15.10.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-10-2024

Domingo à noite tive de ir às urgências do hospital de Palma e hoje fui a um centro de saúde completar o tratamento recebido no hospital. Não é a primeira vez que usufruo dos serviços de saúde desta cidade e posso portanto confirmar o que hoje à tarde intuí: esta cidade não tem doentes. Tem hospitais, centros de saúde, farmácias - mas doentes nem vê-los. A minha estadia no hospital, incluindo um engano que me custou dez minutos, foi de uma hora, porta a porta. No centro de saúde - enorme, limpo e vazio - havia uma pessoa à minha frente. Levaram mais tempo a tratar da papelada do que a médica levou a receber-me e receitar o que tinha a receitar. Exactamente como no nosso país, o que me deixa bastante sossegado.

Enfim, ironizo. Em Portugal é o contrário. Os serviços de saúde estão cheios, as esperas são imensas, os locais têm mau aspecto, terceiro-mundista. Vá lá, temos o Cristiano Ronaldo para salvar a honra do convento. Não fosse ele e a vida no nosso país não seria a mesma coisa. Seria pior.

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Escrevo no Antiquari, um dos meus lugares favoritos para escrever, aqui em Palma. Penso num post que li recentemente sobre como escolher escritórios. Comigo o processo é penoso. O sítio tem de ser bonito, ter a música baixo (já não há cafés sem música, infelizmente), confortável, não muito caro - peço regularmente qualquer coisa para beber, é a minha renda. Deixo o mais importante para o fim: a clientela tem de ser, ela também, bonita. Um lugar com pessoas aos berros e aos arrotos não me serve.

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Quase sem querer vejo-me arrastado para mais um «projecto». As aspas reflectem o meu cepticismo e ao mesmo tempo penso que quase sem querer não é bem verdade. Quero. 

Desta vez no norte do país. Quero. Mas o cepticismo mantém-se. Deve ser a esta mistura que se chama experiência. Ou bom senso, vá lá saber-se.

Anjos et al.

Se um arcanjo está um patamar acima do anjo, um arcanjinho está um degrau abaixo do anjinho?

14.10.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-10-2024

Estou outra vez na condição de máquina de tomar comprimidos. Se ao menos servissem para qualquer coisa.

(Calimerice. Servem. Servirão. Só hoje comecei com as coisas sérias. Preciso de uns dias. Até lá, maldigo a carcaça, quando tenho energia para isso. É injusto: as dores não aparecem quando trabalho, aparecem depois, quando acabo o dia e penso no de amanhã. Pensaria, se pudesse.)

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«A noite pertence aos amantes». A letra é do Dylan, se não me engano. (Engano-me. É do Springsteen e da Patti Smith.) Um bocadinho redutor, não é? A noite pertence aos amantes, aos estetas, a quem passou o dia a trabalhar, a quem passou o dia a querer trabalhar... A noite pertence a quem a quer, a quem a ama, a quem vê nela o que de dia não se vê. «Encandeado pela luz», canta o mesmo Springsteen. Desencadeado pela noite, cantaria eu, se cantasse.

Hoje vou ao 7 Machos. A mistura de comprimidos e mezcal vai der cabo desta puta, chicuembo xa'nhaca (?). «Juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim.»

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A dor e a fome não são compatíveis. Quem as mistura mente. Já a sede é outra conversa.

12.10.24

Dissonâncias etárias

Há uma patologia cujo nome desconheço. Vem com o envelhecimento. O seu principal sintoma é que nós - os doentes - mudamos com a idade mas quem nos rodeia não se apercebe dessa mudança e continua a ver-nos como éramos quando nos conhecemos (as pessoas que nos rodeiam e nós, não quando nos conhecemos a nós próprios. Desculpa o pleonasmo, M.)

Um dos efeitos desta doença é a dissonância cognitiva que provoca, uma dissonância dissonante, por assim dizer (ditto, M.)

Hoje, por exemplo. Depois do jantar a bordo apetecia-me ir ao 7 Machos dizer olá ao Alex e beber um mezcal. Verdade não seja calada: a vontade vinha de muito antes do jantar de hoje. Pouco importa. A verdade é que não fui. Terá sido consequência do cansaço? Desta nauseabunda dor no ombro esquerdo? Da vontade de não gastar dinheiro  (vontade bastante oportuna que aparece quando não tenho dinheiro ou tenho pouco)? Não sei.

Mas lá que se este horrível double bind estivesse numa casa de apostas, quem apostasse que eu daria ouvidos à idade ganharia uma fortuna.

(Outros argumentos a ter em conta mas não constantes do boletim de apostas:
- Hoje é sábado e aquilo está cheio;
- É longe;
- A BH Glasgow Vintage não quer sair de onde está.)

Resultado: escrevo no quadro negro da noite: "Eu queria ir ao 7 Machos e não fui". Ler com entoação calimeriana. "Espero que a noite venha com o apagador em riste e o use com vigor e energia." Ler com a entoação de um capitalista de risco a dizer que não nos dá massa e ao mesmo tempo a encorajar-nos a não perder a esperança. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-10-2024

Estou em Palma há três dias, quase quatro. O que já fiz, o que está por fazer (para além do P., claro)? A rota das capelinhas está a meio. Falta o Joan, o Jaume, o Cliff e alguns outros menos importantes. Já fui ao Xisco, ao Fidel, ao François, ao Claudio - sonha com estrelas Michelin e Deus sabe se por esta vez aprovo o sonho. O homem faz os melhores gelados do universo e arredores. A combinação jantar no Gustar e gelados no Claudio vale a viagem de qualquer parte do mundo. Escrevo na Cantina, também conhecida por Alberto ou Ismael. No fundo sou um paisano: os lugares para mim têm o nome das pessoas que os dirigem, porque para gostar de um sítio preciso de gostar do dono. (Isto não é inteiramente verdade e necessitaria de alguma elaboração. Gosto das pessoas porque gosto do que fazem ou de como o fazem. A mecânica não é muito simples mas por agora fica. Um dia desenvolvê-la-ei, se Deus quiser e eu puder.)

Mas a verdadeira questão fica: que me dá Palma que as outras cidades - incluíndo Lisboa - não dá? As relações geográficas são tão difíceis de definir como as amorosas.

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Hoje é feriado em Espanha - día de la Hispanidad - e a maioria das coisas que queria fazer ficaram a boiar na hispanidade. Segunda-feira tenho gente a bordo do P. - hallelujah ! - e portanto esses pormenores só para terça (ou segunda à tarde, com sorte). Realismo é dar pequenos passos quando se o que quer são passos de gigante. Não abandonar, apesar dessa divergência: uma perna quer ir para ali, a outra não passa daqui. E lá se vai andando, a coxear.

(Uma das minhas canções favoritas de Paco Ibañez chama-se A Galopar. Vou mudar-lhe a letra para A Coxear e fazer disso o hino do P.)

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Uma perna a galopar, a outra a coxear: haverá melhor imagem para a minha vida? Não.

8.10.24

Línguas

Na verdade uma lingua é muito mais do que a língua. Gosto de francês como gosto do português e já o falei como falo português, mas não poderia viver em França, por exemplo. Não quero viver em francês. Gosto da parte de Espanha aonde agora vivo - Palma - nas não falo espanhol como falo francês. E tão pouco poderia lá viver. Ibidem para um país anglófono. Não falo inglês tão bem como ainda falo francês, domino estas duas melhor do que o espanhol, conheço os países de onde são oriundas - mas nenhuma delas é a minha língua. Não tem nada a ver com o léxico, a sintaxe, com a morfologia. A gramática não passa de uma parte da língua. Uma língua é constituída pela gramática, pelo vocabulário e pelas memórias, assim mesmo no plural.

Não me refiro à nossa memória, a de cada um mas sim às memórias colectivas, as memórias todas que os falantes de um determinado idioma produziram ao longo dos séculos e que a cada momento histórico se agarram às palavras como o artista de circo ao trapézio. Um trapézio sem trapezista é como uma palavra sem memórias: fica ali a abanar, solitário, inútil, triste.

Diário de Bordos - Lisboa, 08-10-2024

Só falta o mais difícil: escrever. Ou: só falta tudo - escrever.

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Veio um mendigo ter comigo. Agradeci-lhe a atenção mas declinei a sua proposta de lhe dar dinheiro. Nem sequer o que tenho no bolso pequeno. Acho indecente não dar nada aos mendigos. Dou quase sempre a quem toca música e às vezes a quem faz malabarismos nos semáforos. Não dou às «estátuas»: congela-se-me o braço só de os ver. Aos mendigos devia dar mas não dou. Ou só muito raramente. Não sou fundamentalista em nada. Sou um rapazinho flexível e adaptável às circunstâncias. 

Claro que se tivesse juízo não daria nada a ninguém. Não tenho e pouco me importo com isso. Convivo bem comigo e com as minhas faltas - de juízo e as outras, que são muitas. Só não cohabito pacificamente com o resto de mim, a outra metade, a que não é uma falha. 

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Graças à impossibilidade de usar a minha bicicleta tive de andar de transportes públicos. Apanhei táxis, Uber, metro, autocarros e eléctricos. De todos, o meu preferido é o metro porque me ajuda a atenuar os  arrebatos afectivos por Lisboa. Os equipamentos que não funcionam (escadas rolantes e elevadores) e os tempos de espera destroçam qualquer amor que se possa ter por esta cidade. Enfim, destroçar não é o termo. Atenuam, digamos assim. Mitigam.

De qualquer forma aplica-se a velha máxima de que amar alguém é amar-lhe os defeitos. Talvez seja por isso que o meu amor por Lisboa é tão vasto. Ruas esburacadas, lixo em tudo quanto é sítio, cheiro a mijo, má educação generalizada... Os motivos para amar Lisboa são mais do que muitos. Et pourtant je l'aime, ma Lisbonne.

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Hoje regresso a Palma, cidade que tem bastantes menos motivos para ser amada do que Lisboa - não tem buracos nas ruas, não cheira mal, etc. - e que talvez por isso amo tanto quanto amo Lisboa. Quase: falta-lhe a língua.

6.10.24

Jazz, civilização

A civilização e o jazz andam de mãos dadas. Não é coincidência ter descoberto que Barcelona é uma cidade provinciana na mesma estadia em que descobri nâo haver ali um único bar de jazz (agora há mas a cidade continua provinciana, chauvinista e decepcionante). Lisboa tem um, excelente e caro como devem ser os bares dessa música. Chama-se Távola. Paris tem muitos, Londres e Berlim também, Amsterdão tinha um fantástico (agora se calhar tem mais). Na província não há jazz, música urbana s'il en est. Na província há humanidade, há verde, há clorofila, há moçoilas (diferente de mulheres, coisa urbana), há tudo o que se quiser mas não há urbanidade - outra palavra para civilização. É por isso que na paisagem - ou seja: tudo o que não é Lisboa - não há bares de jazz com a qualidade do Távola. (Nem sem, de resto.)

Se me perguntassem, eu preferiria viver numa cidade com muitos Távola. Não vivo e portanto agradeço aos deuses ter um ao lado de casa quando estou em Lisboa.

Aliás: agradeço aos deuses ter Lisboa ao lado de casa  quando estou em Lisboa. 

(Uma moçoila é um produto rural. Mulher é coisa urbana. Mais pormenores outro dia.)

Citação do dia

"Homo sum, humani nihil a me alienum puto."

Diário de Bordos - Lisboa, 06-10-2024

Se eu tivesse dinheiro comeria todos os dias no Gambrinus e no Solar dos Presuntos, alternadamente. Com umas escapadelas ao Chiringuito, claro. Felizmente não tenho e isso permite-me poupar uma fortuna em restaurantes. Venho portanto comer ao Alga, uma casa da categoria "Resistentes": não é gourmet, não é fusion, não é bio, não é glutenfree, os empregados são senhores respeitáveis e correctamente vestidos. Os preços condizem com tudo isto. Ainda há quem pense que eu sou gastador? 

O cozido à portuguesa do Alga estava uma maravilha. Um pináculo da cozinha tradicional nacional (refiro-me ao país, não à paisagem). Seguiu-se-lhe o competente caldo, para aconchego da alma e do estômago, por esta ordem.

Poder-se-ia talvez quiçá argumentar que quem teve na sua vida - e no seu palato - uma avó chamada Filipa e um cozinheiro Miguel (aquela em Portugal e em Moçambique, este em Cape Town e no mar ao largo da Namíbia - isto para não mencionar a Mãe Blá) é indiferente a clivagens país / paisagem. Seria eventualmente verdade se Lisboa não fosse Lisboa e não tivesse estas coisas todas - cozidos, amigos, restaurantes resistentes - mais bares e casas de jazz (ontem estava fechado, maldito seja o gás ou lá o que foi que provocou o fecho), táxis à la minute, livrarias como a Snob ou a Palavra de Viajante... paro aqui. A lista é demasiado longa. 

Portugal é Lisboa porque só em Lisboa se encontram todas as qualidades e todos os defeitos do ser português. Na paisagem eles estão bastante desequilibrados (com um forte pendente para um dos lados da balança. Adivinhe-se qual).

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O calcanhar de Aquiles do restaurante Alga é o vinho da casa. Hoje perguntei ao senhor quanto me cobrariam se eu trouxesse o meu vinho de casa.

- Nada. Traga à vontade.

Alvorecer

Alvorecer é uma palavra amável, cheia de promessas. Tem alva na ascendência, é parecida com alvíssaras, é una palavra de passagem, traz luz e alegria (se o dia estiver para isso). Por exemplo: começou a alvorecer em mim a ideia de que não escrevo só disparates. (Agora é preciso ver quanto tempo dura o crepúsculo. Se for menos de trinta anos não conta.)

Nos livros de bordo de antigamente (e hoje também, se calhar. Não sei) havia uma entrada chamada "primeiros alvores". Eu fazia o quarto das quatro às oito (também conhecido por "segundo quarto", por ser o do imediato) e achava aquilo muito estúpido. Que raio de informação se obtinha a partir da hora dos primeiros alvores? Ainda não estava familiarizado com o conceito de meta-informação.

Alvorecer. Primeiros alvores. Alvíssaras.

4.10.24

Cães, donos

Cães, cães, cães. Um gajo não pode dar dois passos na rua sem ver um cão com o dono pela trela. 

Aonde estão os cães vadios da minha infância? Cães sem dono, donos sem cão. 

Diário de Bordos - Sesimbra, Portugal, 04-10-2024

Hoje foi a Tasca do Isaías em Sesimbra, ontem O Castelo em Sines, anteontem o Reis em Lagos. Quem tem recomendações tem tudo. A paisagem tem decididamente bons sítios para se comer. Agora só falta chegar a Portugal, ver se finalmente como não só bem mas como deve ser, com civilização nas imediações. Chego amanhã, se nada mudar até lá.

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Mais uma porra de uma viagem com nevoeiro. O termo náutico antigo é Névoa negra e não há termo náutico mais explícito, mais adequado, mais próximo daquilo que descreve. Quanto mais não seja por antítese, já que aquele negro tem origem tem origem numa espécie de massa leitosa, esbranquiçada que consege tornar negro tudo o que toca.

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Escala em Sesimbra. Descubro ruas aonde nunca estive e faço uma pequena comparação fractal: assim como dos países só conheço as costas, dos portos só conheço as imediações das marinas. (É mentira, mas é uma mentira bonita.)

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Bar Inglês: um sítio correcto para as bebidas pós-prandiais e respectivos disparates. Boa música, bom Irish Coffee e agora vem um Mai Tai. ... Eu sei. Mas pronto, é o que há e quem bebe o que há a mais não é obrigado. O coiso tem uma ténue semelhança com o Mai Tai que eu conheci no Trader Vic de Oakland e o senhor do bar tergiversa e inventa. Mas como a música é o Let's Dance do Bowie e eu preciso urgentemente de me ir deitar porque estou de novo a ficar com sintomas da constipação e preciso de calor, tudo passa.

(Pequeno elogio de passagem ao camarote da proa do M. A. Parece que estou num hotel de cinco estrelas. E só parece por causa da ,localização do maldito interruptor. Não fosse isso e estaria mesmo melhor do que no quarto de um hotel de luxo.)

PS - Quando cheguei sentei-me numa mesa que tinha à frente uma televisão - é uma praga - e pouco depois de me sentar começou a falar o senhor do PS. O homem dá-me urticária só de o ver  (é tudo o que ele tem para dar, coitado) mas felizmente o bar é grande e o senhor (do bar) acedeu a desligar a outra televisão, a meu pedido, com o argumento indesmontável de que estou sozinho naquele lado e fui para uma mesa sem televisão.

PPS - Peço um rum, para acabar. Vem num balão. Lisboa, mundo, where art thou?

3.10.24

Diário de Bordos - Sines, Alentejo, Portugal, 03-10-24

O Sol vai subindo no horizonte e vai-se libertando do cobertor de nuvens sobre o qual dorme. A temperatura sobe ao mesmo ritmo. Pergunto-me se alguém fez uma formula matemática a equacionar graus angulares e graus Celsius. Por cada grau a mais na altura do Sol a temperatura do ar cresce de... de quanto? E a temperatura do meu corpo, já sem o casaco da roupa de mar mas ainda com as calças? E ainda estou com a polar que comprei em Groningen, na Decathlon, esplêndida. E com as meias de lã da Calzedonia, tão boas, baratas e perenes... Tudo isto vai sair não tarda. É só emagazinar um pouco mais de calor, deixá-lo chegar aos ossos.

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A passagem do cabo foi movimentada, como sempre. Agora é só subir esta longa, interminável costa que as putas das orcas tornam ainda mais longa: há que ir o mais perto possível de terra, tentar seguir a batimétrica dos vinte metros. As cabras não gostam de águas baixinhas. Eu tão pouco gosto.

Nesta costa não ando nos vinte metros. Não tenho rodas na quilha e não piloto quatro por quatro. Ando aos vês, entre os trinta e os quarenta (cinquenta, vá, quando fecho os olhos). Passo um cabo e aponto para o meio da baía que se lhe segue. Lá chegado faço rumo ao cabo seguinte. Geometria marítimo-orcadiana.

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Há duas e só duas coisas que positivamente detesto no mar: trovoada e nevoeiro. Acabo de passar duas horas e meia num banco de névoa com uma visibilidade que nos melhores momentos não passava dos duzentos metros e nos piores nem a cem chegava.

Resumo da viagem: um terço de porrada, um terço de bonança, um terço de nevoeiro. A porrada estando fora-de-jogo, tenho de escolher entre a bonança e o nevoeiro.

A viagem foi porreira.

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A visibilidade melhorou. Três milhas para oeste e menos de duas para leste. Não me queixo: prefiro ver navios a ver terra.

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O piloto hoje funcionou o dia todo em modo track (navegação, se por acaso). Pela primeira vez desde Cádiz. A Raymarine tornou-se definitivamente uma marca feminina. 

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Jantar no restaurante O Castelo, recomendação do L. E. S. Abençoado seja. Melhor jantar desde o de Cádiz. 

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Às segundas, quartas e sextas agradeço à carcaça. Às terças, quintas e sábados apetece-me enforcá-la. Aos domingos paro para pensar e beber. É o seu dia favorito.  

(Não sei se cont. se não, mas que devia, devia.)

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Sim, continua. Os melhores irish coffees em muito tempo: cervejaria Murta, Sines. Morte aos preconceitos. Viva os preconceitos. A próxima vez que vier a Sines venho aqui jantar. É uma promessa.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-10-2024

Mexo-me com notória dificuldade, o que de certa forma é injusto porque à minha volta tudo mexe. Tudo e todos: mesas, cadeiras, paredes, chão, pessoas, empregados (pessoas sendo para este efeito clientes, claro). Tudo mexe menos eu. As minhas costas parecem uma barra de aço inoxidável submetida a pressões do outro mundo.

Tive sorte: a barra acabou por ceder e lá consegui levantar-me da cadeira, ir buscar o bloco-notas e as canetas e voltar a sentar-me, tudo isto sem alertar e muito menos alarmar os restantes frequentadores do sítio. Estas costas são como a muralha de aço do camarada Vasco: uma fantasia.

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Janto no restaurante Reis, sugestão das senhoras do Ferradura, que fica praticamente ao lado. É o género de lugares aonde não entraria sem uma recomendação - e mesmo com esta vou meio desconfiado. Nada me garante que uma das senhoras não seja a mulher ou a prima do «senhor Reis». Reencontrei o Ferradura por acaso e por sorte, duas coisas que misturadas dão bom resultado. Ando há tempos para comer uma carne de porco à alentejana - um prato que de alentejano não tem nada, é algarvio, mas enfim - e as senhoras indicaram-me o Reis, lá fui porque andar mais de cinquenta metros só de táxi e aquilo é uma zona sem automóveis e ecco, presto, o restaurante é óptimo, deve ter sido ainda melhor e agora está cheio de turistas, as mesas uma em cima das outras... Ó pá, está calado e cala-te, fazes o favor? Toalhas e guardanapos de pano, um serviço de nível estratosférico apesar de a casa estar cheia, um dono adorável. Cala-te, bebe o teu vinho - sugestão abençoada do «senhor Reis» - aprecia a carne com amêijoas, sonha com o rum pós-prandial e com o sono que te espera.

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Os critérios para avaliar a passagem a ferro de casacos de linho branco são-me dolorosamente estrangeiros. Não percebo nada nem de passagem a ferro nem de casacos brancos, sejam de linho ou de outra matéria qualquer. Deste em particular - marca: Zara - sei que consegue o prodígio de não me fazer parecer um empregado de mesa na pausa para o almoço. Pois bem: levei-o a uma lavandaria em Vila Real de Santo António para lavar e passar e as senhoras (patroa e empregada) concordaram unanimemente que seria impossível garantir a qualidade do serviço e portanto o declinavam. Enfiei-o na máquina com o resto da roupa e levei-o a outra lavandaria para passar a ferro. A senhora explicou-me que não conseguiria garantir a qualidade do serviço mas aceitou-o e cá estou eu, de casaco de linho branco e chapéu novo, há uma fotografia do Joshua Slocum com um chapéu parecido, só não tem é casaco branco. Duvido muito que leia esta página, minha senhora, mas aqui fica o recado: ficou óptimo! Muito obrigado e parabéns pelo seu brio e pelo seu profissionalismo.

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Por falar de roupas: o dia esteve demasiado frio para envergar o meu uniforme «sozinho a bordo». Maldito seja o frio quando não se tem uma lareira, uma biblioteca e um fluxo regular de vinho tinto.

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Para que Portugal seja um país habitável a cem por cento faltam-lhe duas coisas principais: vermute, rum e palo.

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Uma das enhoras da mesa à frente da minha é parecida com a Virginia Wolf em jovem (enfim, quarentas. Ainda é uma jovem).

Tem uma parte das costas à vista, o que a faz perder pontos; e poignées d'amour correctamente dimensionadas, o que a faz recuperá-los ainda antes de os ter perdido.

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Não é a primeira vez que isto me acontece e não será a última: um sítio aonde não entraria sem uma recomendação revela-se excelente.

Morte aos preconceitos!
Viva os preconceitos!

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O jantar acaba. As costas estão mais flexíveis, as mesas e as paredes imóveis, o restaurante mais vazio, o medronho é bom mas não tão bom como o da Peixeirada (nenhum é, nunca será), a vontade de beber um bom rum esbate-se até ficar quase invisível e eu pergunto-me se trabalhar para comer e comprar livros é uma boa troca. Resposta: «Sim e a conversa fica por aqui.»

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A noite acaba com um cocktail qualquer no bar Peppers. A música é óptima: Doors, Led Zeppelin, etc. O cocktail dá vontade de me teletransportar para o Procópio. Há pessoas que não gostam de Lisboa. Sugiro-lhes vivamente que venham visitar a pré-história. Não percebo o que vêem nessas expedições etnográficas quando não muito longe têm uma cidade.

1.10.24

Modo largada. Ou: Tudo e o seu contrário

Modo largada. Estou e não estou. Quando estávamos juntos a minha mulher reconhecia estes dias (eram mais porque as viagens eram mais longas). Tudo se torna relativo e ambíguo: é, não é, importa muito, pouco ou nada? O barco está pronto? O que precisas de fazer antes de largar? Tens comida, água, combustível? Tens vento? De onde, que força?  O que está em terra passa a segundo plano mas ainda tens as amarras no pontão. Os sentidos aguçam-se, prestas mais atenção ao bote do que às pessoas que te rodeiam, do que a ti. O mar é um grande absorvedor. Um grande mata-borrão. Mas ainda estás em terra. Estás e não estás. As largadas têm dois tempos: quando largas no teu espírito e quando largas as amarras. Entre os dois podem decorrer dias, horas, semanas. Amanhã estarás de novo sozinho - como agora, mas de uma maneira diferente: o barco não se mexe, quase; e tu tão pouco. Já não estás, apesar de parecer que estás. És e não és. Só amanhã, quando largares, serás uno. Isto é, serás tudo e o seu contrário, como todos os marinheiros são. Hoje estás e não estás. Amanhã serás. Tudo e o seu contrário.

Fragmento, quase

 Retirei-me do tempo, por assim dizer, como dantes os eremitas se retiravam do mundo.

Cidades, oxímoros

As palavras nascem nas cidades e nelas se perdem. Antes das cidades não havia palavras. Havia grunhidos e talvez alguns sons organizados em sílabas. Duas, não mais. Por exemplo: Amo-te. Tem três sílabas. Existiria antes de as cidades terem sido inventadas? Por exemplo: esquinas? Avenidas? Jardins? Por exemplo: coração? Vinho existia, decerto. Tem apenas duas sílabas e apesar de serem suaves, doces, é bastante provável que os povos pré-citadinos a conhecessem.

Povos pré-citadinos? Andas a dar-lhe nos oxímoros?

Diário de Bordos - Vila Real de Santo António. Algarve, Portugal, 01-10-2024

Nunca liguei muito ao dia dos meus anos. Antes do Facebook esquecia-me frequentemente dele. Agora é impossível - e embaraçoso: sou notoriamente relapso a enviar parabéns e quando recebo avalanches deles não sei bem como reagir, para além do obrigatório e gigantesco Obrigado a todos!

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O dia começou bem, continuou melhor e acabou comigo a dar uma porrada no cais, coisa que me destrói qualquer réstea de alegria que tenha acumulado. Falhar uma manobra, por difícil ou chata que seja, deixa o meu pobre e combalido ego ainda mais de rastos do que ele já anda todos os dias. Paradoxalmente, é quando elas são fáceis - como a de ontem - que isto acontece mais vezes, prova sem dúvida de que preciso de um banho de imersão numa banheira de modéstia. Ainda há poucos meses foi uma atracação em Palma - que não deixou marcas, ao contrário desta, e era difícil.

Saí de bordo e fui jantar, mas foi uma decepção. Vila Real de Santo António acedeu final e (talvez) subitamente à categoria de porto  detestável - o que é chato porque hoje tenho de cá ficar, devido ao esquecimento de uma carteira num táxi. Les bourdes se seuivent et ne se ressmblent pas? Não: são sempre as mesmas, com excepção das manobras, que felizmente não falho muitas vezes. Aliás: só raramente falho. Se bem ontem tenha decerto perdido o estatuto de sócio honorário do clube dos atracadores do ovo cru, um clube ao qual me orgulho de pertencer. Ontem fui expulso dele e vou ter de lutar pela readmissão.

(Para quem não sabe: põe-se um ovo cru entre o casco da embarcação e o cais. Se ao atracar o ovo se partir a pessoa que manobra não é aceite no clube. A prova deve ser repetida dez vezes com zero falhanços para que a admissão seja definitiva. É independente da dimensão da embarcação - aplica-se a graneleiros, supertanques, navios de pesca e embarcações de recreio.

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Só se deve julgar um restaurante ao segundo copo de rum. Hoje decidi experimentar o da marina. Bacalhau assado com batatas a murro - há que aproveitar a ausência das injecções e usufruir do subsequente apetite. O bacalhau estava bastante mediano - na minha escola primária levaria a nota de suficiente ou suficiente menos se a Dona Eugénia estivesse num dia mau - e o primeiro rum (Barceló) foi servido por um vesgo forreta que o serviu do lado do olho errado. Já o segundo compensava largamente as deficiências e insuficiências anteriores.

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Desde Maio que não estou sozinho a bordo de uma embarcação e muito menos a navegar. Ontem pareceu-me uma viagem ao paraíso, apesar de as putas das orcas estragarem um pouco o prato. Fico doido quando vejo idiotas louvar-lhes a beleza. Pata que as pôs mais a beleza. Elas que vão atacar a vagina da mãe e nos deixem navegar por onde queremos e precisamos de passar.
 
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Escrevo ao som dos Steeley Span, um grupo que me foi dado a conhecer por um soldado inglês num infame, sórdido, bar de Gibraltar quando Gibraltar ainda não era o nojento buraco de turistas em que se metamorfoseou.

(Estudo sobre as interacções da memória e do presente: se tivesse conhecido Gib hoje e não nos anos setenta chamar-lhe-ia nojenta? É pouco provável. Quando muito horrível.)

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Três da tarde. Não vai dar tempo para uma sesta como deve ser. Mais uma vantagem do rum: equilibra a ausência de sesta. PS - O terceiro vem ainda maior. Este sim, foi o almoço do meu dia de anos.