28.2.21
Diálogos possíveis - Reedição
Diálogos possíveis (post de 30-12-2011)
- O dinheiro não me faz correr.
- Não, excepto para o bar mais próximo.
Eu só sei dançar sozinho - Reedição
(Texto de 01.01.09. Reeditado hoje.)
Diário de Bordos - Lisboa, 28-02-2021
Notas da manhã:
Enquanto isso, as pequenas livrarias continuam a queixar-se, tadinhas. Ms não fazem a única coisa que deviam fazer: revoltarem-se e abrir todas.
26.2.21
I'm your man
Um turbilhão num copo de água. Depois passa, fica plácida e serena, pronta a ser bebida, como tudo agora em mim. Duram pouco tempo, o copo é pequeno e por muita energia que a água traga ao cair não tem espaço para mais. Vantagens da entropia, alguma haveria de ter. Uma noite com um ringue de patinagem no gelo? Não. Prefiro a imagem de um rio gelado, vamos patinando entre pinheiros e rochas, de vez em quando ouvimos o gelo quebrar, o ar é frio mas não chove nem neva, sabemos que os ruídos não pressagiam nada de mal, conhecemos o sítio e sabemos que o gelo é espesso.
O que Leonard Cohen uniu nada pode separar. É a lição do dia: há uniões invisíveis, teias de aranha que se esticam até ao infinito, mentes que se tocam sem se verem há anos, uma nota que tocada num piano reverbera para sempre. I'm your man.
Um dia, o mar libertar-me-á. If it be your will.
"Diálogo"
Caro leitor: se estás à espera de que eu venha aqui dialogar contigo, desengana-te já. Não escrevo para dialogar com ninguém, com a possível excepção de mim próprio. Pôr-me a falar comigo. Mas mesmo isso é excepcional (no sentido de que acontece raramente). Escrever não é dialogar. Raio de mania esta dos "diálogos", do "ouvir o outro"... Não escrevo nem para me ouvir a mim, quanto mais a ti. A pergunta é sempre a mesma: escreveria, numa ilha deserta? E a minha resposta também: sim, pela razão simples de que não sei não escrever. (Já agora: o que escreveria, nessa ilha deserta?) Sei, porém, não ouvir, sei não falar, sei que não sou parte do teu mundo, do teu "diálogo". Como se eu ou alguém pudesse engolir o que acabou de se vomitar.
Queres dialogar? Vai à igreja e confessa-te, ou aos programas de televisão onde toda a gente fala muito e ri e grita. Inscreve-te num site de encontros. Vai para os escuteirinhos. Entra numa ONG daquelas que dão comida aos sem-abrigo ou roupa aos pretinhos. Mas não pegues neste livro. Aqui não encontrarás diálogo, ninguém para te ouvir se quiseres falar.
Lê e cala-te. Lê e pensa. Lê e lembra-te. Lê e imagina. Lê e chora, ou ri-te ou emociona-te. Lê. O resto é "diálogo". Nem para encher chouriço serve.
25.2.21
Vulnerável, verdade
A verdade. Que queres, sempre foi assim. O passado não determina o presente. Enforma-o, mas tu podes desenformá-lo. Deves tentar, pelo menos. Não sou de ferro. Ninguém é. A verdade. Verga para não quebrares, quebra mas não vergues. Oscilas entre vergar e quebrar, andas na fina linha que os separa. O vento. Deixa o vento em paz, nada faz aqui. Desde que saibas que estás a vergar-te e que só o podes fazer até um certo ponto. Conheces-te bem. Conheces os sombrios limites que te rodeiam, os muros, as fossas abissais. Sonhas com savanas, com a verdade que um leão e as gazelas percorrem. Sempre foi assim. Gerir o vergar e o quebrar com a minúcia de um mandarim, a força de um samurai, o tacto de um jesuíta. Esse não és tu. Vês-te melhor ao longe, enterrado num pantanal, nas areias movediças do cansaço. Vulnerável. Frágil, frágil, frágil. Como o ferro. Como a verdade, a que sempre foi assim: vulnerável.
Paradoxo, eixo
"A" sono?
Sono é masculino de nome, mas feminino de ser: basta olhar para o que gosta de se fazer esperar. Nem o leve e envolvente calor dos edredons o apressa. "Mais uma tampa", diria eu, se fosse dado a lamentos ou a constatações de facto. Não sou. Nem uns nem outras. Mais temporário do que uma tampa do sono não há; e enquanto o espero, divirto-me. Ele não gosta de ver que acordado eu "passo bem de mais" e mal me vê entretido vem a correr - mais uma feminilidade num corpo masculino.
Faz-me abrir a boca e despachar o que estou a fazer, indiferente ao facto de me ter feito esperar mais de hora e meia.
Paciência. Boa noite.
23.2.21
Feliz e rara conjunção da vontade e da realidade. Ou: sorte
Verdade seja dita, não estou muito interessado em ser rico. Uma sorte, é o que é. Se estivesse, não teria dinheiro para o ser.
Regresso a Lisboa
Devia começar por me apresentar, eu sei, mas sou um rapazinho tímido e nunca penso nisso. Tenho sessenta e três anos, ao longo dos quais fui aprendendo a distinguir o que é bom do que é mau, o que é inutilmente complicado do desejavelmente simples. Por exemplo: gosto de especiarias e em três cidades no mundo sei onde as comprar. Por ordem crescente (da qualidade e variedade das especiarias que encontro) Lisboa, Genebra e Palma. Gosto de azeite: Genebra, Lisboa e Palma. Pão: Palma, Genebra e Lisboa. Café: Genebra, Lisboa e Palma. Livros: Lisboa, Palma, Genebra. Sempre por ordem crescente. A minha vida oscila entre estas três cidades e penso que devia elaborar um bocadinho estas coisas. Matizá-las, por assim dizer. Por exemplo: a primeira vez que comprei pimentão fumado artesanal foi em West Palm Beach. O melhor pão de Lisboa é feito numa padaria francesa do fundo da rua onde agora estou, ao lado da qual há um talho absolutamente excepcional, chamado O Naco. Um dos monhés (o termo é carinhosos e grato nestes tempos de obscurantismo, se por acaso) tem especiarias bastante boas - não chegam às do Cristian, é verdade, mas são boas. No fundo, preciso de muito pouco para perceber que a pertença é isto: um polícia que manda parar o tráfico todo para eu avançar com a minha bicicleta (era sistemático, há uns anos, no Príncipe Real), saber onde comprar pão, azeite e vinho, carne e especiarias - no mercado da Ribeira comprei uns orégãos que são a prova seca da existência de Deus e na rua do Arsenal uns cominhos que cumprem a mesma função, mas em pó. Bebo un gin enquanto oiço Bruce Springsteen e «falo» com uma jovem de quem aprecio as dúvidas, os devaneios, a quête. A vida é - ou melhor, devia ser - esta conjunção simples de um bom azeite, boa música, o caril de peixe e camarão que daqui pouco vou começar a fazer. Não devia incluir governos incompetentes, revisores autoritários - para quando, os «revisores pela verdade»? - senhorias gananciosas, chuva, frio, confinamentos, uso obrigatório de máscaras e vinho mau.
As pessoas que fazem vinho merecem um lugar no céu, à direita de Deus Pai - com excepção, claro, das que fazem vinho que não presta. Essas devem ir para o Inferno. Na verdade, isto é extensível a tudo: que castigo dar a quem faz mau pão, por exemplo (refiro-me a castigos a sério, não àquela coisa simples de não lhe comprar o que fazem)? E o azeite, aquele azeite que me espera em Palma, o melhor do universo, mesmo incluíndo a possibilidade não despicienda da existência de vários universos, paralelos ou divergentes.
Bom, começo a divergir do objectivo inicial deste post: apresentar-me, explicar que sou um gaiato simples e que estou feliz por estar de regresso a Lisboa, pela razão simples de que por muito que goste do Porto - gosto - aqui sei onde comprar pão e outras coisas.
(Não menciono sequer o prazer exaltante que é ver bem sem óculos, porque isso aconteceria onde quer que estivesse.)
Adenda: não mencionei outro prazer simples: pedalar nesta cidade, seja na Coluer, pesada e confortável, sentado mais direito do que o Infante D. Henrique no Padrão dos Descobrimentos; ou deitado na Vitus, todo inclinado como se me preparasse par passar a barreira do som. Amanhã vou buscar a Coluer, de que já aprendi a descer quando a calçada do Combro se empina demasiado. Numa bicicleta assim pedala-se direito e dignamente. É a cidade que se move sob as rodas e não nós quem se propulsiona penosamente nestas ruas mal pavimentadas (a Vitus não as suporta e tem razão).
Je suis Glenn
"...estarei um pouco baralhado por estes eus separáveis estes demónios que nos forçam a fazer o que doutro modo não faríamos como quando Glenn [Gould] se deixou arrebatar de tal modo durante uma interpretação de Bach que feriu um polegar nas teclas durante o seu exuberante finale? Terá sido nessa altura que ele disse que gostaria de se converter num piano? Que queria ser o Steinway porque odiava a ideia de ser algo interposto entre Bach e o Steinway porque se ele pudesse ser o Steinway não precisaria de ser Glenn Gould..."
(William Gaddis, in ágape, agonia, ed. Ahab.)
Esboço de uma teoria químico-amorosa do tempo
O passado e o futuro nunca se encontram. São mediados pelo presente, que é uma espécie de catalisador duplo: transforma o passado em futuro e este em presente, sem nunca se consumir. Poder-se-ia, se se quisesse, imaginar o tempo como uma reacção química. A lei de Lavoisier é escrupulosamente respeitada: o que se perde em passado ganha-se em futuro e este transforma-se em presente na exacta medida em que deixa de o ser. O catalisador é este minuto que agora vivo, este momento fugaz em que penso em ti, em como soubeste transformar um passado recente num futuro que se perde no horizonte e se alonga, como este faz, a cada passo que dou na tua direcção.
Por assim dizer
As palavras aparecem ao acaso, como gotas de tinta num quadro de Pollock. Azul. Águia. Bico. Voar. Compreendo que assisto ao nascimento de uma história. Pouco a pouco vão encontrando o seu lugar, a sua ordem. Do Pollock a Mondrian o caminho é longo, estreito e sinuoso, ora sobe ora desce. Alguém está no bico de uma águia, a voar num céu azul. Falta saber o destino, quem é esse alguém, que faz pendurado no bico de uma águia, quem é a águia. Será uma metáfora? E a pessoa, também? Poderá substituir-se pessoa por sonho, águia por tempo? Por visão? Um sonho que ao longo do tempo vai subindo escadas que antes descera de escantilhão? Pergunta importante: esse alguém - esses sonhos - vão nus ou vestidos? Quem veste quem - os sonhos são a roupa ou a realidade é a roupa? Os sonhos vestem o tempo ou este veste-os? A águia é nova ou velha, gasta, cansada de voar nesse azul com os sonhos no bico? A história constrói-se a si própria, segundo uma lógica interna por enquanto indecifrável. Conhecemos-lhe as peças, mas ainda não o destino. O que vemos dela é uma pequena porção da totalidade. Devemos deixá-la repousar, tomar forma, descansar, tomar forma, sonhar. É isso: a história sonha-se. Alguém a sonha, é sonhado, voa num céu azul, limpo pela chuva que há pouco acabou. Mais uma peça: a chuva. Outras virão, ao longo do dia, como se o puzzle começasse com três ou quatro peças e outras se lhes viessem juntar, pouco a pouco. Olha-se para cima, vê-se o que é, imagina-se o que será, mistura-se tudo. Um dia, um ninho aparecerá. Um dia, o sonho estará escrito. Vestido, por assim dizer.
Em caso de dúvida...
22.2.21
Um vasto mosaico abstracto
Um vasto mosaico abstracto. Põe uma voz ali, uma mão acolá, um corpo que enches de amor e to paga na mesma moeda, uma imagem, um raio de sol, meia dúzia de vagas, rum, vinho, uma empanada argentina, roti em Union Island, jerk chicken na Jamaica, música, marina tudo isto em liberdade durante uma vida, leva ao forno.
Não te preocupes: o fumo vai para onde deve ir.
Uma palavra importante
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Examples of Forsooth in a sentence |
Leonard Cohen
Quando um gajo sabe perfeitamente qual a música que quer ouvir, ouve Leonard Cohen, como é óbvio. Quando não sabe, hesita, tacteia - vai parar a Leonard Cohen. Não quero que pensem que sou um fanático do senhor - não sou fanático de ninguém, nem mesmo de mim. Mas sou fanático da vida e não há vida que não tenha um Leonard para a cantar, nem canção dele que não corresponda a uma vida.
(When a guy knows exactly what he wants to listen, he listens to Leonard Cohen. When he doesn't know, he hesitates, he gropes around - and he ends up listening to Leonard Cohen. I don't want you to think I'm a fan of the gentleman - I wouldn't be a fan of anyone, not even myself. But I'm a fan of life and there's not a life without a Cohen's song, as there isn't a song of his without a corresponding life.)
(Para D., a mais bonita música que jamais ouvi de Leonard Cohen.)
21.2.21
Louvor e simplificação do sarcasmo
Ler uma coisa bem escrita - clara, concisa, coerente, incisiva (cortante, para manter a inicial) - e sarcástica na justa proporção é um dos grandes prazeres desta vida tristonha, monótona e agora confinada.
A ordenação lógica do pensamento reflecte-se numa escrita fluida, escorreita, sem curvas a mais mas com elas onde devem estar. (Não quero com isto dizer que - por exemplo - Hegel não ordenasse logicamente o seu pensamento, mas isto não é um tratado de filosofia e isso fica para depois.)
Um sarcasmo bonito e bem exposto está para a literatura como um bisturi para os instrumentos de cortar ou como um Wally para as embarcações de vela. A incapacidade de o apreciar (ou à sua prima bem educada, a ironia) revela uma deficiência emocional grave: não se pode confiar em quem não aprecie uma incisão limpa, milimétrica, daquelas que nem sangrar faz.
Viva o sarcasmo, as mentes que o formam e as mãos que lhe dão vida.
Hipocondrias
Diário de Bordos - Porto, 21-02-2021
Começo o passeio pela Casa da Música, ver os putos fazer acrobacias nos skates. É muito bonito de ver e acho o local adequado: aqueles ruídos todos juntos fazem música. O resto é mais banal: andar por estas ruas quase desertas, os raros transeuntes com que me cruzo de máscara até às orelhas, como se o vírus andasse por aí com asas de anjo à espera da menor oportunidade para lhes invadir as entranhas. Gosto de passear no Porto, nestas ruas com uma mistura de estilos arquitectónicos - faz lembrar Espanha, é o mesmo princípio, os prédios como as diferentes camadas de toucinho entremeado, diferentes camadas de tempo. Só é pena estar tudo fechado, claro.
Princípio
Está frio, a luz é pálida e penso que o Porto é o princípio do norte como os pré-Alpes são o princípio dos Alpes, como a leitura é o princípio da vida, como tu és o princípio do futuro, a emoção o princípio do amor e este o princípio de tudo.
Barcelona, 1980, para a Rosa e para o Carlos
Fui a Barcelona pela primeira vez em 1980 (ou 81, pouco importa). Fiquei em casa de um casal que conhecera nas vindimas em França. Ele era basco, baixinho, moreno como já não se devem fazer muitos assim. Lembro-me da barba - de manhã, quando nos encontrávamos para o pequeno-almoço, pensava que não havia lâmina no mundo capaz de fazer daquilo uma pele. Ela era alta, loira, alemã até ao tutano. Ele falava basco, espanhol e francês. Ela, alemão e inglês. Compreendiam-se porque ambos eram estudantes de mímica na escola de circo: falavam por gestos. Quando digo «falavam» era isso mesmo: todas as conversas eram mimadas. Viviam no Barrio Chino, um bairro que desapareceu da geografia e da memória da cidade, mas era o equivalente do nosso Bairro Alto antes do Frágil. Era um apartamento partilhado - éramos uns sete ou oito, cada um de sua nacionalidade e cada um de sua profissão, mas todos «marginais».
Íamos jantar fora quase todos os dias, nas várias combinações possíveis de oito. Nos restaurantes que frequentávamos ainda se bebia vinho por porros. O grau de bebedeira media-se não pela incoerência do discurso ou pela dificuldade em andar numa linha recta, mas pela quantidade de nódoas na camisa. Era um grupo feliz: não sabíamos que um dia tudo aquilo desapareceria, como o Bairro Alto desapareceu.
Um dia, ela disse-me «Hoje vou treinar um exercício de corda bamba, queres vir?». «Claro que sim». Fomos para o que hoje sei ser o parque Güell. Elas (só havia raparigas) puseram a corda entre dois pilares de uma pérgola, mudaram de roupa e começaram a ensaiar o número. Ninguém usava soutien. A minha vida é feita de visões - algumas prospectivas, outras retrospectivas - e essa é um das que me ficará até morrer. A rapariga era por assim dizer bem fornida de seios e ver aqueles dois globos nus por cima da cidade é uma das situações em que mais perto fiquei da experiência religosa, um êxtase que não devia andar muito longe dos de Teresa d'Ávila. Nunca mais os vi (refiro-me ao casal) e tenho pena. Aposto que com o tempo ela aprendeu espanhol e ou se separaram ou ficaram um casal como os outros.
Um dia fui ao cinema, ver Elephant Man. Era numa sala longe do centro, uma das raras que passavam filmes na versão original. Saí compreensívelmente abalado. A história não é fácil, muito menos para quem se sentia uma espécie de Elephant Man por dentro. Do outro lado da rua havia um bar, chamado - outra das coisas que não esquecerei nunca - Casa Quimet, Bar de las Guitarras. Desapareceu, vítima de um incêndio. No tecto tinha trezentas violas - não é uma ordem de grandeza, é o número exacto (tanto quanto a memória me permite). O princípio era simples: todas as violas estavam em estado de ser tocadas; qualquer pessoa podia entrar e pegar numa, mas devia tocar só para a sua mesa. Quando lá cheguei ainda era cedo, só havia três ou quatro mesas ocupadas, cada uma delas com o seu guitarrista. Sentei-me ao balcão e pedi uma sangria (nesse tempo ainda eram bebíveis). À segunda ou terceira o empregado do balcão perguntou-me «És português, não és?» «Sou». Fez um anúncio à sala: «Malta, temos aqui um português» e de seguida as mesas começaram a tocar, em uníssono, canções portuguesas (às quais nunca fui muito sensível, manda a verdade que o diga). Lembro-me particularmente de Uma casa portuguesa, mas houve muitas mais. Sentado ao balcão, chorava copiosamente. Quando acabaram - a coisa durou uma boa meia hora (de novo, sujeito aos aléas da memória) - fui falar com os músicos e perguntei-lhes como conheciam tantas canções portuguesas. Responderam-me: «Nós adoramos Portugal. Vocês conseguiram aquilo que nós não conseguimos.»
O Barrio Chino desapareceu: só alguns velhotes o conhecem ainda e sabem onde ficava (em baixo da Rambla, sobrepondo-se parcialmente ao que hoje é o Barrio Gótico). Barcelona tornou-se um paraíso de carteiristas. Não perdeu a mistura de ingenuidade e manha que fazem do Mediterrâneo o Mediterrâneo, mas tornou-se provinciana, rasca, estúpida. Irritante. Ainda gosto de lá ir - desde então, voltei lá algumas cinquenta vezes, com estadias do muito curto ao relativamente longo - mas não consigo impedir-me de pensar que pôr fronteiras onde não as há é uma das actividades mais estúpidas a que os homens se podem dedicar.
E tenho pena de não ver pelas ruas camisas cheias de manchas mais ou menos vastas de vinho tinto. O dono de uma das tascas aonde íamos oferecia-nos - no fim do jantar - um porro, se o conseguíssemos beber sem nos sujarmos. Nunca conseguimos, claro. Eu falava as duas línguas - inglês e francês - e estragava um pouco a magia dos gestos (não era linguagem gestual, era mesmo mímica). Não sei se a escola de circo ainda existe. Sei que nunca mais vi seios ao léu no parque Güell e lembro-me do choque que senti - em 2002 ou 2003 - quando descobri que Barcelona deixara de ser uma cidade do mundo para ser uma cidade de província. As revoluções trazem em si o seu fim. A entropia é o estado natural do mundo e a neguentropia a excepção. As coisas são o que são e o que foram é acessório, um adorno, um motivo para escrever textos disparatados a pessoas que nos são queridas.
Catástrofes anunciadas
«a voz subterrânea II
nós
bem nutridos
lavados
saudáveis
cultos
tivemos de dar razão a freud
era apenas uma fina camada
pronta a ser perfurada
"mais tarde não existe"»
Rosa Oliveira, in Tardio, ed. Tinta-da-China
Quando se vê a realidade imitar a poesia - já se sabe que vem catástrofe. A questão é saber quando é que este «nós» vai reconhecer que se enganou, mas isso é outra história, diacrónica. (Como todas as boas histórias.)
20.2.21
Análise quantitativa, vórtice
Analisando cada uma das suas cinquenta e dias vidas, descobriu que em cada uma delas tinha tido três grandes amigos (constantes), uma quantidade limitada de mulheres (das quais duas ou três constantes), uma dezena de amigos "médios" (dos quais metade constantes); teve uma quantidade de empregos a tender para o infinito, visões à potência dez de um número imaginário, azares à raiz quadrada de mais ou menos um milhão. A soma algébrica dos quilómetros e das milhas viajadas com as horas de voo (soma impossível de se fazer, excepto se se introduzir o vector do momento do braço da alavanca interpotente a partir do qual calcula a altura metacêntrica) daria para preencher de grãos de areia um recipiente de cinco metros cúbicos, sendo a aresta desse recipiente o raio de um círculo cujo centro está algures a meia-nau do navio cuja estabilidade dinâmica tenta descobrir fazendo apelo às carenas líquidas do rum ingerido sob a forma de rum punch, planteur ou 'ti punch, o diâmetro dos olhos nos quais se perdeu sendo o triplo dos ventres que o acolheram.
A vida é uma matemática simplicíssima. Basta saber multiplicar qualquer número por trezentos e sessenta e cinco, de quatro em quatro anos adicionar uma unidade, fazer todas as operações acima descritas, perder-se na fórmula da elipse, calcular o co-seno da tangente da derivada de um sorriso, calcular-lhe o logaritmo e decidir que tudo isto tende para ti e que tu és o vórtice dessas vidas todas. Tu és o centro do turbilhão, o seu ponto fixo, em torno do qual tudo gira.
Covid, amizades
Ao longo da minha vida tenho tido mais amigos de esquerda do que da direita liberal na qual me inscrevo. Há várias razões para isto: na Suíça, a minha ex-mulher trabalhava num meio que era maioritária - quase exclusivamente - de esquerda; os meus amigos da vela não punham, por assim dizer, as considerações políticas no centro das suas vidas. Eram - e alguns ainda são - navegadores conceituados, reconhecidos, cujo foco era a vela; e - sobretudo - o único desconhecido com quem entabulo facilmente uma conversa num bar (ou noutro lado qualquer) sou eu próprio. Todas estas razões têm excepções, claro, mas são isso mesmo - excepções ali postas pelo acaso para confirmar a regra. O Facebook veio alterar isto, mas não radicalmente. Acrescentou, por assim dizer, uma camada de novos amigos por cima da antiga, agora mais próximos ideologicamente.
Com a Covid acontece o mesmo: a maioria dos meus amigos é pró-Covid. Isso não me impede de continuar a estimá-los. A amizade é mais do que uma mera atracção pelos acidentes, pela superfície das pessoas que as ideias são. «Embora os meus olhos sejam, etc.» Já não tenho idade para discorrer muito sobre a amizade (nem paciência para o fazer sobre o amor). Limito-me a aceitar as pessoas como elas são, a pensar que tenho sorte com os meus amigos e a esperar que a Covid acabe depressa. Tudo o mais seria conversa para encher chouriços, coisa para a qual não tenho jeito nenhum (como se tem visto ao longo destes anos todos neste blogue...)
Badanal
A noite esteve de badanal. O prédio arfava, gritava e reclamava. Um bocado exagerado, parece-me. O vento já estava suficientemente forte para me fazer preferir estar em terra - quarenta nós é mais do que qualquer gajo quer ter na água - mas para um prédio não é assim tanto.
Lembrei-me de quando a minha Mãe nos fazia rezar pelos homens que estavam no mar. Era todos os dias, não apenas nos de temporal. Não me lembro da oração, mas lembro-me que tinha uma parte a suplicar a Virgem - creio que era ela a destinatário e não S. Nicolau - que protegesse do mau tempo quem andava no mar e que os trouxesse seguros de volta a casa. A coisa continuou mesmo depois de o meu Pai estar em terra, fazia parte das orações da noite. Era uma reza bonita e em noites assim lembro-me dela.
O última que apanhei destas foi no Mediterrâneo, de Pereza para Port St.-Louis. Felizmente foi de popa. Passei um monte de horas ao leme, foi uma chatice porque entrámos numa zona de exercícios militares e veio um avião avisar-nos para sairmos dali, eu estava com um braço avariado... Dessa vez não me lembrei da oração. Só se pensa nisso quando se está cá fora, bem ao seco e quentinho. Quando se está na molhada, só se pensa é no que fazer para sair dali inteiro, os corpos e os bens.
19.2.21
Diário de Bordos - Porto, 19-02-2021
Gastei cinco euros em músicos de rua. Ninguém merece tanto a nossa ajuda como eles e se antes desta palhaçada já dava sistematicamente massa a quem me alegrava os poucos minutos durante os quais lhe ouvia a música, agora dou ainda mais e mais. À solidariedade junta-se a gratidão, duas poderosas molas para a generosidade. Também comprei café (de Timor, numa casa chamada Pretinho do Japão. São uma delícia, a loja e o café) e vinho «bom». Vou beber um copo à saúde do médico que me operou, apesar de ele nunca o vir a saber. É provável que possa ir-me embora deste Porto confinado, frio, chuvoso, chato e feio ainda antes do fim do mês. Sei que vou chegar a uma Lisboa igualzinha, mas pelo menos a essa já conheço os cantos. Sempre ameniza.
Em todas as cidades onde trabalho tenho um taxista «privado». Em S. Luis do Maranhão era o Maciel, na cidade do Panamá o Alexis, em Casablanca Mohammed. Na Europa não é preciso, claro. Ou melhor: não era, até a Uber começar a exigir que se tire uma fotografia para provar que se tem a máscara. Deixei de a usar e por causa disso conheci um senhor chamado José, que até eu me ir embora vai ser o meu guia no Porto. É chauffeur da Uber e da Volt, mas com ele lido directamente, ando com a máscara onde quero e tenho interessantes conversas políticas. Hoje (primeiro dia da nossa colaboração) explicou-me que nas presidenciais votou Ventura. Hesitou entre este e Mayan, mas optou pelo Ventura porque tem mais punch (os termos são meus). Quando «os que lá estão» apanharem um susto valente, então votará IL. A mulher dele tem um restaurante em Gaia chamado Tempero da Maria. Fica a promessa: quando o circo acabar, hei-de lá ir comer.
18.2.21
Diário de Bordos - Porto, 17-02-2021
17.2.21
Louvor da vacinação. Um apelo
16.2.21
Evocação
O fim arredondado de uma página que acabou de ser lida, o azul de um tecto pintado de branco, a luz pálida do candeeiro apagado, a proa imóvel de um navio que ruma a Nornoroeste quarta a Norte, o som das tuas lágrimas a escorrer pelas faces límpidas com que recebes o futuro, as palavras perdidas no meio de um campo vazio, o ruído do automóvel no qual partiste deixando para trás as migalhas de uma vida, as letras que desajeitadamente vais pintando no horizonte, as nuvens com as quais vais construindo, passo a passo, o teu caminho, as cores - as cores da liberdade com que pintas as celas da prisão.
Não te podes queixar de me fazeres evocar poucas coisas, quando penso em ti.
(Para a T., com um beijo terno e grato.)
Remar o passado
Amor, amizade
Não pode haver amor onde não há amizade. Duas pessoas que não são amigas uma da outra poderão talvez apaixonar-se, mas esse amor não durará. O fundamento do amor é a amizade, ela é o terreno onde ele nasce, o cimento que lhe dá forma e força. Sem amizade, o amor não tem onde se enraizar. Ao contrário do que durante muito tempo pensei, um amor não evolui em amizade: regressa à amizade. Se ela não estiver lá, o amor perde-se no vazio (na melhor das hipóteses. Na pior, no ódio, no rancor, no ressentimento. )
15.2.21
A importância do tempo no estabelecimento de certezas científicas
Uma pequena precisão que me parece importante: a aceleração da gravidade - também conhecida por constante de Newton - foi calculada por Newton (feliz coincidência) no século XVII. Desde aí, tem sido posta à prova, testada e finalmente confirmada. Hoje, ninguém a põe em causa. Nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado, mais coisa menos coisa consoante a latitude, a altitude e outras incertezas menores. As «certezas» relativas ao Sars-CoV-2 são ligeiramente mais recentes e não devem ser alvo da mesma aceitação passiva. Antes pelo contrário: devem ser objecto de pesquisa activa.
Como responder, instruções sucintas
A uma pergunta que começa com «quanto» responde-se com um número; àquela que inclui «quando», com uma data. Adjectivos e outras elocubrações capilares só quando as perguntas são «como?»
14.2.21
Serenidade
Epistemologia, intuição
Basta!
Mais um excursão até ao centro do Porto. Esta cidade é tão bonita de se andar e fica tão triste com estas máscaras todas em todo as caras. E com os cafés fechados. A minha forma de turismo preferida - sentar-me num café e esperar que a cidade vá desfilando - está proibida. Um gajo vai da Boavista até à Fernandes Tomás e lá chegado nem um copo de vinho pode beber sentado a uma mesa. Há quem se acomode, encolha os ombros e diga «tem de ser». Não, não tem de ser! Emprenhem vocês pelos ouvidos, não é proibido, mas não nos forcem a nós, que usamos os ouvidos para ouvir e os olhos para ver que o façamos também. Basta!
Perder o rei
13.2.21
Diário de Bordos - Porto, 13-02-2021
Numerologia da tristeza
Um pão, duas garrafas de vinho, três cervejas, quatro tangerinas, tudo isto afogado numa tristeza imensa, numa saturação sem limites. Os um ganham, quantitativa, qualitativamente, objectiva e subjectivamente.
12.2.21
Desencontros
Noite nua
11.2.21
Diário de Bordos - Porto, 11-02-2021
A primeira bolina está feita. Agora falta rondar a bóia de sotavento da primeira regata. Tenho o olho esquerdo tapado; habituo-me a ver sem visão estereoscópica, o que é mais chato do que parece à primeira vista (ou será «à única vista»?) Amanhã rondo a bóia de barlavento e a primeira etapa fica completa, inch'Allah. De hoje a quinze dias começo a segunda e última perna. Allah u'Aqbar. (Para questões religiosas, prefiro expressões árabes a anglicismos, vá lá saber-se porquê.)
10.2.21
Sonho, deitado
Seca-se-me a boca, mulher, a tal ponto que tive de trazer a garrafa de água para a cama. O barulho que ouves é o da sede, não sonhes com ladrões. Não sonhes sequer comigo, que fui roubado a cavalo num potro e agora sonho com ladrões - sim, eu -, quarenta deles e um sésamo que se abre ao menor sussurro. Sonho acordado enquanto dormes a meu lado, durmo a sonhar enquanto sonhas a meu lado, sonho deitado contigo a meu lado.
9.2.21
Liberdade? Tintas
O liberalismo perdeu a batalha da comunicação e não a ganhará enquanto não perceber que a maioria das pessoas se está nas tintas para a liberdade, como esta crise tão bem demonstrou.
Buracos, liberdade e cigarros
Intoxico-me de cigarros (um maço em pouco mais de vinte e quatro horas...) vinho, aguardente, piripiri. Todos os venenos são bons para matar o bicho e nenhum é suficiente. Bicho esse que não passa de um buraco ligado a outro buraco, por sua vez ligado a outro e assim sem fim. Não há fumo, álcool, capsaícina ou música grega que o encha.
Só a liberdade, o bom senso, a verdade; e essas não se compram no supermercado nem se encontram na Assembleia da República.
Auto-condenação
Devia haver um forma qualquer de levar políticos a julgamento. Não me refiro ao julgamento da história mas sim ao da justiça, do povo dos tribunais. Não há, claro: foi o povo que os elegeu e não se pode levar o povo a tribunal.
Infelizmente, esse povo já está condenado à pobreza e à miséria. Não precisa sequer de ir defender-se perante um juiz. Auto-condenou-se.
Galileo Galilei
António Gedeão: Poema para Galileu
"Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da
requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Amo às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação
-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tomando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-los -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível da suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos."
António Gedeão
8.2.21
Risos
Cada vez que penso "vou dormir" oiço uma gargalhada num canto do quarto. Muito gostava eu de apanhar o sacana que se ri desta forma de mim e dos meus planos para o futuro imediato.
Diário de Bordos - Lisboa, 08-02-2021
O dia termina. Afasta-se aos saltos, cambalhotas, abre os braços e as pernas como os miúdos na praia. Foi bom: trabalho, almoço com uma pessoa querida, trabalho outra vez. Na sala, toca o Peer Gynt. Be thyself. Está contente, o dia. É assim que gosto de os ver.
.........
Descubro com prazer uma vantagem destas casas frias: entrar na cama, tapar-me até ao queixo e deixar entrar o calor. Vem devagar: começa pelo meio, vai subindo e descendo. Deixa os pés para o fim, sempre. É muito terno, muito carinhoso, como se gostasse de mim. Retribuo-lhe, claro. Acolho-o hospitaleiramente, deixo-o passear-se por mim à vontade, tento retê-lo (consigo sempre). Todas as noites é o mesmo ritual de acasalamento, o calor e eu, até que a manhã nos separa.
.........
Esta coisa de as ideias que tive há trinta anos estarem a correr atrás e mim e a voltar-me ao regaço provoca-me uma cascata de emoções contraditórias. Felizmente só guardo as boas. Não sou de ressentimentos. Nunca fui, não ia começar agora. Seria correr contra a história, não é? É.
O tempo é como a banca nos jogos dos casinos: finge que nos deixa ganhar, mas no fim do dia ganha sempre.
.........
Adenda - mais uma boa notícia a juntar às cambalhotas do dia: o Avenida lá se vai vendendo. Devagar, mas vai. Hallelujah. Allah u'Aqbar.
7.2.21
Marieke, ou O nascimento do amor - II (Fim)
Marieke transformou «quero foder» em «quero foder-te». Não houve maior metamorfose na minha vida, nem gramática nem existencial, seja qual for o aspecto dessa vida que considere. De caminho, deu outra dimensão ao verbo foder, que deixou de ser uma actividade física.
- Cala-te com a física, homem. Mete a física - oiço-a dizer. - E despacha-te, porque me fizeste a mesma coisa.
Pedro e ela morreram num acidente de automóvel, um dia a caminho da quinta, onde agora vivo sozinho. Talvez a solidão não seja uma escolha, talvez seja como a chuva, algo que não escolhemos mas aceitamos por ausência de alternativas. Vendi o ADN e vim para a quinta, aprender a distinguir uma oliveira de um carvalho, um eucalipto de um plátano. No estúdio de Marieke descobri uma série de quadros de mim, feitos a partir de fotografias. Nunca mos mostrara nem sequer me falara deles. Talvez a solidão seja um segredo que não partilhamos senão excepcionlmente, um segredo que só alguns merecem. Nunca mais fiz amor com - ou a - uma mulher. A pele é um prolongamento do cérebro, não há uma muralha entre este e o resto do corpo. Tal como não há uma muralha entre o presente e o passado. Organizei a herança da quinta: vou deixá-la aos empregados, constituídos em cooperativa. Deixei-lhes como obrigação serem rentáveis, poderem viver decentemente daquilo. Os quadros ficam: não tenho coragem para os queimar, dar ou vender. Eles que façam o que quiserem. Levei três anos a organizar tudo, a organizar-me, a perceber que a solidão não tem remédio. Não é substituível, por assim dizer. Excepto, claro, pela morte, para a qual me preparo como um marinheiro se prepara para uma tempestade: sabendo que é o elo mais fraco da cadeia e que tem a obrigação de fazer tudo para lhe sobreviver. Para mim, essa obrigação chamava-se Marieke e Pedro e desapareceu num amontoado de lata.
Lutero e o vírus
«Não há contágios sem contactos, mas há contactos sem contágioss» (Henrique Pereira dos Santos. Daqui se deduz que tentar acabar com os contactos transversalmente é uma estratégia errada porque a) é impossível acabar com todos os contactos; b) tem custos humanos, sociais, sanitários e económicos demasiado elevados - que, como se pode ver, não são brilhantes - e c) desvia-nos a atenção dos casos em que os contactos resultam verdadeiramente em contágios (e estes em casos com elevada probabilidade de morte ou consequências graves, o que é outra coisa ainda). Confesso que não percebo a reticência das pessoas em pelo menos avaliar a possibilidade destas hipóteses serem correctas, mas penso que isto tem a ver com a crescente religiosidade dos tempos modernos. Seria como pedir aos católicos do século XVI que pelo menos avaliassem as noventa e cinco teses de Lutero.
McLuhan e os índios
Óbvio
Não penses no óbvio: o que o é para ti não é para outro qualquer. O óbvio é como um vestido que cai bem a uma mulher, mas fica mal à seguinte. Pensa antes no que ninguém vê, no que mostras porque escondes. Pensa em ti, no que fazes para seres tu, no que desejas fazer e que te façam. Não te vejas pelos olhos do outro, não te antes com o amor do outro. Deixa o óbvio para quem não sabe ver mais nada, para os cegos do invisível. Estende-te na relva que a vida te trouxe, estende o braço e diz ao Sol para subir. Só um palerma te dirá: "Era óbvio que ia subir". O óbvio é para quem não sabe ver o que está dentro do que vê, que é o mais importante. Vê-te ao espelho: é óbvio o que vês?
Não, não é.
6.2.21
Marieke, ou O nascimento do amor - I (Cont.)
- Podemos começar pela cama? - Marieke era uma mulher decidida. Tinha acabado de lhe abrir a porta de minha casa. - Esta coisa das conversas prévias é uma chatice. Sonho com o tempo em que os homens nos pegavam pelos cabelos e nos levavam para a gruta. - Íamos para a cama, depois levantava-me para fazer o jantar (às vezes ela ajudava-me), comíamos e voltávamos para a cama. À meia-noite, uma da manhã ia-se embora.
A cama era grande, dura e quente. Quando Marieke
partia, não era do calor que notava a ausência. Não notava ausência nenhuma, na
verdade: ia acompanhá-la à porta e mal a fechava adormecia, voltava para o
quarto feito sonâmbulo. Às vezes, perguntava-me se fazia amor com Marieke ou a
Marieke e quase sempre optava por esta última hipótese.
Hoje, por exemplo, decidiu que queria ser
sodomizada. Tinha vindo equipada com um tubo de um gel adequado, explicou-me o
plano, espalhou a tal pomada pelo rabo e pela minha pila, sentou-se em cima de
mim e disse-me:
- Agora não te mexas. Não és tu que o pões cá
dentro, sou eu que o faço entrar, percebes? - E foi-se baixando devagar, muito
devagar, até o ter todo lá dentro. - Vês? Assim não dói tanto. Gostas? - Esta
última pergunta é retórica e não lhe respondo. Para Marieke, o mundo fora da
sua vontade é um vasto pântano no qual todas as palavras se equivalem. (Se
tivesse de lhe responder, dir-lhe-ia "não, não gosto", mas não me dou
a esse trabalho. Gosto dela como é. Gosto de qualquer pessoa capaz de extirpar
o mal de um defeito ou o bem de uma qualidade. Marieke é uma imagem perfeita -
e bela - do que seria o mundo sem adjectivos.)
A cama é o lugar de todas as maldades, de todas as
vontades, de todos os egoísmos e de todos os altruísmos. Não há amor no
universo que chegue para fazer de um orgasmo algo partilhável. Sentada em cima
de mim, Marieke masturba-se com as duas mãos. De vez em quando, leva uma delas
às mamas, à boca (dela, quase sempre e minha às vezes). Deixo-a sempre vir-se
antes de mim, não sei se por simpatia se por medo. (Exagero. Só muito
raramente uma mulher que me deu a simpatia do corpo me indifere ao ponto de me
vir antes dela.)
Marieke vem-se, eu venho-me, ela vem-se de novo,
desencaixa-se de mim, diz-me "é melhor lavares isso", dá-me um beijo
nos lábios, levanta-se para ir à casa de banho, cruzamo-nos no caminho, dá-me
outro beijo, "Amar-te-ia muito, se fosse de amores. Felizmente não
sou", vai à cozinha buscar uma cerveja, volta para a cama, "Foder
contigo é melhor do que foder com qualquer outro gajo que conheço. Sabes
porquê?" não me dá tempo para responder, "porque tu não esperas nada de
mim. Tudo o que tenho para te dar é este corpo e esta liberdade e tu aprecias
os dois e satisfazes-te com isso. Não pedes mais nada."
Um dia apareceu-me em casa com uma mala.
- Venho passar um mês contigo, para ver como seria
a nossa convivência. Tenho as hormonas aos urros e nada me garante que um dia
destes não me esqueça de comprar a pílula. Além de que estou farta de andar por
essas ruas às duas da manhã com a cona cheia de ti.
Sabia perfeitamente que ela ia frequentemente a
uma discoteca qualquer buscar um gajo, quando saía de minha casa. A história da
"cona cheia de mim" não me convenceu por completo, mas deixei-a ficar
lá em casa. Pouco tempo depois casámo-nos - pela Igreja, claro.
- Gosto de ver os padres vestidos de cerimónia e
do cheiro a incenso. Não te importas, pois não?
- Não.
- Óptimo. Vamos foder? Já tenho um padre.
Marieke é pequena, magra, loira de olhos azuis,
belga, advogada num dos principais escritórios de advogados do nosso país, para
onde imigrou ainda jovem. Comprou uma quinta na Beira, onde vai pintar aos
fins-de-semana e nas férias. Para modelos, usa os empregados, a quem paga a
dobrar os dias em que não trabalham na quinta para posar. São telas grandes,
sempre quadradas, três por três, quatro por quatro metros. "Para pequena basto
eu". Raramente a acompanho. Prefiro ir navegar com o miúdo, num barquito
que comprei há algum tempo. Chama-se ADN, tem três camarotes, um dos quais é o
do Pedro, que vai agora fazer oito anos e já se habituou a estes dias sem a
mãe. Às vezes pede-nos para ir à quinta e nós dizemos que sim. Nessas ocasiões, vou
sozinho para o mar. Nunca gostei de relações simbióticas, mas esta - ainda não
consigo chamar-lhe casamento - excede tudo aquilo que sonhei um dia ter. Por
vezes, Marieke vem navegar comigo. Tão raramente como eu vou para a quinta:
meia dúzia de fins-de-semana por ano, mais coisa menos coisa. Pedro gosta
destes dias passados a três. Vamos a Sesimbra ou a Setúbal, dormimos lá
fundeados. Muitas vezes nem saímos de bordo; outras, ficamo-nos pela praia ou
por um dos restaurantes ali perto, onde bebemos um café.
- Carlos, chega aqui. - Estou na cozinha a arrumar
a loiça do jantar, tarefa que executo com prazer. - Há quanto tempo estamos
juntos, lembras-te?
- O que queres dizer com "juntos"? Temos
várias modalidades de junção. De zero a três, na verdade.
- Juntos no sentido de nos amarmos. Desde quando
nos amamos?
- Não sei. Nunca pensei nisso.
- Eu também não. É curioso, não achas? Os peixes também não sabem o que é a água.
Pedro dorme no camarote do capitão, a ré a estibordo, porque prefiro dormir à proa, sobretudo
quando estou fundeado. Ele orgulha-se, claro. É um miúdo autónomo. Desde que
tenha comida e um livro ou um brinquedo não se dá por ele. Tenho um cabo
amarrado pela popa, com uma defensa no chicote e sabe que não pode
passar para lá da defensa. Durante o dia ouvimo-lo chapinhar na água; à noite
recolho o cabo e ele ou vem para o salão - onde estamos agora, a nortada
arrefeceu esta noite de Setembro - ou vai directamente para o camarote.
Ao contrário do que pode parecer,
conversamos bastante: às refeições, as vezes quando ele nos pergunta
qualquer coisa do livro que está a ler, quando não consegue fazer os trabalhos
de casa. Marieke fala português com ele.
- Já não sei flamengo. - É mentira, mas na verdade
não fico aborrecido. O flamengo é língua de cervejeiros. Se Marieke fosse
francesa, insistiria para que falasse francês com o miúdo. Língua de
vinhateiros, de intelectuais e de mulherengos. Arranham menos a garganta.
- Vai para a cama, Pedro. Está na hora de te ires
deitar. - Pedro obedece sem reclamar. Sabe que pode continuar a ler, adormecer
quando quiser. Dá-nos um beijo de boa noite, vai para o camarote, fecha a porta
- imposição nossa, já antiga.
O ADN balança suavemente. O vento e os brandais
estabeleceram uma conversa cerrada, o casco e as vagas outra. Fazer amor no
camarote de vante de um trinte e seis pés requer muita calma, muita
imobilidade, tem mais a ver com o mergulho do que com a escalada. Cada
milímetro quadrado de pele deve ser explorado até ao esgotamento; depois,
passa-se ao seguinte. Indústria extractiva, nada de ginásticas. Com o joelho,
pressiono-lhe o clitóris, com a mão direita acaricio-lhe a orelha ou os
cabelos, beijamo-nos, os cabelos loiros de Marieke parecem traços de tinta
entre os meus dedos. Substituo o joelho pela mão. Gosto de o sentir crescer,
molhar-se, afago-o suavemente. Marieke arqueia-se, leva as mãos aos ombros e
aperta-as com força. Volta-se de costas e diz-me:
- Vá, agora é a tua vez.
- Não, Marieke. é a nossa vez.
- Deixa-te de mariquices. - Prolonga a segunda
sílaba e quase não pronuncia a última. - Deixa-te de Marieke. Pensa em ti.
Fode-te-me. Agora és tu. Enterra-mo fundo, até à última terminação nervosa, não
deixes nenhuma por tocar. É para teu bem. Sentes o oceano que tenho dentro de
mim? É para ti, meu cabrão adorado, só para ti, é todo teu, sou toda tua e és o
único homem a quem disse isto até hoje, serás o último, provavelmente, vem,
homem, enterra-te em mim até sentires a ponta da piça nos ovários, no estômago,
nas mamas, faço-te um broche por dentro, tira-me o ar, enche-me essa cona de ti
como se fosses o último homem na terra, põe-me as mãos nas mamas e puxa-me para
ti, isso, estás quase a vir-te, não estás? Eu sinto, meu filho da puta, sei
ler-te mesmo de costas, não tarda rebentas-te e é bem feita, rebentada estou eu
agora, não passo de uma imensa cona toda tua, enche-ma, és a maré e eu o porto,
és o dragão e eu fada que o doma, tenho-te preso pelos tomates como tu me
tens a mim na ponta desse caralho, porra, porra, porrrrraaaaaa. - Tudo
isto sem uma palavra, sem um som para além de uma longa expiração feita
com boca semi-fechada, como um assobio que ficasse a meio.
De manhã acordo, levanto ferro e navego para Oeste. Levo-os aos dois para o mar, para longe de terra. Vamos a um largo e o ADN - um antigo barco de regata convertido em cruzeiro - salta alegre e leve, como se tivesse sido ele a dar a foda. como se fosse a Marieke e eu num só corpo, ainda no estertor silencioso de um amor que nasceu da liberdade, do prazer, do silêncio.