31.10.24
28.10.24
Abismos e amores nascentes
27.10.24
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-10-2024
O quiosque Alaska é uma instituição em Palma. Já esteve para ser deitado abaixo várias vezes, seja por ser um ponto de encontro da rataria urbana de Palma, seja por «remodelações urbanísticas». Rataria poderia entender-se na sua forma literal, de fauna ou de uma maneira mais metafórica, por assim dizer. Seria injusto. O kiosko Alaska recebia a boémia, os marginais, a burguesia do centro da cidade. Agora aburguesou-se e turistificou-se mas continua basicamente o mesmo: hambúrgueres medianos (suficiente), cachorros quentes ligeiramente melhores (suficiente mais), batatas fritas (não sei, nunca provei), cerveja - uma das melhores imperiais da cidade - e o sítio ideal para ver Palma passar por nós.
Não sou frequentador muito assíduo - ao lado está a bodega Bellver para o aperitivo do fim do dia e a meio dele estou mais para os lados do Olivar - mas de vez em quando lá me lembro. Ou as circunstâncias encarregam-se de mo trazer à memória, como agora.
«As circunstâncias» sendo a falta de um ficheiro, um, que tinha no computador e para a salvaguarda do qual acreditava na Dropbox - ainda não perdi a esperança, mas a verdade é que não está a ser o processo trigo limpo farinha Amparo que esperava - e a da máquina fotográfica, que andava sempre comigo, sobretudo em dias de luz prometedora como são estes.
Em troca, uma arma contra as circunstâncias, comprei chocolates - Lindor, o melhor chocolate de leite do mundo, na minha humilde mas irrefutável opinião - e Milka Original, uma das formas de uma canção muito conhecida chamada Ó tempo volta para trás. Acompanho-os com rum Santa Teresa e um disco de Stan Getz e Bill Evans chamado - apropriadamente - But Beautiful. O título é um fragmento de uma longa frase que inclui it can't be but beautiful. E fui ao Alaska. Não há circunstâncias que resistam a tão massiva investida.
Do Outono só detesto a chuva, mas como isso não tem muita solução evito dar-lhe pela presença. De qualquer forma, enquanto não tiver os seguros a andar e o problema do ficheiro resolvido não preciso de sair de bordo. Não preciso?
Não posso.
Palma mudou bastante, claro, desde que aqui cheguei pela primeira vez em dois mil e doze. Penso nisso muitas vezes, em todos os lugares que eu adorava e acabaram ou mudaram: o Ca na Chinchilla, o Divino, o Abracadabra e depois vem a pergunta fatal: se tivesses chegado hoje, ainda amarias Palma como amas? Sim.
26.10.24
Diário de Bordos - Palma, etc. - parte 2
Então foi assim: a conferência foi suspensa. José Luis estava no pátio para acolher e informar as pessoas. Explica-me que a senhora está doente, blablabla e termina dizendo-me para desfrutar a cidade. É o que faço: vou à Zara Home comprar um moinho para a pimenta fumada que tenho a bordo e não quero que se estrague. Não têm (ou seja: é demasiado caro). Compro um frasco para servir o piripiri à mesa e vou à Culinarium. Têm o moinho. Daí a necessidade que desde o almoço tenho de um Fernet-Branca manifesta-se mais intensa. Pedalo pela cidade. No Kamaleonico sobrava um fundo de garrafa. Pedalo pela cidade amada. No Weyler têm Fernet. Os dois barmen são eficazes, profissionais. Um bar é a casa de um homem que não tem casa. Foi a primeira vez que entrei no Kamaleonico. Ao Weyler venho raramente, sobretudo à tarde, para escrever. Qualquer dos dois ganhou um cliente. Na bicicleta trago a roupa da lavandaria, as compras do Mercadona, as compras da Zara e da Culinarium. Fica tudo à vista enquanto bebo. Ninguém rouba nada, aqui. Excepto bicicletas. Um gajo não as fecha e num milésimo de segundo desaparecem. Até fechadas, em alguns sítios. Mas a sacos ninguém liga nenhuma. A reacção da Petra deu-me coragem para ir ao Joan confirmar a proposta de exposição. Disse-me "Quando quiseres, Luís", mas estava emocionado e não gosto de me aproveitar desses momentos. E já foi há muito tempo, meia dúzia de meses. A verdade é que custa-me expor no bar Rita sem o aval do Jaume Salvadego. Parvoíce, claro. E tão pouco tenho dinheiro para ampliar as fotografias. Nem para as emoldurar. O Weyler é mais barato do que o Kamaleonico. Palma é uma cidade-bruxa. Enfeitiça. Em cada esquina uma casa. Consegui finalmente digerir o almoço. Foram precisos três Fernet. Tenho de agradecer à A. Foi graças a ela que fui à Típika. Não sei vender-me. Se soubesse e soubesse poupar o dinheiro da venda seria um homem como os outros. A música do Weyler é enjoativa, lounge jazz mas vai bem com o meu estado de espírito. Este tem um nome. Chama-se O princípio de um amor. Ou: A mistura de amor, distância e tem juízo, Luís. A música é assim. Parece que estou num elevador. Piano e sax. Mais meloso é difícil. Sentei-me no bar do Weyler e vejo o barman trabalhar. É um trabalho nobre. Não sei para onde ir agora. Deixo a decisão à BH Glasgow Vintage. Essa nunca se perde.
Diário de Bordos. Ou: Porque é qe todos gostam de Palma
25.10.24
A lã e o frio e tu
Estou cheio de frio e cubro-me com um monte de cobertores.
Não consigo deixar de pensar nas pobres ovelhas que perderam a lã só porque tu não estás aqui ao meu lado.
Amor, fantasma
Deixa o meu dedo escorregar-te na pele, o meu olhar nos teus cabelos, os meus ouvidos nos teus lábios. Aquilo que de nós se vê e se toca é uma ponte para o resto mas na verdade é esse resto que nos une e unirá. O amor não é o lençol que cobre o fantasma, é o que lhe está por baixo.
Das alegrias infantis. Ou: as pessoas sérias e adultas não devem manifestar as alegrias. Ou: não comprem os postais agora não
Seria preciso explicar que a Típika vende postais muito bons, para além de objectos de artesanato idem? Sim, seria, mas agora acalmo os neurónios (e respectivas sinapses) com rum Santa Teresa e portanto não estou muito disponível para explicações desnecessárias. Basta virem conhecer a loja. Nada substitui a experiência directa.
Arte de viver para uso das novas gerações
O segredo para uma vida em comum longeva é simples: não levar o outro a pensar que sozinho estaria / estava melhor.
Querido diário. Ou: Espera
24.10.24
Definição - Escrever
Escrever é traduzir aquilo que se é naquilo que se seria se fôssemos como quem escreve.
Parece simples, mas não é.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-10-2024
O valor das coisas que me roubaram ascende a mil e algumas centenas de euros. Sei-o porque recorri aos seguros. Fiquei igualmente a saber que o telefone tinha sido comprado em Junho deste ano, a máquina fotográfica em Maio de 2020 - para alguma coisa os confinamentos serviram - e o computador em Dezembro de 2023. Tudo tão recente e tão parte de mim. O estojo com as Parker acrescenta às algumas centenas, mas como foi pago em dinheiro ignoro a data. Do montante lembro-me, porque as comprei para substituir umas iguais que o meu Pai me oferecera e eu perdi estupidamente em Antigua. Juntamente com uma máquina fotográfica, isto anda tudo ligado.
O dinheiro líquido apaga a história? Nunca tinha pensado nisso. Que apaga traços - ou não os deixa - sim. Mas apagá-los? Os meus critérios cash vs. cartão vão começar a incluir um parâmetro mais (as canetas foram compradas na Feira da Ladra. Os parâmetros novos são líquidos).
Resta saber se e quanto os seguros vão reembolsar a minha inaceitável confiança. Ou melhor: a minha inaceitável falta de desconfiança.
E depois: ninguém é livre sozinho. A minha liberdade deve muito a muita gente. Todos nós devemos? «Nenhum homem é uma ilha»? Sem dúvida. Isso significa apenas que não sou diferente, é tudo. Sou livre porque não sei não o ser. É uma escolha? Não sei. Nunca experimentei a alternativa. Nunca deixei de ser livre, mesmo quando não o era. «Sou o que sou e é tudo o que sou», dizia Popeye. Sou livre porque é tudo o que sou, poderia acrescentar eu.
Com a devida gratidão.
.........
PS - Quando acordo às três ou quatro da manhã vejo um planeta pelo albói. Esta noite fui investigar qual é.
Saturno.
(Para a L.)
22.10.24
Diário de Bordos - Lisboa, 22-10-2024
Pergunta-se o diarista:
- Que fazer dos dias maus?
- O mesmo que fazes dos outros. Escreve-os, digere-os, põe-nos a render, espreme-os. Podes até mentir e torná-los piores. Ou menos maus. Ou - arte suprema do diário - mentir e contá-los como foram. Tudo menos a pieguice e render-te a eles. Podes mentir-lhes, dar-lhes a ilusão de que ganharam, te ganharam; mas que isso não passe de ilusão, de recuar para melhor saltar. Tece, ilustra, tergiversa, sorri para melhor esconderes as lágrimas, promete-lhes vingança.
Numa palavra: manda-os à merda.
.........
É exactamente o que vou fazer contigo, vinte e dois de Outubro de dois mil e vinte e quatro. Vai à merda.
........
O dia vai para aonde eu lhe digo, mas quem a limpa, varre o chão e põe nos baldes para mais tarde a despejar sou eu, claro. Ele esvai-se tranquilamente numas voltas em torno do eixo, pisca-me o olho no copo de vinho tinto, agita-me os resultados das análises à frente dos olhos, palhaçada para me fazer sorrir, foram bons, eu sei, a carcaça lá se vai aguentando e a verdade é que a carcaça está para nós como a construção civil para a economia: quando um vai bem, o outro vai bem também.
Apetece-me arrancar este dia de todos os calendários e dele deixar só algumas sombras, como estas favas. E o A1c, claro. E o pudim flan.
E mai'nada!
21.10.24
O dever e o poder aliam-se ao querer: três indomáveis verbos
Poder-se-ia dizer que é demasiado cedo para (te) escrever. Aliás, na verdade até talvez o verbo adequado fosse dever: "dever-se-ia dizer, etc."
Poder e dever são como aqueles tenistas que às vezes jogam juntos contra outros pares e às vezes jogam um contra o outro. Desta vez jogam do mesmo lado contra um adversário difícil mas com a ajuda do árbitro, que é bicéfalo: eu gosto do que é difícil e quero escrever-te.
Ou seja: de um lado da rede temos três verbos. Do outro, uma coisa qualquer mais ou menos indefinida, que tu sabes e eu também mas para a qual me estou nas tintas. A questão é: e tu?
Não sabemos. Só quando o jogo acabar saberemos quem ganhou.
Nocturnos e diurnos diversos
O meu coração está com uma pequena fuga de amor. É uma coisa que mal se nota nas receio que venha a piorar. Suponho que seja de uma válvula, deve ter uma folga. Vou ver se lhe dou apertozito e consigo estancar isto agora que está no princípio.
.........
O nome do puzzle é harmonia. Quando o completamos, dizemos "tenho a harmonia feita" e levam-nos a enterrar. Quando não conseguimos acabá-lo: "Estou feito. Não encontro a harmonia." E dão-nos mais uma chance.
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Como se as palavras fossem flechas que escolhem elas próprias o seu alvo e to indicam suavemente. Sabem mais disso do que tu.
Têm sempre razão. Acertam no alvo que ecolheram.
20.10.24
Definição - amor
O amor é uma prisão que se constrói com duas liberdades, não uma liberdade feita de duas prisões.
Vida, um diálogo
- No fundo, é das inconciliáveis contradições que quero falar. Do esforço inglório que é tentar conciliá-las.
- Esse esforço chama-se vida.
Liberdade, ambiguidades e outros constrangimentos
17.10.24
Diário de Bordos - Comboio Lisboa-Viana do Castelo, 17-10-2024
Felizmente o Metro conseguiu repor a normalidade na estação do Marquês - os dois tapetes para se mudar de uma linha para outra estavam avariados. É importante as instituições lutarem por manter a normalidade. Um cidadão fica apeado, surpreso, abatido - as traduções não são minhas. Procurava désarçonné - quando chega a uma estação de Metro e todos os equipamentos funcionam. A normalidade é importante. Parabéns portanto ao Metro que conseguiu desequilibrar-me na Baixa-Chiado e rapidamente me recuperou no Marquês.
Enfim, piada é uma maneira de dizer.
16.10.24
Raiva e outros prospectos
Acabo de perder o avião da maneira mais infame, asquerosa, nojenta, odiosa, absurda e injusta que já me aconteceu.
É preciso começar por dizer que é extraordinariamente raro eu perder um avião. Uma vez - no tempo em que ainda não conseguia dormir nos aviões - cheguei a Orly vindo de Fort-de-France e como não tinha dormido nem um minuto adormeci. Quando acordei o avião tinha saído. Outra vez, em Casablanca, aconteceu-me o mesmo (mas vindo de Gibraltar, a navegar) e dessa vez o avião esperou por mim. Atravessei o aeroporto a correr, com um hospedeiro (?) de terra (?) à minha frente para afastar as pessoas (nessa altura ainda não havia cachorros).
Hoje foi pior. Comecei por chegar três horas antes do voo. Agora se não se importam salto meia dúzia de degraus. Tinha um aviso a informar que o avião sairia com quarenta e quatro minutos de atraso. Vinte minutos antes da nova hora cheguei à porta e o voo estava fechado. Afinal o atraso tinha sido inferior ao anunciado (o que fica para ver. Nada me garante que não tenham feito os passageiros esperar meia hora, como acontece tantas vezes).
O pior é não ter nada nem ninguém a quem reclamar. E a atitude das duas putas hospedeiras de terra que faziam o embarque. E a frustração de ter uma consulta médica marcada há meses e falhá-la (ou pô-la em risco, ainda vou tentar lá chegar). E a raiva, a simples e pura, cristalina, não filtrada raiva.
É tanta que em vez de voltar de táxi para bordo vim neste horroso autocarro, cheio de gente, de gordos, de malas com rodas e cachorros. Poupando assim vinte euros que vou tentar aplicar numa consulta psiquiátrica no 7 Machos.
Diário de Bordos - Aeroporto de Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-10-2024
Não sei se é o tempo, se a dor, se outra coisa qualquer que tento dissolver em vinho tinto. Sangre de Toro, se faz favor, um vinho que traz com ele vagas de memória semelhantes às da dor no ombro, vagas sem praia aonde chegar. Andam ali pelos respectivos mares, sem areia aonde deixar os traços de espuma que tanto encantam os românticos e os ociosos.
Nunca se sabe bem o que se tenta dissolver, seja lá o que for. Nem porquê. Isto de fazer ao vinho perguntas para as quais ele não tem respostas dá sempre mau resultado. Mais vale bebê-lo em silêncio e agora, não há trinta anos e em diálogo.
15.10.24
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-10-2024
Domingo à noite tive de ir às urgências do hospital de Palma e hoje fui a um centro de saúde completar o tratamento recebido no hospital. Não é a primeira vez que usufruo dos serviços de saúde desta cidade e posso portanto confirmar o que hoje à tarde intuí: esta cidade não tem doentes. Tem hospitais, centros de saúde, farmácias - mas doentes nem vê-los. A minha estadia no hospital, incluindo um engano que me custou dez minutos, foi de uma hora, porta a porta. No centro de saúde - enorme, limpo e vazio - havia uma pessoa à minha frente. Levaram mais tempo a tratar da papelada do que a médica levou a receber-me e receitar o que tinha a receitar. Exactamente como no nosso país, o que me deixa bastante sossegado.
Enfim, ironizo. Em Portugal é o contrário. Os serviços de saúde estão cheios, as esperas são imensas, os locais têm mau aspecto, terceiro-mundista. Vá lá, temos o Cristiano Ronaldo para salvar a honra do convento. Não fosse ele e a vida no nosso país não seria a mesma coisa. Seria pior.
Desta vez no norte do país. Quero. Mas o cepticismo mantém-se. Deve ser a esta mistura que se chama experiência. Ou bom senso, vá lá saber-se.
Anjos et al.
Se um arcanjo está um patamar acima do anjo, um arcanjinho está um degrau abaixo do anjinho?
14.10.24
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-10-2024
Estou outra vez na condição de máquina de tomar comprimidos. Se ao menos servissem para qualquer coisa.
(Calimerice. Servem. Servirão. Só hoje comecei com as coisas sérias. Preciso de uns dias. Até lá, maldigo a carcaça, quando tenho energia para isso. É injusto: as dores não aparecem quando trabalho, aparecem depois, quando acabo o dia e penso no de amanhã. Pensaria, se pudesse.)
Hoje vou ao 7 Machos. A mistura de comprimidos e mezcal vai der cabo desta puta, chicuembo xa'nhaca (?). «Juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim.»
12.10.24
Dissonâncias etárias
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-10-2024
(Uma das minhas canções favoritas de Paco Ibañez chama-se A Galopar. Vou mudar-lhe a letra para A Coxear e fazer disso o hino do P.)
8.10.24
Línguas
Na verdade uma lingua é muito mais do que a língua. Gosto de francês como gosto do português e já o falei como falo português, mas não poderia viver em França, por exemplo. Não quero viver em francês. Gosto da parte de Espanha aonde agora vivo - Palma - nas não falo espanhol como falo francês. E tão pouco poderia lá viver. Ibidem para um país anglófono. Não falo inglês tão bem como ainda falo francês, domino estas duas melhor do que o espanhol, conheço os países de onde são oriundas - mas nenhuma delas é a minha língua. Não tem nada a ver com o léxico, a sintaxe, com a morfologia. A gramática não passa de uma parte da língua. Uma língua é constituída pela gramática, pelo vocabulário e pelas memórias, assim mesmo no plural.
Não me refiro à nossa memória, a de cada um mas sim às memórias colectivas, as memórias todas que os falantes de um determinado idioma produziram ao longo dos séculos e que a cada momento histórico se agarram às palavras como o artista de circo ao trapézio. Um trapézio sem trapezista é como uma palavra sem memórias: fica ali a abanar, solitário, inútil, triste.
Diário de Bordos - Lisboa, 08-10-2024
Só falta o mais difícil: escrever. Ou: só falta tudo - escrever.
Claro que se tivesse juízo não daria nada a ninguém. Não tenho e pouco me importo com isso. Convivo bem comigo e com as minhas faltas - de juízo e as outras, que são muitas. Só não cohabito pacificamente com o resto de mim, a outra metade, a que não é uma falha.
6.10.24
Jazz, civilização
Diário de Bordos - Lisboa, 06-10-2024
Se eu tivesse dinheiro comeria todos os dias no Gambrinus e no Solar dos Presuntos, alternadamente. Com umas escapadelas ao Chiringuito, claro. Felizmente não tenho e isso permite-me poupar uma fortuna em restaurantes. Venho portanto comer ao Alga, uma casa da categoria "Resistentes": não é gourmet, não é fusion, não é bio, não é glutenfree, os empregados são senhores respeitáveis e correctamente vestidos. Os preços condizem com tudo isto. Ainda há quem pense que eu sou gastador?
O cozido à portuguesa do Alga estava uma maravilha. Um pináculo da cozinha tradicional nacional (refiro-me ao país, não à paisagem). Seguiu-se-lhe o competente caldo, para aconchego da alma e do estômago, por esta ordem.
Poder-se-ia talvez quiçá argumentar que quem teve na sua vida - e no seu palato - uma avó chamada Filipa e um cozinheiro Miguel (aquela em Portugal e em Moçambique, este em Cape Town e no mar ao largo da Namíbia - isto para não mencionar a Mãe Blá) é indiferente a clivagens país / paisagem. Seria eventualmente verdade se Lisboa não fosse Lisboa e não tivesse estas coisas todas - cozidos, amigos, restaurantes resistentes - mais bares e casas de jazz (ontem estava fechado, maldito seja o gás ou lá o que foi que provocou o fecho), táxis à la minute, livrarias como a Snob ou a Palavra de Viajante... paro aqui. A lista é demasiado longa.
Portugal é Lisboa porque só em Lisboa se encontram todas as qualidades e todos os defeitos do ser português. Na paisagem eles estão bastante desequilibrados (com um forte pendente para um dos lados da balança. Adivinhe-se qual).
........
O calcanhar de Aquiles do restaurante Alga é o vinho da casa. Hoje perguntei ao senhor quanto me cobrariam se eu trouxesse o meu vinho de casa.
- Nada. Traga à vontade.
Alvorecer
Alvorecer é uma palavra amável, cheia de promessas. Tem alva na ascendência, é parecida com alvíssaras, é una palavra de passagem, traz luz e alegria (se o dia estiver para isso). Por exemplo: começou a alvorecer em mim a ideia de que não escrevo só disparates. (Agora é preciso ver quanto tempo dura o crepúsculo. Se for menos de trinta anos não conta.)
Nos livros de bordo de antigamente (e hoje também, se calhar. Não sei) havia uma entrada chamada "primeiros alvores". Eu fazia o quarto das quatro às oito (também conhecido por "segundo quarto", por ser o do imediato) e achava aquilo muito estúpido. Que raio de informação se obtinha a partir da hora dos primeiros alvores? Ainda não estava familiarizado com o conceito de meta-informação.
Alvorecer. Primeiros alvores. Alvíssaras.
4.10.24
Cães, donos
Cães, cães, cães. Um gajo não pode dar dois passos na rua sem ver um cão com o dono pela trela.
Aonde estão os cães vadios da minha infância? Cães sem dono, donos sem cão.
Diário de Bordos - Sesimbra, Portugal, 04-10-2024
Hoje foi a Tasca do Isaías em Sesimbra, ontem O Castelo em Sines, anteontem o Reis em Lagos. Quem tem recomendações tem tudo. A paisagem tem decididamente bons sítios para se comer. Agora só falta chegar a Portugal, ver se finalmente como não só bem mas como deve ser, com civilização nas imediações. Chego amanhã, se nada mudar até lá.
(Pequeno elogio de passagem ao camarote da proa do M. A. Parece que estou num hotel de cinco estrelas. E só parece por causa da ,localização do maldito interruptor. Não fosse isso e estaria mesmo melhor do que no quarto de um hotel de luxo.)
PS - Quando cheguei sentei-me numa mesa que tinha à frente uma televisão - é uma praga - e pouco depois de me sentar começou a falar o senhor do PS. O homem dá-me urticária só de o ver (é tudo o que ele tem para dar, coitado) mas felizmente o bar é grande e o senhor (do bar) acedeu a desligar a outra televisão, a meu pedido, com o argumento indesmontável de que estou sozinho naquele lado e fui para uma mesa sem televisão.
PPS - Peço um rum, para acabar. Vem num balão. Lisboa, mundo, where art thou?
3.10.24
Diário de Bordos - Sines, Alentejo, Portugal, 03-10-24
A passagem do cabo foi movimentada, como sempre. Agora é só subir esta longa, interminável costa que as putas das orcas tornam ainda mais longa: há que ir o mais perto possível de terra, tentar seguir a batimétrica dos vinte metros. As cabras não gostam de águas baixinhas. Eu tão pouco gosto.
Às segundas, quartas e sextas agradeço à carcaça. Às terças, quintas e sábados apetece-me enforcá-la. Aos domingos paro para pensar e beber. É o seu dia favorito.
Sim, continua. Os melhores irish coffees em muito tempo: cervejaria Murta, Sines. Morte aos preconceitos. Viva os preconceitos. A próxima vez que vier a Sines venho aqui jantar. É uma promessa.
Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-10-2024
Mexo-me com notória dificuldade, o que de certa forma é injusto porque à minha volta tudo mexe. Tudo e todos: mesas, cadeiras, paredes, chão, pessoas, empregados (pessoas sendo para este efeito clientes, claro). Tudo mexe menos eu. As minhas costas parecem uma barra de aço inoxidável submetida a pressões do outro mundo.
Tive sorte: a barra acabou por ceder e lá consegui levantar-me da cadeira, ir buscar o bloco-notas e as canetas e voltar a sentar-me, tudo isto sem alertar e muito menos alarmar os restantes frequentadores do sítio. Estas costas são como a muralha de aço do camarada Vasco: uma fantasia.
Tem uma parte das costas à vista, o que a faz perder pontos; e poignées d'amour correctamente dimensionadas, o que a faz recuperá-los ainda antes de os ter perdido.
A noite acaba com um cocktail qualquer no bar Peppers. A música é óptima: Doors, Led Zeppelin, etc. O cocktail dá vontade de me teletransportar para o Procópio. Há pessoas que não gostam de Lisboa. Sugiro-lhes vivamente que venham visitar a pré-história. Não percebo o que vêem nessas expedições etnográficas quando não muito longe têm uma cidade.
1.10.24
Modo largada. Ou: Tudo e o seu contrário
Fragmento, quase
Retirei-me do tempo, por assim dizer, como dantes os eremitas se retiravam do mundo.
Cidades, oxímoros
As palavras nascem nas cidades e nelas se perdem. Antes das cidades não havia palavras. Havia grunhidos e talvez alguns sons organizados em sílabas. Duas, não mais. Por exemplo: Amo-te. Tem três sílabas. Existiria antes de as cidades terem sido inventadas? Por exemplo: esquinas? Avenidas? Jardins? Por exemplo: coração? Vinho existia, decerto. Tem apenas duas sílabas e apesar de serem suaves, doces, é bastante provável que os povos pré-citadinos a conhecessem.
Povos pré-citadinos? Andas a dar-lhe nos oxímoros?
Diário de Bordos - Vila Real de Santo António. Algarve, Portugal, 01-10-2024
Nunca liguei muito ao dia dos meus anos. Antes do Facebook esquecia-me frequentemente dele. Agora é impossível - e embaraçoso: sou notoriamente relapso a enviar parabéns e quando recebo avalanches deles não sei bem como reagir, para além do obrigatório e gigantesco Obrigado a todos!
(Para quem não sabe: põe-se um ovo cru entre o casco da embarcação e o cais. Se ao atracar o ovo se partir a pessoa que manobra não é aceite no clube. A prova deve ser repetida dez vezes com zero falhanços para que a admissão seja definitiva. É independente da dimensão da embarcação - aplica-se a graneleiros, supertanques, navios de pesca e embarcações de recreio.
Desde Maio que não estou sozinho a bordo de uma embarcação e muito menos a navegar. Ontem pareceu-me uma viagem ao paraíso, apesar de as putas das orcas estragarem um pouco o prato. Fico doido quando vejo idiotas louvar-lhes a beleza. Pata que as pôs mais a beleza. Elas que vão atacar a vagina da mãe e nos deixem navegar por onde queremos e precisamos de passar.
Escrevo ao som dos Steeley Span, um grupo que me foi dado a conhecer por um soldado inglês num infame, sórdido, bar de Gibraltar quando Gibraltar ainda não era o nojento buraco de turistas em que se metamorfoseou.
Três da tarde. Não vai dar tempo para uma sesta como deve ser. Mais uma vantagem do rum: equilibra a ausência de sesta. PS - O terceiro vem ainda maior. Este sim, foi o almoço do meu dia de anos.