31.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 30-12-2020

 Por onde começar? Cronologicamente:

- A Ler por aí... fechou. De certa forma, é uma a porta que se fecha, de outra uma que se abre. Prefiro esta versão: um porta que se abre;

- Mais um jantar maravilhoso no Qozco. Um restaurante ao qual é de acorrer em massa, impedir que feche, temos que lutar contra a insanidade ambiente. Sinto-me burro cada vez que lá vou: como não fui antes? Que comida inacreditável de boa, que simpatia no serviço, que tudo de tão bom!

- No caminho para casa, exposição do Sebastião Salgado na rua Augusta. Cada vez que vejo qualquer coisa do homem penso na história do fotógrafo francês chegado a Bujumbura num avião de carga, deitado em cima dos sacos de já não sei o quê. Provavelmente, arroz. Já aqui a contei, deve andar por aí algures. Externalidades: a música horrível, xaroposa e mal tocada de um desses tocadores de acordeão romeno (ou coisa que o valha); a luz, insuficiente a partir de  metade da mostra; a distância entre as fotografias, demasido grandes para o demasiado perto que estavam. Internalidades: sem ser grande fã do senhor, é forçoso reconhecer que é um grande fotógrafo. Não é o génio que a esquerda faz dele nem a nulidade que a direita pinta. Amanhã volto lá.

- Mexi nos botões do telecomando da televisão e descobri que a Mezzo tem (pelo menos) dois canais. Sou de reacções lentas, eu sei; algumas são imperdoáveis, de tão demoradas.  Estou nesta casa há mais de um mês e desde que pus a televisão a funcionar e encontrei a Mezzo nunca mais mexi nos canais. No Mezzo que até agora tenho ouvido desde esse dia, um músico falava da desigualdade de salários entre homens e mulheres. Faço parte daquele grupo de pessoas para quem os músicos devem fazer música, coisa em que são normalmente muito bons (pelo menos aqueles de quem gostamos) e não devem falar, actividade em que deixam invariavelmente a desejar. Tudo o que vá para além de «Hello, are you allright?» no palco é prescindível. (No limite, mesmo esta pergunta o é. Já todos sabemos a resposta.) O único músico que valia a pena ouvir falar era Leonard Cohen e esse já não pode fazê-lo, para generalizada lástima da humanidade (e Frank Zappa, às vezes). De maneira atirei-me a um dos telecomandos (as televisões agora têm dois, suponho que por uma questão de igualdade de género ou de paz nas famílias) e tenho música decente, uma senhora cujo nome ignoro a cantar scat (e palavras) sumamente bem, acompanhada por um pianista assertivo, como agora se diz, um baixo que faz aquilo que todos os bons baixos fazem - fazer-se ouvir sem se fazer ver - e um baterista para cima do correcto.

- Tudo isto acompanhado por um vinho tinto da Adega de Vila Real, um real vinho da adega, um real prazer da vila, uma delícia de tinto que me trouxe à memória um senhor da «Bila» (aspas porque cito) que gosto de ler, as francesinhas de um restaurante dali que eram tão boas que voltei lá para ter a certeza (eram). Preciso de voltar para Palma - todo o meu cérebro mo pede - mas um dia descobrirei que o caminho entre dois pontos aleatórios deste planeta passa por Portugal todo, de sul a norte, em ziguezague como se estivesse à popa arrasada (ou à bolina cerrada, para quem preferir).

30.12.20

Status

Em Portugal, o telefone não é um instrumento de trabalho. É um utensílio de status. Um assunto que falando se resolve em trinta segundos exige o envio de um e-mail, pela simples razão de que a pessoa com quem precisamos de falar não responde a telefonemas de pessoas que não conhece. Se for uma «celebridade» (entre aspas porque é irónico) olaré se não responde logo. Resultado - perde-se tempo a escrever, perde-se tempo a ler (se o ler, o que admitidamente nem sempre é o caso por manifesta «falta de tempo») e perde-se tempo a responder (ditto). O mesmo se aplica à pontualidade - chegar atrasado é mostrar ao outro que se é dono do seu (dele, outro) tempo. Espero ansioso o momento em que ser educado volte a ser um símbolo de status. Ah, e a eficiência também.

29.12.20

Ironia da poupança

Beber vinho «caro» por não ter dinheiro para comprar vinho barato (aspas porque chamar caro àquilo é como chamar mar a um lago, coisa reservada aos teutões e outras gentes poupadas).

Ficção, não-ficção

Vou regressar à não-ficção. Ler romances e poesia é necessário, mas não é suficiente. 

Tudo, nada

Vejo-te, mulher, cesta carregada de paz, fruto maduro de se morder para a vida, noite que se alegra ao ver-te, dia que sem ti vagueia sem destino, orla de uma costa desenhada dedo a dedo, sorridente e hospitaleira. Acolhes-me como a luz do farol acolhe o navegante exausto. Passeio-me em ti como no deserto o homem perdido se reencontra repentinamente depois de perder a solidão. 

Trazes-me a paz e eu nada tenho para te dar em troca: tudo contra nada.

Conversas de noite

O melhor é apagar a luz e esperar tranquilamente que o dia chegue, carregado de vinho, nozes e figos, um dia mediterrânico, dia ventre do mundo, berço da civilização, dia de palavras auto-sustentadas, palavras de andaimes interiores, de mares traço de união, mares súbitos, repentinos, inesperados.

Esse dia chegará. Basta apagares a luz e esperar. Tudo acontece quando a brisa de um mar longínquo te chega à noite.

Falta-te uma noite no mar. O movimento de um casco, o suspiro satisfeito e saciado do corpo que deixaste no camarote para entrares de quarto, a Lua demasiado irrequieta para te indicar o caminho, o café que te aquece os dedos e o desejo. Nada ver senão por vezes os clarões do verde e do encarnado, o branco esganiçado dos panos, a conversa da proa com as vagas, o adeus líquido da esteira, o negro, agora que a Lua se pôs nas bandas do Oeste. Não tarda o dia, mas tu preferias que ele não viesse já: queres ouvir o que não vês, ser parte integrante dos diálogos, queres não-ver, simplesmente. O que não se vê lá fora desenha-se claramente cá dentro. Os teus olhos abrem-se, do tamanho do mundo.

É noite, não vês nada e nada te vê. Excepto tu a ti, o mar o casco, o vento o pano: é a melhor conversa do mundo, antes da luz  chegar. 

28.12.20

Obrigado a todos os denunciantes que durante esta crise nos defenderam (e ainda defendem)

Cara -----, obrigado! Obrigado por nos defender, obrigado por denunciar quem não pensa como V., obrigado por lutar tão afincadamente pela Verdade, com V grande. A história está cheia de pessoas que sabiam o que era a verdade - desde Lenine a Pinochet, paassando por Staline, Mao Ze-Dong, Franco, Vilela - e infelizmente foram afastados dos lugares em que nos podiam defender. 

A minha gratidão é imensa, vasta como as estepes siberianas onde quem não acreditava na Verdade ia purgar os seus (deles) miasmas infectos. Detesto dissidências. Devem ser denunciadas, já! Só perigosos agitadores pensam diferentemente de toda a gente. Veja-se o que aconteceu com aquele inominável que descobriu que a Terra se move à volta do Sol e não o contrário: abriu o caminho a Newton, depois a Eisntein. Daí à bomba atómica foi um passo. 

Obrigado! Graças a si, o mundo é um lugar mais seguro, mais aprazível, mais humano. Todos estaremos vacinados, todos usaremos máscaras porque apesar da vacina nunca se sabe, todos nos cumprimentaremos com os cotovelos (até o senhor da OMS dizer que isso também não é seguro, como já disse mas ninguém ouviu, o que explica a explosão de «casos»). Nunca mais abraceremos e beijaremos os nossos avós, porque podem morrer, coitados. 

Graças aos denunciantes os velhos terão uma velhice maravilhosa, afastada daqueles que amam e os amam, isolados em casa e em lares, protegidos. Graças a si, cara ----,  impediremos estas opiniões nefastas de se difundir. Obrigado!

Manifesto anti-frio

A única verdadeira revolução de que Portugal precisa é acabar com o frio dentro das casas. Proponho que se faça um manifesto anti-frio, subscrito em primeiro lugar por quem já viveu em países simultaneamente civilizados e frios. Numa segunda fase, as pessoas de idade superior a cinquenta anos. Terceira fase: crianças, adolescentes e jovens adultos. Quarta fase: restante população. Políticos não teriam direito a subscrever o documento nem, por conseguinte, a receber o dito fim do frio, se e quando ele chegasse.

PS - com a óbvia excepção dos políticos de quem eu gosto. Esses teriam direito. Claro.

O corpo, numa planície, nu

O corpo deixa-te, pouco a pouco. Vai-se tudo embora: os olhos, os ouvidos, a força, a vontade... Tudo. Ficas nu. À tua volta uma planície sem fim, desolada, cheia de animais jovens e belos. Começas a embuscar os mais velhos, os mais feios do que tu, a acarinhá-los. São eles que te dão a ilusão de que viver nu no meio da planície é possível. Tu sabes que é uma ilusão, mas não te preocupas. Importante é mantê-la controlada, seres tu o mestre. A savana à tua volta é abominável. Dois blocos de basalto, surdos, ignaros de conceitos como bondade, empatia, compaixão guardam-lhe a entrada. Tu olhas, sozinho, vês passar o teu antigo corpo, já te pertenceu, já foi teu, mas se o puseres agora não te serve. O quadro é simples: amarelo, o negro dos basaltos, corpos de todas cores. Às vezes chove. A planície reverdece, a água chilreia nos canais, os animais deixam-te em paz, os basaltos transformam-se e adquirem uma aparência humana. Há vida, temporariamente. Depois esvai-se e leva-te mais um bocado do corpo. Tudo volta ao normal. Aprendes a respirar lentamente, a ver devagar, a ouvir em surdina, como se o teu interlocutor fosse uma vasta gama de silêncios. Silêncios de todas as cores, gama toda da ausência de sons. Os teus movimentos tornam-se bruscos, descontrolados, azedos. Não vês, não ouves. Resta-te a voz, o olfacto, o... não, o tacto também já foi. 

As cores, os sons, os corpos fundem-se numa lava escura e fria, colante. Enterras-te. O teu corpo transforma-se numa vasta gama de nadas. As palavras deixam de ter sentidos: são dispensáveis. 

Sem palavras e sem corpo és - finalmente - livre.

27.12.20

«Não avançamos para a verdade. Mudamos de dogmas, é tudo»

Estamos em período de mudança de dogmas. A dificuldade para quem não é nem foi dogmático é saber que se está o trocar um dogma por outro que não é mais verdadeiro - mas que por ser mais novo é mais dogmático. O problema não é geracional: quantas pessoas da minha idade abraçam as causas dos animais, do ambiente, da «igualdade», da inclusão, das «alterações climáticas» (entre aspas porque ninguém contesta que as há; contesta-se é se há alguma coisa a fazer que não seja pior do que adaptarmo-nos a elas - questão a que a Covid veio dar uma luz aterradora). Estes novos dogmas estão a pôr em causa muitas das conquistas que fizeram da nossa civilização aquilo que ela é - a importância fundamental da liberdade, do quadro jurídico, a noção de que fé é uma coisa e conhecimento outra, bastante diferente, a noção de que somos ou devemos ser todos iguais perante a lei, a ideia de que «somos todos iguais, braços dados ou não» (admitidamente, com um interpretação de «iguais» diferente da do autor. Mas o espírito é esse: «braços dados ou não.»)

Os dogmas que aí vêm - ou já estão - cilindram todos esses conceitos e não os substituem por nada melhor. Eles também suscitarão, a seu tempo, reacções tendentes a repor o fiel da balança a caminho do centro. Daqui a trinta anos, a palavra gay será tão inaceitável como maricas é hoje (e haverá pessoas a lutar pelo direito de a usar, como hoje há quem resista e continue a dizer maricas, porque não lhe dá nenhuma conotação pejorativa e não vê razão para tanta sanha contra o léxico, porque não reconhece às palavras o poder de mudar o mundo. É este que as muda, não aquelas este).

Uma das constatações mais desagradáveis é a de que Deus afinal não morreu. Estilhaçou-se em mil bocados, cada um deles suscitando a sua própria mini-religião, laica e tão ferozmente oposta à racionalidade como qualquer das grandes fés (o que é diferente de religiões, que não só não se opõem à racionalidade como a estimulam).

O mundo que aí vem e que deixamos aos nossos filhos - e netos, estas transformações são lentas - não será nem pior nem melhor do que o nosso. Será diferente, melhor para uns e pior para os outros, como o nosso não foi igualmente bom para todos.

A única coisa que podemos e devemos fazer é deixar aos nosso filhos uma caixa de ferramentas intelectual que lhes permita destrinçar os dogmas do resto e aprender que é esse resto que conta, não os dogmas.

Micro-jogo

Era como se estivéssemos a jogar pinguepongue, mas em mesas separadas. Ela numa, eu noutra, ao lado. Ouvíamos o barulho das bolas, mas nunca conseguíamos devolvê-las. Um dia, trocámos as duas mesas por uma cama e acabámos com o jogo.

Frio

A solução é relativamente simples e fácil de encontrar: erguer diques contra o que vem de fora e impulsionar o que vem de dentro. Os diques devem ser selectivos e separar o bom do mau. Idem para os mecanismos interiores, por difícil que seja encontrar qualquer coisa boa cá dentro. Alguma haverá. «Fugir para dentro», como dizia Nuno Júdice. Diques filtrantes, inexpugáveis mas permeáveis, Filtrar, filtrar, eis a palavra chave. Reduzir a quase zero, mas não a zero. Filtar o que entra, expulsar o que está dentro, miasmas, eflúvios a esgoto, pestilenciais, cheiro a lepra.

Expulsa tudo. Em troca, terás frio, mas antes isso. 

II

Que frio? Há uma discrepância entre o frio que vem de fora e o que vem de dentro? Trata primeiro do exterior. Começa pelo mais fácil. Cobre-te dos pés à cabeça, bebe vinho quente, refugia-te numa gruta aquecida, tapa-lhe a entrada com um rochedo. Aquece-te. Só depois estarás em condições de tratar o outro.

Imóvel. Quanto mais quieto estiveres, mais depressa eles sairão.  Olha-a nos olhos. Não tenhas medo. Deixa-os partir. Um dia partirás tu também. Sem medo.


26.12.20

Razão, rebeldia

O problema é a pressão social, ampliada pelas "redes sociais" (aspas porque cito). Voltámos ao tempo das aldeias, só que agora não conhecemos os vizinhos. Sou um optimista: acredito nos pêndulos e na rebeldia. Esta nunca morrerá, aqueles nunca cessarão. C. diz-me que a sinusóide é atenuada e que o pêndulo parará. Sim, claro, mas não será amanhã a véspera. E que fosse. Nada podemos fazer, se não manter a dignidade, a calma. Levamos o féretro ou só o vemos passar? Com um pouco de rebeldia, talvez consigamos alterar-lhe a trajectória. A verdade é que a nossa civilização já morreu mil vezes, desde os gregos e a seguir os romanos, os bárbaros, a Idade Média, a Renascença... Nunca deixámos de morrer e de continuar vivos. 

A civilização ocidental não vai durar sempre, claro. Mas não serão os novos dogmas a dar cabo dela. Todas as sociedades vivem de e com mitos. Há palermas que acreditam no poder salvífico dos automóveis eléctricos, na "pegada ecológica" (aspas porque não gosto de palavrões), no "género" (ditto), no poder do homem para mudar o clima? Sempre houve palermas e mitos. Já se queimaram mulheres por andarem montadas em vassouras, ou se acreditou que as doenças eram provocadas pelos pecados dos homens. Já se pensou que a Terra era o centro do universo ou que os corpos mais  pesados caem mais depressa do que os outros. (No vazio não caem, mas sem vazio é difícil acreditar nisso.) E nada nem ninguém impediu Galileu, Copérnico, Spinoza, Mozart, Beethoven, von Bingen, Agostinho, Bach, Einstein e tantos outros de existir. A inteligência não vai desaparecer, vai simplesmente mudar. Talvez no futuro um teste de QI seja feito baseado em jogos de computador, caso em que qualquer puto de hoje bateria qualquer Wittgenstein. Mas não deixará por isso de ser inteligente. 

Quando as mudanças apareceram nas bicicletas, muita gente reclamou: o "verdadeiro" ciclismo era em bicicletas sem mudanças (e de cubo fixo, ainda por cima). Não é. Salva a possível excepção do doping, o ciclismo de hoje é tão verdadeiro como o do passado. O futuro não será necessariamente melhor do que o presente, mas tão pouco será pior.

Não sei. As civilizações acabam, sem dúvida.  Não me parece que o fim da nossa esteja ao virar da esquina. Seria uma lástima que o ultimo acto ficasse associado a um estúpido vírus que não sabe sequer fazer mal a quem não padece de outras (muitas e graves) maleitas. É verdade que a estupidez - ou melhor, a histeria - que este vírus revelou pode legitimamente levar a pensar que o fim está próximo. Uma civilização com os meios técnicos da nossa não consegue reagir racionalmente a isto?

Desde a Idade Média que andamos a lidar com histerias colectivas (documentadas. Não registadas deve ter havido muitas antes disso). Esta não é diferente. Não mudámos. Não vamos desaparecer amanhã. Vamos continuar a ser os homens imperfeitos que sempre fomos, nem melhores nem piores. 

E sim, sobreviveremos à pressão social, porque a razão e a rebeldia não desaparecerão. Afinal de contas, estão connosco há milhares de anos. Jesus, esse magnífico rebelde, limitou-se a consolidá-las, a dar-lhes um âmbito mais vasto.

25.12.20

Definição

Sono: gerar calor, aprisioná-lo, usufruir dele sem o sentir.

Instruções

Simples questão de ver claramente, apesar do nevoeiro espesso e branco como puré de batata. Adivinhar como quem vê. Fazer da suposição certeza.

Ver como um cego.

Nota bene

(Pequena nota à parte: certificar-me duas vezes por dia de que não estou com o síndrome da hiena.)

Diário de Bordos - Lisboa, 25-12-2020

Estou com saudades da neve, de frio a sério, de casas aquecidas, de fondue e de raclette.

Uma cidade coberta de neve é como chegar a casa e ver o corpo amado adormecido debaixo de um edredom espesso, leve e macio. O melhor da neve é o silêncio. A cor e a luz vêm depois. E a ausência de ângulos agudos. A neve arredonda e suaviza tudo por onde passa e se poisa, absorve os ruídos, silencia os passos e distrai o olhar, incapaz de se fixar num ponto concreto.

Mas como quem não tem neve tem amigas e uma bicicleta Vitus, "vou levando". O jantar foi bacalhau cozido, um dos meus pratos favoritos; a amiga e anfitriã foi a M.,  daquelas amizades que vão crescendo dia a dia, palavra a palavra, olhar a olhar, sorriso a sorriso, silêncio a silêncio... sei lá, peça a peça, daquelas que fazem da amizade aquilo que é. O regresso a casa foi rápido. Descer leva menos tempo do que subir, faça-se o que se fizer (falo de bicicletas a pedais. A electrons é outra história, menos agradável). 

A bicicleta é um meio de locomoção maravilhoso. O resto é conversa de pedalar na maionese. Tem o defeito de não ser prática na neve. Não faria aquelas descidas se as estradas estivessem brancas (e as subidas tão pouco, mas por outra razão).

Acho bem: deixa-se a neve para a nostalgia, a amizade e os pedais para hoje. É uma boa divisão de tarefas emocionais. (Curioso, este calendário: só tem hoje e amanhã. Tudo o que ficou para trás tem o nome genérico de "Nostalgia".)

Feliz Natal! (Isto é simultaneamente uma exclamação de júbilo, uma descrição e um voto dirigido a todos os que me lêem.)

24.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 24-12-2020

Dióspiro é fruta fugidia, fogo de Zeus, fruto dos deuses, fruto para todas as horas. Há melhor coisa de se comer à uma da manhã, hora de cama para os senhores do Olimpo, hora de saída para a galdéria da insónia? Não, não há. (Aproveita-se e fico a saber porque fazia uma enorme confusão entre kaki e dióspiro: são a mesma coisa. Passa-se de fogo e deuses para calças e calções num abrir e fechar de olhos.)

Ou seja: começo bem o dia de Natal. Vou jantar a casa da M., que teve a simpatia de me convidar. Verdade seja dita que o convite tem 99,98% de amizade e 0,02% de simpatia (Não!, não estou obcecado com a Covid!) O que não retira valor nem a uma nem a outra, claro. Amanhã o almoço será em casa da T. Isto é que vai ser um Natal! 

Agora só falta que o pai do dito pense no P. e me ponha uma viagem para Palma no sapato. (Não disse que dióspiro era fruta fugidia? Começou na cozinha aqui ao lado e acaba em Maiorca. "Não há machado que corte / a raiz ao pensamento"...)

E ao tempo? Ao tempo sim: decidi que os degraus vão ser baixinhos e subidos um a um. O primeiro vai ser tratar da vista. Voltar a ver normalmente parece-me um objectivo legítimo. Meio surdo e meio cego é forma errada de entrar na terceira idade, que está aí tão perto. A seguir virá outro e depois outro e depois por aí acima até sair do buraco. Sempre fui o meu melhor antidepressivo e ainda não passei do prazo. O princípio activo está cá e bem activo, seja Deus louvado e agraciado.

Se um dia aprendesse a cantar sem assustar quem me ouve, a minha primeira canção seria um lauda. A seguir, um Deo gratias (sou ateu, mas não tenho repugnância nenhuma pela palavra Deus). Depois, viriam as outras todas, ao molhe. Até acabar com o Leonard a cantar Hallelujah, Avalanche, Anthem, Dance me to the end of love e eu a ouvir enquanto construía altares: para as mulheres que amei, para as que não amei, para as que me deixaram e - finalmente, o maior de todos - para as que amei, deixei e ainda amo. Broken hallelujah, Leonard, if it be your will (that I speak no more... If it be your will to let me sing). Hey, that's no way to say goodbye. Não há boas maneiras de dizer adeus, Leonard. Com a admitida excepção daqueles que se transfomam em olá, ou nunca deixaram de o ser. Olá, adeus, olá... Há antónimos que parecem tranças ou irmãos gémeos.

A noite avança, a galdéria vai para a cama com tudo o que lhe aparece pela frente. Agora está com o Cohen, não tarda será o gajo dos Magnetic Field, também percebe de amores e das diferentes formas de riso que exigem. Não sei. Ela que faça o que quiser.

Charlotte Gainsbourg, L'un part, l'autre reste.

Vá, estúpida, deixa-te de pieguices. Vai para a cozinha.

23.12.20

Lisboa, não me digas que me amas, eu acredito

O "gambrinus" da Casa da Índia - um honorável, antigo, bonito e sério restaurante sito ao Calhariz - chama-se, simples e humildemente, "mista" (ou "imperial mista", para quem não gosta de atalhos ou é recem-chegado às fainas). O nome, justo é dizê-lo, é o mesmo em todas as casas com a antiguidade, a experiência, a humanidade da Casa da Índia, onde hoje não resisti a vir beber uma mista e comer um pastel de bacalhau.

Já fui cliente frequente desta casa. Hoje não sou. Mas a fidelidade, a lealdade, a profunda emoção que sinto quando vejo estas mesas corridas cheias de gente aos gritos, às amizades, às promessas de "vamos embora, este é o último", às anedotas com duzentos anos (agora calhou a do Black and White em copos separados) - essas são as mesmas. Há tempos, escrevi que amar África é como amar uma mulher bela que nos trai constantemente. 

Vou ter de adaptar o dito a Lisboa, cidade que não me trai - nunca me traiu - mas por vezes me faz declarações de amor às quais preciso de muita força para resistir e não levar a sério.

Dissociações

a) Entre o meu cérebro (coitado!), os meus dedos e o teclado do meu computador (ou caneta, quando é o caso);

b) Entre o meu profundo e irremediável ateísmo e a clara preferência que tenho por Jesus sobre Maomé ou Buda;

c) Entre a minha carteira e o meu (inexcedível bom) gosto;

d) Entre a minha vontade de beber um bom café e a falta de vontade de o fazer.

Ovos podres

Fui bloqueado no Facebook. Não por causa das minhas opiniões sobre a trágica palhaçada que vivemos, mas devido a uma ironia, claramente identificada como tal.

Há três hipóteses:

a) O bloqueio foi decidido pelo algoritmo. É a minha preferida, se bem me pareça estranho a "máquina" ter levado quase dois dias a reagir.

b) Foi decidido por um censor humano. A ser verdade, o Facebook tem um sério problema de recrutamento. 

c) Fui denunciado. Pouco provável e não vale a pena perder muito tempo com isso. O comentário "faltoso" estava na página de uma escritora e é quase impossível que os outros comentadores não tivessem visto a ironia - repito, claramente identificada.

Seja qual for, isto está a tornar-se grave. Lembram-se d'O ovo da serpente, do Bergman? Lembrem-se. E também do Cabaret, de Bob Fosse: enquanto cantamos e rimos, o ar começa a cheirar a ovos podres.

Futuro radioso

Se os problemas fossem tempestades, os meus já teriam dado duas voltas ao alfabeto. Prefiro não falar neles. Primeiro, porque não quero pôr metade do país a chorar, distraindo-o assim de coisas mais importantes como a Covid, as eleições presidenciais, o futebol (sou eu que ando distraído ou não tem havido jogos?) a vaca da Cristina, o português do primeiro-ministro, o Brexit, os presentes natalícios, as restrições à mobilidade no Tibete, a conjunção de dois grandes planetas do sistema solar, o nível do défice nacional, a aterradora falta de piada da vasta maioria dos humoristas portugueses, a falta de gelo com que se debatem os ursos (polares e outros), a hipótese, cada vez mais provável, de que o vírus chegou à Europa num pacote de farinha Amparo, a terrível solidão dos índios Guarani no espaço de dia que vai do fim da sesta à hora de jantar e - finalmente - o gravíssimo estado da cadela da vizinha que passa os dias a uivar à Lua (isto é,  a vizinha).

Em segundo lugar, porque detesto a palavra problemas e não tenho paciência para aquilo que ela designa (frequentemente, de passagem se diga, com o ar trocista de quem diz "Achas isso um problema? Espera e vais ver o que é um problema").

Por isso, prefiro falar de outras coisas. Como por exemplo: que espera o Papa Franciscos para canonizar a merda e declarar 2020 "O ano da Santa Merda"? Poder-se-ia assim mandar os problemas à merda e ganhar uns tempos no purgatório - ou mesmo no céu, se eles  nos ouvirem e forem obedientes.

Assim se vê porque detesto a palavra problemas: mesmo não gostando dela passa os dias ao meu lado e não desaparece. Faria se gostasse? Forçoso é reconhecer que o ano começou bem, há dois séculos em Dusseldórfia, mas daí para cá tem sido um prece ascendente à santa merda, um prece sem parar, uma prece urrada. 

Há pouco li um poema muito bonito segundo o qual tudo começa por um abraço. Não posso estar mais de acordo. Só peço é ao senhor que manda nisto tudo: "diga ao ano 2020 para ir abraçar outro, por favor. É que se isto é só o princípio, dispenso o abraço". Não é. É o fim (do santo ano da merda e do abraço). O futuro é radioso, toda a gente sabe. 

A começar por mim.

21.12.20

Toda a gente

Como toda a gente, sou capaz de distingir as opiniões das pessoas que as pensam, formulam e emitem; e como toda a gente, dou mais valor à pessoa do que à opinião. Uma pessoa decente com uma «má» opinião é preferível a um sacana com uma «boa» opinião. 

(«Toda a gente» sendo aqui sinónimo de »toda a gente que me interessa».) 

Diário de Bordos - Lisboa, 21-12-2020

Antigamente, no Gambrinus empilhavam-se pires para se manter a conta dos gambrinus que lá se bebiam. É uma forma bonita de contar os copos, mais do que assentá-los num papel ou num computador. Não sei se ainda hoje é assim: não vou àquela casa desde o grande terramoto de 1755, mas hoje pensei nela. A minha forma de contar os ti'punch que bebo é manter dentro do copo os quartos de lima que fui usando. O princípio é o mesmo, se bem o método dos pires seja mais bonito. Hoje pus o Mingus no iucoiso e fui bebendo ti'punch - não ao ritmo da ira do homem, seria demasiado frenética - mas ao meu ritmo, melancólico, ritmo de prisioneiro. 

A liberdade absoluta é a prisão absoluta e tal como esta, aquela não existe: todos estamos presos a qualquer coisa, seja ao John Zorn que agora oiço, seja aos afectos, ao dinheiro (ou falta dele), a um corpo e uma mente que se esperam ou desejam, seja ao que for que erijamos em prisão. «Cada homem escolhe as prisões que mais lhe convêm e é a essa escolha que se chama liberdade».

A ironia do Zorn faz-me rir. Aí está outra prisão: o humor. É uma das piores, porque simultaneamente nos prende e nos liberta. Prisão chave das outras prisões todas. 

Estou preso em Lisboa pela razão simples de que não é aqui que devo estar, mas é aqui que tenho de estar. Tanto gostaria eu de resolver de uma vez por todas estas duas dicotomias: entre o que tem de ser e eu gostaria que fosse, entre o que tem de ser e eu que eu gosto que seja. Lisboa está triste, mas assim estará Palma, assim estão todas as cidades vítimas desta loucura. Cada vez acredito mais nos mecanismos neurológicos das religiões, sejam elas sacras ou laicas. Não é de certeza por acaso que se reage hoje a um vírus como se estivéssemos na Idade Média. A diferença sendo que ontem se invocava Deus ou o demo e hoje se invoca a ciência - da qual a maioria sabe tanto como sabia de Deus há uma dúzia de séculos.  O denominador comum é o medo e esse medo não nasce do acaso. Antevejo com prazer um regresso à leitura de não-ficção. A neurologia deu passos de gigante desde o Changeux, o Laborit, o Monod, o Jacob (e os outros todos que li na mesma leva e não são dessa área). Mas sim, vou voltar a essas leituras, vou investigar os novos autores dessas áreas, vai ser bom. Je suis devant ce paysage féminin / comme un enfant devant le feu vai tornar-se Je suis devant cette perspective de connaissance / comme un enfant devant le feu. Venham eles, assim me volte a vista.

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Fazem-me tanta falta, os livros...  Quanto tempo mais passarei sem eles?

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Aqui agora ponho oficialmente fim aos ti'punch do dia. Amanhã há mais, se houver amanhã (lamechice, estúpido. Amanhã haverá sempre. Tu é que poderás não estar cá para os ti'punch do futuro, mas sobre isso não vale a pena atardares-te, ainda te atordoas e de nada te serve).

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Calhou-me a sorte de nascer num país no qual não sei viver e de que gosto muito para lá do que seria razoável, dada esse triste incapacidade. Uma gruta com livros e sem sombras, por favor. Ao pé do mar, claro, com um veleiro amarrado lá em baixo, coisa pequena, um trinta e cinco, quarenta no máximo, para levar alguns amigos de vez em quando. Ou o «meu» P., tão lindo, num porto à minha espera para quinze dias ou vinte, ou trinta de descoberta.  Nada de complicado. Basta encontrar a gruta.

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A Nuvem do não-saber inclui a «curiosidade intelectual» no rol de «comportamentos indignos e desordenados» (não é bem assim, mas para o efeito serve). Por muito que aprecie os místicos e por vezes os inveje - o primeiro céptico que não lamente a certeza levante o braço - este é o género de diktat que me afastará deles para sempre.

Deixo o parágrafo completo, que é bem bonito: «Não quero dizer que haja pecado grave em todos estes comportamentos, ou que todos os que agem dessa forma sejam grandes pecadores. O que eu digo é que, se tais comportamentos desordenados e indignos dominam uma pessoa a ponto de ela não ser capaz de os abandonar quando deseja, são sintomas de orgulho e curiosidade intelectual, exibicionismo e excessiva ânsia de saber. E em especial são autênticos sinais de instabilidade do coração e inquietude mental, e denotam ausência do trabalho que vem sendo explicado neste livro. ...»

(A lista dos comportamentos indignos, etc. é vasta e inclui coisas como «torce[r] a cabeça de forma estranha», «não cessa[r] de apontar ora para os dedos ora para si mesmos», etc. O mais bonito vem no fim: «outros ainda estão sempre a rir a cada palavra que dizem, como se fossem meninas namoradeiras ou palhaços sem compostura. Todavia, o autêntico decoro manifesta-se num porte sóbrio e grave, aliado a uma atitude jovial.» (Partilho inteiramente esta opinião, que continua com o «Não quero dizer...» acima mencionado.)

A religião católica é mais normativa do que o budismo (e menos do que o islamismo, verdade, mas isso por agora é irrelevante) e mesmo quando se encontram nos misticismos a tentação preceitual está lá, inevitável. «Quem possui o dom da contemplação porta-se com toda a dignidade e, dominando o corpo e a alma, torna-se muito mais atraente aos olhos de quem o observa.»

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Pergunta: esta negação da biologia que me parece uma das marcas da modernidade não será herdeira dos misticismos medievais? Ponto a explorar.

Objecção ao romantismo

Como um galope numa praia deserta ao pôr-do-sol. O romantismo não descreve a realidade mas chateia os cavalos, que a essa hora preferem estar na box, descansados.

Boa notícia

Uma mulher que não vai para a cama na primeira noite é uma boa notícia: significa que haverá pelo menos uma segunda noite.

20.12.20

Louvor da cama

Descobri já muito perto dos sessenta o prazer do sono (não digo da cama para evitar duplos sentidos, mas é a esse que me refiro, o de estar na cama a ler, a coscuvilhar o Facebook ou simplesmente a receber o calor dos edredons), da languidão e agora entrego-me a ele com o fervor dos recém-convertidos. Ao contrário do que sempre pensei, quando se está na cama o tempo não pára nem se perde. Quando muito, torna-se um bocadinho mais sinuoso, mais meândrico, grande rio tranquilo dos meus sonhos. Deixo-me levar, enredar pelo calor, penso em quem gostaria de ter so meu lado ou, pelo contrário, quão bom é não ter ninguém. (Quem não sabe estar sozinho é incapaz de acompanhar. Estar acompanhado não é o antónimo de estar sozinho, é o seu complemento directo.)

A noite é uma ponte na qual é bom perdermo-nos. Amanhã tenho que fazer e hoje também: dormir, abrir docemente a porta às tarefas que me esperam pacientes, sonhar. 

Como é que consegui durante tanto tempo pensar que isso tudo era perder tempo? Não é. É construir os alicerces do dia seguinte, pôr-lhes uma plataforma em cima.

Diário de Bordos - Lisboa, 20-12-2020

Os últimos dias têm sido frenéticos - agradáveis mas frenéticos - e hoje decidi instalar um pouco de calma na melancolia. O dia ajuda, é preciso dizê-lo: a temperatura é suave, o sol azuleja o céu e aquece a rua, descobri um café perto de «minha» casa que é um prazer para todos os sentidos (o único defeito é só terem aquelas horríveis cervejas «modernas», mas enfim. Com isso pode um homem bem). Antes fui comprar pão à padaria Ceres, que tem o melhor pão do universo e aproveitei para beber um café, bastante bom. O cheiro do pão quente escapava-se das entranhas da loja, a mesa fica à janela, uma vidraça grande que nos consegue simultaneamente aproximar e separar da rua, ambos com resultados apreciáveis. A área foi invadida por franceses e a qualidade da alimentação ressente-se positivamente. A tristeza escorrega por mim como o sol pelos pelos de um gato. Vou passar a tarde em casa a trabalhar, dormir, comer (gratin dauphinois, ça va de soi) tudo isto em camadas alternadas como as de um mille feuilles

Há que tratar bem a melancolia, sentimento nobre s'il en est. Acariciá-la e enchê-la de ternura; ela agradece e retribui.

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A cozinha, a escrita  e o mar são os três vêrtices fixos de um quadrilátero que define a minha vida. O quarto oscila, alterna, varia entre a solidão, o amor, um corpo que se dá, a leitura, a bicicleta, a música, a fotografia. Não me posso queixar: o dinheiro nunca fez parte dessa geometria e agora é tarde para o incluir no filme. Fica como está, não se lhe mexe mais na montagem, nem no som.

Enquanto houver domingos como este, a única acção possível é a de graças.

19.12.20

Vento e outras coisas

Digamos que não percebes nada: trata-se de uma planície, de um fogo que vem de longe, de um rio que algures lhe faz frente, dos animais que a ele - rio - vêm beber. Não percebes nada de rios, fogos ou planícies, mas sabes de sedes. Agarremo-nos a elas, às sedes que vêm de longe e tu tão bem conheces. Queimemo-nos: não há tempo que não cure uma boa queimadura nem deserto que não absorva um rio. Pensa no vento: não o vês, pois não?

Memória do fogo

Há uma espécie de lugar que não é bem um lugar. Tão pouco é uma espécie. Não passa, se queres saber, do espaço vazio que em mim deixaste, uma espécie de espaço, uma espécie de vazio, desocupado desde há muitos anos antes de te conhecer.

Chamas-me à memória as chamas que há muito tempos me chamam. Uma espécie de vazio que preenches sem querer. Não há chamas nesta planície senão as tuas, as que chamas, as que me aparecem em labaredas enormes, daquelas que queimam o tempo, me queimam, te tocam as rugas com as quais as fitas. As chamas não são indecisas. Indeciso é o tempo: vê-te e não sabe que fazer. Eu olho para o tempo e deixo-o passar: tu vens nele.

Um lugar, tempo

A ideia é simples: fazer uma gincana com os corpos de ontem, hoje e amanhã. Ver quais são os mesmos. Ver-te estendida no chão do ginásio e pensar: "já te vi antes. Habitaste-me a memória desde quando ainda não te conhecia. Nela, memória, ficarás até depois de nunca, ou de sempre, como preferires. Eu direi ao relento que te guarde, fresca e sorridente, rugas ao canto dos sorrisos (é o lugar delas, eu sei). Dir-lhe-ei também que te estou grato e isso merece o teu lugar, o lugar que hoje ocupaste em mim, muito mais importante. O caminho é longo, tem altos e baixos. O tempo não é plano. Nunca foi. Já te vi antes de te ver e ver-te-ei depois. Tens um lugar no meu tempo e o meu tempo tem um lugar para ti."

Prioridades

É importante que tenha rugas nos olhos: sem elas, uma mulher não pode mostrar se gosta de rir e muito menos se já chorou.

17.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 17-12-2020

Mal Waldron e Steve Lacy impedem de ir para a cama até o mais heterossexual dos homens. O álbum chama-se One-Upmanship e só ele justificaria os oito euros e qualquer coisa que pago por mês ao Youtube. Deve ser o dinheiro mal gasto mais bem gasto de sempre. O fdp que me ficou com os CD devia queimar-se no inferno dos marinheiros (infelizmente não pode: não é marinheiro. É yachtie, uma sub-espécie de sub-homens do mar cujo trabalho consiste basicamente em lamber cus e lamber conveses. Ganham uma pipa de massa por isso, vá lá. Putas por putas antes bem pagas).

Bom, passado este bocadinho de raiva controlada: não tinha o One-upmanship. Tinha uma série de discos do Mal, dois ou três do Steve, mas não este. Que se lixe: faz sempre bem desaguar as iras comprimidas. Um dia chove a sério e ofereço uma casa - uma janela, vá - a um bom vendedor de discos de ocasião. (Com limites: não pagarei duzentas e cinquenta libras esterlinas para readquirir From gardens where we feel secure, por exemplo, miss Astley que me perdoe. Antes mais uma ronda de insultos ao filho de um comboio de putas, etc.)

De modo fico na sala a ouvi-los. Aproveito e bebo um copo da mistura de aguardentes que herdei recentemente e penso no médico de amanhã, no almoço de amanhã. em tudo de amanhã. Deve ser a primeira vez nas últimas semanas que penso tanto tempo para a frente. Consigo finalmente projectar-me no futuro, que alívio.

Imagino-me a ver bem: não será amanhã, naturalmente, mas amanhã será uma etapa importante. Tão importante que não me importo nada de repetir palavras como o Steve Lacy repete notas no seu saxofone soprano. A seguir devia vir a Jeanne Lee, mas não posso. Estou exausto. Pensar adiantado esgota-me.

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Os políticos descobriram que podem finalmente realizar os seus piores instintos e ainda ganham votos com isso. Não se coíbem, claro. Agora é o fim do ano. Nunca fui grande fã dessa festa, mas isso é irrelevante. Não torna aceitável que António Costa a proíba. Aceitável é que alguém dê um murro nas ventas àquele pulha infame. Não sou pela violência na política - nem em lado nenhum, de resto - mas para este tipo abriria uma excepção. Ou duas, ou três, ou muitas.

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Vou ouvir a Virginia. É mais calma.

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Há uma coligação de imbecilidades, azares, inabilidades - tudo se concentrou em mim nestes últimos tempos. Sinto-me um pára-raios. A ver se os passarinhos e as flautas os esconjuram, transformam aquilo tudo num facho de palha podre e a desfazer-se ao vento.

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Escrever também ajuda, verdade seja dita. Enquanto escrevo não oiço os acufenos nem penso em mais nada. Devia fazer isto mais vezes.

Nas tintas

É com muitos lamentos, lástimas e lágrimas que lembro aos meus amigos pró-Covid - reais e FB - que penso daquilo que eles pensam sobre a Covid o mesmo que eles pensam do que eu penso. Um balde de tintas, um contentor de tintas. o mundo todo de tintas. Eles pensam o que 80% das pessoas pensa e para mim a relação causal entre «maioria» e «ter razão» é nula, inexistente, mera ilusão de óptica, vício de raciocínio. Uma mentira partilhada por muita gente não se torna verdade, tal como uma verdade não o é mais por ser universal. 

Destinos

De um corpo o traço, de um azar a chuva, do amanhã o sol. Areia quente, molhada, moldada. Dois traços, duas chuvas, dois braços, dois moldes. Destinos.

Qual é a pergunta?

Não sabe / não responde. 

Traço sobre traços

Traços, chuva... Duas ideias contraditórias vêm-te à mente. O que fica e o que lava. Que te ficou da última chuva? Que traços deixaste na lama que a próxima chuva apagará?

Nada fica para sempre, nada se apagará. A chuva e os traços coabitam em ti e no mundo. Trata bem uns e outros, precisas de ambos.

Tu, traço sobre traços, chuva sob chuva. 

Em frente

A maneira correcta de se sair de um pântano é andar em frente. Se se andar às voltas, não se sai. Nem de um pântano nem de lugar nenhum, aliás. 

O problema de "andar em frente" é definir "em frente". Andar toda a gente sabe o que é, desde o primeiro aniversário. "Em frente" é mais difícil. Não basta opor frente àquilo que ficou para trás.  Fia mais fino: frente inclui tudo, incluindo o que já foi. 

Aliás, voltar para trás é frequentemente a única forma de andar em frente.

16.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 16/12/2020

Hoje fui «jantar fora» e lembrei-me de quando a notícia era «hoje fui jantar dentro». Andava a morrer por uma tasca daquelas com vinho carrascão, mas dessas há cada vez menos. Contentam-se com vinho mau e uma televisão gigante. No Compadre o vinho é bom - enfim, aceitável - a TV gigante, a aguardente boa e não resistem muito à ausência de máscara - critério novo mas importante. Mais vale esquecer o vinho carrascão, já não há. Agora, se quiser pintar os lábos de roxo terei de comprar bâton. Felizmente, tenho uma belíssima quantidade de aguardente em casa - não há sede que não dê em excesso - e o canal Mezzo funciona. Os lábios ficam claros, mas a noite compõe-se. Com conta, peso e medida, claro. Acordei era meio-dia - gostava de me lembrar da última vez que isso aconteceu, mas a minha memória não anda muito para trás, pára nos sessenta anos ou assim. (Exagero? Exagerar é preciso.) Amanhã volto ao normal. Penso numa quantidade de coisas - todas ao mesmo tempo - e decido que um pântano é um pântano. Tentar desfiar-lhe os cheiros não passa de um «voto piedoso». Deixemo-los estar como estão. De um pântano ou te salvas ou nele morres, não há meio-termo. Ninguém sobrevive no fedor, excepto se gostar, claro. Eu não gosto, aqui fica dito e reiterado. Gosto de cheiros limpos. Um pântano serve para dele sair ou para nele me afundar, ponto.

Não posso é dizer que estou sozinho. Não estou, Allahu Akbar, Hallelujah, Graças a Deus. Não há pântano que não tenha fundo nem pé que não chegue lá. Como o casco de uma embarcação, dividido em «obras vivas» e «obras mortas». Estou sozinho numas e acompanhado nas outras. É sempre assim, não é? Tudo é feito em partes. Como nas pinturas do Tiago Taron ou nos filmes do Godard: aos bocados. Às peças. Fragmentado. O pântano que desespere, não eu. Morrer sim, desesperar nem pensar nisso. Morra Marta, morra farta, mas não triste.

Andam abutres por aí? Tanta morte cheira mal. 

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Lisboa continua a mistura do que foi, é e será. Esta cidade não se resolve no tempo, abençoada seja.

15.12.20

Nadar

Nadar contra a corrente é muito cansativo, sobretudo quando não se sabe nadar.

Expira

Enrola-te se quiseres na noite, no cansaço, no medo, no frio. Todos os braços estão abertos para receber quem neles quer entrar. Aconchega-te na música que ao longe ouves, deixa-te ir por esse rio abaixo, hirto, tronco de uma velha árvore, duro e pálido cadáver que sonhas ser, como foste em vida. Sonha: da solidão levas o melhor, da companhia também, do amor conheceste o suficiente para encher três rios. Morre farto, enredado nesse cansaço de que não te separas, nesses braços que te asfixiam. Morrer não passa de oferecer ao passado o futuro embalado e selado. 

Respira fundo. Expira.

14.12.20

Chatices

O chato de morrer não é o que fica por fazer. É o que já fizemos.

O ponto da (minha) situação - I

O meu ponto de partida são dois: a) Isto é uma histeria colectiva global - a primeira da história - criada, alimentada e incentivada pelos media. (Fiz uma breve pesquisa sobre as histerias colectivas desde a Idade Média e penso que esta hipótese é defensável. Algumas histerias tiveram bases concretas. Indesmentivelmente, o vírus existe. É relativamente benigno mas exige períodos de tratamento longos e equipamento pesado, etc. Histeria é o dispositivo sanitário-mediático que foi montado à volta dele); b) Mesmo pondo de lado as reticências que a expressão «consenso científico» suscitam (e por vezes me parecem preciosismos: é por exemplo consensual dizer que a aceleração da gravidade é de 9,8 metros por segundo ao quadrado,) creio ser igualmente indesmentível que ninguém sabe bem - pelo menos no chamado grande público - qual é o «consenso científico». Há verificável e quantificavelmente uma censura nos media mainstream a outros pontos de vista. Sabe-se um dos lados da equação - aquele que os governos passam - mas não o outro. Poucos media falaram, por exemplo, na declaração de Barrington. 

Devo dizer que não sou muito apologista de brandir argumentos científicos (se bem o faça de vez em quando). Não sou cientista e os meus conhecimentos são nulos e irrelevantes. Limito-me a verificar que há outros pontos de vista e que esses pontos de vista são sonegados, apesar de provirem de fontes fiáveis (a menos, claro, que se decida que quem defende os confinamentos, as máscaras e tutti quanti são os «bons cientistas» e que o outro lado reúne todos os «maus». Estatisticamente é pouco provável). 

Prefiro portanto focar-me em dois pontos: os media e os danos colaterais. Estes são inegáveis, tanto financeira - na Alemanha as ajudas foram imediatas, mas em países como França, Espanha, Itália e Portugal não o foram - como social como psicologicamente. Os serviços de saúde mental dessa Europa estão a explodir com o número de pedidos de ajuda. Focar-nos nas moscas e esquecer os buracos que os tiros de canhão fazem para as matar é - a meu ver - redutor. 

Para além dos danos colaterais (é estranho quanto eles são esquecidos) há uma reflexão importante a fazer sobre o papel dos media. Limitar-lhes a liberdade está fora de causa. Talvez se possa ou se deva exigir-lhes mais responsabilidade, exigência que eles não hesitam em fazer às grandes empresas, sob a forma de «responsabilidade social». 

Não sou «terraplanista», não penso que tudo isto seja fruto de manipulações e ou conspirações. Existiram muitas histerias colectivas na história, algumas delas extremamente bem documentadas. Quando discuto este tema com um esquerdista digo-lhe que os media estão a fazer o que fazem por ganância, mas esse é um termo que lhes reservo. Com pessoas normais uso «aumentar as vendas», «sair do buraco onde estavam», «lufada de dinheiro fresco». Gostaria de ver números sobre a evolução das vendas de publicidade nas TV. A circulação da imprensa escrita sei que aumentou bastante. 

Quando isto acabar, vou ter de refazer uma grande parte do meu edifício teórico. Um dos pontos a rever vai ser justamente reavaliar a capacidade dos media influenciarem a opinião pública. O Trump tinha toda a paisagem mediática mundial contra ele e foi eleito. Numa escala mais doméstica, acontece o mesmo ao nosso Trump de trazer por casa. Outro tema interessante é estudar o que leva as pessoas a pedir que lhes estraguem a vida (com F grande). Em primeiro lugar deve ver-se o que se entende por «as pessoas». Quem são as pessoas que têm medo? Porque é que essas pessoas têm medo e outras não? Tem a ver com o segmento sócio-económico? Com a faixa etária? Com a capacidade de ver as suas opiniões publicadas? Não sei, mas gostaria de saber. 

Outra coisa: porque é que há tantas variações regionais neste vírus? Os sinais mais antigos dele são no Brasil, em Barcelona e em Itália. Penso que vão aparecer mais em mais lados e que se confirmará que quem desencadeou o pânico foram as imagens da China, repetidas ad nauseam e seguidas imediatamente pelas da Itália. O vírus já estava na Europa antes de Março (o teste da Itália é irrefutável, aparentemente).

PS - Acrescentar Gestão de risco.

13.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 13-12-2020

Ontem houve um jantar da marca Serpa, a certa altura apareceu misteriosamente uma garrafa de rum Mount Gay - para quem não sabe, a melhor relação qualidade - preço para praticamente tudo, desde shampoos a bebidas passando por vassouras, bloco-notas e outros objectos imprescindíveis da vida quotidiana e hoje o meu corpo passou o dia todo chateado comigo. Tive de o fazer dormir uma grande parte da manhã e da tarde, proporcionar-lhe um revigorante passeio de bicicleta já noite fechada e fazer uma carne picada no forno com batatas hasselback para ele se reconciliar, finalmente. (E mesmo assim com uma condição: ir já para a cama, outra vez.) Do jantar não falo, porque se não me importo de falar do que é bom acho detestável falar do que o é muito, muito, muito. Pode dar falsas impressões a quem me lê.  Do resto do dia já falei, nada a acrescentar. 

Senão talvez lamentar a preponderância que o meu corpo adquiriu. É um chato e eu gostaria talvez de lhe explicar que não aturo chatos e que se ele pensa que vai passar assim o resto dos dias está muito enganado.

Fica o aviso feito, meu velho de mim.

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Estou com saudades do meu P. O filho da mãe tornou-se parte de mim. Não o vejo desde Julho, uma eternidade. Antecipo com ansiedade o reencontro.

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Não há pior tortura do que ter uma livraria como a Palavra de Viajante ao lado de casa e estar de maré vazia. E ter a máquina fotográfica avariada. A luz, as palavras, o mar e os sentidos: estes são os vértices do meu quadrilátero. Do meu castelo. O resto é conversa de fazer sabão. Venham de onde venham os assédios.

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Correr pelos meandros das letras. É inacreditável o que por ali se encontra. Literalmente inacreditável. No primeiro grau: os recantos das letras guardam tesouros. Não há inquietação que resista a uma letra mais curvilínea, como a um corpo mais seco.

Escondo-me nas curvas das letras, revelo-me no sedoso de uma pele.

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Um par de mãos num par de mamas: se alguém tiver dúvidas sobre o sentido da vida, refugie-se nos sentidos e não perca tempo com o resto. Mamas e vida nunca andam muito longe umas da outra.

12.12.20

Monstros

De monstros, eu sei. Estou rodeado deles, sou pasto deles, sou o alvo da sua desmedida fome, imparável bulimia. Monstros, à noite, debaixo e em cima da cama; de dia, atrás da porta, prontos a saltar ao mais pequeno sinal de fraqueza. Monstros: tomei-lhes o gosto e nunca mais me largaram, até hoje.

11.12.20

Medo

Não tenho medo? Tenho, claro. Só os imbecis não o têm. Ser corajoso não é não recear nada. Isso é ser idiota.  Ser corajoso é saber lidar com o medo, saber geri-lo: passar por cima dele quando é preciso, ceder-lhe quando é sensato. Se me disserem para ir para o mar sabendo que um ciclone se aproxima, eu não vou. Tenho medo. Se estiver no mar e um ciclone chegar, lido com ele o melhor que posso e esqueço o medo, que de nada me serve. Antes pelo contrário, só atrapalha. Aquilo que se sabe deste vírus é muito mais do que o que se desconhece: foi isso que nos permitiu fazer vacinas tão depressa. (Em contrapartida, o resultado das vacinas é desconhecido, esse sim. Pode inventar-se tudo menos tempo.) 

Em relação à Covid, não tenho medo: é inútil, desnecessário, supérfluo. Já há dados suficientes pra saber que é uma doença inofensiva para a esmagadora maioria das pessoas - isto não é uma opinião, é um facto quantificável - e que o custo do pânico é de longe superior ao custo da doença. Estamos a matar moscas com um canhão: os danos colaterais são de longe superiores aos resultados. 

Em contrapartida, tenho - isso sim e muito - medo do que aí vem. Das portas que estamos a abrir à ditadura (se preferirem, às restrições de liberdades); à censura - toda a gente acha normal que o Facebook, media, organismos oficiais censurem as opiniões que vão contra a corrente -; tenho medo da maldade que esta crise revelou nas pessoas - maldade que já lá estava, foi uma revelação mas só no sentido fotográfico do termo. Maldade em nome de um «bem superior»: impedimos crianças de brincar, condenamos velhos a uma solidão atroz, fazemos empresas falir, instauramos uma desconfiança insuportável na sociedade - tudo isto em nome de quê? Abrimos uma porta que não sabemos como se vai fechar e isso faz-me medo. sim, muito. Não convivo bem com a malvadez, apesar de saber perfeitamente que ela existe; vê-la instituída desta forma é aterrador. Nenhuma ditadura foi até hoje instaurada em nome do mal dos povos. São-no em nome do bem comum, não em nome do mal para todos. 

Estamos a abrir portas que não sabemos onde nos levam? Mentira. Sabemos muito bem: já lá estivemos, há bem pouco tempo.  A facilidade, a alegria, o alívio com que as pessoas abrem essas portas e marcham por elas dentro assusta-me. A liberdade não é um presente dos deuses. É uma conquista dos homens. Perdê-la em nome da sua velha nemésis - a segurança - já sabemos que não resulta. Tenho medo? Sim, tenho. Mas não fujo à luta, porque isso não seria ter medo. Seria ser cobarde, que é a categoria mais desprezível dos humanos. 

Estamos embarcados num petroleiro que não vai mudar de rumo - primeiro porque ninguém quer e segundo porque mesmo que se quisesse é demasiado tarde: a maldade, a insensibilidade, a indiferença tornaram-se aceitáveis, porque foram sacrificadas num altar a um deus maior. Que se aceite que esse deus é maior - e não o simples resultado de uma histeria criada, manipulada, incentivada por duas ou três instituições facilmente identificáveis - a OMS, os media, os governos - é medonho. No sentido primeiro da palavra: faz medo.

Tal como, de resto, descobrir que é com «isto» que temos vindo a conviver: descobrir que o que mais prezamos na vida em sociedade está nas mãos de pessoas que não se apercebem sequer do que estão a perder. Esta troca é assimétrica: em nome de um risco praticamente nulo hoje dão aquilo que nos custou tanto conquistar ontem. 

Sim, tenho medo e não tenho vergonha nenhuma de o dizer.

Pedras, palavras

Quanto mais pedras puseres no teu alforje, viajante, mais palavras dele tirarás e mais longe elas voarão. 

Tempo, pele

Acaricio a suave pele do tempo. Amanhã será rugosa? Que me importa? O que hoje me dá não ficará esquecido num cais de gare ferroviária. Nada do que o tempo me deu ficou alguma vez esquecido - excepto, por vezes, o tempo ele-mesmo, numa pele.

Breve tratado das marés

Trata as marés por igual. Altas, baixas, vazias, vazantes ou enchentes, vivas ou mortas, são todas iguais - não passam de água em movimento - e merecem a atenção polida que acordas a tudo o mais. Uma piscina não tem marés porque é pequena, limitada, insignificante. As marés são para os grandes. Desconfia das que só sobem tanto quanto das que baixam sem parar. Nunca se sabe aonde te levarão, umas e outras. Pensa nelas com carinho: mesmo as que te são desfavoráveis mudarão em breve e ajudar-te-ão. Todas te fazem ver diferentes aspectos do dia ou da noite: as negras paredes do cais são outras, vistas de baixo ou de cima. Aproveita tudo de todas: a maior das contrariedades hoje pode ser a tua sorte de amanhã. Graças às marés aprendeste a nadar, a ver, aprendeste o tempo, a Lua, o Sol. Ama-as: sem elas pouco ou nada mais serias do que uma folha de vinha num tanque.

10.12.20

Malvadez e insensatez

Dizem-me frequentemente que estou obcecado com a pandemia. Claro que estou. Não percebo é como se pode não estar. 

É uma desumanidade inconcebível, é maldade, insensibilidade, solipsismo, prova da incapacidade de integrar  na mistura o preço que se está a pagar por ela, de avaliar a crise holisticamente. Concentram-se no número de mortos Covid, a reboque dos jornais, e esquecem o número de mortos não-Covid, as mortes que estão a provocar por falta de tratamento, o colapso da economia - e respectivo cortejo de mortes e abjecção -, a miséria social que estão a provocar, a degradação da situação política. Dói-me e mói-me quotidianamente, sim. 

9.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 09-12-2020

Chama-se French Arth (os franceses e o inglês...), é um cantinho de Paris em Lisboa, fica na rua de S. Bento e é um sítio porreiro para se vir beber um demi Ricard ao fim do dia, uma prática que os nossos amigos gauleses designam por apéro. A rua, aliás - ou pelo menos este bocado dela - está cheio de galicismos: a padaria da esquina - Ceres - é francófona e macacos me mordam se não tem o melhor pão que comprei até hoje nesta cidade. Os franceses têm meia dúzia de defeitos e metade disso em qualidades; mas cada uma destas vale por três daqueles, de maneira o saldo é largamente positivo. Já o bar à frente da padaria é um attrape-couillons e ignoro se é francês. Compensa o talho da outra esquina, português até à medula e fantástico de bom. Isto está tudo ligado.

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Amizade facebookiana com ---. Já tentara há algum tempo, mas tocou ocupado. Desta vez a iniciativa funcionou, se bem o impulso inicial não fosse esse. É das pessoas que mais me entusiasma na PLP (Paisagem literária portugesa). Não sabe tudo, não estudou filosofia, antropologia ou outras coisas terminadas em ia, gosta de rir, é alegre e leve - pelo menos no pouco que vi. Se não me engano, conhecemo-nos de dois jantares. Souberam-me a pouco, mas agora fica a balança equilibrada: vou poder ler os seus posts quotidianamente, o que é bom como ouvir um motor fora-de-borda arrancar à primeira ou descer a rua do Alecrim num dia de sol (de bicicleta, claro. A pé é um bocadinho longo).

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Tenho dois casacos de pele (pequenos, femininos) e uma série de artigos para mesa para vender. Não faço a mais pequena ideia de como fazer, mas em tempo de maré baixa não se olha a pequenas ideias. Aprende-se, é tudo. E depressa, se faz favor. De modo já sabem: se quiserem um (ou dois) casacos de peles e artigos [adenda: de boa qualidade] para uma mesa chic, basta dizerem. Abro às nove da manhã.  

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O P. - ou melhor, o que o vai reanimar - deu hoje sinais de vida. Gosto muito de Lisboa, mas quero ir depressa para Palma (se bem tenha de reconhecer que não é  única razão).

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A minha pobre, pequena e frágil camioneta está demasiado carregada. Tenho de alijar carga, mas de momento tenho tudo demasiado bem peado. Não sei o que fazer e quando é assim o melhor é não fazer nada. Ficar quieto num igloo (à frente da lareira, não?) e esperar que algo mexa, que uma das peias folgue, que um rumo me apareça como nossa Senhora aos pastorinhos; mas sem sopas de cavalo cansado, coisa que detesto. Para cavalo cansado basto eu, não preciso de sopas. (Verdade seja dita, tão pouco preciso de virgens ou de pastorinhos, mas isso é outra história.)

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Jantar com a T. A. Conhecemo-nos no Snob: já nos seguíamos no FB, um dia faço um post - eram duas da manhã, pelo menos - e ela interpela-me da mesa ao lado. É a segunda vez que isto me acontece. A primeira foi na Martinica, no Marin, com o R. Mas esse eu sabia que estava por aquelas bandas. Encontrar uma «amiga facebookiana» desconhecida no Snob às duas ou três da manhã é outra loiça. Mais uma prova de que o Facebook é melhor do que pior. Isto é, mais vale tê-lo do que não o ter. 

Apesar da porcaria desta censura. Ainda não me calhou, mas não sei o que farei se um dia me quiser calar. Esta sensação de dependência é abominável. Se sair, não o poderei substituir. Os conteúdos são fáceis de gerir: bloquear, desamigar e deixar de seguir, por ordem decrescente de remédio. Mas saber que de certa forma estou a ser cúmplice de uma empresa que censura quem não alinha no discurso oficial repugna-me. Nunca gostei de me calar, não é agora que vou começar a aceitá-lo facilmente. 

Parábola

Como um navio-tanque encalhado a meio da noite, à espera que a maré suba e o vento caia. Neva, quase de certeza. A frente fria é vasta, a depressão a que está associada profunda. Já alijou todo o lastro que podia. Mais, só indo a carga. Fora de questão, claro. Não se resolve um problema criando outro maior. Está encalhado num baixio cartografado. Foi erro, azar ou a habitual mistura dos dois? Raramente andam separados, daí serem tantas vezes confundidos. Já enviou o tradicional telegrama: "Encalhei o navio." Quando desencalhar enviará outro: "Desencalhámos o navio." Não há a menor dúvida de que se vai safar? Há, claro. "São os capitães demasiado seguros de si próprios que perdem os seus navios." A dúvida salva. Sem ela estamos perdidos. Não basta esperar que a maré suba, o vento caia ou ronde, o navio aguente. Se pudesse, mandaria transfegar carga para a distribuir pelos tanques. Quer mais peso a ré e menos a vante. Mas os tanques estão cheios a deitar por fora. Nada a fazer, desse lado. Não perde muito tempo a analisar o que o trouxe ali. Isso fica para depois. Agora, há que safar o navio e a tripulação. Manter a ordem a bordo. Ordenar. Classificar por prioridades. Arrumar. Filtrar o essencial do acessório. Não deixar a situação piorar. Aguentar firme, um pé na certeza o outro na dúvida. Não ter medo, sabendo-se o elo mais  fraco da cadeia. Se o vento sobe e as vagas crescem o navio pode partir-se em dois. Ou avançar mais no baixio. Resistir à tentação de pôr as máquinas a trabalhar, sob pena de as encher de areia. Não tem um ferro a ré e se tivesse de nada serviria. Tem de esperar pelo rebocador. Vem a caminho. Nada a fazer senão isso: esperar, um olho no barómetro, outro no anemómetro, outro no radar, outro na sonda. Sobretudo, não deixar crescer o temporal que de dentro espreita a primeira ocasião para se apoderar dele, da situação, de tudo. Esperar. Aguentar. Quando o rebocador chegar há que ter os cabos de reboque preparados.  Quantas braças? Não sabe. É o capitão do rebocador que lho dirá. O imediato e o contramestre tratam disso. Deixar cada um fazer o seu trabalho. Não se intrometer. Pede um café à cozinha. A noite vai ser longa. Todos os encalhes duram uma vida.

"Desencalhámos o navio."

8.12.20

Apelo

A minha experiência da beleza feminina é totalmente unilateral e enviesada: só a conheço pelo lado do contemplador. («Utilizador» seria falso, exagerado - e redutor, por muito tentador que seja.)

É portanto deste pressuposto assumidamente insatisfatório que lanço um apelo em defesa dos cabelos brancos nas gentes femininas: não os tinjais, senhoras! Há lá testemunho mais belo de uma vida vivida, da sabedoria adquirida? Deixai a natureza manifestar-se em vós, que sois a sua mais perfeita obra.

Optimismo

Esta bizarra espiral que te envolve, feita das mais variegadas formas, cores e pesos, gira a diferentes velocidades. Poderia ser feita dos anéis de Saturno se de repente o planeta se tivesse desvanecido e os anéis começassem a afunilar, cone de gelado sem a bola por cima e contigo no centro. Deixa-te sem fala, sem ar. Sem silêncio, sequer. Deixa-te nu, enfriado, estátua oca de ti. Tudo gira à tua volta, a ponta do cone na terra esburaca a crosta, vais-te enterrando cada vez mais, protegido do lado iluminado da vida por essa armação intocável, por mais que estendas o dedo e balbucies sons ininteligíveis. Do lado de fora da carapaça girante, cónica, multicolorida ninguém te espera, ninguém te ouve, ninguém te vê afundares-te na terra seca e fria que se vai pulverizando e desfazendo em finos grânulos de poeira que agora te asfixiam. Um dia, sabes, o sentido da rotação inverter-se-á. A espiral desfazer-se-á, as cores tornar-se-ão sons e tu terás aprendido um pouco mais da arte de te transformares em pó - arte a que alguns, num momento de detestável e sedento optimismo, chamam vida.

6.12.20

Reencontro

Reencontro com alegria a Nuvem do não-saber, que deixara esquecida em casa da A. I.  "Vela para que só Deus e nada mais opere na tua inteligência e na tua vontade. Tenta destruir a consciência das realidades inferiores a Deus, as quais deves afastar para muito longe, calcando-as sob a nuvem do esquecimento".

Encontro finalmente uma justificação para os meus esquecimentos. 

3.12.20

Reinaldo Ferreira

«A que morreu às portas de Madrid, 
Com uma praga na boca 
E a espingarda na mão, 
Teve a sorte que quis, 
Teve o fim que escolheu. 
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou. 
E antes de flor, foi, como tantas, pomo. 
Ninguém a virgindade lhe roubou 
Depois de um saque - antes a deu 
A quem lha desejou, 
Na lama dum reduto, 
Sem náusea mas sem cio, 
Sob a manta comum, 
A pretexto do frio. 
Não quis na retaguarda aligeirar, 
Entre «champagne», aos generais senis, 
As horas de lazer. 
Não quis, activa e boa, tricotar 
Agasalhos pueris, 
No sossego dum lar. 
Não sonhou minorar, 
Num heroísmo branco, 
De bicho de hospital, 
A aflição dos aflitos. 
 Uma noite, às portas de Madrid, 
Com uma praga na boca 
E a espingarda na mão, 
À hora tal, atacou e morreu. 

Teve a sorte que quis. 
Teve o fim que escolheu.»

Troco

Troco o meu frio pelo teu calor.

Imagens, palavras

Árvores nascidas em nuvens, com as raízes no céu e os braços no mar suspendem palavras que suspendem mundos e salvam-nos como marinheiros salvam náufragos. Palavras aquecem-nos como seixos aquecidos pelo sol nos aquecem as mãos. Palavras guiam-nos como as agulhas das linhas dos eléctricos os orientam para o seu novo destino. Palavras dizem-nos: "fim da linha. O resto da tua vida começa aqui." Palavras, felizes e suspensas palavras.

Carreiros

Deitado, o senhor pensa em carreiros. Todos: os que ligam os ontens a hoje, hoje aos diferentes amanhãs que nos chamam, os outros a nós e nós aos outros (nem sempre são os mesmos), os carreiros que durante a noite silenciosas formigas percorrem, investigando-lhes as formas, os cheiros, as cores, as sílabas. Tenta adivinhar quantos há, quantos carreiros saem de nós e quantos  recebemos; quais os alegres, iluminados, leves, quentes, direitos e quais os outros, frios e empedernidos.

Adormece tranquilamente quando pensa - ou será um sonho, já? - que os carreiros mudam, como nós. Ou melhor: connosco.

2.12.20

Brincar, tempo

Brinca com o tempo, deixa-o brincar contigo. Se te pregar uma partida, não te zangues: anda sempre nisso. Se te pedir para jogares com ele à apanhada, vai: é o seu jogo favorito. Às escondidas, então, é mágico: sabe onde estarás ainda antes de lá estares. Fá-lo saltar ao eixo, ora tu ora ele. Põe-no a jogar à macaca.

Brinca com o tempo: nada se perde, quando se sabe que se vai perder.

1.12.20

Repentes

Não sou um repentista. Só cago sentenças depois de muito mastigar a matéria-prima.

Autenticidades

As pessoas "autênticas" enjoam-me. Às vezes, de tão "autênticas", parecem caricaturas de si próprias. Ou - pior ainda - ersätzen.

Conversa

Farrapos de luz penduravam-se-lhe no sorriso. Iluminava tudo o que tocava. Um dia, ganhou a sorte grande: amor.

Era o único prémio. Tudo o resto era conversa.

O que devia ser

Para além da criação / dilapidação de riqueza, há outro misterioso mecanismo no mundo. É difícil de compreender e portanto mais ainda de explicar. Criação de amor. Dilapidação de amor. Criação de beleza. De emoções. Um mecanismo que tornasse os sentimentos visíveis, palpáveis, distribuíveis. Outro que recuperasse os restos todos, os cacos que fomos deixando para trás e os transformasse numa máquina tão bem estudada como a riqueza e respectivos ciclos. Pegasse nos bocadinhos de amor que nos pendem da alma, nos silêncios bicudos e os arredondasse, nos gestos que um dia suspendemos a meio e nos permitisse acabá-los. 

Devia haver bancos, sociedades de capital de risco, empresas de factoring, investimentos, seguros, bolsas - de amor. Acções, obrigações - de ternura, tudo isto colado com afecto, com carinho, com meiguice. A doçura devia ser a língua franca. Falas doçura? Sim, mas a minha língua materna é a ternura. Que sorte! A minha é o amor. Eu prefiro a delicadeza. Já falei carícias, mas com a falta de prática esqueci quase tudo. Eu aprendi carinho logo em miúdo, a minha mãe queria que todos nós o percebêssemos. A minha também, mas o meu pai era mais sorrisos.

A torre Eiffel devia ser o A de Amo-te e o resto o mundo.