudas de corações como eu mudo de camisa.
- Azar o teu. Ao menos os meus corações vêm com pilas. As tuas camisas só têm botões.
- Sinto-me um looser.
- Os teus sentimentos raramente se enganam.
- És a mulher da minha vida.
- Para isso seria preciso teres uma vida.
- Olho-te e vejo o futuro como podia ter sido.
- E eu o passado como foi.
- Tens uns olhos lindos.
- Ainda o seriam mais se não tivessem de te ver.
- Azar o teu. Ao menos os meus corações vêm com pilas. As tuas camisas só têm botões.
- Sinto-me um looser.
- Os teus sentimentos raramente se enganam.
- És a mulher da minha vida.
- Para isso seria preciso teres uma vida.
- Olho-te e vejo o futuro como podia ter sido.
- E eu o passado como foi.
- Tens uns olhos lindos.
- Ainda o seriam mais se não tivessem de te ver.
12.7.14
Simetrias, ausências
A verdadeira pergunta é sou eu que deixo o mar ou é ele que me deixa?
Da resposta a esta pergunta dependem uma data de coisas. A cor das ameixas que estão por nascer e ser comidas, por exemplo. A dimensão do carreiro de formigas num determinado quintal. A frequência de levantes e ponientes no estreito de Gibraltar este verão.
Um dia conheci um tipo cujo trabalho consistia em avaliar as probabilidades de um amor evoluir em amizade ou não. Quem lhe pagava eram os actuais cônjuges dos antigos casais.
- Têm medo, percebes?
- Não.
- Pá. A amizade é um sentimento mais forte do que qualquer outro. Já pensaste que todos nós somos capazes de substituir um amor, mas ninguém pode substituir uma amizade? Um amigo que se perde perde-se para sempre.
- Se quisesse mencionar-te-ia um milhão de amores que se perderam para sempre.
- Ainda bem que não queres. Obrigar-me-ias a declamar-te os amores todos que os substituíram.
Que se foda a amizade.
Por exemplo: o mar é meu amigo? Sofre quando não me vê como eu sofro quando passo demasiado tempo em terra? Sofre se não sabe de mim?
A amizade é a forma perfeita da simetria. Ao contrário do amor, que é a sua forma imperfeita.
Nutro pela simetria uma admiração infinita: é a mais elusiva de todas as aspirações humanas. Como terá sobrevivido a tanta ausência?
A ausência é a morte da simetria: não há ausências simétricas.
Da resposta a esta pergunta dependem uma data de coisas. A cor das ameixas que estão por nascer e ser comidas, por exemplo. A dimensão do carreiro de formigas num determinado quintal. A frequência de levantes e ponientes no estreito de Gibraltar este verão.
Um dia conheci um tipo cujo trabalho consistia em avaliar as probabilidades de um amor evoluir em amizade ou não. Quem lhe pagava eram os actuais cônjuges dos antigos casais.
- Têm medo, percebes?
- Não.
- Pá. A amizade é um sentimento mais forte do que qualquer outro. Já pensaste que todos nós somos capazes de substituir um amor, mas ninguém pode substituir uma amizade? Um amigo que se perde perde-se para sempre.
- Se quisesse mencionar-te-ia um milhão de amores que se perderam para sempre.
- Ainda bem que não queres. Obrigar-me-ias a declamar-te os amores todos que os substituíram.
Que se foda a amizade.
Por exemplo: o mar é meu amigo? Sofre quando não me vê como eu sofro quando passo demasiado tempo em terra? Sofre se não sabe de mim?
A amizade é a forma perfeita da simetria. Ao contrário do amor, que é a sua forma imperfeita.
Nutro pela simetria uma admiração infinita: é a mais elusiva de todas as aspirações humanas. Como terá sobrevivido a tanta ausência?
A ausência é a morte da simetria: não há ausências simétricas.
11.7.14
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 11-07-2014
O trabalho começou, finalmente. O ritmo não é alucinante - estamos no Maranhão - mas avança. Cada vez que chego ao estaleiro há gente a bordo, a mexer-se, medir, cortar, pensar. A trabalhar, em suma.
A vida muda, claro. Gostaria muito que o meu bem-estar psíquico dependesse um bocadinho menos do trabalho mas não consigo, infelizmente.
........
Ontem havia música na rua, como todos os fins de semana. Pela primeira vez desde que cheguei era boa. Isto é, não era simplesmente barulho.
Gostei particularmente da rapariga das congas. Terá vinte anos? Talvez. Mas toca com a calma, distância, precisão de quem o faz desde que nasceu.
Tem a regularidade de um metrónomo. Não falha um tempo. Está concentrada, mas por vezes deixa-se ir e sorri, troca um olhar com o rapaz das percussões à sua direita ou com a cantora.
Não sei como definir isto: por detrás de uma aparente falta de criatividade escondem-se talento e horas de trabalho. A criatividade é isso, pela ordem inversa. Trabalho e talento. Ou talvez seja o talento que é composto por trabalho e criatividade. Não sei.
Não sei o que é o talento. Aliás: sei. Mas ignoro de que é feito. Só conheço os seus efeitos sobre mim. Esta beatitude, espanto, rendição.
Oiço a miúda tocar - são tambores, não congas - e pergunto-me se um dia escreverei tão bem como ela toca. Provavelmente não.
Mas espero um dia escrever com a mesma calma, a mesma certeza. A de um rio que sabe onde está a foz.
........
O Brasil é um campo de estudo ideal para quem se interesse pela teoria do caos. Tudo é caótico. E todos os tipos de caos coabitam tão bem como as diferentes classes sociais: o caos visual, auditivo, olfactivo, o trânsito... tudo isto com uma hiper- "sensibilidade crítica às condições iniciais"; que existem com certeza. Basta encontrá-las. Quais serão - a pobreza? A indisciplina e concomitante irresistível atracção pela desordem? Uma coisa é certa: o conceito de entropia não se aplica à vida quotidiana na S. Luís do século XXI.
........
A vida, esse conjunto de altos e baixos a que um marinheiro chama cristas e cavas soma e segue. Nós desatam-se, encruzilhadas clarificam-se, vontades definem-se. Olho para o ano e meio que acabo de passar e pergunto-me se a carga que trazia era assim tão pesada, para exigir tanto tempo antes de conseguir alijá-la.
Era. Um erro, um só, chega para definir uma quantidade de coisas. Não é só S. Luís que é híper-sensível às condições iniciais. A vida é um sistema aberto, dinâmico não linear, alimentado por equações indeterminísticas. Circuitos fechados (é assim que se traduz loops?), retroalimentação (ditto feedbacks), efeito borboleta...
Tantas palavras, tantas maneiras de definir o que no fundo é indefínivel, o que não tem palavras, o que se recusa a desaparecer, a dar-se, a fechar-se.
A vida é o que é mai-lo que dela fazemos. E as borboletas.
A vida muda, claro. Gostaria muito que o meu bem-estar psíquico dependesse um bocadinho menos do trabalho mas não consigo, infelizmente.
........
Ontem havia música na rua, como todos os fins de semana. Pela primeira vez desde que cheguei era boa. Isto é, não era simplesmente barulho.
Gostei particularmente da rapariga das congas. Terá vinte anos? Talvez. Mas toca com a calma, distância, precisão de quem o faz desde que nasceu.
Tem a regularidade de um metrónomo. Não falha um tempo. Está concentrada, mas por vezes deixa-se ir e sorri, troca um olhar com o rapaz das percussões à sua direita ou com a cantora.
Não sei como definir isto: por detrás de uma aparente falta de criatividade escondem-se talento e horas de trabalho. A criatividade é isso, pela ordem inversa. Trabalho e talento. Ou talvez seja o talento que é composto por trabalho e criatividade. Não sei.
Não sei o que é o talento. Aliás: sei. Mas ignoro de que é feito. Só conheço os seus efeitos sobre mim. Esta beatitude, espanto, rendição.
Oiço a miúda tocar - são tambores, não congas - e pergunto-me se um dia escreverei tão bem como ela toca. Provavelmente não.
Mas espero um dia escrever com a mesma calma, a mesma certeza. A de um rio que sabe onde está a foz.
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O Brasil é um campo de estudo ideal para quem se interesse pela teoria do caos. Tudo é caótico. E todos os tipos de caos coabitam tão bem como as diferentes classes sociais: o caos visual, auditivo, olfactivo, o trânsito... tudo isto com uma hiper- "sensibilidade crítica às condições iniciais"; que existem com certeza. Basta encontrá-las. Quais serão - a pobreza? A indisciplina e concomitante irresistível atracção pela desordem? Uma coisa é certa: o conceito de entropia não se aplica à vida quotidiana na S. Luís do século XXI.
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A vida, esse conjunto de altos e baixos a que um marinheiro chama cristas e cavas soma e segue. Nós desatam-se, encruzilhadas clarificam-se, vontades definem-se. Olho para o ano e meio que acabo de passar e pergunto-me se a carga que trazia era assim tão pesada, para exigir tanto tempo antes de conseguir alijá-la.
Era. Um erro, um só, chega para definir uma quantidade de coisas. Não é só S. Luís que é híper-sensível às condições iniciais. A vida é um sistema aberto, dinâmico não linear, alimentado por equações indeterminísticas. Circuitos fechados (é assim que se traduz loops?), retroalimentação (ditto feedbacks), efeito borboleta...
Tantas palavras, tantas maneiras de definir o que no fundo é indefínivel, o que não tem palavras, o que se recusa a desaparecer, a dar-se, a fechar-se.
A vida é o que é mai-lo que dela fazemos. E as borboletas.
Os Espíritos Santos e os espíritos santinhos
Portugal parece um bordel no qual as putas se escandalizam cada vez que são fodidas.
10.7.14
Brasil, música
Ainda na série Ao contrário do que muitas vezes se pensa: os brasileiros não gostam de música. Odeiam-na. Detestam-na. Desprezam-na.
Os brasileiros gostam de barulho, e a música é apenas um veículo para ele.
Os brasileiros gostam de barulho, e a música é apenas um veículo para ele.
Net, pertença
Ao contrário do que muitas vezes se pensa a net exacerba o sentimento de pertença, é o seu melhor aliado.
Anti-semitismo "laico"
Há qualquer coisa estranha na resistência do anti-semitismo, mesmo em sociedades que se pretendem laicas, como as sociedades ocidentais actuais.
Ou então é o conceito de laico que é preciso reavaliar e estudar e uma forma mais abrangente.
Ou então é o conceito de laico que é preciso reavaliar e estudar e uma forma mais abrangente.
9.7.14
Copenhaga
Antes de mais nada é preciso reconhecer duas coisas: a) eu não percebo nada de nada e b) acho que Israel devia parar já, e se não puder ser já que seja imediatamente com os colonatos.
Isto dito:
1 - Três putos israelitas são assassinados. Não há inquéritos, nem autópsias e os assassinos passeiam-se como heróis pelas ruas;
2 - Um puto palestiniano é assassinado. Há um inquérito e uma autópsia e os assassinos vão para a prisão enquanto aguardam julgamento;
3 - Os palestinianos, com a sensibilidade e o espírito de contenção que lhes são internacionalmente reconhecidos provocam desacatos, atacam Israel com rockets e ameaçam o caos;
4 - Israel intervém para repor a ordem.
5 - Os palestinianos são bons e vítimas, os israelitas maus e carrascos.
Eu sei que estou enganado. Se alguém pudesse ajudar-me e explicar-me em quê e porquê eu ficaria inimaginavelmente grato.
Isto dito há, claro, outros consideranda que devem, passe a redundância ser considerados.
Os palestinianos são reconhecidos pelo seu estado de direito e pelo quadro jurídico liberal, reconhecedor dos direitos das minorias, das mulheres e dos maricas. É um estado isento de corrupção, aberto à inovação, atento às necessidades do seu povo, de tal maneira democrático que tem dois governos (um dos quais é uma organização terrorista, um modelo de humanismo).
Contrariamente aos países ocidentais, claro. É por isso que os activistas de género e os defensores dos direitos dos homossexuais e da liberdade de imprensa (mai-los amigos das árvores, dos animaizinhos et al.) lutam no ocidente por essas coisas todas e não lutam em mais lado nenhum. As lutas só fazem sentido onde são realmente necessárias.
Os palestinianos são mestres em manipulação da imprensa. Manipulam-na como se fosse feita em e de plasticina.
É por isso que a (perdoem-me a metonímia) intelligentsia europeia é toda anti-semita. Perdão, anti-Israel.
Confesso que se visse vacas e porcos a defender os proprietários de matadouros não ficaria mais surpreendido.
Isto dito:
1 - Três putos israelitas são assassinados. Não há inquéritos, nem autópsias e os assassinos passeiam-se como heróis pelas ruas;
2 - Um puto palestiniano é assassinado. Há um inquérito e uma autópsia e os assassinos vão para a prisão enquanto aguardam julgamento;
3 - Os palestinianos, com a sensibilidade e o espírito de contenção que lhes são internacionalmente reconhecidos provocam desacatos, atacam Israel com rockets e ameaçam o caos;
4 - Israel intervém para repor a ordem.
5 - Os palestinianos são bons e vítimas, os israelitas maus e carrascos.
Eu sei que estou enganado. Se alguém pudesse ajudar-me e explicar-me em quê e porquê eu ficaria inimaginavelmente grato.
Isto dito há, claro, outros consideranda que devem, passe a redundância ser considerados.
Os palestinianos são reconhecidos pelo seu estado de direito e pelo quadro jurídico liberal, reconhecedor dos direitos das minorias, das mulheres e dos maricas. É um estado isento de corrupção, aberto à inovação, atento às necessidades do seu povo, de tal maneira democrático que tem dois governos (um dos quais é uma organização terrorista, um modelo de humanismo).
Contrariamente aos países ocidentais, claro. É por isso que os activistas de género e os defensores dos direitos dos homossexuais e da liberdade de imprensa (mai-los amigos das árvores, dos animaizinhos et al.) lutam no ocidente por essas coisas todas e não lutam em mais lado nenhum. As lutas só fazem sentido onde são realmente necessárias.
Os palestinianos são mestres em manipulação da imprensa. Manipulam-na como se fosse feita em e de plasticina.
É por isso que a (perdoem-me a metonímia) intelligentsia europeia é toda anti-semita. Perdão, anti-Israel.
Confesso que se visse vacas e porcos a defender os proprietários de matadouros não ficaria mais surpreendido.
8.7.14
Diário de Bordos - São Luís, Maranhão, Brasil, 08-07-2014
Os transportes em comum de S. Luís são péssimos (isto porque estou em dia de ser generoso e bem educado. Em dias normais diria que são uma merda infecta). Há várias razões para isso: o mau estado dos veículos - são poucos para o movimento que têm e não deve haver muito tempo para manutenção - e das ruas - têm buracos que fariam António Costa passar por um autarca modelo - a má formação dos condutores, todos descendentes falhados (ou loucos) de Fangio, a ausência de faixas bus, a falta de autocarros (como na piada de Woody Allen: a comida é má e as porções pequenas).
É por isso raro apanhar um autocarro aqui. Faço-o aos domingos quando quero ir à praia ou quando, muito raramente, preciso de ir a um centro comercial e tenho tempo.
Geralmente ando a pé (pouco, a cidade está mais perigosa agora do que há dois anos) de táxi ou moto táxi. Amanhã vou comprar uma bicicleta, com a qual espero poder combinar a mobilidade e o bem estar físico. A mim S. Luís.
.......
Wellington aprendeu finalmente a calar-se; mas hoje cometeu um erro para mim imperdoável e vou ter de mudar de condutor de táxi. As pessoas são pobres e a pobreza fá-las cometer erros que as mantém na pobreza.
Enfim, não seria por minha causa que ele enriqueceria. Mas tinha ali um rendimento garantido e agora vai ter de o procurar. E não vai conseguir substítui-lo a cem por cento. Isto para ganhar vinte reais.
Já Regiane fez uma coisa mais ou menos semelhante com a lavagem da roupa (com a diferença fundamental de não me ter enganado).
Compreendo-os e empatizo, mas não sou paternalista. Cada um é responsável pelos erros que faz.
........
Por falar em paternalismo: ontem deu dinheiro à senhora angolana que vende porta-chaves. É muito raro dar dinheiro; em Lisboa, pouco antes de vir dei o meu casaco de bombazine azul a um sem-abrigo. Dinheiro não me lembro de ter dado, antes desta noite, em muito tempo.
A senhora estava visivelmente aflita mas apesar disso não me pediu dinheiro e - prova de que é pessoa séria - dei-lhe dez reais para ela ir trocar e ela veio com o troco. Não fugiu com o dinheiro como pensei que faria. Dei-lhe sete reais e ela foi a correr ver se ainda apanhava o Sousa dos cachorros aberto.
Recentemente uma pedinte dessas miseráveis que pululam no Reviver pediu-me dinheiro. Estávamos ambos ao balcão do Senzala, a taberna do meu amigo Raimundo. Disse-lhe que não e ela perguntou-me Você está dizendo que não porque pensa que eu vou comprar droga, não é? Não, não é. Estou-me nas tintas para o que tu fazes com o dinheiro a partir do momento em que to dou. De qualquer forma, se usares o meu para comer usas o de outra pessoa qualquer para o crack.
Foi no Burundi que me confrontei pela primeira vez com este problema. Muitas ONG (principalmente as católicas) escandalizavam-se porque os refugiados vendiam as coisas que lhes dávamos. Eu dizia-lhes que isso me era indiferente. O meu trabalho era ajudar os refugiados. Se eles tansformavam as lonas em dinheiro estávamos a ajudá-los, não? Eram suficientemente grandes para saber se preferiam os objectos ou o dinheiro dos objectos.
(Além disso davam-me um óptimo instrumento de previsão de necessidades: quando os preços subiam no Mercado eu sabia que tinha de começar a preparar novos envios. Monitorizava os preços de tudo os que lhes dávamos e os das armas, para ter uma ideia da segurança).
........
Ontem apeteceu-me sair do Reviver, do seu ambiente sórdido e cheiro a mijo e fui jantar para os lados da praia. Convidei uma jovem francesa que conheci na Pousada. É directora da Alliance Française, professora de francês e mais não sei o quê. A conversa é penosa. A rapariga não se tem em muito baixa conta, antes pelo contrário. Mas debita banalidades como as Kalash cujo preço eu monitorizava em Bujumbura debitam balas.
A certa altura cito-lhe uma frase do pai de Marguerite Yourcenar de que gosto muito. Yourcenar, pergunta-me. Não queres dizer Duras? Não, M., não quero. E infelizmente tão pouco quererei voltar a jantar contigo, o que é pena.
........
Fomos jantar a um restaurante chamado Cabana do Sol. É bastante bom, mas acho as porções absurdas. Um terço da carne e mais de metade dos acompanhamentos voltaram para trás. É inaceitável deitar comida fora seja onde for; e muito menos num país onde há tanta miséria.
........
Deixo o melhor para o fim: o trabalho no B. começou, finalmente.
É por isso raro apanhar um autocarro aqui. Faço-o aos domingos quando quero ir à praia ou quando, muito raramente, preciso de ir a um centro comercial e tenho tempo.
Geralmente ando a pé (pouco, a cidade está mais perigosa agora do que há dois anos) de táxi ou moto táxi. Amanhã vou comprar uma bicicleta, com a qual espero poder combinar a mobilidade e o bem estar físico. A mim S. Luís.
.......
Wellington aprendeu finalmente a calar-se; mas hoje cometeu um erro para mim imperdoável e vou ter de mudar de condutor de táxi. As pessoas são pobres e a pobreza fá-las cometer erros que as mantém na pobreza.
Enfim, não seria por minha causa que ele enriqueceria. Mas tinha ali um rendimento garantido e agora vai ter de o procurar. E não vai conseguir substítui-lo a cem por cento. Isto para ganhar vinte reais.
Já Regiane fez uma coisa mais ou menos semelhante com a lavagem da roupa (com a diferença fundamental de não me ter enganado).
Compreendo-os e empatizo, mas não sou paternalista. Cada um é responsável pelos erros que faz.
........
Por falar em paternalismo: ontem deu dinheiro à senhora angolana que vende porta-chaves. É muito raro dar dinheiro; em Lisboa, pouco antes de vir dei o meu casaco de bombazine azul a um sem-abrigo. Dinheiro não me lembro de ter dado, antes desta noite, em muito tempo.
A senhora estava visivelmente aflita mas apesar disso não me pediu dinheiro e - prova de que é pessoa séria - dei-lhe dez reais para ela ir trocar e ela veio com o troco. Não fugiu com o dinheiro como pensei que faria. Dei-lhe sete reais e ela foi a correr ver se ainda apanhava o Sousa dos cachorros aberto.
Recentemente uma pedinte dessas miseráveis que pululam no Reviver pediu-me dinheiro. Estávamos ambos ao balcão do Senzala, a taberna do meu amigo Raimundo. Disse-lhe que não e ela perguntou-me Você está dizendo que não porque pensa que eu vou comprar droga, não é? Não, não é. Estou-me nas tintas para o que tu fazes com o dinheiro a partir do momento em que to dou. De qualquer forma, se usares o meu para comer usas o de outra pessoa qualquer para o crack.
Foi no Burundi que me confrontei pela primeira vez com este problema. Muitas ONG (principalmente as católicas) escandalizavam-se porque os refugiados vendiam as coisas que lhes dávamos. Eu dizia-lhes que isso me era indiferente. O meu trabalho era ajudar os refugiados. Se eles tansformavam as lonas em dinheiro estávamos a ajudá-los, não? Eram suficientemente grandes para saber se preferiam os objectos ou o dinheiro dos objectos.
(Além disso davam-me um óptimo instrumento de previsão de necessidades: quando os preços subiam no Mercado eu sabia que tinha de começar a preparar novos envios. Monitorizava os preços de tudo os que lhes dávamos e os das armas, para ter uma ideia da segurança).
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Ontem apeteceu-me sair do Reviver, do seu ambiente sórdido e cheiro a mijo e fui jantar para os lados da praia. Convidei uma jovem francesa que conheci na Pousada. É directora da Alliance Française, professora de francês e mais não sei o quê. A conversa é penosa. A rapariga não se tem em muito baixa conta, antes pelo contrário. Mas debita banalidades como as Kalash cujo preço eu monitorizava em Bujumbura debitam balas.
A certa altura cito-lhe uma frase do pai de Marguerite Yourcenar de que gosto muito. Yourcenar, pergunta-me. Não queres dizer Duras? Não, M., não quero. E infelizmente tão pouco quererei voltar a jantar contigo, o que é pena.
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Fomos jantar a um restaurante chamado Cabana do Sol. É bastante bom, mas acho as porções absurdas. Um terço da carne e mais de metade dos acompanhamentos voltaram para trás. É inaceitável deitar comida fora seja onde for; e muito menos num país onde há tanta miséria.
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Deixo o melhor para o fim: o trabalho no B. começou, finalmente.
Assimetrias
- Como amar uma jovem senhora que só diz banalidades e nunca ouviu falar de Marguerite Yourcenar?
- Como amar um velho gordo que passa a noite a dizer coisas que não querem dizer nada e a falar de pessoas de quem nunca ouvi falar?
- Como amar um velho gordo que passa a noite a dizer coisas que não querem dizer nada e a falar de pessoas de quem nunca ouvi falar?
7.7.14
AVURNAV 002/060714
Todos nós temos uma quota de maus poemas a preencher. Só depois chegam os bons. A minha quota é um bocadinho maior do que a média. Preciso de a esgotar depressa.
Tempo, verdade
É verdade: o Michael Jackson é genial.
Já mo tinhas dito, mas eu
Gosto que o tempo me ajude a decidir.
Por isso também só acredito no amor
Anos depois de ele ter acabado.
É quando sei se foi verdade.
Já mo tinhas dito, mas eu
Gosto que o tempo me ajude a decidir.
Por isso também só acredito no amor
Anos depois de ele ter acabado.
É quando sei se foi verdade.
6.7.14
5.7.14
AVURNAV (Aviso urgente à navegação)
Se um dia houver, como espero, um concurso de má poesia eu ganharei sem dúvida o primeiro, o segundo e o terceiro prémios (só espero que haja chorudos prémios em dinheiro, claro).
Como ultimamente o DV tem andado infestado de poesia eu devo avisar a navegação: não são apenas os poemas que sofrem de falta aguda de qualidade. A prosa também.
Como ultimamente o DV tem andado infestado de poesia eu devo avisar a navegação: não são apenas os poemas que sofrem de falta aguda de qualidade. A prosa também.
Ideia
À partida a ideia era simples, conhecida, pouco original:
tu amavas-me e eu amava-te,
Desde sempre, para sempre.
Seríamos felizes, nunca nos separaríamos,
Aos domingos iríamos ao cinema e antes de adormecer
Conversaríamos sobre nós.
Nada disto aconteceu, claro. Entre as pessoas e os planos
há a vida - ou metade, como dizia o outro.
Os próprios planos são uma farsa
porque são feitos por farsantes que acreditam
no amor, em para sempre desde sempre
em coisas que só são verdade na cabeça de quem as sonha quando as sonha.
Uma ideia com milhares de anos de existência e de prática não devia falhar, pois não?
Talvez não seja uma boa ideia.
Ou não seja velha.
Talvez seja uma ideia sempre nova.
Cada vez que alguém ama
É a primeira vez que ama e
Pela primeira vez pensa
Que vai amar alguém para sempre,
Desde sempre.
tu amavas-me e eu amava-te,
Desde sempre, para sempre.
Seríamos felizes, nunca nos separaríamos,
Aos domingos iríamos ao cinema e antes de adormecer
Conversaríamos sobre nós.
Nada disto aconteceu, claro. Entre as pessoas e os planos
há a vida - ou metade, como dizia o outro.
Os próprios planos são uma farsa
porque são feitos por farsantes que acreditam
no amor, em para sempre desde sempre
em coisas que só são verdade na cabeça de quem as sonha quando as sonha.
Uma ideia com milhares de anos de existência e de prática não devia falhar, pois não?
Talvez não seja uma boa ideia.
Ou não seja velha.
Talvez seja uma ideia sempre nova.
Cada vez que alguém ama
É a primeira vez que ama e
Pela primeira vez pensa
Que vai amar alguém para sempre,
Desde sempre.
4.7.14
O meu corpo e eu - II
Tudo o que eu queria era que fosse breve. Talvez tenha sido. O pico da crise foi das cinco às sete da manhã. Duas horas não é nada.
Como passei esse par de horas? Lembro-me de meia dúzia de coisas: a almofada a tapar-me a cara, como por vezes faço a uma senhora que grita muito quando não posso incomodar os vizinhos; o ar condicionado a ser apagado e ligado quase de minuto a minuto; o frio e o calor simultâneos; os duches - pela primeira vez chateei-me por não ter água quente e por a água fria não ser fria - ; o suor; a experiência permanente de posições na cama; andar no quarto para trás e para a frente como se cada percurso fosse o Paredão; as idas estroboscópicas à casa de banho para ver se as pedras saíam; a incapacidade total de escrever (isto, aparentemente, consequência do Tramadol e não directamente do sofrimento); as náuseas, elas também consequência de um remédio que ao fim e ao cabo não me trouxe alívio nenhum - o que não foi o caso durante as dores de dentes em Red Frog, é preciso dizê-lo -.
E sobretudo a noção constante da desproporção entre a dimensão daquilo que me provocava a dor e a dor. Não há relação nenhuma, quem já passou por isto sabe-o. Um cálculo renal é minúsculo.
Retrospectivamente duas horas não é nada. Infelizmente o tempo é uma espécie de pastilha elástica que se deforma e reforma e se cospe quando já não serve para nada. E aquelas duas horas não serão cuspidas tão cedo.
Não foram duas horas. Foi uma viagem de ida e volta ao centro de mim. Todas as grandes dores, os grandes sofrimentos o são, não é?
Como passei esse par de horas? Lembro-me de meia dúzia de coisas: a almofada a tapar-me a cara, como por vezes faço a uma senhora que grita muito quando não posso incomodar os vizinhos; o ar condicionado a ser apagado e ligado quase de minuto a minuto; o frio e o calor simultâneos; os duches - pela primeira vez chateei-me por não ter água quente e por a água fria não ser fria - ; o suor; a experiência permanente de posições na cama; andar no quarto para trás e para a frente como se cada percurso fosse o Paredão; as idas estroboscópicas à casa de banho para ver se as pedras saíam; a incapacidade total de escrever (isto, aparentemente, consequência do Tramadol e não directamente do sofrimento); as náuseas, elas também consequência de um remédio que ao fim e ao cabo não me trouxe alívio nenhum - o que não foi o caso durante as dores de dentes em Red Frog, é preciso dizê-lo -.
E sobretudo a noção constante da desproporção entre a dimensão daquilo que me provocava a dor e a dor. Não há relação nenhuma, quem já passou por isto sabe-o. Um cálculo renal é minúsculo.
Retrospectivamente duas horas não é nada. Infelizmente o tempo é uma espécie de pastilha elástica que se deforma e reforma e se cospe quando já não serve para nada. E aquelas duas horas não serão cuspidas tão cedo.
Não foram duas horas. Foi uma viagem de ida e volta ao centro de mim. Todas as grandes dores, os grandes sofrimentos o são, não é?
3.7.14
Talvez
Faço testes à memória esperando que ela falhe.
Que daquela praia tenha, por exemplo, apagado
os traços irrequietos, ansiosos que nela deixámos.
Mas a memória mostra-me a areia a remexer-se
por baixo de nós. Era inverno. Tínhamos casacos, sobretudos,
cachecóis e por baixo disto tudo mãos e
peles, que lentamente se embaciavam.
Peço à memória que apague essa praia;
à praia que se imobilize;
ao mar que leve da areia o amor que nela nasceu,
às algas que preencham os buracos que na areia
fizemos e às rochas que desabem
na praia, na areia, na memória.
Havia muitas rochas na praia, mas só víamos a areia.
Vêm-me à mente os versos de Borges:
Solo una cosa no hay: es el olvido.
Dios, que salva el metal salva la escoria
Y cifra, en Su profetica memória
Las lunas que serán y las que han sido.
Recitei-to muitas vezes, mas nunca naquela praia.
Talvez o mar seja uma das formas do esquecimento.
[Não é].
Talvez o mar que tudo e sempre muda
apague da praia não os traços mas a memória.
[Não apaga].
Talvez a areia aceda, se lhe pedir,
a deixar desvanecer-se no mar
aquele fim de tarde que lhe deu sentido,
que fez dela a única praia, a única areia
o único fogo, o único sempre.
Talvez as outras praias se revoltem,
talvez unidas digam ao mar para nos apagar.
Talvez haja outras praias, quando o mar quiser e se a memória deixar.
Mas é pouco provável: solo una cosa no hay.
Que daquela praia tenha, por exemplo, apagado
os traços irrequietos, ansiosos que nela deixámos.
Mas a memória mostra-me a areia a remexer-se
por baixo de nós. Era inverno. Tínhamos casacos, sobretudos,
cachecóis e por baixo disto tudo mãos e
peles, que lentamente se embaciavam.
Peço à memória que apague essa praia;
à praia que se imobilize;
ao mar que leve da areia o amor que nela nasceu,
às algas que preencham os buracos que na areia
fizemos e às rochas que desabem
na praia, na areia, na memória.
Havia muitas rochas na praia, mas só víamos a areia.
Vêm-me à mente os versos de Borges:
Solo una cosa no hay: es el olvido.
Dios, que salva el metal salva la escoria
Y cifra, en Su profetica memória
Las lunas que serán y las que han sido.
Recitei-to muitas vezes, mas nunca naquela praia.
Talvez o mar seja uma das formas do esquecimento.
[Não é].
Talvez o mar que tudo e sempre muda
apague da praia não os traços mas a memória.
[Não apaga].
Talvez a areia aceda, se lhe pedir,
a deixar desvanecer-se no mar
aquele fim de tarde que lhe deu sentido,
que fez dela a única praia, a única areia
o único fogo, o único sempre.
Talvez as outras praias se revoltem,
talvez unidas digam ao mar para nos apagar.
Talvez haja outras praias, quando o mar quiser e se a memória deixar.
Mas é pouco provável: solo una cosa no hay.
Junta à nossa a tua Sophia
"Ele porém dobrou o cabo e não achou a Índia
E o mar o devorou com o instinto de destino que há no mar."
E o mar o devorou com o instinto de destino que há no mar."
O meu corpo e eu
De forma geral suporto bem a solidão, seja ela imposta ou escolhida. Dou-me bem comigo e com o mundo. Os únicos momentos em que o prazer de estar sozinho é posto à prova é quando estou doente, ou a sofrer fisicamente.
Não é frequente, mas acontece. A primeira vez que tive uma pedra nos rins (não estava nos rins, mas isso não interessa) as dores foram tão avassaladoras que resolvi ir ao hospital. Era domingo. O único hospital que conhecia em Lisboa, para além claro do Sta. Maria, que desde miúdo me aterroriza era o Curry Cabral e foi portanto para este que fui.
As urgências não tinham urologia, ou coisa que o valha, e sugeriram-me S. José, um hospital grande, antigo, vetusto, imponente. Sentia-me como numa das prisões de Piranesi, esmagado pela dor e pela espera.
Doutra vez parti (eu penso que não, mas isso agora é irrelevante) uma costela. Não estava sozinho, mas é como se estivesse: dois homens num quarenta e três pés à bolina com sete, oito e nove Beaufort durante quatro dias não têm muito tempo nem disponibilidade para tratar um do outro.
Metia Ibuprofenos à mão-cheia e ia fazer os meus quartos. Governava à mão quando via que era preciso ou melhor, rizava, verificava as peias das coisas que tínhamos no convés e passava torturas para me despir ou vestir. Metia os comprimidos antes de dormir e quando, duas horas depois, acordava. Íamos para as Canárias e mal chegámos desembarquei (como estava previsto) e voltei para Lisboa. Poucos dias depois as dores passaram.
Em Maputo tive a mais longa e a pior de todas as crises de Meunière. Três dias de cama, incapaz de abrir sequer os olhos. Não há grande coisa a fazer durante uma crise de Meunière se não esperar que ela passe, mas normalmente duravam três horas, não três dias (tive outra, a última até agora em Palma, mas não estava sozinho e por isso não conta).
Já passei por muitas crises sozinho. A cada uma faço o mesmo: sinto-me miserável, aguento e espero que passe.
Agora vem aí uma, de pedra. Há muito tempo que não tinha pedras, tanto que levei umas horas a identificar os sintomas e a fazer o diagnóstico.
Eu sei que não tenho tido muito cuidado com o meu corpo, e que me aproveito de ele não ser muito vingativo. Não me pede muita atenção e eu não lha dou, digamos (excepto com esta novidade do açúcar, mas como não sou muito dado a novidades desligo e acabou-se o açúcar).
O que aí vem não é uma vingança. É mais uma lembrançazita, um pequeno toque para que eu não me esqueça dele. Estou pronto para a receber. Não me importo sequer que seja violenta, como parece que vai ser. Só espero que seja breve.
Não é frequente, mas acontece. A primeira vez que tive uma pedra nos rins (não estava nos rins, mas isso não interessa) as dores foram tão avassaladoras que resolvi ir ao hospital. Era domingo. O único hospital que conhecia em Lisboa, para além claro do Sta. Maria, que desde miúdo me aterroriza era o Curry Cabral e foi portanto para este que fui.
As urgências não tinham urologia, ou coisa que o valha, e sugeriram-me S. José, um hospital grande, antigo, vetusto, imponente. Sentia-me como numa das prisões de Piranesi, esmagado pela dor e pela espera.
Doutra vez parti (eu penso que não, mas isso agora é irrelevante) uma costela. Não estava sozinho, mas é como se estivesse: dois homens num quarenta e três pés à bolina com sete, oito e nove Beaufort durante quatro dias não têm muito tempo nem disponibilidade para tratar um do outro.
Metia Ibuprofenos à mão-cheia e ia fazer os meus quartos. Governava à mão quando via que era preciso ou melhor, rizava, verificava as peias das coisas que tínhamos no convés e passava torturas para me despir ou vestir. Metia os comprimidos antes de dormir e quando, duas horas depois, acordava. Íamos para as Canárias e mal chegámos desembarquei (como estava previsto) e voltei para Lisboa. Poucos dias depois as dores passaram.
Em Maputo tive a mais longa e a pior de todas as crises de Meunière. Três dias de cama, incapaz de abrir sequer os olhos. Não há grande coisa a fazer durante uma crise de Meunière se não esperar que ela passe, mas normalmente duravam três horas, não três dias (tive outra, a última até agora em Palma, mas não estava sozinho e por isso não conta).
Já passei por muitas crises sozinho. A cada uma faço o mesmo: sinto-me miserável, aguento e espero que passe.
Agora vem aí uma, de pedra. Há muito tempo que não tinha pedras, tanto que levei umas horas a identificar os sintomas e a fazer o diagnóstico.
Eu sei que não tenho tido muito cuidado com o meu corpo, e que me aproveito de ele não ser muito vingativo. Não me pede muita atenção e eu não lha dou, digamos (excepto com esta novidade do açúcar, mas como não sou muito dado a novidades desligo e acabou-se o açúcar).
O que aí vem não é uma vingança. É mais uma lembrançazita, um pequeno toque para que eu não me esqueça dele. Estou pronto para a receber. Não me importo sequer que seja violenta, como parece que vai ser. Só espero que seja breve.
2.7.14
Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 01-07-2014
As festas juaninas acabaram e o Reviver volta à calma habitual durante a semana.
É quase meia-noite. Está tudo fechado ou a fechar. Nas ruas sobra a miséria. Há pouco vi um tipo tirar um balde de água de um esgoto. Não sei se o tinha lá escondido ou se se preparava para se lavar naquilo.
A rua cheira a mijo, mas isto é uma redundância. A rua cheira.
Não é bem boémia. É miséria e voyeurismo. Acabo uma caipirinha no Raimundo. Fez-ma grande. Por uma razão quaisquer gosta de mim. Comprei-a para lhe agradecer a password do wifi.
Eu retribuo o gosto. É um homem com quem me entendo. Não sei porquê. Há pessoas assim: não é por causa do dinheiro ou de outra coisa qualquer fácil de explicar. Deve ser uma questão de vidas, indefinível tal como, para muita gente, o amor é uma questão de pele.
Bebo a caipirinha enquanto fumo um cigarro - o segundo - e escrevo isto sentado numa cadeira à porta da tasca. Penso primeiro que é uma boa imagem. Um estrangeiro gordo e feio sentado à porta - fechada - de uma tasca imunda a fumar um cigarro e a beber um copo enquanto vai dizendo que não ao desfile de náufragos que lhe pedem "uma moedinha para comer". Mas não sei de que é a imagem: da minha vida? Do Brasil? Do Reviver? Marimbo nas imagens.
Uma dose de crack custa dois reais, menos de metade de uma cerveja.
Digo que não. Sei que daqui a duas semanas já ninguém me virá pedir seja o que for, para comer ou para comprar pulseiras ou porta-chaves (esta diz que é angolana. Talvez. Deve ter sido linda) ou nada, simplesmente "uma moedinha".
........
O trabalho no barco não começou ontem, como eu tinha pensado. Nem hoje. Esperado é mais adequado do que pensado. Se eu tivesse pensado não teria posto uma data no principio dos trabalhos. Não teria posto datas em nada.
........
É isto que me espera pelos próximos dois meses. Preparo-me como para uma travessia: ao dia.
Trinta dias no mar não são um mês. São trinta dias. Dois meses em S. Luís não são dois meses. São sessenta vezes um dia.
Tal como uma vida é todas as vidas que nela vivemos, sucessivamente e por ordem.
É quase meia-noite. Está tudo fechado ou a fechar. Nas ruas sobra a miséria. Há pouco vi um tipo tirar um balde de água de um esgoto. Não sei se o tinha lá escondido ou se se preparava para se lavar naquilo.
A rua cheira a mijo, mas isto é uma redundância. A rua cheira.
Não é bem boémia. É miséria e voyeurismo. Acabo uma caipirinha no Raimundo. Fez-ma grande. Por uma razão quaisquer gosta de mim. Comprei-a para lhe agradecer a password do wifi.
Eu retribuo o gosto. É um homem com quem me entendo. Não sei porquê. Há pessoas assim: não é por causa do dinheiro ou de outra coisa qualquer fácil de explicar. Deve ser uma questão de vidas, indefinível tal como, para muita gente, o amor é uma questão de pele.
Bebo a caipirinha enquanto fumo um cigarro - o segundo - e escrevo isto sentado numa cadeira à porta da tasca. Penso primeiro que é uma boa imagem. Um estrangeiro gordo e feio sentado à porta - fechada - de uma tasca imunda a fumar um cigarro e a beber um copo enquanto vai dizendo que não ao desfile de náufragos que lhe pedem "uma moedinha para comer". Mas não sei de que é a imagem: da minha vida? Do Brasil? Do Reviver? Marimbo nas imagens.
Uma dose de crack custa dois reais, menos de metade de uma cerveja.
Digo que não. Sei que daqui a duas semanas já ninguém me virá pedir seja o que for, para comer ou para comprar pulseiras ou porta-chaves (esta diz que é angolana. Talvez. Deve ter sido linda) ou nada, simplesmente "uma moedinha".
........
O trabalho no barco não começou ontem, como eu tinha pensado. Nem hoje. Esperado é mais adequado do que pensado. Se eu tivesse pensado não teria posto uma data no principio dos trabalhos. Não teria posto datas em nada.
........
É isto que me espera pelos próximos dois meses. Preparo-me como para uma travessia: ao dia.
Trinta dias no mar não são um mês. São trinta dias. Dois meses em S. Luís não são dois meses. São sessenta vezes um dia.
Tal como uma vida é todas as vidas que nela vivemos, sucessivamente e por ordem.
Sim, simetria
Sim é a palavra mais bonita de qualquer língua. Sim, oui, yes, si, da, ya. Sempre curta, generosa e simétrica: tão boa de ouvir como de dizer.
É a simetria que lhe dá a beleza.
É a simetria que lhe dá a beleza.
Autoridade, moral
Os assuntos que envolvem autoridade moral - ou a falta dela - são por vezes bastante fáceis de resolver. Mas regra geral é o contrário: são difíceis, complexos e complicados.
Uma pessoa que não tem autoridade moral para julgar um determinado acto deve calar-se, ponto (e quando tem também deve abster-se de julgar, mas isso é outra história).
Contudo a potencial imoralidade do acto não desaparece, tal como o mundo quando fechamos os olhos.
Uma pessoa que não tem autoridade moral para julgar um determinado acto deve calar-se, ponto (e quando tem também deve abster-se de julgar, mas isso é outra história).
Contudo a potencial imoralidade do acto não desaparece, tal como o mundo quando fechamos os olhos.
1.7.14
Zeitgeist
Nunca consegui respirar o ar do tempo. Sempre respirei o meu, por muito fétido e poluído que fosse. Que seja.
Uma merda, é o que é.
Uma merda, é o que é.
Multidões
Seria preciso pôr o coração de lado? Cortá-lo em bocados pequenos e dar cada um dos pedaços a cada mulher que amaste?
Talvez. Nisto do coração a simultaneidade é essencial. O coração é por excelência o órgão da sincronia, da reciprocidade - o nome que o coração dá à sincronia.
Na verdade pouco me interessam a sincronia, a reciprocidade, os bocados de coração, essas merdas todas que ele inventa para nos enganar.
Os corações ou vêm inteiros ou não vêm. A sincronia não existe. Estamos sempre uma vida atrasada, ou adiantada. Quando andamos ao lado de alguém somos três, dizia não me recordo quem.
Eu diria que somos uma multidão. Ou que nunca andamos ao lado de alguém.
Talvez. Nisto do coração a simultaneidade é essencial. O coração é por excelência o órgão da sincronia, da reciprocidade - o nome que o coração dá à sincronia.
Na verdade pouco me interessam a sincronia, a reciprocidade, os bocados de coração, essas merdas todas que ele inventa para nos enganar.
Os corações ou vêm inteiros ou não vêm. A sincronia não existe. Estamos sempre uma vida atrasada, ou adiantada. Quando andamos ao lado de alguém somos três, dizia não me recordo quem.
Eu diria que somos uma multidão. Ou que nunca andamos ao lado de alguém.
Viver
Há quem coma a vida de garfo e faca e depois limpe, delicadamente, a boca com o guardanapo das convenções, ou o do saber viver. São muito parecidos, é compreensível.
Eu não. Como a vida à tripa-forra, com as mãos, os pés e a pila. Mordo-a, fodo-a e bebo-a porque cada vida é um dia, um dia e uma noite. Acordas morto e ressuscitas e vives e morres de novo tudo de seguida, todos os dias, cada dia.
Depois, claro, vomito-a nas esquinas da dor. Que isto de viver não é só comer e beber e foder e morrer. Há que sofrer e vomitar.
E viver.
Eu não. Como a vida à tripa-forra, com as mãos, os pés e a pila. Mordo-a, fodo-a e bebo-a porque cada vida é um dia, um dia e uma noite. Acordas morto e ressuscitas e vives e morres de novo tudo de seguida, todos os dias, cada dia.
Depois, claro, vomito-a nas esquinas da dor. Que isto de viver não é só comer e beber e foder e morrer. Há que sofrer e vomitar.
E viver.
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