31.10.24

Fragmento

Se eu espremesse o dia, que dele sairia?

O teu sorriso.

28.10.24

Abismos e amores nascentes

A tentação é comparar um amor nascente ao nascer do Sol mas seria uma péssima analogia. Em primeiro lugar, porque ao Sol sabemos exactamente o que vai acontecer.  Posso prever com exactidão aonde estará às treze horas, vinte minutos e dezassete segundos,  de hoje ou de daqui a cem anos. Segundo, porque se a maioria - ou pelo menos uma grande parte - dos pores-do-sol são bonitos, isso raramente acontece com os pores-dos-amores.

Mais vale apreciar o amor nascente por aquilo que ele é: o lento e inseguro levantar de uma cortina sobre dois abismos separados dos quais nascerá uma montanha, se se juntarem. 

27.10.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-10-2024

O quiosque Alaska é uma instituição em Palma. Já esteve para ser deitado abaixo várias vezes, seja por ser um ponto de encontro da rataria urbana de Palma, seja por «remodelações urbanísticas». Rataria poderia entender-se na sua forma literal, de fauna ou de uma maneira mais metafórica, por assim dizer. Seria injusto. O kiosko Alaska recebia a boémia, os marginais, a burguesia do centro da cidade. Agora aburguesou-se e turistificou-se mas continua basicamente o mesmo: hambúrgueres medianos (suficiente), cachorros quentes ligeiramente melhores (suficiente mais), batatas fritas (não sei, nunca provei), cerveja - uma das melhores imperiais da cidade - e o sítio ideal para ver Palma passar por nós.

Não sou frequentador muito assíduo - ao lado está a bodega Bellver para o aperitivo do fim do dia e a meio dele estou mais para os lados do Olivar - mas de vez em quando lá me lembro. Ou as circunstâncias encarregam-se de mo trazer à memória, como agora.

«As circunstâncias» sendo a falta de um ficheiro, um, que tinha no computador e para a salvaguarda do qual acreditava na Dropbox - ainda não perdi a esperança, mas a verdade é que não está a ser o processo trigo limpo farinha Amparo que esperava - e a da máquina fotográfica, que andava sempre comigo, sobretudo em dias de luz prometedora como são estes.

Em troca, uma arma contra as circunstâncias, comprei chocolates - Lindor, o melhor chocolate de leite do mundo, na minha humilde mas irrefutável opinião - e Milka Original, uma das formas de uma canção muito conhecida chamada Ó tempo volta para trás. Acompanho-os com rum Santa Teresa e um disco de Stan Getz e Bill Evans chamado - apropriadamente - But Beautiful. O título é um fragmento de uma longa frase que inclui it can't be but beautiful. E fui ao Alaska. Não há circunstâncias que resistam a tão massiva investida.

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O outono ainda agora começou. Traz com ele aqueles cheirinhos de Inverno e não nos deixa esquecer o Verão. Hoje pus uma camisola de gola alta (camisola não é o termo correcto. Não sei como se chama aquilo. SweaterJersey - isto é aqui em Espanha, não sei se em português é a mesma coisa). É bom para andar na rua, mas mal se entra num edifício é preciso tirá-lo. E também fui buscar a tornozeleira (???) porque ando de calças e não quero sujar o tornozelo direito com a corrente da burra.

Do Outono só detesto a chuva, mas como isso não tem muita solução evito dar-lhe pela presença. De qualquer forma, enquanto não tiver os seguros a andar e o problema do ficheiro resolvido não preciso de sair de bordo. Não preciso? 

Não posso.

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Se questo è un giorno poderia dizer, se falasse italiano e tivesse vontade de parafrasear o título de um livro que ainda não li. Nem um nem outro, mas digo na mesma: é isto um dia? Sim, é.

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Palma mudou bastante, claro, desde que aqui vim pela primeira vez, em dois mil e onze ou doze. [Fui ao DV procurar a data exacta. A quantidade de posts que falam de Palma daria para escrever um livro. Dois mil e doze.] Não importa. 

Palma mudou bastante, claro, desde que aqui cheguei pela primeira vez em dois mil e doze. Penso nisso muitas vezes, em todos os lugares que eu adorava e acabaram ou mudaram: o Ca na Chinchilla, o Divino, o Abracadabra e depois vem a pergunta fatal: se tivesses chegado hoje, ainda amarias Palma como amas? Sim.

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PS - Acabo neste preciso instante de decidir que sim, vou passar o Inverno em Palma. Assim de repente parece-me uma das decisões mais bonitas da minha vida. Aposto o braço direito em como as circunstâncias me darão razão. Sem precisar de comprar chocolates.

26.10.24

Diário de Bordos - Palma, etc. - parte 2

Então foi assim: a conferência foi suspensa. José Luis estava no pátio para acolher e informar as pessoas. Explica-me que a senhora está doente, blablabla e termina dizendo-me para desfrutar a cidade. É o que faço: vou à Zara Home comprar um moinho para a pimenta fumada que tenho a bordo e não quero que se estrague. Não têm (ou seja: é demasiado caro). Compro um frasco para servir o piripiri à mesa e vou à Culinarium. Têm o moinho. Daí a necessidade que desde o almoço tenho de um Fernet-Branca manifesta-se mais intensa. Pedalo pela cidade. No Kamaleonico sobrava um fundo de garrafa. Pedalo pela cidade amada. No Weyler têm Fernet. Os dois barmen são eficazes, profissionais. Um bar é a casa de um homem que não tem casa. Foi a primeira vez que entrei no Kamaleonico. Ao Weyler venho raramente, sobretudo à tarde, para escrever. Qualquer dos dois ganhou um cliente. Na bicicleta trago a roupa da lavandaria, as compras do Mercadona, as compras da Zara e da Culinarium. Fica tudo à vista enquanto bebo. Ninguém rouba nada, aqui. Excepto bicicletas. Um gajo não as fecha e num milésimo de segundo desaparecem. Até fechadas, em alguns sítios. Mas a sacos ninguém liga nenhuma. A reacção da Petra deu-me coragem para ir ao Joan confirmar a proposta de exposição. Disse-me "Quando quiseres, Luís", mas estava emocionado e não gosto de me aproveitar desses momentos. E já foi há muito tempo, meia dúzia de meses. A verdade é que custa-me expor no bar Rita sem o aval do Jaume Salvadego. Parvoíce, claro. E tão pouco tenho dinheiro para ampliar as fotografias. Nem para as emoldurar. O Weyler é mais barato do que o Kamaleonico. Palma é uma cidade-bruxa. Enfeitiça. Em cada esquina uma casa. Consegui finalmente digerir o almoço. Foram precisos três Fernet. Tenho de agradecer à A. Foi graças a ela que fui à Típika. Não sei vender-me. Se soubesse e soubesse poupar o dinheiro da venda seria um homem como os outros. A música do Weyler é enjoativa, lounge jazz mas vai bem com o meu estado de espírito. Este tem um nome. Chama-se O princípio de um amor. Ou: A mistura de amor, distância e tem juízo, Luís. A música é assim. Parece que estou num elevador. Piano e sax. Mais meloso é difícil. Sentei-me no bar do Weyler e vejo o barman trabalhar. É um trabalho nobre. Não sei para onde ir agora. Deixo a decisão à BH Glasgow Vintage. Essa nunca se perde. 

Diário de Bordos. Ou: Porque é qe todos gostam de Palma

Alguns leitores recordar-se-ão: fui à Típika vender caixas de postais De Passagem, a senhora - Petra, para futuras referências - ficou com duas e deu-me cinquenta euros. Isto seguiu-se a uma breve conversa sobre o preço, cujos pormenores passo por agora.

Fiquei contente, claro e fui-me embora. Mais tarde, já a bordo, penso - ela pagou-me uma ou duas caixas? O início da conversa tinha exactamente incidido no preço. Eu dissera-lhe que queria vendê-las (a caixa inteira) por cinquenta e lhe dava vinte, ela contra argumentou com metade metade, acedi e enquanto a conversa se desenrolava ela ia vendo as fotografias. ¡Qué ricoQué bello! e por aí fora. "Ainda vou mas é ficar eu com uma." (A tradução é minha.) A Petra explica-me que é melhor vender as fotografias separadamente, o que só muito medianamente me aborrece. Passo alguns pormenores. Ela pega nos cinquenta paus, dá-mos e eu saio dali com as pernas cheias de emoção. 

Contudo, a bordo lembrei-me de me perguntar: ela pagou-me uma caixa ou as duas? É que isoladamente ela vai vender cada postal a três ou quatro euros e as caixas têm quarenta e oito.

Hoje voltei lá. A loja estava cheia - é francamente boa - mas mal me viu tira cinquenta paus da caixa, vem ter comigo com um sorrisão e diz-me "Desculpa, ontem esqueci-me de te pagar a segunda caixa." Não quero saber a quanto é que ela vai vender aquilo. Quero apenas que ela me dê um valor que me parece justo. Não me importo que as fotografias sejam vendidas separadamente. O conceito que lhes está subjacente - De Passagem - está bem expresso em cada uma delas. São postais. Só quero é vender mais.

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Sou contra a pena de morte excepto em casos mais do que justificados. Sou igualmente contra a pena de morte a pessoas que roubam mochilas na via pública, sobretudo se essas mochilas contêm um computador, uma máquina fotográfica, um telefone portátil, um passaporte e são da marca Lockdo. A este último caso, a pena de morte deve obrigatoriamente ser precedida de tortura. Por exemplo: pôr o indivíduo num tanque até à cintura, com piranhas. Só depois de estes amáveis peixes se terem alimentado deveria o ladrão ser levado à guilhotina.

Hoje de manhã passou uma frente violentíssima em Palma.  Agora voltou o sol e esta luz pós-frontal, clara e densa, capaz de dar volume a uma folha de papel branco em cima de uma mesa de fórmica branca impele-me a fotografar a cada segundo.

Maldito sejas, filho de um comboio de putas sifilíticas.

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Cheguei cedo ao museu aonde será a conferência de Nazareth Castellanos e vi uma exposição cujo título me seduziu imediatamente: Todas as utopias passam pela barriga. Comprei o bilhete e lembrei-me de que tinha de ir ao Olivar. Perguntei à rapariga se podia voltar mais tarde. "Que sim, claro." Volto e a dita exposição estava fechada, por causa do temporal da manhã. Face à minha desilusão, pergunta-me se quero que me reembolse o bilhete. "Que sim, claro" e venho para a vermuteria San Jaime beber vermute Carvajales, um maiorquino que descobri recentemente, por coincidência aqui mesmo.

A nebulosidade voltou, a luz mágica foi-se, o Sol é substituído por vermute e deixo de sonhar com piranhas. Daqui a pouco vou ouvir a mais bela neurologista do universo e arredores, pergunto-me se é neurologista ou neuróloga e na dúvida peço um rum, porque é preciso cortar o doce.

25.10.24

A lã e o frio e tu

Estou cheio de frio e cubro-me com um monte de cobertores.

Não consigo deixar de pensar nas pobres ovelhas que perderam a lã só porque tu não estás aqui ao meu lado.

Amor, fantasma

Deixa o meu dedo escorregar-te na pele, o meu olhar nos teus cabelos, os meus ouvidos nos teus lábios. Aquilo que de nós se vê e se toca é uma ponte para o resto mas na verdade é esse resto que nos une e unirá. O amor não é o lençol que cobre o fantasma, é o que lhe está por baixo.

Das alegrias infantis. Ou: as pessoas sérias e adultas não devem manifestar as alegrias. Ou: não comprem os postais agora não

Gostaria de contar isto como exactamente se passou. Seria porém necessário que os meus neurónios (os dois ou três que restam) acalmassem, coisa que só acontecerá se eu escrever tudo como efectivamente se passou. Posso aceitar um compromisso ne resumir o que se passou ao cerne do que se passou?

Foi assim (resumindo): fui à Típika com três caixas dos meus postais «De Passagem». A senhora (sei agora que se chama Petra) olhou para eles, exclamou várias vezes ­­­Que rico, que bello, etc. Houve uma breve negociação de preços. Não sou muito bom a negociar. Saí de lá com cinquenta paus no bolso, mais uma caixa deixada à consignação. Dali fui ao Octavio (é só atravessar a rua) beber uma hierbas secas - ofereceu-mas - e a aventura (se é que se pode chamar assim) acabou no El Corte Inglés com uma garrafa de rum Santa Teresa. Como não gostar de Palma? 

Seria preciso explicar que a Típika vende postais muito bons, para além de objectos de artesanato idem? Sim, seria, mas agora acalmo os neurónios (e respectivas sinapses) com rum Santa Teresa e portanto não estou muito disponível para explicações desnecessárias. Basta virem conhecer a loja. Nada substitui a experiência directa.

Arte de viver para uso das novas gerações

O segredo para uma vida em comum longeva é simples: não levar o outro a pensar que sozinho estaria / estava melhor.

Querido diário. Ou: Espera

Querido diário, aqui vai o ponto da situação.

- Computador - À espera da Dropbox para recuperar o ficheiro de trabalho. A esperança é pouca. Estas aplicações são mais eficazes a sacar-nos dinhiro do que a fornecer o serviço prometido;
- Telefone: 1 - Vodafone: à espera da Vodafone (a relação é indirecta. Já tenho um telefone que funciona. Foi a primeira coisa, claro. E também a mais fácil. Basta pagar. Mas o jovem vendedor da Vodafone enganou-se e estou a tentar recuperar pelo menos parte do erro. A Vodafone já não é o que era). 2 - Sunrise: à espera de poder ir à Suíça por causa do cartão da Sunrise, mais barato do que o da Vodafone. Não acontecerá antes de meados de Novembro, salvo milagre aeronáutico;
- Máquina fotográfica - processo para o seguro em curso. À espera dos statements do banco N26, que tal como a outra já não é o que era;
- Passaporte: à espera da próxima ida a Lisboa;
- Mochila Lockdo, estojo Parker e tudo o mais: em processo de esquecimento / luto / esvaziamento da raiva.

Os seguros deviam pagar também as horas de trabalho, as horas de ansiedade, as horas perdidas, as horas de espera.

24.10.24

Definição - Escrever

Escrever é traduzir aquilo que se é naquilo que se seria se fôssemos como quem escreve.

Parece simples, mas não é. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-10-2024

O valor das coisas que me roubaram ascende a mil e algumas centenas de euros. Sei-o porque recorri aos seguros. Fiquei igualmente a saber que o telefone tinha sido comprado em Junho deste ano, a máquina fotográfica em Maio de 2020 - para alguma coisa os confinamentos serviram - e o computador em Dezembro de 2023. Tudo tão recente e tão parte de mim. O estojo com as Parker acrescenta às algumas centenas, mas como foi pago em dinheiro ignoro a data. Do montante lembro-me, porque as comprei para substituir umas iguais que o meu Pai me oferecera e eu perdi estupidamente em Antigua. Juntamente com uma máquina fotográfica, isto anda tudo ligado.

O dinheiro líquido apaga a história? Nunca tinha pensado nisso. Que apaga traços - ou não os deixa - sim. Mas apagá-los? Os meus critérios cash vs. cartão vão começar a incluir um parâmetro mais (as canetas foram compradas na Feira da Ladra. Os parâmetros novos são líquidos).

Resta saber se e quanto os seguros vão reembolsar a minha inaceitável confiança. Ou melhor: a minha inaceitável falta de desconfiança.

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Uma das expressões portuguesas de que menos gosto é «pôr-se a jeito». Acontece-te alguma coisa má e lá está, «puseste-te a jeito». Desloca a vítima do seu lugar para o de culpado, quase desculpa o verdadeiro autor da maldade: puseste-te a jeito... Isto dito, é verdade que fui uma besta e mais - tive uma luzinha encarnada a acender-se-me no cérebro. "Não ponhas aí a mochila, é fácil roubarem-ta." Mas só no mar presto atenção às luzinhas que se me acendem no cérebro. Em terra ignoro-as, com alguma desculpa mal amanhada, como  um peixe que vem para a mesa cheio de escamas.

A luzinha encarnada lembrava-se de Barcelona, quando me roubaram um saco de computador - história pior, porque estava ao meu lado na mesa da estação de Sants. E melhor, porque o ladrão me veio devolver o saco. Estava vazio, ao contrário deste.

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Tenho sessenta e sete anos e com esta idade já se pode fazer um balanço desapaixonado - ou pelo menos pouco apaixonado - da vida que se viveu e compará-la à que se queria ter vivido.

Consegui dois objectivos, creio. Um antigo, de juventude: ser livre. Outro mais maduro: ser um gajo decente. Nenhum deles é fácil, ao contrário do que a «literatura» moderna quer que se pense. Literatura vai entre aspas por uma carrada de razões. Comecemos pelo fim: é preciso fazer muita merda para se tornar um gajo decente. Ser decente não resulta do que se fez ou faz, mas de como se olha para o que se fez. E de não querer repetir a porcaria e querer repetir o bem, que nem só de asneiras vive um homem.

Já a liberdade tem mais que se lhe diga. Em primeiro lugar porque a liberdade não existe. O que há são liberdades. Muitas, contraditórias. Em segundo lugar porque a liberdade é um oxímoro: ser livre consiste em poder escolher as suas prisões e Deus sabe se eu as tenho, prisões. Tenho muitas. Ter sido eu quem as escolheu ajuda, mas não é por isso que deixam de ser prisões. São apenas mais suportáveis. Mais. Como dizer? Inevitáveis. Não se pode fugir de uma prisão que se escolheu, porque isso seria saltar de uma para as outras todas. 

E depois: ninguém é livre sozinho. A minha liberdade deve muito a muita gente. Todos nós devemos? «Nenhum homem é uma ilha»? Sem dúvida. Isso significa apenas que não sou diferente, é tudo. Sou livre porque não sei não o ser. É uma escolha? Não sei. Nunca experimentei a alternativa. Nunca deixei de ser livre, mesmo quando não o era. «Sou o que sou e é tudo o que sou», dizia Popeye. Sou livre porque é tudo o que sou, poderia acrescentar eu. 

Com a devida gratidão.

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PS - Quando acordo às três ou quatro da manhã vejo um planeta pelo albói. Esta noite fui investigar qual é.

Saturno.


(Para a L.)

22.10.24

Diário de Bordos - Lisboa, 22-10-2024

Pergunta-se o diarista:

- Que fazer dos dias maus?

- O mesmo que fazes dos outros. Escreve-os, digere-os, põe-nos a render, espreme-os. Podes até mentir e torná-los piores. Ou menos maus. Ou - arte suprema do diário - mentir e contá-los como foram. Tudo menos a pieguice e render-te a eles. Podes mentir-lhes, dar-lhes a ilusão de que ganharam, te ganharam; mas que isso não passe de ilusão, de recuar para melhor saltar. Tece, ilustra, tergiversa, sorri para melhor esconderes as lágrimas, promete-lhes vingança. 

Numa palavra: manda-os à merda.

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É exactamente o que vou fazer contigo, vinte e dois de Outubro de dois mil e vinte e quatro. Vai à merda.

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O dia vai para aonde eu lhe digo, mas quem a limpa, varre o chão e põe nos baldes para mais tarde a despejar sou eu, claro. Ele esvai-se tranquilamente numas voltas em torno do eixo, pisca-me o olho no copo de vinho tinto, agita-me os resultados das análises à frente dos olhos, palhaçada para me fazer sorrir, foram bons, eu sei, a carcaça lá se vai aguentando e a verdade é que a carcaça está para nós como a construção civil para a economia: quando um vai bem, o outro vai bem também. 

Apetece-me arrancar este dia de todos os calendários e dele deixar só algumas sombras, como estas favas. E o A1c, claro. E o pudim flan.

E mai'nada!

21.10.24

O dever e o poder aliam-se ao querer: três indomáveis verbos

Poder-se-ia dizer que é demasiado cedo para (te) escrever. Aliás, na verdade até talvez o verbo adequado fosse dever: "dever-se-ia dizer, etc."

Poder e dever são como aqueles tenistas que às vezes jogam juntos contra outros pares e às vezes jogam um contra o outro. Desta vez jogam do mesmo lado contra um adversário difícil mas com a ajuda do árbitro, que é bicéfalo: eu gosto do que é difícil e quero escrever-te.

Ou seja: de um lado da rede temos três verbos. Do outro, uma coisa qualquer mais ou menos indefinida, que tu sabes e eu também mas para a qual me estou nas tintas. A questão é: e tu?

Não sabemos. Só quando o jogo acabar saberemos quem ganhou.

Nocturnos e diurnos diversos

O meu coração está com uma pequena fuga de amor. É uma coisa que mal se nota nas receio que venha a piorar. Suponho que seja de uma válvula,  deve ter uma folga. Vou ver se lhe dou apertozito e consigo estancar isto agora que está no princípio. 

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O nome do puzzle é harmonia. Quando o completamos, dizemos "tenho a harmonia feita" e levam-nos a enterrar. Quando não conseguimos acabá-lo: "Estou feito. Não encontro a harmonia." E dão-nos mais uma chance.

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Como se as palavras fossem flechas que escolhem elas próprias o seu alvo e to indicam suavemente.  Sabem mais disso do que tu.

Têm sempre razão. Acertam no alvo que ecolheram.

20.10.24

Definição - amor

O amor é uma prisão que se constrói com duas liberdades, não uma liberdade feita de duas prisões. 

Vida, um diálogo

- No fundo, é das inconciliáveis contradições que quero falar. Do esforço inglório que é tentar conciliá-las. 

- Esse esforço chama-se vida.

Liberdade, ambiguidades e outros constrangimentos

As coisas são como são e não como nós queremos que elas sejam. As coisas não deviam ser como são e temos a obrigação de as mudar. A violenta ambiguidade do real, inquebrável, está bem manifesta nestas duas proposições, ambas verdadeiras. Deve encontrar-se um equilíbrio entre o abulismo e a hiper-actividade, entre o realismo e o sonho, entre as duas margens do rio, as margens que o oprimem e não o deixam fazer da paisagem o que é nem o que devia ser. O rio nasce das profundas napas freáticas e à superfície ainda se lembra de quando tudo era escuro e não havia ar. Livre como um comboio nos seus carris. Livre como o vento que vai de um lado para outro movido por forças que o ultrapassam. Livre como o leite que ferve e sai da cafeteira, sujando o fogão todo. Livre, o rio, como o que é e o que devia ser. Livre como a napa freática que escapa de uma prisão para se meter noutra. Livre como a ilusão sem a qual nada se constrói, nem a mesmo a certeza. Nem sequer a incerteza, que oscila entre as duas margens do rio. Livre. como tudo, livre como nada. Como o amor, a quem escolheste ceder-te. Oscilas entre prisões e a isso chamas liberdade. 

Tens razão. 

17.10.24

Diário de Bordos - Comboio Lisboa-Viana do Castelo, 17-10-2024

Venho por este meio (porque não tenho outro. Tivesse-o e usá-lo-ia. Por exemplo, dao zi bao. Mas não tenho. Sou pobre de meios. Só tenho este.) Continuemos: venho por este meio reclamar contra o Metro de Lisboa, primeiro. E felicitá-lo, depois.

A reclamação provém do desapontamento de ter acedido à estação Baixa-Chiado pelo lado do Chiado e todas as escadas rolantes estarem a funcionar. É decepcionante. Vem um indivíduo, cheio de boa vontade, a fazer apostas consigo próprio sobre a quantidade de escadas paralisadas e oops, zero, nil, nem uma. Todas funcionavam.

Felizmente o Metro conseguiu repor a normalidade na estação do Marquês - os dois tapetes para se mudar de uma linha para outra estavam avariados. É importante as instituições lutarem por manter a normalidade. Um cidadão fica apeado, surpreso, abatido - as traduções não são minhas. Procurava désarçonné - quando chega a uma estação de Metro e todos os equipamentos funcionam. A normalidade é importante. Parabéns portanto ao Metro que conseguiu desequilibrar-me na Baixa-Chiado e rapidamente me recuperou no Marquês.

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Outra felicitação: o SNS. Gastei um monte de massa para corrigir o erro de ontem, consegui chegar ao Hospital à hora que tinha previsto - e de que tinha avisado a veneranda instituição - e acabei por não ser recebido pelo médico, que entretanto já se tinha ido embora. Tudo bem: ele tinha bastantes circunstâncias atenuantes e não lhe quero mal. Bastar-me-ia que ele morresse num mar de dores semelhante àquele aonde procuro sobreviver.

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«Os comboios europeus têm rodas ovais.» Li isto num livro de espionagem americano há cerca de duzentos e cinquenta anos e cada vez que ando de comboio em Portugal lembro-me da frase como se a tivesse lido ontem. Acho piada a um país que quer fazer TGV e não consegue pôr os comboios que tem a andar direitos. 

Enfim, piada é uma maneira de dizer.

16.10.24

Raiva e outros prospectos

Acabo de perder o avião da maneira mais infame, asquerosa, nojenta, odiosa, absurda e injusta que já me aconteceu. 

É preciso começar por dizer que é extraordinariamente raro eu perder um avião. Uma vez - no tempo em que ainda não conseguia dormir nos aviões - cheguei a Orly vindo de Fort-de-France e como não tinha dormido nem um minuto adormeci. Quando acordei o avião tinha saído. Outra vez, em Casablanca, aconteceu-me o mesmo (mas vindo de Gibraltar, a navegar) e dessa vez o avião esperou por mim. Atravessei o aeroporto a correr, com um hospedeiro (?) de terra (?) à minha frente para afastar as pessoas (nessa altura ainda não havia cachorros).

Hoje foi pior. Comecei por chegar três horas antes do voo. Agora se não se importam salto meia dúzia de degraus. Tinha um aviso a informar que o avião sairia com quarenta e quatro minutos de atraso. Vinte minutos antes da nova hora cheguei à porta e o voo estava fechado. Afinal o atraso tinha sido inferior ao anunciado (o que fica para ver. Nada me garante que não tenham feito os passageiros esperar meia hora, como acontece tantas vezes).

O pior é não ter nada nem ninguém a quem reclamar. E a atitude das duas putas hospedeiras de terra que faziam o embarque. E a frustração de ter uma consulta médica marcada há meses e falhá-la (ou pô-la em risco, ainda vou tentar lá chegar). E a raiva, a simples e pura, cristalina, não filtrada raiva.

É tanta que em vez de voltar de táxi para bordo vim neste horroso autocarro, cheio de gente, de gordos, de malas com rodas e cachorros. Poupando assim vinte euros que vou tentar aplicar numa consulta psiquiátrica no 7 Machos.

Diário de Bordos - Aeroporto de Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-10-2024

Não sei se é o tempo, se a dor, se outra coisa qualquer que tento dissolver em vinho tinto. Sangre de Toro, se faz favor, um vinho que traz com ele vagas de memória semelhantes às da dor no ombro, vagas sem praia aonde chegar. Andam ali pelos respectivos mares, sem areia aonde deixar os traços de espuma que tanto encantam os românticos e os ociosos.

Nunca se sabe bem o que se tenta dissolver, seja lá o que for. Nem porquê. Isto de fazer ao vinho perguntas para as quais ele não tem respostas dá sempre mau resultado. Mais vale bebê-lo em silêncio e agora, não há trinta anos e em diálogo.

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No walk through fui como de costume ao Fahrenheit, outra dessas vagas que anda por aí sem destino. Pus um bocadinho demais. Espero que o meu vizinho no avião goste do cheiro. Se não gostar, explicar-lhe-ei que Fahrenheit é o único perfume que usei (passada a fase Old Spice) e que a minha ex-mulher et al. gostavam muito.

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Hoje fui ao galope do mastro. São quinze metros e foi um desgraçado de um day worker que me subiu. Preveni-o de que não consigo ajudar-me e portanto teria de ser ele a fornecer a energia toda. Custa-me um bocadinho, isto de não conseguir ajudar-me a subir, mas a verdade é que o simples esforço de me manter no mastro enquanto trocava as adriças da genoa foi suficiente para me pôr o ombro aos berros. O rapaz sugeriu-me uma manivela eléctrica. A ver vamos.

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Amanhã vou ao médico. Se alguém um dia me dissesse que ir a uma consulta me encheria de uma alegria que roça (salvo seja) a felicidade tê-lo-ia mandado procurar praias.

15.10.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-10-2024

Domingo à noite tive de ir às urgências do hospital de Palma e hoje fui a um centro de saúde completar o tratamento recebido no hospital. Não é a primeira vez que usufruo dos serviços de saúde desta cidade e posso portanto confirmar o que hoje à tarde intuí: esta cidade não tem doentes. Tem hospitais, centros de saúde, farmácias - mas doentes nem vê-los. A minha estadia no hospital, incluindo um engano que me custou dez minutos, foi de uma hora, porta a porta. No centro de saúde - enorme, limpo e vazio - havia uma pessoa à minha frente. Levaram mais tempo a tratar da papelada do que a médica levou a receber-me e receitar o que tinha a receitar. Exactamente como no nosso país, o que me deixa bastante sossegado.

Enfim, ironizo. Em Portugal é o contrário. Os serviços de saúde estão cheios, as esperas são imensas, os locais têm mau aspecto, terceiro-mundista. Vá lá, temos o Cristiano Ronaldo para salvar a honra do convento. Não fosse ele e a vida no nosso país não seria a mesma coisa. Seria pior.

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Escrevo no Antiquari, um dos meus lugares favoritos para escrever, aqui em Palma. Penso num post que li recentemente sobre como escolher escritórios. Comigo o processo é penoso. O sítio tem de ser bonito, ter a música baixo (já não há cafés sem música, infelizmente), confortável, não muito caro - peço regularmente qualquer coisa para beber, é a minha renda. Deixo o mais importante para o fim: a clientela tem de ser, ela também, bonita. Um lugar com pessoas aos berros e aos arrotos não me serve.

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Quase sem querer vejo-me arrastado para mais um «projecto». As aspas reflectem o meu cepticismo e ao mesmo tempo penso que quase sem querer não é bem verdade. Quero. 

Desta vez no norte do país. Quero. Mas o cepticismo mantém-se. Deve ser a esta mistura que se chama experiência. Ou bom senso, vá lá saber-se.

Anjos et al.

Se um arcanjo está um patamar acima do anjo, um arcanjinho está um degrau abaixo do anjinho?

14.10.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-10-2024

Estou outra vez na condição de máquina de tomar comprimidos. Se ao menos servissem para qualquer coisa.

(Calimerice. Servem. Servirão. Só hoje comecei com as coisas sérias. Preciso de uns dias. Até lá, maldigo a carcaça, quando tenho energia para isso. É injusto: as dores não aparecem quando trabalho, aparecem depois, quando acabo o dia e penso no de amanhã. Pensaria, se pudesse.)

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«A noite pertence aos amantes». A letra é do Dylan, se não me engano. (Engano-me. É do Springsteen e da Patti Smith.) Um bocadinho redutor, não é? A noite pertence aos amantes, aos estetas, a quem passou o dia a trabalhar, a quem passou o dia a querer trabalhar... A noite pertence a quem a quer, a quem a ama, a quem vê nela o que de dia não se vê. «Encandeado pela luz», canta o mesmo Springsteen. Desencadeado pela noite, cantaria eu, se cantasse.

Hoje vou ao 7 Machos. A mistura de comprimidos e mezcal vai der cabo desta puta, chicuembo xa'nhaca (?). «Juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim.»

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A dor e a fome não são compatíveis. Quem as mistura mente. Já a sede é outra conversa.

12.10.24

Dissonâncias etárias

Há uma patologia cujo nome desconheço. Vem com o envelhecimento. O seu principal sintoma é que nós - os doentes - mudamos com a idade mas quem nos rodeia não se apercebe dessa mudança e continua a ver-nos como éramos quando nos conhecemos (as pessoas que nos rodeiam e nós, não quando nos conhecemos a nós próprios. Desculpa o pleonasmo, M.)

Um dos efeitos desta doença é a dissonância cognitiva que provoca, uma dissonância dissonante, por assim dizer (ditto, M.)

Hoje, por exemplo. Depois do jantar a bordo apetecia-me ir ao 7 Machos dizer olá ao Alex e beber um mezcal. Verdade não seja calada: a vontade vinha de muito antes do jantar de hoje. Pouco importa. A verdade é que não fui. Terá sido consequência do cansaço? Desta nauseabunda dor no ombro esquerdo? Da vontade de não gastar dinheiro  (vontade bastante oportuna que aparece quando não tenho dinheiro ou tenho pouco)? Não sei.

Mas lá que se este horrível double bind estivesse numa casa de apostas, quem apostasse que eu daria ouvidos à idade ganharia uma fortuna.

(Outros argumentos a ter em conta mas não constantes do boletim de apostas:
- Hoje é sábado e aquilo está cheio;
- É longe;
- A BH Glasgow Vintage não quer sair de onde está.)

Resultado: escrevo no quadro negro da noite: "Eu queria ir ao 7 Machos e não fui". Ler com entoação calimeriana. "Espero que a noite venha com o apagador em riste e o use com vigor e energia." Ler com a entoação de um capitalista de risco a dizer que não nos dá massa e ao mesmo tempo a encorajar-nos a não perder a esperança. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-10-2024

Estou em Palma há três dias, quase quatro. O que já fiz, o que está por fazer (para além do P., claro)? A rota das capelinhas está a meio. Falta o Joan, o Jaume, o Cliff e alguns outros menos importantes. Já fui ao Xisco, ao Fidel, ao François, ao Claudio - sonha com estrelas Michelin e Deus sabe se por esta vez aprovo o sonho. O homem faz os melhores gelados do universo e arredores. A combinação jantar no Gustar e gelados no Claudio vale a viagem de qualquer parte do mundo. Escrevo na Cantina, também conhecida por Alberto ou Ismael. No fundo sou um paisano: os lugares para mim têm o nome das pessoas que os dirigem, porque para gostar de um sítio preciso de gostar do dono. (Isto não é inteiramente verdade e necessitaria de alguma elaboração. Gosto das pessoas porque gosto do que fazem ou de como o fazem. A mecânica não é muito simples mas por agora fica. Um dia desenvolvê-la-ei, se Deus quiser e eu puder.)

Mas a verdadeira questão fica: que me dá Palma que as outras cidades - incluíndo Lisboa - não dá? As relações geográficas são tão difíceis de definir como as amorosas.

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Hoje é feriado em Espanha - día de la Hispanidad - e a maioria das coisas que queria fazer ficaram a boiar na hispanidade. Segunda-feira tenho gente a bordo do P. - hallelujah ! - e portanto esses pormenores só para terça (ou segunda à tarde, com sorte). Realismo é dar pequenos passos quando se o que quer são passos de gigante. Não abandonar, apesar dessa divergência: uma perna quer ir para ali, a outra não passa daqui. E lá se vai andando, a coxear.

(Uma das minhas canções favoritas de Paco Ibañez chama-se A Galopar. Vou mudar-lhe a letra para A Coxear e fazer disso o hino do P.)

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Uma perna a galopar, a outra a coxear: haverá melhor imagem para a minha vida? Não.

8.10.24

Línguas

Na verdade uma lingua é muito mais do que a língua. Gosto de francês como gosto do português e já o falei como falo português, mas não poderia viver em França, por exemplo. Não quero viver em francês. Gosto da parte de Espanha aonde agora vivo - Palma - nas não falo espanhol como falo francês. E tão pouco poderia lá viver. Ibidem para um país anglófono. Não falo inglês tão bem como ainda falo francês, domino estas duas melhor do que o espanhol, conheço os países de onde são oriundas - mas nenhuma delas é a minha língua. Não tem nada a ver com o léxico, a sintaxe, com a morfologia. A gramática não passa de uma parte da língua. Uma língua é constituída pela gramática, pelo vocabulário e pelas memórias, assim mesmo no plural.

Não me refiro à nossa memória, a de cada um mas sim às memórias colectivas, as memórias todas que os falantes de um determinado idioma produziram ao longo dos séculos e que a cada momento histórico se agarram às palavras como o artista de circo ao trapézio. Um trapézio sem trapezista é como uma palavra sem memórias: fica ali a abanar, solitário, inútil, triste.

Diário de Bordos - Lisboa, 08-10-2024

Só falta o mais difícil: escrever. Ou: só falta tudo - escrever.

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Veio um mendigo ter comigo. Agradeci-lhe a atenção mas declinei a sua proposta de lhe dar dinheiro. Nem sequer o que tenho no bolso pequeno. Acho indecente não dar nada aos mendigos. Dou quase sempre a quem toca música e às vezes a quem faz malabarismos nos semáforos. Não dou às «estátuas»: congela-se-me o braço só de os ver. Aos mendigos devia dar mas não dou. Ou só muito raramente. Não sou fundamentalista em nada. Sou um rapazinho flexível e adaptável às circunstâncias. 

Claro que se tivesse juízo não daria nada a ninguém. Não tenho e pouco me importo com isso. Convivo bem comigo e com as minhas faltas - de juízo e as outras, que são muitas. Só não cohabito pacificamente com o resto de mim, a outra metade, a que não é uma falha. 

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Graças à impossibilidade de usar a minha bicicleta tive de andar de transportes públicos. Apanhei táxis, Uber, metro, autocarros e eléctricos. De todos, o meu preferido é o metro porque me ajuda a atenuar os  arrebatos afectivos por Lisboa. Os equipamentos que não funcionam (escadas rolantes e elevadores) e os tempos de espera destroçam qualquer amor que se possa ter por esta cidade. Enfim, destroçar não é o termo. Atenuam, digamos assim. Mitigam.

De qualquer forma aplica-se a velha máxima de que amar alguém é amar-lhe os defeitos. Talvez seja por isso que o meu amor por Lisboa é tão vasto. Ruas esburacadas, lixo em tudo quanto é sítio, cheiro a mijo, má educação generalizada... Os motivos para amar Lisboa são mais do que muitos. Et pourtant je l'aime, ma Lisbonne.

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Hoje regresso a Palma, cidade que tem bastantes menos motivos para ser amada do que Lisboa - não tem buracos nas ruas, não cheira mal, etc. - e que talvez por isso amo tanto quanto amo Lisboa. Quase: falta-lhe a língua.

6.10.24

Jazz, civilização

A civilização e o jazz andam de mãos dadas. Não é coincidência ter descoberto que Barcelona é uma cidade provinciana na mesma estadia em que descobri nâo haver ali um único bar de jazz (agora há mas a cidade continua provinciana, chauvinista e decepcionante). Lisboa tem um, excelente e caro como devem ser os bares dessa música. Chama-se Távola. Paris tem muitos, Londres e Berlim também, Amsterdão tinha um fantástico (agora se calhar tem mais). Na província não há jazz, música urbana s'il en est. Na província há humanidade, há verde, há clorofila, há moçoilas (diferente de mulheres, coisa urbana), há tudo o que se quiser mas não há urbanidade - outra palavra para civilização. É por isso que na paisagem - ou seja: tudo o que não é Lisboa - não há bares de jazz com a qualidade do Távola. (Nem sem, de resto.)

Se me perguntassem, eu preferiria viver numa cidade com muitos Távola. Não vivo e portanto agradeço aos deuses ter um ao lado de casa quando estou em Lisboa.

Aliás: agradeço aos deuses ter Lisboa ao lado de casa  quando estou em Lisboa. 

(Uma moçoila é um produto rural. Mulher é coisa urbana. Mais pormenores outro dia.)

Citação do dia

"Homo sum, humani nihil a me alienum puto."

Diário de Bordos - Lisboa, 06-10-2024

Se eu tivesse dinheiro comeria todos os dias no Gambrinus e no Solar dos Presuntos, alternadamente. Com umas escapadelas ao Chiringuito, claro. Felizmente não tenho e isso permite-me poupar uma fortuna em restaurantes. Venho portanto comer ao Alga, uma casa da categoria "Resistentes": não é gourmet, não é fusion, não é bio, não é glutenfree, os empregados são senhores respeitáveis e correctamente vestidos. Os preços condizem com tudo isto. Ainda há quem pense que eu sou gastador? 

O cozido à portuguesa do Alga estava uma maravilha. Um pináculo da cozinha tradicional nacional (refiro-me ao país, não à paisagem). Seguiu-se-lhe o competente caldo, para aconchego da alma e do estômago, por esta ordem.

Poder-se-ia talvez quiçá argumentar que quem teve na sua vida - e no seu palato - uma avó chamada Filipa e um cozinheiro Miguel (aquela em Portugal e em Moçambique, este em Cape Town e no mar ao largo da Namíbia - isto para não mencionar a Mãe Blá) é indiferente a clivagens país / paisagem. Seria eventualmente verdade se Lisboa não fosse Lisboa e não tivesse estas coisas todas - cozidos, amigos, restaurantes resistentes - mais bares e casas de jazz (ontem estava fechado, maldito seja o gás ou lá o que foi que provocou o fecho), táxis à la minute, livrarias como a Snob ou a Palavra de Viajante... paro aqui. A lista é demasiado longa. 

Portugal é Lisboa porque só em Lisboa se encontram todas as qualidades e todos os defeitos do ser português. Na paisagem eles estão bastante desequilibrados (com um forte pendente para um dos lados da balança. Adivinhe-se qual).

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O calcanhar de Aquiles do restaurante Alga é o vinho da casa. Hoje perguntei ao senhor quanto me cobrariam se eu trouxesse o meu vinho de casa.

- Nada. Traga à vontade.

Alvorecer

Alvorecer é uma palavra amável, cheia de promessas. Tem alva na ascendência, é parecida com alvíssaras, é una palavra de passagem, traz luz e alegria (se o dia estiver para isso). Por exemplo: começou a alvorecer em mim a ideia de que não escrevo só disparates. (Agora é preciso ver quanto tempo dura o crepúsculo. Se for menos de trinta anos não conta.)

Nos livros de bordo de antigamente (e hoje também, se calhar. Não sei) havia uma entrada chamada "primeiros alvores". Eu fazia o quarto das quatro às oito (também conhecido por "segundo quarto", por ser o do imediato) e achava aquilo muito estúpido. Que raio de informação se obtinha a partir da hora dos primeiros alvores? Ainda não estava familiarizado com o conceito de meta-informação.

Alvorecer. Primeiros alvores. Alvíssaras.

4.10.24

Cães, donos

Cães, cães, cães. Um gajo não pode dar dois passos na rua sem ver um cão com o dono pela trela. 

Aonde estão os cães vadios da minha infância? Cães sem dono, donos sem cão. 

Diário de Bordos - Sesimbra, Portugal, 04-10-2024

Hoje foi a Tasca do Isaías em Sesimbra, ontem O Castelo em Sines, anteontem o Reis em Lagos. Quem tem recomendações tem tudo. A paisagem tem decididamente bons sítios para se comer. Agora só falta chegar a Portugal, ver se finalmente como não só bem mas como deve ser, com civilização nas imediações. Chego amanhã, se nada mudar até lá.

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Mais uma porra de uma viagem com nevoeiro. O termo náutico antigo é Névoa negra e não há termo náutico mais explícito, mais adequado, mais próximo daquilo que descreve. Quanto mais não seja por antítese, já que aquele negro tem origem tem origem numa espécie de massa leitosa, esbranquiçada que consege tornar negro tudo o que toca.

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Escala em Sesimbra. Descubro ruas aonde nunca estive e faço uma pequena comparação fractal: assim como dos países só conheço as costas, dos portos só conheço as imediações das marinas. (É mentira, mas é uma mentira bonita.)

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Bar Inglês: um sítio correcto para as bebidas pós-prandiais e respectivos disparates. Boa música, bom Irish Coffee e agora vem um Mai Tai. ... Eu sei. Mas pronto, é o que há e quem bebe o que há a mais não é obrigado. O coiso tem uma ténue semelhança com o Mai Tai que eu conheci no Trader Vic de Oakland e o senhor do bar tergiversa e inventa. Mas como a música é o Let's Dance do Bowie e eu preciso urgentemente de me ir deitar porque estou de novo a ficar com sintomas da constipação e preciso de calor, tudo passa.

(Pequeno elogio de passagem ao camarote da proa do M. A. Parece que estou num hotel de cinco estrelas. E só parece por causa da ,localização do maldito interruptor. Não fosse isso e estaria mesmo melhor do que no quarto de um hotel de luxo.)

PS - Quando cheguei sentei-me numa mesa que tinha à frente uma televisão - é uma praga - e pouco depois de me sentar começou a falar o senhor do PS. O homem dá-me urticária só de o ver  (é tudo o que ele tem para dar, coitado) mas felizmente o bar é grande e o senhor (do bar) acedeu a desligar a outra televisão, a meu pedido, com o argumento indesmontável de que estou sozinho naquele lado e fui para uma mesa sem televisão.

PPS - Peço um rum, para acabar. Vem num balão. Lisboa, mundo, where art thou?

3.10.24

Diário de Bordos - Sines, Alentejo, Portugal, 03-10-24

O Sol vai subindo no horizonte e vai-se libertando do cobertor de nuvens sobre o qual dorme. A temperatura sobe ao mesmo ritmo. Pergunto-me se alguém fez uma formula matemática a equacionar graus angulares e graus Celsius. Por cada grau a mais na altura do Sol a temperatura do ar cresce de... de quanto? E a temperatura do meu corpo, já sem o casaco da roupa de mar mas ainda com as calças? E ainda estou com a polar que comprei em Groningen, na Decathlon, esplêndida. E com as meias de lã da Calzedonia, tão boas, baratas e perenes... Tudo isto vai sair não tarda. É só emagazinar um pouco mais de calor, deixá-lo chegar aos ossos.

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A passagem do cabo foi movimentada, como sempre. Agora é só subir esta longa, interminável costa que as putas das orcas tornam ainda mais longa: há que ir o mais perto possível de terra, tentar seguir a batimétrica dos vinte metros. As cabras não gostam de águas baixinhas. Eu tão pouco gosto.

Nesta costa não ando nos vinte metros. Não tenho rodas na quilha e não piloto quatro por quatro. Ando aos vês, entre os trinta e os quarenta (cinquenta, vá, quando fecho os olhos). Passo um cabo e aponto para o meio da baía que se lhe segue. Lá chegado faço rumo ao cabo seguinte. Geometria marítimo-orcadiana.

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Há duas e só duas coisas que positivamente detesto no mar: trovoada e nevoeiro. Acabo de passar duas horas e meia num banco de névoa com uma visibilidade que nos melhores momentos não passava dos duzentos metros e nos piores nem a cem chegava.

Resumo da viagem: um terço de porrada, um terço de bonança, um terço de nevoeiro. A porrada estando fora-de-jogo, tenho de escolher entre a bonança e o nevoeiro.

A viagem foi porreira.

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A visibilidade melhorou. Três milhas para oeste e menos de duas para leste. Não me queixo: prefiro ver navios a ver terra.

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O piloto hoje funcionou o dia todo em modo track (navegação, se por acaso). Pela primeira vez desde Cádiz. A Raymarine tornou-se definitivamente uma marca feminina. 

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Jantar no restaurante O Castelo, recomendação do L. E. S. Abençoado seja. Melhor jantar desde o de Cádiz. 

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Às segundas, quartas e sextas agradeço à carcaça. Às terças, quintas e sábados apetece-me enforcá-la. Aos domingos paro para pensar e beber. É o seu dia favorito.  

(Não sei se cont. se não, mas que devia, devia.)

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Sim, continua. Os melhores irish coffees em muito tempo: cervejaria Murta, Sines. Morte aos preconceitos. Viva os preconceitos. A próxima vez que vier a Sines venho aqui jantar. É uma promessa.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-10-2024

Mexo-me com notória dificuldade, o que de certa forma é injusto porque à minha volta tudo mexe. Tudo e todos: mesas, cadeiras, paredes, chão, pessoas, empregados (pessoas sendo para este efeito clientes, claro). Tudo mexe menos eu. As minhas costas parecem uma barra de aço inoxidável submetida a pressões do outro mundo.

Tive sorte: a barra acabou por ceder e lá consegui levantar-me da cadeira, ir buscar o bloco-notas e as canetas e voltar a sentar-me, tudo isto sem alertar e muito menos alarmar os restantes frequentadores do sítio. Estas costas são como a muralha de aço do camarada Vasco: uma fantasia.

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Janto no restaurante Reis, sugestão das senhoras do Ferradura, que fica praticamente ao lado. É o género de lugares aonde não entraria sem uma recomendação - e mesmo com esta vou meio desconfiado. Nada me garante que uma das senhoras não seja a mulher ou a prima do «senhor Reis». Reencontrei o Ferradura por acaso e por sorte, duas coisas que misturadas dão bom resultado. Ando há tempos para comer uma carne de porco à alentejana - um prato que de alentejano não tem nada, é algarvio, mas enfim - e as senhoras indicaram-me o Reis, lá fui porque andar mais de cinquenta metros só de táxi e aquilo é uma zona sem automóveis e ecco, presto, o restaurante é óptimo, deve ter sido ainda melhor e agora está cheio de turistas, as mesas uma em cima das outras... Ó pá, está calado e cala-te, fazes o favor? Toalhas e guardanapos de pano, um serviço de nível estratosférico apesar de a casa estar cheia, um dono adorável. Cala-te, bebe o teu vinho - sugestão abençoada do «senhor Reis» - aprecia a carne com amêijoas, sonha com o rum pós-prandial e com o sono que te espera.

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Os critérios para avaliar a passagem a ferro de casacos de linho branco são-me dolorosamente estrangeiros. Não percebo nada nem de passagem a ferro nem de casacos brancos, sejam de linho ou de outra matéria qualquer. Deste em particular - marca: Zara - sei que consegue o prodígio de não me fazer parecer um empregado de mesa na pausa para o almoço. Pois bem: levei-o a uma lavandaria em Vila Real de Santo António para lavar e passar e as senhoras (patroa e empregada) concordaram unanimemente que seria impossível garantir a qualidade do serviço e portanto o declinavam. Enfiei-o na máquina com o resto da roupa e levei-o a outra lavandaria para passar a ferro. A senhora explicou-me que não conseguiria garantir a qualidade do serviço mas aceitou-o e cá estou eu, de casaco de linho branco e chapéu novo, há uma fotografia do Joshua Slocum com um chapéu parecido, só não tem é casaco branco. Duvido muito que leia esta página, minha senhora, mas aqui fica o recado: ficou óptimo! Muito obrigado e parabéns pelo seu brio e pelo seu profissionalismo.

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Por falar de roupas: o dia esteve demasiado frio para envergar o meu uniforme «sozinho a bordo». Maldito seja o frio quando não se tem uma lareira, uma biblioteca e um fluxo regular de vinho tinto.

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Para que Portugal seja um país habitável a cem por cento faltam-lhe duas coisas principais: vermute, rum e palo.

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Uma das enhoras da mesa à frente da minha é parecida com a Virginia Wolf em jovem (enfim, quarentas. Ainda é uma jovem).

Tem uma parte das costas à vista, o que a faz perder pontos; e poignées d'amour correctamente dimensionadas, o que a faz recuperá-los ainda antes de os ter perdido.

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Não é a primeira vez que isto me acontece e não será a última: um sítio aonde não entraria sem uma recomendação revela-se excelente.

Morte aos preconceitos!
Viva os preconceitos!

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O jantar acaba. As costas estão mais flexíveis, as mesas e as paredes imóveis, o restaurante mais vazio, o medronho é bom mas não tão bom como o da Peixeirada (nenhum é, nunca será), a vontade de beber um bom rum esbate-se até ficar quase invisível e eu pergunto-me se trabalhar para comer e comprar livros é uma boa troca. Resposta: «Sim e a conversa fica por aqui.»

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A noite acaba com um cocktail qualquer no bar Peppers. A música é óptima: Doors, Led Zeppelin, etc. O cocktail dá vontade de me teletransportar para o Procópio. Há pessoas que não gostam de Lisboa. Sugiro-lhes vivamente que venham visitar a pré-história. Não percebo o que vêem nessas expedições etnográficas quando não muito longe têm uma cidade.

1.10.24

Modo largada. Ou: Tudo e o seu contrário

Modo largada. Estou e não estou. Quando estávamos juntos a minha mulher reconhecia estes dias (eram mais porque as viagens eram mais longas). Tudo se torna relativo e ambíguo: é, não é, importa muito, pouco ou nada? O barco está pronto? O que precisas de fazer antes de largar? Tens comida, água, combustível? Tens vento? De onde, que força?  O que está em terra passa a segundo plano mas ainda tens as amarras no pontão. Os sentidos aguçam-se, prestas mais atenção ao bote do que às pessoas que te rodeiam, do que a ti. O mar é um grande absorvedor. Um grande mata-borrão. Mas ainda estás em terra. Estás e não estás. As largadas têm dois tempos: quando largas no teu espírito e quando largas as amarras. Entre os dois podem decorrer dias, horas, semanas. Amanhã estarás de novo sozinho - como agora, mas de uma maneira diferente: o barco não se mexe, quase; e tu tão pouco. Já não estás, apesar de parecer que estás. És e não és. Só amanhã, quando largares, serás uno. Isto é, serás tudo e o seu contrário, como todos os marinheiros são. Hoje estás e não estás. Amanhã serás. Tudo e o seu contrário.

Fragmento, quase

 Retirei-me do tempo, por assim dizer, como dantes os eremitas se retiravam do mundo.

Cidades, oxímoros

As palavras nascem nas cidades e nelas se perdem. Antes das cidades não havia palavras. Havia grunhidos e talvez alguns sons organizados em sílabas. Duas, não mais. Por exemplo: Amo-te. Tem três sílabas. Existiria antes de as cidades terem sido inventadas? Por exemplo: esquinas? Avenidas? Jardins? Por exemplo: coração? Vinho existia, decerto. Tem apenas duas sílabas e apesar de serem suaves, doces, é bastante provável que os povos pré-citadinos a conhecessem.

Povos pré-citadinos? Andas a dar-lhe nos oxímoros?

Diário de Bordos - Vila Real de Santo António. Algarve, Portugal, 01-10-2024

Nunca liguei muito ao dia dos meus anos. Antes do Facebook esquecia-me frequentemente dele. Agora é impossível - e embaraçoso: sou notoriamente relapso a enviar parabéns e quando recebo avalanches deles não sei bem como reagir, para além do obrigatório e gigantesco Obrigado a todos!

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O dia começou bem, continuou melhor e acabou comigo a dar uma porrada no cais, coisa que me destrói qualquer réstea de alegria que tenha acumulado. Falhar uma manobra, por difícil ou chata que seja, deixa o meu pobre e combalido ego ainda mais de rastos do que ele já anda todos os dias. Paradoxalmente, é quando elas são fáceis - como a de ontem - que isto acontece mais vezes, prova sem dúvida de que preciso de um banho de imersão numa banheira de modéstia. Ainda há poucos meses foi uma atracação em Palma - que não deixou marcas, ao contrário desta, e era difícil.

Saí de bordo e fui jantar, mas foi uma decepção. Vila Real de Santo António acedeu final e (talvez) subitamente à categoria de porto  detestável - o que é chato porque hoje tenho de cá ficar, devido ao esquecimento de uma carteira num táxi. Les bourdes se seuivent et ne se ressmblent pas? Não: são sempre as mesmas, com excepção das manobras, que felizmente não falho muitas vezes. Aliás: só raramente falho. Se bem ontem tenha decerto perdido o estatuto de sócio honorário do clube dos atracadores do ovo cru, um clube ao qual me orgulho de pertencer. Ontem fui expulso dele e vou ter de lutar pela readmissão.

(Para quem não sabe: põe-se um ovo cru entre o casco da embarcação e o cais. Se ao atracar o ovo se partir a pessoa que manobra não é aceite no clube. A prova deve ser repetida dez vezes com zero falhanços para que a admissão seja definitiva. É independente da dimensão da embarcação - aplica-se a graneleiros, supertanques, navios de pesca e embarcações de recreio.

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Só se deve julgar um restaurante ao segundo copo de rum. Hoje decidi experimentar o da marina. Bacalhau assado com batatas a murro - há que aproveitar a ausência das injecções e usufruir do subsequente apetite. O bacalhau estava bastante mediano - na minha escola primária levaria a nota de suficiente ou suficiente menos se a Dona Eugénia estivesse num dia mau - e o primeiro rum (Barceló) foi servido por um vesgo forreta que o serviu do lado do olho errado. Já o segundo compensava largamente as deficiências e insuficiências anteriores.

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Desde Maio que não estou sozinho a bordo de uma embarcação e muito menos a navegar. Ontem pareceu-me uma viagem ao paraíso, apesar de as putas das orcas estragarem um pouco o prato. Fico doido quando vejo idiotas louvar-lhes a beleza. Pata que as pôs mais a beleza. Elas que vão atacar a vagina da mãe e nos deixem navegar por onde queremos e precisamos de passar.
 
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Escrevo ao som dos Steeley Span, um grupo que me foi dado a conhecer por um soldado inglês num infame, sórdido, bar de Gibraltar quando Gibraltar ainda não era o nojento buraco de turistas em que se metamorfoseou.

(Estudo sobre as interacções da memória e do presente: se tivesse conhecido Gib hoje e não nos anos setenta chamar-lhe-ia nojenta? É pouco provável. Quando muito horrível.)

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Três da tarde. Não vai dar tempo para uma sesta como deve ser. Mais uma vantagem do rum: equilibra a ausência de sesta. PS - O terceiro vem ainda maior. Este sim, foi o almoço do meu dia de anos.