A linha que separa a boa educação da cobardia é muito fina. Envelhecer consiste basicamente em saber deslocá-la sem a romper.
30.6.21
Esperando
Enquanto "as coisas" mais ou menos nos esperam e nós nos esperamos, esperando valentemente sem desesperar, meu amor, uma vida nos espera. Dormir-te ao lado esperando que não acordes com os meus desacordos, esperando que acordes com os meus acordos, esperando-te estendida ao lado, esperando que esperes comigo e comigo não desesperes.
A vida que espere, se quiser. Nós, não.
29.6.21
Cancros, lutas
Como tenho bastantes probabilidades genéticas de um dia ter um cancro, pergunto-me muitas vezes como reagiria - como reagirei - se ou quando isso me acontecer. Só há duas alternativas: lutar ou não lutar. A minha propensão é para não "lutar" (aspas porque me apetece), mas toda a gente sabe que esse é o tipo de decisões que não se faz in abstracto. Só perante elas saberemos como reagiremos.
A verdade, porém, é que tenho uma amostra: o P. é um cancro que me rói o interior do corpo, o interior dos dias e das noites. E Deus sabe quanto luto - contra ele e contra a vontade de parar de lutar. Como um cancro, é muito mais do que a doença; e invade tudo. De repente dou por mim a lutar contra uma força dentro e outra fora, as duas atacando por vezes coordenada outras separadamente. Não me passa pela cabeça abandonar? Passa. Todas as horas, todos os minutos de todos os dias. Mas não o farei, pela simples razão de que não posso. "Não poder" tendo aqui um sentido simultaneamente metafísico e telúrico, como as forças que me atacam, vindas de dentro e de fora: não se pode abandonar uma luta contra algo que é mais forte do que nós. É como ceder a um ciclone: tu não cedes, ele é que ganha. Mas lutas até ao fim, porque não o deixas ganhar sem lutar. É como se só se pudesse perder contra iguais ou inferiores. Contra o que está acima, nem pensar em abandonar a luta. Questão de honra: perder contra um igual é azar; acontece a qualquer. Não lutar contra um ciclone é cobardia. Não tem nome. (Isto é um bocado romanceado. Lutar contra um ciclone consiste sobretudo em fechar-se dentro do barco e esperar que ele não se parta. Curiosamente, essa espera está isenta de medo, daí a analogia: não tenho medo de ti, P. Tenho medo de te abandonar, isso sim: vergonhoso. Desonroso.)
Ou seja: se um dia tiver um cancro, sei como - muito provavelmente - reagirei.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-06-2021
Por muito que reclame contra as máscara, devo dizer - a Verdade, maldita Verdade, com V grande e um a aberto como as portas do Vaticano nos dias de missa obriga-me a dizer - que tenho sorte: raramente a uso. Os ciclistas estão dispensados, pouco entro em lojas e supermercados (tão pouco que já nem me zango quando ma mandam subir, o que de resto acontece cada vez menos) e vou sempre aos mesmos restaurantes, dos quais os donos ou empregados conhecem de ginjeira a minha opinião sobre a coisa. Quando um dia se descobrir que tudo isto não passa de um gigantesco episódio de histeria colectiva, poderei ouvir que fui um dos que escapou à pressão do grupo. Já o digo hoje, mas ouvido tem outra graça.
28.6.21
Parada, ao meu lado
Se por acaso: palavras no horizonte. Uma muralha de palavras no horizonte. Não sei se são palavras ou nomes. Rita, Tatiana. Helena. Suzanne. Ilse. Ana. Christine. Forma-se no horizonte uma nuvem carregada, cheia de nomes. Cristina. Viktoria. Rosa. Não digam a ninguém, mas esta nuvem não sabe como se chama. Hesita entre Vida e Memória e nenhum desses nomes lhe agrada. Aisha. Tschombé. Sou um milk shake de nomes, de catedrais, vitrais iluminados por um sol que mais ninguém vê se não eu. O presente é uma ilusão. Os budistas tinham razão até chegarmos a Auschwitz e agora, que já por lá passámos todos, estrela amarela ao peito, pijama às riscas. Nomes. Nuvens. Horizontes. Bar Rita. Onde estás, Rita? Onde estou? «Inabilidade fatal», chamou-lhe o outro, antes de ir vender armas para a Etiópia (não tenho nada contra a venda de armas nem contra a Etiópia. Tenho contra esta muralha de nomes). Tenho contra esta avassaladora falta de ti, pareces uma avalanche feita ausência. Rosa, flor, amor, todas as palavras rimam contigo e eu pergunto-me Como é isso possível? e respondo logo de seguida És o vocabulário todo. Palavras. Horizonte. Nuvens negras carregadas de chuva: nimbus. Que importa - temos chapéus de chuva, não temos? Temo-nos um ao outro. Temo-nos ao mundo, às praias, ao tempo. Uma longa praia no horizonte. Cores: amarelo, azul, azul. Nós. Horizonte sem nuvens, como se a vida fosse isso: nós na praia, nós no café da praia, nós no quarto, nós no tempo, nós. É. Nós: somos uma imagem do tempo, uma imagem espelhada do tempo.
Pode tocar-se o tempo ao saxofone, ao piano, à bateria, ao clarinete baixo, como agora faz Eric Dolphy. Onde estás, Rita? Onde estás, Rosa? Christine? Helena? Sandra? Ana? Tatiana? Porque estais tão longe? Como posso ser feliz contigo, Rosa, tão longe? Como posso ser feliz com esta vida tão leve, tão pesada, tão perto e tão longínqua? Tão distante? Sinto-me como se vivesse ao lado da vida, parado na faixa de emergência da auto-estrada, com os automóveis a passar por mim a toda a velocidade, rumo à praia com as nuvens.
Amar-te é saber-te parada ao meu lado, para sempre.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-06-2021
Se por acaso alguém doravante me ouvir dizer mal dos maiorquinos, por favor pense que não passam de ejaculações precoces. Nesta ilha, tudo o que dure menos de três anos é uma coisa dessas. Escrevo estas linhas no bar Rita, o primeiro maiorquino que me acolheu, devido sem dúvida a um acaso da gravidade. Hoje tive outro encontro com um senhor chamado Miguel Luis. Não há coincidências, pois não? Sim, há. O homem é advogado para o Estado, teve a simpatia de me dizer que contra gestorias vou ter dificuldades em encontrar um advogado e tudo o resto foi informação útil: que os maiorquinos também eram piratas, por exemplo. Muito gostaria eu de saber quem não o era, no Mediterrâneo, mas isso ele não me disse (tão pouco lho perguntei). A verdade é: passei um momento delicioso no Myniones, assumi o compromisso de lá voltar amanhã, estou meio grosso, vim ao bar Rita na esperança de aqui encontrar um advogado ou uma indicação para um. Um refit destes não estaria completo sem o recurso à advocacia, pois não? Não.
Vertigens
Se eu um dia morrer - é pouco provável, mas nunca se sabe - espero vivamente que alguns dos dias que vivi tenham a mesma função encantantória que a canção de Mercedes Sosa (creio) chamada Gracias a la vida.
Não é só a la vida que tenho de agradecer, é certo. É também à S., a minha ex-mulher e presente amiga, mãe dos meus filhos e fonte de tudo o que um homem procura numa mulher; à R., mulher que não o sabe mas é de sempre e para sempre; à H. que me fez descobrir o amor e quem sou; à T., que me provocou a mais longa e profunda depressão de que fui vítima - não há melhor nem mais eficaz espelho -; ao ACNUR, que me fez viver o ano mais intenso, em todos os sentidos, da minha vida; e agora a M., que me confiou o projecto mais complexo, mais fodido (passe a expressão, não tenho outra equivalente na aljava), mais torcido, mais tudo o que há de menos linear da minha vida de mar. Parece os «resumo da matéria dada» da minha adolescência. O M. R. fez-me ver e viver tudo o que a amizade tem de bom e de mau e é bom saber que aquele é muito mais do que este. A J. M. V. fez-me publicar um livro: também a ela lhe devo muito. Muito mais do que o livro, de resto.
Se eu morrer - é pouco provável, eu sei - posso dizer obrigado aos meus filhos T. e H., ao meu P., tão reticente, a uma quantidade enorme de pessoas, coisas e situações. Posso, sobretudo, dizer obrigado à vida que não só me acolheu, mas recebeu de braços e coração abertos.
Deve ser disto que a vida de um homem é feita: Everestes e fossas das Marianas uns a seguir aos outros, montanhas russas vertiginosas, vertigens.
Asneira, pobreza
Diário de Bordos - Estellencs, Deià, Soller, Mallorca, Baleares, 26 e 27-06-2021
27.6.21
Texto para a Luso Magyar News de hoje
UM DIA NA PRAIA
Consegui o prodígio de ficar com as duas canetas vazias. Prodígio é ironia, claro. Acontece frequentemente. Acresce que não estão vazias, estão só quase vazias. Ainda dão para escrever o princípio desta crónica, no «individual» (?) de papel branquinho como se fosse o verso de qualquer coisa. É o verso do menu. Os restaurantes não podem levar menus à mesa e suponho que isto seja uma forma de iludir a norma. Espero que sim. Fui à casa de banho lavar uma das canetas e fiquei com os dedos todos borrados. Escrever com canetas de tinta permanente é um duplo prazer: escrevo melhor do que com esferográficas e penso no menino Nicolas, que me fazia chorar de rir quando era puto. Há todo um capítulo dedicado às canetas de tinta permanente mas eu só me lembro dos pontos principais, um dos quais era justamente o orgulho nos dedos todos sujos. Não tiro particular orgulho nisso - efeito da idade, sem dúvida - mas lembro-me com prazer do Nicolas. Na verdade não tiro sentimento nenhum. Nada. Zero. É a simples constatação de um facto, passe o galicismo (ao fim destes anos todos já devia ter direito à cidadania plena. Não há por aí um partido de meninos amigos dos estrangeirismos disposto a dar uma vista de olhos a isto?) Uma vez tive uma caneta que se sujava toda no avião, a depressão da cabine fazia-a abandonar-se. Quando chegava a terra já sabia que a primeira coisa a fazer era lavá-la. Mas essa perdeu-se, também. Perco-as todas, com uma regularidade assustadora. Vá lá que estas duas se têm mantido comigo. A que mais lamento foi uma Parker que fico no fundo de Falmouth Bay, em Antigua. Era do meu Pai. Ainda penso nela muitas vezes, da estupidez que me levou a perdê-la. Enfim. Como dizem os franceses: passons.
Escrevo estas linhas na cala Estellencs, uma das minhas favoritas na Tramuntana, se bem escolher uma favorita nesta serra deva ser tão difícil como para um júri de misses escolher a mais bonita. Gosto desta porque é pequena, no chiringuito não se come mal, é linda (todas são) e sobretudo porque me enche de paz. É como ir a uma estação de serviço pôr gasóleo no carro mas em vez de combustível tem-se paz. Fiz algumas fotografias, a ver se passam a rampa. Já não vinha para estas bandas há muito tempo, não sei sequer se no ano passado aqui vim. («Aqui» sendo a Tramuntana, não especificamente Estellencs.) No carro vinha a pensar no que diria se alguém me perguntasse «Quais os cinco lugares mais bonitos que conheces?»
– Açores – responderia –, a cadeia montanhosa do Jura, a metade norte do lago Tanganyika e a Tramuntana –, deixando o quinto lugar aberto para qualquer sítio que ainda venha a conhecer. Só espero é que não me peçam para pôr ordem nisto ou me perguntem porquê: dos quatro, três são montanhas recentes e um (o Jura) é senhora velha e com os agrestes resolvidos. Suponho que tem a ver com a paz, de que Estellencs é um epítome. O epítome por excelência, acrescento, sabendo perfeitamente que digo isto agora porque não estou em Sa Calobra, Deiá ou outra cala qualquer desta costa. Se estivesse, o epítome seria outro. Toda a Tramuntana, de Sant Elm a Formentor é fonte de paz e beleza, ponto. Deixemo-nos de epítomes.
Estou com o corpo às bandas porque não apanho sol por inteiro. Até nos pés tenho a marca dos sapatos. Não estou no meu elemento e a pele vinga-se, fica como a de uma zebra. Não penso muitas vezes no lado estético da minha profissão. Quando vivia sem Verões nem Invernos a cor não era propriamente um tema de reflexão: tinha uma banda clara na cintura e era tudo. Servia para me lembrar de quão pálido sou, sem trabalho. Agora trabalho (isto é um eufemismo) e mesmo assim estou às bandas, como a passagem de peões dos Beatles. Só que em vez de serem músicos a passarem-me por cima é o mundo todo. Enfim, a parte do mundo que trata do PANDA, vá.
Raio do bote parece um percurso hípico (evito o «épico», seria fácil de mais). Ontem perguntava-me se os cavalos também acreditam a cada salto que será o último e depois aparece-lhes sempre mais um e – perguntava-me eu – que pensa o cavalo a cada obstáculo inesperado (para ele) que lhe aparece à frente? Uma coisa não faz: revoltar-se e deitar abaixo o cavaleiro. Na volta escava-se o tema e descobre-se que no fundo no fundo o cavalo até gosta. Deve extrair um prazer perverso naquilo, como os ciclistas que sobem às montanhas ou os marinheiros que vão ao cabo Horn. Espera: eu quero ir ao cabo Horn. Vamos falar de outra coisa?
Vamos. Por exemplo, da diferença entre ter vontade e precisar. Querer e precisar. Tenho vontade de voltar aqui? Não exactamente. Preciso, o que é muito diferente, Como preciso de muitas outras coisas: comer, beber, pensar na minha R., flor do mundo, navegar na Patagónia (e de caminho no Horn). E assim em diante, sem fim. Como os obstáculos no PANDA. Raio do bote existe para me pôr à prova, para me testar, para ver como sou nas margens.
Vamos falar de outra coisa? Vamos. A tarde avança, a cala esvazia-se, o vento cai, o rum dura cada vez mais tempo no copo. Volto à água. É uma pena estar aqui e não gostar de nadar. A temperatura da água está no limite do aceitável, de modo a estadia é breve. Cinquenta metros para um lado, cinquenta para o outro, lembrar-me de esticar as pernas, não levantar demais a cabeça (crawl), alternar as pernadas com as braçadas (bruços), pôr-me a boiar de costas e tentar não me lembrar o calvário que eram as aulas de natação, pensar na sorte que é ver bem sem óculos, pensar que vou ter de subir isto tudo a pé – a próxima vez vou a Sa Foradada, se é para andar uma hora a pé... Resumindo: receita para fazer uma paz – passar uma tarde a escrever em Cala Estellencs. Tudo o resto é acessório. E Sa Foradada só vale a pena de barco.
No regresso trouxe uma miúda. Estava na estrada para a praia, perguntou-me o caminho, explicou-me que tinha a camioneta para Palma dali a oito minutos. Já de si a pergunta era estranha: o caminho desce para a cala e sobe para a aldeia. Não há muito por onde se enganar. Disse-lhe isso mesmo: bastava subir; e que em oito minutos não estaria lá em cima nem a correr. Disse-me que não, que tinha ido ter a uma casa privada, o que também não é de estranhar: não há casas públicas por ali e desatou a correr. Apanhei-a um pouco acima, sentada. «Perdi a camioneta», explicou-me. Retorqui-lhe que se quisesse a levava, ia para Palma e aqui começou um dos episódios mais estranhos dos últimos tempos. A rapariga estava transida de medo e eu cansado de mais para lho aliviar. A certa altura pergunta-me «se és de Palma, o que estás aqui a fazer?»
– O que é que tu tens a ver com a minha vida?
Pouco depois:
– Falas muito bem inglês. Onde aprendeste?
Isto, ainda não chegáramos ao carro. Respondi-lhe uma vez mais que não eram contas do seu rosário. A minha Mãe nasceu em 1930 e fez a Europa toda à boleia. Eu nasci em 1957 e fiz metade da Europa à boleia. Esta idiota estava com medo de ir de Estellencs até Palma. Foi a viagem toda transida de terror. À chegada a Palma enganei-me numa saída da auto-estrada, tive de voltar atrás e a rapariga ainda me chateou, pensou que estava a raptá-la, suponho. Não abrira a boca durante a viagem, excepto para me dizer que sim, continuava comigo até Palma, quando passámos pela camioneta e lhe perguntei se queria continuar ou apanhá-la. Explicou-me que com o carro seria mais rápido. Deixei-a à frente do Bar Cuba. Parecia uma imagem da estupidez, coitada. Nem o nome me disse. Fez-me pensar numa namorada que tive, há muitos anos, bastante mais nova do que eu. Também nunca andara à boleia. Consegui convencê-la a vir do porto de Soller até cá acima, mas depois ninguém nos deu boleia e tivemos de regressar de autocarro, para grande alívio da miúda. Mas essa era tudo menos estúpida. Não tinha era a idade que os documentos mencionavam. Um dia disse-lhe «T., vamos fazer um pacto: eu ensino-te a ter vinte e quatro anos e tu ensinas-me a ter cinquenta e quatro, pode ser?» Não. Um ano depois deixou-me e arranjou outro professor. Ou aluno, sei lá.
(Isto tudo dito: hoje volto à praia, mas vou a Deià, onde a Sand e o Chopin passaram uns meses. Ainda não li o relato que a senhora escreveu da estadia, mas espero encontrá-lo rapidamente. Se tiver sido traduzido, chama-se «Um Inverno em Maiorca». Se não, «A Winter in Mallorca». Um dos micro-erros que fiz foi tê-lo enviado para Portugal sem o ter lido.)
25.6.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-06-2021
24.6.21
Fellini à recepção
Coisas bonitas da vida nocturna: um grupo no Big Foot inclui uma mulher obesa e feia (há obesas bonitas) e duas magras lindas e elegantes - uma delas sendo a da Leica.
As duas magras são lésbicas e a gorda tem um gajo atrás que não a larga.
Fellini, dove sei, signore?
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-06-2021 / II,
O Big Foot é um bar relativamente feio e barulhento mas tem a vantagem de me servir depois das horas, como se estivesse num Speakeasy ou numa loja de ópio de Shangai. As mulheres são feias, bonitas, gordas, magras, mal vestidas e bem (há pouco entrou uma com uma Leica ao ombro). Os homens são feios, gordos, jovens, magros, bonitos. A única coisa que toda esta gente tem em comum é a banalidade.
Bebo um rum com sumo de laranja e hesito no seguimento. Ouvir o meu Pai ("deve-se sempre beber um número par de bebidas, sob pena de se voltar coxo para casa") ou dar ouvidos ao pâncreas, ao médico, ao bom senso e à namorada (se aqui estivesse)? Opto por um compromisso e encomendo um rum simples com uma rodela de lima. Pelo menos poupo o pâncreas.
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Sentei-me em cima do meu chapéu Panamá, o qual já tem as marcas (muitas e uniformes) de uma chuvada de pó do Sahara aqui há uns dias.
Gosto de ver coisas usadas mas não negligenciadas. Espero que estas interacções resultem esteticamente aceitáveis.
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Uma das coisas que admiro nas pessoas pró-Covid é a hospitalidade que dispensam ao medo. Para mim, o medo é mal vindo. Não o consigo evitar, mas não gosto dele, não o quero, é como aquelas visitas chatas que não se vão embora e nos contam todos os seus problemas de saúde e de família.
Elas não: acolhem-no de braços abertos, dão-lhe de comer e de beber, convidam-no para dormir e ainda lhe ajeitam os cobertores.
Claro que tudo isto evoca uma pergunta: se ao longo da minha vida eu tivesse tido mais medo: estaria melhor agora?
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-06-2021
Fui almoçar ao mini-Restaurante Casa Julio, que de mini só tem os preços e a designação (e nem sequer aparece sempre). O resto é maxi: a qualidade, as doses, a eficácia e simpatia das pessoas. Mal entrei a empregada mais antiga diz-me «até que enfim! Há muito tempo que não te via! Por onde tens andado?» como se eu fosse o marido dela e tivesse chegado a casa depois de uma semana de farra. Acho que vou deixar este dilema da pertença versus nomadismo no mesmo sítio onde tenho vontade de pôr o debate sobre a Covid (pelo menos com os amigos): no caixote de lixo da história. Há coisas que simplesmente não têm resolução, pelo menos dependente da nossa acção sobre elas. Um dia saber-se-á quem tem razão, tal como um dia saberei se a minha sedentarização é um facto ou um voto piedoso. Pena é esta merda da Covid ser tão invasiva, tão presente, é impossível escapar-lhe. Ver estes desgraçados trabalhar que nem forçados de máscara magoa-me e agride-me (estou na Chinchilla, o Angél e o Andrés correm como se estivessem a fazer os cem metros barreiras com as travessas na mão e o açaimo na cara, porque são obrigados).
Amor, matemática
Há três coisas boas na vida:
- - Duas coxas,
- - Um ventre,
- - Duas mamas,
- - Dois lábios,
- - Dois olhos,
- - Um cérebro.
... ?
Isto da álgebra e do amor nunca bateu certo, não sei porquê.
23.6.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-06-2021
O P. gosta de dançar o tango. Um passo à frente, dois atrás, três para o lado, levanta a perna, olha-me nos olhos e diz-me que sem ele não saberia viver. Não sei e sei. Uma coisa é certa: ele é daquelas que enquanto não a tivermos na cama não descansamos. Pelo menos para um macho latino como eu: minha querida, enquanto não fores ao sacrifício não descanso; depois, és tu quem não descansa.
Passo os pormenores porque não quero maçar os leitores - e ainda menos maçar-me - mas gostaria de explicar que a luta pelo P. se transformou uma luta contra o P. e que isto agora é pessoal, não é teórico ou existencial. É uma luta corpo-a-corpo, todos os golpes são permitidos, sem limites.
P., meu caro, estás fodido.
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A Órbita refastela-se em Palma. Foram feitas uma para a outra. Isto começa a pôr-me problemas de consciência, porque quero absolutamente levá-la daqui, quando - se - um dia deixar Palma.
Isto não é retórica. Tenho a impressão de que nada nunca me afastará de Palma. Ou que Palma nunca sairá de mim, como algumas mulheres e muitos livros.
Se o amor fosse o único critério, aconselharia toda a gente a chegar depressa aos sessenta e três anos. Infelizmente não é. Mesmo assim, acho que vale a pena experimentar. Amar é um fluido que preenche todas as brechas, uma água que mata a sede a todas as bocas. Aos sessenta temos muitas.
Começo com o P. e acabo com ele: meu caro, não penses que vais levar a melhor. Não vais. Quanto mais me bates mais te amo. Estás fodido: vais sair daqui direitinho, meu velho, com as mamas de uma septuagenária a quem tenham feito um implante.
22.6.21
Adenda à adenda
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-06-2021
Não vinha ao bar Rita há muito tempo, há demasiado tempo. O Joan propôs-me callos, coisa de que não consigo gostar, mas que me fez pensar no C. M., que ando mortinho por trazer a Palma. Faço uma encomenda ao Rodrigo, que hoje está na cozinha: «Rodrigo, faz uma mistura que inclua croquetas de chipirones e outra coisa qualquer de que tu gostes e que não seja muito» (isto de não ser muito é um conceito difícil de explicar aqui em Palma. Normalmente pensam que em vez de ser para três pessoas é só para duas). Esta imensa vontade de partilhar Palma com os meus amigos é pervasiva, insinua-se pela mais pequena das frinchas, pela vasta saudade antecipada que já começo a sentir de Palma e na verdade não tem nada de especial: conheço-a de gingeira há mais anos do que aqueles que consigo contar, de mais sítios do que conseguiria nomear, de mais situações do que me apetece recordar.
Ch. é um argentino de Córdoba. Não gosta de porteños. Era um bocadinho hiper-activo demais para o meu gosto - o frenesim é inimigo da qualidade - mas já consegui acalmá-lo e a verdade é que o polimento dos metais tem estado a sair impecável. Vai ter um filho no princípio de Julho, mas agora teve um problema com o carro e objectivo do trabalho passou do bebé para a embraiagem. Estudou geologia na universidade, mas gosta demasiado do mar para se dedicar às pedras, explicou-me. Gostei do tom dele logo no primeiro telefonema e quando o encontrei não foi propriamente uma entrevista, foi uma confirmação. A senhora P. aprecia estas atenções todas, claro - apesar de não resistir à sua velha tentação de me pregar partidas, chatas, desagradáveis (e caras, mas isso é outra história).
Às vezes o P. parece-me uma daquelas raparigas que convidamos para jantar, nos diz sim e à última da hora arranja todos os pretextos para não vir ou pelo menos para atrasar o sacrifício. É precisa uma paciência de Job, uma propensão natural (isto é, herdada) para a diplomacia e a paciência, a certeza de que no fim ela nos vai ceder. (Isto é o que sinto quando estou bem disposto. Nos outros dias, sinto-me como um índio a pular à volta da fogueira, aos urros, com a mão a tapar intermitentemente a boca e dobrando alternadamente as pernas. Só que no centro do círculo, atado ao poste e em cima da fogueira estou eu, simultâneamente índio e vítima, palhaço e espectador.)
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Conversa com A., o nosso rigger. Pouco me importa o resultado - bastante positivo, na minha opinião; se bem parcial -. O fundamental foi este sentimento de comunhão, de duas pessoas que se entendem muito para lá das palavras porque ambas sabem do que estão a falar.
A minha experiência é limitada, admitidamente - se bem tenha feito muitas coisas, só tive um sentimento semelhante no Burundi, quando o representative me dizia: «Luís, encomenda os contentores e não me chateies»; ou quando todas as semanas saía da reunião de agências e vinha ao meu escritório dizer-me: «o grupo pediu uma vez mais para te transmitir os seus parabéns» (não eram todas. Eram só muitas). Isto não tem nada a ver com orgulho, arrogância ou «armalhice». Tem a ver com harmonia, sintonia, acordo, uma espécie de ligação básica aos arquétipos primevos, àquilo que transformou os macacos em homens, àquilo que faz dois homens saberem que podem confiar um no outro, que se compreendem um ao outro. Não obtive tudo o que queria pela simples razão que não queria tudo. Queria só uma parte, a parte essencial, como se estivéssemos a dividir despojos e cada um pudesse pudesse dizer: «fiquei com o mais importante».
Só que aqui não houve luta nenhuma, mas sim uma simples aceitação de que algumas coisas são como são e não se lhes pode tocar sob pena de ver o edifício ruir.
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Adenda: «só tive um sentimento semelhante no Burundi» é mentira. «On s'en fout. De toute façon on n'est pas d'ici, demain on s'en va.»
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-06-2021
A minha teoria geral dos preconceitos, elaborada laboriosamente (espero que os leitores notem esta subtil, erudita e fina aliteração) ao longo das quase quatro semanas que levo de vida pensante - a minha teoria geral dos preconceitos, dizia - foi hoje objecto de uma ribombante e múltipla confirmação: os preconceitos têm como função na vida ser demonstrados falsos, ser trocados por outros que sabemos a priori ser igualmente falsos mas cuja falsificabilidade deve esperar o momento correcto, é preciso esperar pacientemente por esse momento, num elaborado exercício de dissonância cognitiva que se estende pelo tempo, uma dissonância diacrónica, por assim dizer. Mais: o momento da troca de preconceitos é geralmente um momento de alegria intensa, vitorosa, da qual todos saímos vitoriosos: o preconceito vencido, o novo e o feliz autor (não tenho a certeza de que este seja o termo certo: um preconceito digno de respeito faz-se a si próprio, não tem autor). Bom. Deu-se o caso assim: fui entregar o carro ao Egidio, que não podia dar-me boleia para a marina por ter sido vítima de um acidente sobre o qual não inquiri, mas que estimo suficientemente grave para o ter ao telefone em lágrimas, de manhã. Estava esganado de fome, pelo que resolvi comer nas imediações, estas não sendo exactamente o centro da cidade. Fui dar a uma tasca, com o pior aspecto que uma tasca pode ter, agravado pelo facto de se anunciar como pizzeria. Não vos peço para imaginar o lugar - aliás, peço para não o fazerem. Digamos simplesmente que era feio.
[Escrevo isto no Jaume. Uma senhora que me faz vagamente lembrar a Maria Callas e está rodeada por demasiados homens para o meu gosto - dois - faz tudo o que pode para interromper este relato. Não o conseguirá, como verão.]
Além de tasca - que em si mesmo não é propriamente um defeito, é só um pré-aviso - era uma pizzeria, isto sim, um defeito e grave, feia, inóspita, pouco acolhedora. O gajo atrás do balcão correspondia-lhe a cem por cento (não digo duzentos para não ofender os meus leitores mais apreciadores de matemática). Era feio, antipático e só tinha vontade - pareceu-me - de me ver dali para fora. Debitou-me a lista a uma velocidade estonteante (literalmente. Estava cheio de fome). Na verdade, pensei simplesmente que ele não me queria ali, que desejava ver-me partir o mais depressa possível, tão depressa como debitava a lista, que talvez tivesse um preconceito contra pobres marinheiros solitários e longe de casa (já não posso dizer «solitários», mas isso ele não sabia).
Bom, resumo a hstória: [a Callas pôs-se de costas para mim e ao meu lado sentaram-se duas senhoras jovens e feias como os trovões acompanhadas por um senhor de meia-idade igualmente feio.]
[Duas senhoras que já não têm idade para ser feias mas ainda o são. Isto merece uma teoria.]
Ou seja: o caixão do preconceito contras as pizze levou hoje o último e definitivo prego. O preconceito contra tasqueiros que parecem antipáticos levou outro. O que me levava a suspeitar de tascas na periferia das cidades outro ainda maior. Que alegria! Três preconceitos num almoço só.
20.6.21
Elogio do desenraizamento - LMN 9
Um hino ao café Enco
Uma das grandes vantagens dos preconceitos é a alegria que nos proporcionam quando a realidade faz o favor de os desmentir. Hoje aconteceu num daqueles cafés que não só evito - "são para turistas - mas desprezo, pela mesma estúpida razão. Verdade seja dita: já cá vim duas ou três vezes beber um affogato all'amaretto, sempre com resultados positivos. Ou seja: o preconceito já estava meio abananado. Mas hoje é domingo à tarde, é diferente das outras vezes. O café está cheio, os empregados continuam encantadores, o café é Lavazza - muito melhor do que a merda do Nespresso que se bebe em todo o lado - está num sítio porreiro e - seja Deus louvado - o empregado não tem máscara.
Vivam os preconceitos, viva a realidade e viva o Café Enco, "Gastronomía con amor".
Religião, superstição
Desta palhaçada, vai poder confirmar -se de uma vez por todas que o homem é eminente, fundamentalmente um animal religioso. Se não tem religião à mão, substitui-a por superstição.
(Confesso que prefiro a religião, sobretudo a nossa, que me parece o melhor compromisso entre o mágico e o real. Além de que é a única que transforma água em vinho.)
Causalidade e outros calores
Ivo é o nome do senhor que me repara as bicicletas. Já nos conhecemos há algum tempo, já lhe levei muitas burras a reparar, já lhe vendi e comprei outras. É um búlgaro jovem, bem humorado, com uma filosofia de vida que pode ser levada em consideração, às vezes. Hoje vinha para casa, a noite estava linda e pacífica, Palma-a-sedutora olhava-me bem nos olhos, eu pedalava muito suavemente para Rambla e pensava numa frase do Ivo: "À medida que a temperatura aumenta, a qualidade de vida aumenta. O calor é uma garantia de bem-estar."
Pensei imediatamente numa pessoa que recusaria tal ideia com espanto. Por mim, devo dizer que estou inteiramente de acordo: calor e qualidade de vida mantêm uma correlação positiva. E - quem sabe? - talvez até de causalidade.
19.6.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-06-2021 / 2
A rua Sant Magi está cheia outra vez. A abarrotar de jovens sem máscaras, de mulheres cuja função na vida é provar que a evolução tem razão e a moda não (disto não estou seguro), de provas de que a biologia resiste a tudo. Enquanto a moda oscilar entre mostrar pernas ou mostrar mamas (ou como agora faz, abençoada seja, mostrar as duas e mais o que lhes fica entre - advérbio ou verbo -) a biologia vencerá. É que isto é um consolo para os olhos do homem primevo, básico, simples que eu sou. (A minha namorada sabe o que sou e apesar de ser uma senhora sofisticada, culta e bonita aceita-me, facto que para mim fará para sempre parte dos Mistérios, com maiúscula.)
Penso no gesto asqueroso de um cozinheiro que até hoje respeitava. Perante um cenário semelhante em Lisboa, não só chamou a policia como insistiu. Continuarei sempre a respeitá-lo como cozinheiro - é, para mim, o melhor desta nova vaga de celebridades e "chefs" - mas como pessoa deixou de existir. A certa altura há que traçar fronteiras. A tolerância tem limites. Não são os mesmos da liberdade de expressão, mas existem.
A biologia e a estética estão esquecidas, diz Camille Paglia. A estas, acrescentaria a ética. A qual, basicamente, consiste em respeitar o outro, em não acreditar que os meus valores são melhores do que os dele. São, claro. Se não fossem não seriam os meus, mas os dele têm o direito - e o dever - de existir.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-06-2021
Deve ser efeito da moda, mas as miúdas estão cada vez mais despidas. De um ponto de vista estético, acho feio: há coisas que não são feitas para ser mostradas na rua a toda a gente. De outros pontos de vista, agradeço à moda. Em mim, a estética não é pervasiva. É uma presença, não uma Panzerdivision.
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Vai chover não tarda - na verdade já chove, mas pouco - e o cheiro da chuva invade a cidade. A chuva arrasta o cheiro a perfume das miúdas desnudas (digo miúdas porque o são). Normalmente é demasiado intenso; é outra consequência da moda, suponho: encharcam-se em perfume. Ficam a léguas do «Channel nr. 5 and a smile» da outra, de quem de qualquer forma nunca ouviram falar. A modernidade é uma chatice: ninguém ouviu falar do que nos fez sonhar.
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As chuvas estão a chover. Assim, mesmo, no plural: as chuvas. A real e a metafórica. O meu P. cabreia, impaciente. Contratei mão-de-obra para o termos pronto a tempo do primeiro charter, dia 4 de Julho. É só meio dia, mas é o primeiro meio dia. Muitos se lhe seguirão.
Muita gente não sabe o que charter significa. Não me refiro ao significado literal, directo, miseravelmente traduzido pelo português administrativo de «Actividades marítimo-turísticas». Charter tem um sentido transcendente, metafísico: é para isso, disso, que o barco vive. Os clientes de charter não o sabem, mas quando entram a bordo têm o estatuto de deuses. Isto é: são deuses. Justificam e dão sentido à nossa existência. Não é como num hotel ou numa pensão. É diferente. Um barco flutua não por causa do banho de Arquimedes, mas porque tem clientes de charter (que o linguarejar moderno transformou em guests, mas eu quero que o linguarejar moderno se afunde, com menos uma sílaba). A expressão «tenho um charter amanhã (ou para a semana, ou daqui a um mês) tem para um tripulante de charter - seja ele skipper ou o último dos deckies - o mesmo significado que para muitas religiões tem «Jesus vai descer à terra amanhã». É de resto por isso que as férias a bordo de uma embarcação são tão diferentes. São experiências religiosas, místicas. Não são férias.
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Entretanto, Palma ressuscita. Faço parte dos optimistas. Daqui a dois anos ninguém se lembrará disto e daqui a quatro os pró-Covid terão vergonha. Vai uma aposta?
Vai.
Sonhos, meta-sonhos e outras aventuras
No outro dia sonhei que não sonhava. Isto é, dormia e não sonhava e acordava inquieto: «como é possível não sonhar?», perguntava-me no sonho. Depois acordei, Vi que afinal sonhara e fiquei mais descansado. Sonhar é importante, mesmo quando as consequências são estranhas (são sempre. Passemos). Recentemente acordei exausto porque no meu sonho passara a noite a fazer actividades físicas, coisas que nunca faço, como lutar, subir a montanhas, atravessar rios pendurado em cabos e por aí fora. Acordei cansado e transpirado. Felizmente estava sozinho. Pergunto-me o que teria acontecido se tivesse uma senhora ao lado. Ter-lhe-ia batido, nadado o corpo, atravessado o rio? Não sei. Nunca saberei, seja como for. Mais uma lembrança que vai para o museu das memórias vivas, ou outro qualquer à escolha do leitor.
Devíamos ter um museu dos sonhos. Creio que há um livro do Tabucchi com esse nome, ou algo parecido. (O Google é uma chatice. Já não há desculpa para estes «talvez». Há que ir confirmar, procurar a exactidão como se fosse conciliável com a memória, como se ser exacto fosse sinónimo de ter boa memória. Não é. Vou.) Chama-se «Sonhos de sonhos». É um livro do qual guardo uma excelente memória. Aposto que teria de novo prazer em lê-lo, se não estivesse agora mais preocupado com os meus sonhos, que me deixam exaustos ou que são uma espécie de meta-sonhos. De qualquer forma, tudo o que faço é sobre tudo o que faço, de maneira isso nem questão é. Não vivo: meta-vivo. Não sonho: meta-sonho. Não amo: ... mentira. Sim, amo. Amo no primeiro grau, amo linearmente, fluido e calmo como um rio na planície, como um rio que desconhece a foz.
18.6.21
Prólogo ao texto de domingo no Luso Magyar News; ou: contra a sedentarização
Isto só se percebe bem na sua inteireza se se ler o texto do próximo domingo no Luso Magyar News (se este persistir na sua hospitalidade e tolerância a meu respeito, claro). Hoje vinha para casa, depois de acrescentar umas linhas, justamente, a esse texto (um elogio ao desenraizamento, para quem estiver interessado) e passei à frente do Jaume - ou bodega Can Rigo, se se preferir nomes localizáveis. Pensei que um chupito de hierbas secas não me faria mal - a tal anedota do russo - desmontei da burra e entrei. Pedi o chupito e o Jaume diz-me "Luís, tenho ali um rum especial, uma das garrafas que me veio do Atlântico [um dos bares célebres de Palma que a "luta contra o vírus" deitou abaixo]. Não queres antes um rum? Já só tenho uma dose". Que sim, claro. E vai de me servir um Zapata 23 anos, duplo.
Quando lhe pergunto "quanto é?" diz-me que não é nada, que sou convidado dele.
17.6.21
Viva o degresso
Em Palma, a rua que sobe para o antigo hospital da cidade chama-se Costa de la Sang. Não é preciso traduzir. Em Genebra, a rua da prostituição chamava-se rue Chauffe Cons, que traduzido dá Rua Aquece Conas. Essa rua mudou de nome e hoje chama-se rue Chausse-coqs, que não quer dizer nada. É uma simples transcrição de chauffe-cons, porque os f e os s tinham a mesma forma e Calça conas não ia muito longe.
Há qualquer coisa que se tem vindo a perder com o tempo é esse qualquer coisa é a relação com a realidade.
A crise actual não passa de mais um degrau nessa desescalada. Sim, as pessoas morrem e quanto mais velhas mais morrem. Sim, as pessoas morrem e quanto mais doenças têm mais morrem. Sim, as pessoas morrem, tout court. Querer esconder esse facto simples e iniludível é infantil.
Essa é, infelizmente, a direcção geral da modernidade: a infantilização e a desresponsabilização. Daí a incapacidade de lidar com o real, a transformação de cães e gatos em crianças, a política da identidade (é mais fácil ser gay, negro, lésbica, mulher do que ser simplesmente uma pessoa que se assume a si ou às suas opções de vida). Daí a necessidade de monstros debaixo da cama - a Covid, o "aquecimento global", o petróleo, meu Deus, o petróleo, o capitalismo, o neoliberalismo.
Avançamos e infantilizamo-nos. Viva o degresso .
Delirios, espelhos
Kabir, oceano e palavras
"Todos vêem uma gota
de água no oceano
mas poucos o oceano
numa gota de água"
"Entre palavras e palavras
bate a palavra
até encontrares
aquela palavra"
Kabir, in "O nome daquele que não tem nome", ed. Assírio e Alvim, Lisboa 2016. Versões de Jorge Sousa Braga.
15.6.21
Ilusões, sussurros
Acordo com um sussurro de ti ao meu ouvido: "Amo-te", dizes baixinho. Eu acordo, sei que não tenho ninguém ao lado e sei que te ouvi claramente dizer-me "Amo-te". Adormeço reconfortado. Há ilusões mais verdadeiras do que a verdade.
14.6.21
Duas ilusões e uma farsa
Gosto de me sentar no Mercat de l'Olivar e ver passar mamas e olhares. Sou mais sensível a estes do que àquelas, mas aprecio os dois (ou quatro, para os mais preciosistas). Gosto de ver um par de olhos bonitos, é verdade; mas o que lhes está por trás é mais importante. Sempre gostei de carinhas larocas, mas também sempre lhes preferi cabeças inteligentes. Das mamas tenho igualmente uma opinião ambivalente: tendo sido feitas (pela evolução) para ser tocadas, olhadas só mostram metade daquilo para que foram feitas. Porém, todas as mamas são bonitas, todos os olhos. Grandes, pequenas, médias, caídas ou levantadas, não há mamas feias, como não há olhos. Só conta o que os sustenta - e não me refiro ao soutien-gorge.
Ou seja: sento-me no mercado a olhar para duas ilusões, enquanto como secretos de porco que são uma delícia (real) e penso no meu P. Verdade seja dita, presentemente o meu cérebro só têm duas divisões: uma para o P., outra para a R. Quando não penso num penso na outra e vice-versa.
O meu alfabeto é tão curto, não é? (E eu tão mentiroso... A Covid tão pouco me larga.)
12.6.21
A farsa que mudou o mundo. 7 Machos. Palma.
Continuo a minha via dolorosa. Hoje vim ao 7 Machos beber uma Margarita como deve ser. A Lina lembra-se de como eu as quero (secas, com gelo em cubos), o Johnson está de regresso à cozinha e - prémio - o Mark agora trabalha aqui. Santa Catalina está a abarrotar, cheia de gente na rua e ninguém (enfim, quase) com máscara. No canto vizinho do meu, uma cubana (suponho) faz-me pensar na sorte que o meu Pai teve e no maldito elástico que tenho nas costas cada vez que me aproximo de Cuba: puxa-me para trás, não me deixa pôr pé em terra. Já tentei três vezes.
É curioso como as nossas apreciações mudam com as circunstâncias. Sempre detestei Sant Magi e nunca aqui vinha ao fim-de-semana, porque detesto esta boémia que mais parece uma ejaculação precoce a derramar-se pela rua abaixo. Hoje foi um gozo sem fim vê-la. O mundo não será decididamente o mesmo depois desta farsa. A farsa que mudou o mundo.
PS - A senhora não é cubana. É equatoriana.
Prequelas
Sabe-se que a Covid pode ter sequelas graves. Menos conhecido é o facto - comprovado - de ter prequelas. As mais frequentes sendo: independência de espírito, indefectível sentimento de liberdade, espírito crítico e racionalidade.
Curiosamente, estas prequelas imunizam a pessoa e protegem-na ab ante.
Descarrilar
Ser contra a modernidade é como querer parar um comboio que vem a toda a velocidade contra nós? É, sem dúvida. De nada serve especarmo-nos no meio da linha e tentar pará-lo. Ele esmagar-nos-á.
Mais vale dar um passo para o lado e deixá-lo passar. Descarrilar, por assim dizer.
Tempos interessantes?
A modernidade erigiu o medo em virtude suprema. Ter medo é bom, é ser inteligente, altruísta, pensar nos outros. Já não se pode "negociar" com o medo (que é o que os valentes fazem. Ser valente não é não ter medo. Isso é ser idiota. Ser valente é lidar com o medo). Tem que se destroçar o que provoca o medo, destruir a causa do medo, aniquilá-la, reduzi-la a nada, suprimi-la. Ser valente, enfrentar o medo é ser irresponsável - e pior ainda, irresponsável social. Ninguém é nada pessoalmente: somos todos parte de um grupo, de uma "identidade".
O medo como valor, a biologia relegada para o caixote de lixo da ideologia, a mentira aceite se for em nome do medo, da paz social ou de outra fé qualquer, a crença no poder da palavra («os confinamentos funcionam porque funcionam, porque Macron diz que funcionam e porque Trump ou Bolsonaro dizem que não funcionam», por exemplo. Mas há muitos mais). Ouvir é preferido a ver, a olhar, a procurar: privilegia-se a passividade - o que não é de espantar: a única acção socialmente aceite passa-se nos monitores dos computadores. À rua, as crianças só vão acompanhadas, protegidas. O pensamento mágico ressurgiu, reemergiu após este breve período de racionalidade que o Ocidente viveu no século XIX e na primeira metade do XX.
Como é aquela maldição chinesa sobre viver tempos interessantes?
Gente perigosa
"Solo viaja la gente peligrosa: soldados, mercenarios y traficantes de esclavos", leio no Prólogo de El infinito em un junco, de Irene Vallejo. É uma história do livro, li recentemente uma crítica bastante positiva e fiquei curioso.
Mas o que me interessa não é isso. É: "Só a gente perigosa viaja". Nunca me vi como perigoso, longe disso, mas à face da Covid compreendo e ilumino a frase. Nós nómadas somos perigosos. Com ou sem vírus, o nómada é aquele que viu outras coisas. Que viu e não pode desver o que viu. Aprendeu o cepticismo pela via da prática e não pela teoria. Nós nómadas sabemos que há várias verdades, porque as vemos; e sabemos que a nossa é a melhor porque a transportamos connosco, porque resiste, porque se adapta, acrescenta. A cada paragem a nossa verdade engorda e confirma-se, num processo dúbio, biunívoco, fágico. Por isso somos perigosos: aprendemos, comparamos, vivemos com e pela diferença.
O nómada é perigoso numa ordem estática, tal como o sedentário seria perigoso numa tribo nómada: a erva é mais verde no prado do vizinho.
Isto tudo dito, concordo com a asserção inicial: a gente que viaja é perigosa.
11.6.21
Inevitabilidade
A noite estival cai em Palma como a mulher de um casal antigo sobre o homem que conhece há trinta anos: com uma mistura de desejo e inevitabilidade.
Palma, Cohen
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-06-2021
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O amor bateu-me à porta e eu abri-a. Tem nome de flor e é uma flor. Deixei-a entrar e fechei a porta: daqui não sais, daqui ninguém te tira.
10.6.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha - 10-06-2021
Regresso a Palma vazio de emoções. Ou melhor: vazio de emoções que não tenham a ver com esta fraude que me enche, recheia, hipnotiza, asfixia. Entra-se no aeroporto e ouve-se «A máscara por cima do nariz» e é até ao sacana do táxi, seis horas depois - por inacreditável coincidência o mesmo que me trouxe da última vez, quando tivemos quase a mesma conversa. Quase, porque na altura ainda não me pegava por sistema, como hoje tenho tendência a fazer. É um puto novo, trinta e poucos anos, mas acredita firmemente que quando a pandemia acalma é por causa das medidas e quando desacalma é porque as pessoas se portam mal. Os países protestantes talvez sejam melhor para viver este tipo de crises, não? Não sei.
A verdade é que este «vazio de emoções» não é inteiramente verdade: penso no Harry Belafonte e na «little girl» que ele deixou em Kingston Town.
Penso nas «casas» que vou reencontrar em Palma: a Chinchilla (cf. infra), Lo Divino, que reabriu agora que as regras «aliviaram» (isto de as pessoas ficarem contentes com esse "alívio das regras" é como uma senhora ser violada e ficar agradecida porque o violador lhe oferece um lenço para se limpar), o Antiquari... todas, todas.
(Cena de hoje na Chinchilla: antes de me ir embora deixei vinte euros para pagar uma despesa de quatro, porque o táxi chegara e não podia esperar. Hoje, o A. deu-me o troco, que estava guardado. Foi há quase um mês...)
E assim o dia / noite vai decorrendo. Sublime jantar de boquerones fritos e involtini de pez no Divino, um Dark and Stormy que não é nem dark nem stormy e é carérrimo depois.
6.6.21
Hipocrisia, irracionalismo
On n'a pas gagné
5.6.21
Granito, sorriso, tangível
Nada disto é simples. Quero dizer: se por exemplo deres uma volta ao mundo e regressares ao lugar de onde partiste - a chamada volta ao mundo perfeita - o lugar mudou durante a tua ausência; e tu mudaste, mesmo estando sempre presente em ti. As coisas acontecem com ou sem nós, como se não passássemos de meras ilusões ópticas. Ou tácteis, se preferires, tu que tanto gostas de tocar, do que é tangível.
Tens, é certo, uma noção peculiar do que é tangível: um sonho, um seio, um ventre, uma vaga, meia dúzia de sílabas juntas ou separadas... Nada do que te toca te foge ao toque. Tudo o que te toca é imediatamente tangível. Há uma certa ingenuidade nisso, ambos o sabemos: acreditar que a pessoa com que agora sonhas é tangível porque o seio com que sonhas o é demonstra - estou seguro de que concordarás - uma certa inocência, uma espécie de virgindade do espírito, a lisura aquática de um lago num dia sem vento, o luar que nessa lisura se reflecte sem querer, o sonho de uma folha de árvore desse dia sem vento, o sorriso da jovem que de repente descobre que já não é adolescente e te pode esperar ao seu lado, nessa noite lisa, sem vento e prateada.
Todo este tempo a realidade limou as garras em ti mas tu não lhe sentes as marcas, envolto nessa ingenuidade tangível que construiste com o pó das garras que a realidade foi deixando em ti. Cicatrizas depressa, cais e levantas-te ainda mais depressa, sorris como se não soubesses chorar.
Tu, que tanto e tão bem choras, sorris e tocas a ausência, a presença, o mundo do qual e ao qual regressas com uma granítica e palpável certeza.
(Para os meus filhos T. e H.)
3.6.21
Abismo, gravidade, amor
Deixa-me explicar-te: amar é um risco. Só um imbecil se entrega ao amor como se mergulhasse em água de que desconhece a profundidade, sem ao menos pôr os braços à frente. Como se mergulhasse de cabeça com os braços ao longo do corpo, soldadinho de chumbo atirando-se para as chamas do fundidor. Nada disso. Amar-te é um risco porque amar é um risco mas ser amado por ti é um risco ainda maior.
Não te esqueças: o metalúrgico está lá em baixo, a nossa espera. À espera do primeiro que caia. Mergulhemos sim, mas com precauções: passo a passo. Mais vale cair devagar no abismo, minha querida.
Verdade seja dita: não temos escolha, pois não? Conheces algum abismo que resista à gravidade? Eu não.
Vergonha, decência, passado
Post em linha recta.
Pergunto-me se a decência de um homem se pode medir pela quantidade de coisas de que se envergonha no seu passado?
Talvez no fundo a decência não seja mais do que o cúmulo dos erros, asneiras, actos e omissões que vão ficando para trás e não se repetem por... porquê?
Diário de Bordos - Bissau, Guiné, 02-06-2021
Hoje tive sorte: saí do Kais a pensar que teria de voltar a pé para o hotel e em dois minutos pára um moto-táxi à minha frente. Hoje tive sorte: voltei ao Kais, a música era aceitável, a caipirinha "tropical" era excelente. Tive sorte: o caldo verde de caldo verde só tinha o nome e a boa vontade do cozinheiro, mas o hambúrguer era quase um hambúrguer e o vinho não era mau.
Na mesa ao meu lado estavam sentadas três jovens "não governamentais". Uma era obesa, portanto não conta, perdoem-me os inclusivistas todos. As outras duas eram giras. Há uns anos teriam sido... Como se diz em português? Caça? Terreno de jogos? Desafio? Não sei. Pouco me interessa hoje o que hoje não me interessa de todo. (Isto faz lembrar aquela fábula do La Fontaine, não faz? Faz.)
África ainda é para mim o mesmo turbilhão de há uns vinte anos. Porque aceitamos aqui o que não aceitaríamos nos nossos países: ruas que são esgotos a céu aberto, com mais buracos do que as crateras lunares, pobreza (verdade seja dita: não vi miséria, aqui), nepotismo, o desprezo das castas superiores pelas inferiores, a pesporrência, o desperdício? Porque continuamos a viver na ilusão de que as independências foram boas, que trouxeram liberdade e prosperidade a esta gente? Porque desprezamos tanto estas pessoas que alimentamos tantas ilusões? Porque aceitamos lidar com estes governos corruptos?
Hoje olho para trás, lembro-me dos dez por cento de comissões que pagava (indirectamente. A agência para a qual trabalhava ignorava totalmente que estava a fazê-lo) ao governador da província na qual decorria a operação (trinta e seis mil pessoas, entre refugiados e IDP) lembro-me de quando ele nos veio pedir quinze por cento e lhe dissemos não, lembro-me disso tudo e admiro o meu pragmatismo. Hoje não seria capaz de fazer a mesma coisa.
Isto revolta-me. Cada vez sou menos capaz de compactuar com a mentira, com a hipocrisia, com o sofrimento alheio. Deve ser a isto que se chama velhice, não sei. Se for, a velhice não é tão má como a pintam.
O meu saco de pedras - todos nós carregamos um aos ombros - aligeirou-se bastante: as pedras grandes saíram e foram fazer brita para cimento; as outras deixaram de chocalhar. Brevemente juntar-se-ão às grandes na britadeira. A verdade é que nos últimos tempos não tive grande disponibilidade para fazer muita coisa. (Quando olho para trás, vejo que a entrevista com o ministro foi ontem, só. Chamar "últimos dias" a um dia e quase meio é um exagero.)
Não sei se tudo isto vai servir para alguma coisa, mas sei que prefiro tê-lo feito a não o ter feito. Talvez no fundo seja este o critério: não sei se perdi dinheiro, se perdi tempo, mas sei que prefiro tê-los perdido a não ter sequer experimentado. Há sempre um moto-táxi à minha espera, nos momentos mais complicados.
1.6.21
Crenças, Covid e religião
Há quem acredite que comprar bilhetes do totómilhões é um investimento razoável ou que Jesus transformou água em vinho; na Idade Média, quase toda a gente acreditava que os surtos de peste foram debelados graças às orações e ao Divino. Há uma certa racionalidade nisto: a melhor explicação para um fenómeno é a mais fácil, a mais evidente, a que está à mão de semear, por assim dizer. Já a ciência, o método científico exigem investigação. Um cientista investiga, não crê. Põe em causa, não aceita. Por outro lado, as religiões sempre foram o antídoto para o medo. Os marinheiros eram religiosos porque precisavam de um aliado na sua faina num meio que eles sabiam ser infinitamente mais forte do que eles. O medo - um fenómeno eminentemente racional ou pelo menos racionalizável - leva naturalmente à religião, à crença de que alguém está ali para nos ajudar.
O que se está a passar com a Covid tem tudo de um fenómeno religioso: o pânico levou à crença histérica em procedimentos que são tão eficazes na «luta contra o vírus» (esta expressão faz-me lembrar «luta contra o mar», como se alguém alguma vez na vida tivesse sequer sonhado com lutar contra o mar) como as rezas dos marinheiros eram para aplacar os temporais. Não aplacavam nada senão o medo. Davam-lhe um porto de abrigo. Acolhiam-no e levavam-no para o céu. Quantas vezes com os ditos marinheiros atrás, de resto.
A crença religiosa e a crença na aficácia das vacinas têm muito em comum. Incluindo, apercebi-me hoje quando espicaçado por um amigo pró-Covid, de que a comunhão também tem duas fases, como as vacinas: a «Tomai e comei, este é o meu corpo» segue-se «tomai e bebei, este é o meu sangue». Primeira fase e segunda fase. QED.
Noite, olhar
Deixa a noite cobrir-te com um lençol, qual olhar de quem amas: não a vês, mas sente-la, leve e acolhedora como esta noite, como este lençol.
Capirinhas, passado e presente
Há muitos anos li um livro de Luís Sepúlveda. Pouco depois li outro. Do primeiro gostei bastante, o segundo achei uma xaropada intragável.
Retrospectivamente, apercebo-me de que o primeiro também era uma xaropada. Há um nome para isto: retroacção, feedback retroactivo, não é? Isto é, quando o presente ajuda a definir o passado e ilumina os nossos erros de julgamento? Claro que se pode pensar que a minha primeira apreciação era correcta e a segunda incorrecta, mas não acredito nessa hipótese.
Nada a ver com a força do negativo. Já me aconteceu o contrário, bastas vezes. O Dersu Ouzala, por exemplo. Saí da sala a pensar "Que merda de filme" e nas semanas seguintes não conseguia deixar de pensar nele, até chegar à conclusão de que era o que é: uma obra-prima.
Luís Sepúlveda não é nenhuma obra-prima. É um chato xaroposo vestido à moda. Enganadoramente, como todas as modas fazem. (É para isso que servem, de resto.)
Não sei porque penso nisto agora, mas deve ter alguma relação escondida com as caipirinhas do Papa Loka. Como se elas servissem para me rearreanjar o passado, em vez de me ajudar, simplesmente, a interpretar o presente.