Um homem está deitado, doente. Pensa no que lhe provocou a doença. Tem várias opções: Deus, uma bruxa ou o mau-olhado de uma mulher que algum dia abandonou, a sua falta de cuidado consigo próprio, ninguém. (Isto é, ninguém definível. Pode ser a idade, o uso normal do corpo, o ar do mar ou da montanha ou a poluição da cidade onde o homem viveu a sua vida). Não acredita em Deus, mas que seria de um arquétipo sem Ele? Tão pouco crê em bruxas, ou na sua própria capacidade de alterar a ordem das coisas, de influir no corpo que o leva aonde quer que vá. "Talvez seja o contrário, talvez seja eu que levo o corpo", pensa.
Não acredita na auto-comiseração: tem mais empatia com o mundo exterior. Uma árvore doente, um cachorro cego, um rio poluído, uma nuvem que se desfaz em chuva provocam-lhe mais dor e mal-estar do que a sua própria doença.
O homem jaz na cama, imóvel. Não sabemos se está morto se vivo. Podemos contudo adivinhar que na sua cabeça - morta ou viva - arquétipos se batem, constroem, desfazem. Pensa: "que fiz das ideias que me guiaram ao longo da vida? Se calhar não fui senão um joguete nas mãos dos arquétipos. O resultado de uma (ou muitas) das suas brincadeiras. Talvez tudo o que fui e fiz fossem apenas manifestações cómicas, patéticas e risíveis de um modelo qualquer que um Deus bêbedo reservou para mim, talvez eu não passe de um conjunto de ideias primordiais das quais só a dor perdurou. Talvez não seja nada, talvez seja tudo e tudo se resuma a esta doença, talvez haja algures no universo neste momento a ideia de quem eu sou a manifestação física e esteja a perguntar-se o que fazer comigo, de mim?"
Talvez. É noite, uma daquelas noites sem Lua e sem o perdão do sono.
Não. Cada um de nós é o arquétipo de si próprio, cada um de nós se constrói enquanto constrói a vida, simultaneamente. Morrer é acabar de nascer. Os arquétipos não existem: antes de morrer não estão completos e depois desaparecem, como se nunca sequer tivessem existido.
(Para a C., com um beijo que é o beijo de todos os beijos).