30.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-03-2020

Não escrevo, não leio e trabalho menos do que quero trabalhar. O dia começou tarde e mal (nem sempre é assim, nem sempre estes dois se sobrepõem. Hoje aconteceu porque o dia que amanheceu foi o de ontem, alguém se esqueceu de os trocar).

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Fragmento:
«Sempre fui estranho a Portugal, país que amo mais do que aprecio e - menos ainda - comprendo.» Ao fim destes anos todos consegui reduzir a uma só frase a minha relação com Portugal. Arre, já era tempo.

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Quase-fragmento: «Os marinheiros não morrem. Transformam-se em sal e voltam para o mar.» (Para mim, que isto aconteça em Bequia, por favor.)

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«Estamos a combater esta pandemia com métodos da Idade Média.» Não retive quem disse isto, mas parece-me a maior verdade desde que o grego saiu nu da banheira a gritar Eureka! Eureka!

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Isto dito, o que este vírus nos ensina é que há muitos denominadores comuns a toda a humanidade e um deles é o medo. Medrosos de todo o mundo, uni-vos. (É mais bonito do que Cobardolas de todo o mundo, mas infelizmente está demasiado perto de Merdosos de todo o mundo, que seria uma injustiça. Nada do que é humano me é estranho, por um lado. E não sou imune ao medo, por outro. Sou imune à cobardia, isso sim.

E mesmo assim quantas vezes não o fui já? [Poucas, mas poucas é diferente de Nenhuma.])

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A ver se amanhã o dia muda. Estou farto deste.

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Imunidade de rebanhio deve ser a única coisa que um rebanho tem de bom.

29.3.20

Diário de Bordos- Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-03-2020 / (Não-dia)

Mas que dia tão insosso, mais sem graça. Ainda haverá muitos assim pela proa?

Não dá sequer vontade de falar nele. Um não-dia passa bem sem mim. Apetece-me enxotá-lo.

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O governo espanhol viu que um tiro num pé é insuficiente e resolveu dar um no outro pé também. De certa forma, compreendo os governos, todos: a esta hora já devem saber que não há nada a fazer mas não querem ser acusados de não fazer nada. Sabem que não serão acusados do caos que aí vem e sê-lo-iam pelas "mortes dos velhinhos". (Como se os velhinhos não morressem, antes da Covid-19.)

Infelizmente, compreendê-los não me impede de os desprezar. Sobretudo o Costa e o Sanchez, duas baratas tontas que chegaram onde estão devido às aritméticas eleitorais. Fazem-me pensar naqueles taberneiros que punham água no vinho ou mijavam no leite e só aldrabando conseguiam manter as tascas abertas.

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Os panos do P. chegaram a Palma há alguns dias. Ainda não os vi, sequer. Estão num armazém do transportador. Uma capação Pires de Lima novinha em folha. Se isto não dói não sei o que dói.

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Chegou uma carta. O dia afinal é um dia. (Esta é a vantagem do correio electrónico sobre o outro: chega a qualquer hora.) Vou lê-la e dormir sobre ela. Assim, quando amanhã lhe responder vai dormida a resposta. É melhor do que ir precipitada.

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Ainda o P.: ganhou um boneco novo, muito giro. É o logo da volta ao mundo. Uma designer in-house é provavelmente o maior luxo da minha vida de charter.

28.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-03-2020

Confinamento. A palavra já de si é horrorosa. A prática depende. Tem dias. É verdade que estar em casa não me custa por aí além: tenho que fazer e estou habituado. O que me custa é não poder ir àqueles sítios de que tanto gosto, à «minha Palma»: Bar Rita, Ca na Chinchilla, Bodega Can Rigo, Lo Divino, Café Santa Fé... Os nomes desfilam como um terço nas mãos de uma velhinha. Isso e esta sensação de que tudo isto não serve para nada senão para aplacar a vox populi. Até Boris Johnson, de quem já gostei muito menos cedeu. Resistem a Holanda e a Suécia, a Suíça - parcialmente - e talvez mais um ou dois, não sei. No fim veremos quem teve razão. Aqui em Espanha começou há duas semanas e os casos continuam a aumentar. Em Itália idem, mas começou há mais tempo. Ainda por cima, não só vamos pedir dinheiro como ainda insultamos aqueles a quem o pedimos.

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Denúncias, insultos, injunções para ficar em casa: o pior do homem está muito perto da superfície. Um vírus chega para a arranhar. Enfim, o medo que o segue, como um menir atrás do Obélix. O medo é detestável, sobretudo por ser tão necessário. É como aqueles venenos que só o são em grandes doses. Em pequenas curam. O meu fascismo não é o mesmo do dos antifas, mas nesse ponto dou-lhes razão: ele anda aí.

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Dia de limpezas domésticas. A casa é pequena, mas mesmo assim confima-se a velha ideia de que nada nunca na vida valerá uma boa mulher a dias.

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Ainda por cima está frio de rachar. O maldito aquecimento global nunca anda por onde eu estou.

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Para terminar, Alejandra Pizarnik.

«El despertar

A León Ostrov

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y se ha volado
y mi corazón está loco
porque aúlla a la muerte
y sonríe detrás del viento
a mis delirios

Qué haré con el miedo
Qué haré con el miedo

Ya no baila la luz en mi sonrisa
ni las estaciones queman palomas en mis ideas
Mis manos se han desnudado
y se han ido donde la muerte
enseña a vivir a los muertos

Señor
El aire me castiga el ser
Detrás del aire hay monstruos
que beben de mi sangre

Es el desastre
Es la hora del vacío no vacío
Es el instante de poner cerrojo a los labios
oír a los condenados gritar
contemplar a cada uno de mis nombres
ahorcados en la nada.

Señor
Tengo veinte años
También mis ojos tienen veinte años
y sin embargo no dicen nada

Señor
He consumado mi vida en un instante
La última inocencia estalló
Ahora es nunca o jamás
o simplemente fue

¿Cómo no me suicido frente a un espejo
y desaparezco para reaparecer en el mar
donde un gran barco me esperaría
con las luces encendidas?

¿Cómo no me extraigo las venas
y hago con ellas una escala
para huir al otro lado de la noche?

El principio ha dado a luz el final
Todo continuará igual
Las sonrisas gastadas
El interés interesado
Las preguntas de piedra en piedra
Las gesticulaciones que remedan amor
Todo continuará igual

Pero mis brazos insisten en abrazar al mundo
porque aún no les enseñaron
que ya es demasiado tarde

Señor
Arroja los féretros de mi sangre

Recuerdo mi niñez
cuando yo era una anciana
Las flores morían en mis manos
porque la danza salvaje de la alegría
les destruía el corazón

Recuerdo las negras mañanas de sol
cuando era niña
es decir ayer
es decir hace siglos

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y ha devorado mis esperanzas

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
Qué haré con el miedo

La carencia

Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.


El miedo

En el eco de mis muertes
aún hay miedo.
¿Sabes tú del miedo?
Sé del miedo cuando digo mi nombre.
Es el miedo,
el miedo con sombrero negro
escondiendo ratas en mi sangre,
o el miedo con labio muertos
bebiendo mis deseos.
Sí. En el eco de mis muertes
aún hay miedo.»

Ciclones, vírus

Por que raio de carga de água toda a gente aceita que não se pode "derrotar" um ciclone e pensa que se pode "derrotar" um vírus? (Aspas porque cito.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-03-2029

Voa, tempo. "Voa, cavalo, galopa mais." Voem, dias e noites. Mas não me levem convosco. Deixem-me ficar tranquilo, com "o meu menino d'oiro, d'oiro fagueiro. Hei-de levá-lo no meu veleiro."

"Pelo sonho é que vamos, braços dados ou não." "A tua dor não é uma credencial, não passa de sombra das minhas feridas."

Assim passam por mim os dias, a cantarolar. Hoje ouvi a Chavela Vargas, por exemplo. Quem não conhece devia conhecer. São feitos em ponto-cruz (os dias), formas elaboradas mas bem definidas, bem balizadas. De manhã Mercadona e mercado, à tarde só Mercadona e ou o outro, nunca me lembro do nome.

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Não me lembro de nada. Hoje, uma tripulante de uma travessia que fiz com um brasileiro louco há cinco ou seis contactou-me no Facebook. Deixou de comer só comida crua (agora é vegan) e começou a usar sabonete. Era gira, a miúda. Italiana, pequenina, magrinha. Dava a impressão de que se partiria ao meio se alguém a olhasse fixamente. É pintora e vive nos EUA. Disse-me que a bordo me deslocava com a graça de uma borboleta apesar da desgraça da barriga (a formulação é minha, claro). Lembrei-me da S., que me perguntava "mas tu tens cola nos pés?"

O armador brasileiro era louco, no sentido patológico do termo. Obsessivo-compulsivo, paranóico. Foi uma das duas péssimas travessias que fiz (mas não tão má como a outra).

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Quem não está habituado a estar fechado numa embarcação deve pensar que os dias se enrolam à sua volta como serpentes ávidas de envenenar e deglutir a presa. Para um marinheiro não é assim. Quase vejo a esteira, quando olho pela janela.

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Não costumo mencionar aqui pessoas que me lêem, mas hoje faço-o: troca de e-mails com uma senhora adorável. Adivinho-lhe a timidez e a sensibilidade, B.

Ultimamente tenho encontrado uma série de pessoas com quem empatizo imediatamente, de chofre, como se tivéssemos estado ali à espera um do outro toda a vida e nos chocássemos a dobrar uma esquina. É bom.

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Consegui finalmente maneira de contactar o E., de quem espero obter informações sobra a Patagónia. Viveu lá a fazer charter uma larga dezena de anos.

Uma das grandes vantagens da idade é ter amigos para cada coisa que se quer fazer.

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A casa é pequena e os dias também.  Grandes, agora, só os sonhos, os planos e os horizontes.

Podia ser pior.

27.3.20

Liberalismo

O liberalismo é uma teoria relativamente simples de explicar. Baseia-se em meia dúzia de princípios com os quais é fácil concordar:

a) Cada um de nós sabe melhor do que ninguém o que é bom ou mau para si próprio;

b) Portanto, cada um de nós deve poder escolher a quem compra ou vende os seus serviços e produtos e em que condições;

c) É aceitável que uma parte do que se ganha na b) seja entregue à sociedade sob a forma de impostos, desde que 1 - seja voluntário ou pelo menos decidida democraticamente; 2 - seja utilizada de uma forma transparente e controlada por quem paga os impostos; 3 - seja utilizada para o bem comum e não para o bem de quem administra os fundos;

d) As pessoas são livres de errar. Os únicos que não se enganam e sabem tudo são os ditadores;

e) Os limites da liberdade de cada um são as liberdades dos outros; dentro do perimetro no qual as suas acções não interferem com as liberdades dos outros, cada um pode fazer o que quer;

f) Quem trabalha para o Estado não é diferente de quem não trabalha, nem pior nem melhor. Por isso o poder do Estado deve ser controlado, escrutinado e essas pessoas devem ter o mínimo de poder necessário para exercer as suas funções (que são, sublinhe-se úteis à sociedade). Não devem ter mais, porque o excesso de poder trará inevitavelmente uma procura de ganhos para si e para os que lhe são próximos;

Confesso que não percebo o que é que neste conjunto de princípios (expostos, reconhecidamente, de uma forma lhana. Não sou um intelectual) assusta tanto as vítimas de um sistema como o português, que rouba, espolia, despreza e espezinha os cidadãos - os quais depois vão a correr votar em quem os despreza, espolia, espezinha e rouba.

Os liberais e os colectivistas têm exactamente o mesmo objectivo - o bem comum - mas pensam que os métodos para lá chegar são diferentes. Os limites das teorias colectivistas estão à vista, não é preciso ir à Coreia do Norte ou à Venezuela. Veja-se a evolução de Portugal no conjunto dos países europeus.

Talvez não fosse má ideia tentar outra abordagem, não?

Mistificação ou não?

Parece cada dia mais provável - repito e sublinho parece - que estamos a passar por uma gigantesca mistificação, causada pelo atabalhoamento dos diferentes governos ocidentais. Admitida e atenuadoramente, é verdade que os nossos políticos só tinham a China como modelo e tiveram de lidar com uma gigantesca pressão popular para nos fechar a todos e paralisar a economia.

(Que alguém peça para ser fechado é para mim um mistério. Passemos.)

O que dizem os cépticos?
a) O vírus já estava entre nós há bastante tempo e há muito mais imunidade no seio da população do que se pensa;
b) A letalidade é bastante inferior ao que se crê, porque 1 - muitas das mortes não são atribuíveis ao vírus e sim a outras patologias pré-existentes e 2 - decorre da a): a percentagem dos infectados que morre é bastante inferior ao que dizem as estatísticas porque a população infectada é muito superior. (Há uma necessidade de governos, media e outros stakeholders inflacionarem os números para justificar a paralisia em que estamos e os custos que aí vêm. Recentemente procurava os números dos passageiros e tripulantes embarcados a bordo do DIAMOND PRINCESS e só os encontrei em publicações científias. As outras só mencionavam o número de infectados.)
c) Devia ter-se começado imediatamente a reforçar a capacidade dos hospitais, em vez de pensar que a quarentena ajudaria a reduzir a curva. Não ajuda, como se está a ver na Espanha e na Itália;
d) A redução e inversão das curvas de casos é provavelmente mais devida ao ciclo natural do vírus do que às quarentenas (repito: provavelmente);
e) Devia ter-se esperado por dados concretos e não ter seguido como cegos o que fez a China, que é uma ditadura e tinha motivações políticas para agir como agiu;
f) Isto vai-nos custar demasiado caro para os resultados obtidos. (Não se trata de trocar a economia pela vida dos velhinhos, como viciosamente se anda para aí a dizer. Sem economia os velhinhos também morrem.)

Em breve teremos os resultados do o teste serológico dos Países Baixos e poderemos avaliar a veracidade de tudo isto. Infelizmente, não espero grandes mudanças, quaisquer que sejam os resultados: não estou a ver os políticos (não me refiro só aos nossos) darem milhões de votos de mão beijada e reconhecerem que criaram este caos porque tomaram decisões sem ter dados para as sustentar.

Sentimentos, água

Sentimentos como cursos de água à flor da pele. Correm todos na mesma direcção? Onde desaguam? Que levam, que trazem? Para onde vão, tão impetuosos uns, tão calmos e pacientes outros?

Não têm olhos nem ouvidos. Só se reconhecem nas peles, aquelas onde nascem e as outras, onde morrem à sede, à míngua de água.

26.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-03-2020

Uma das grandes vantagens do coronavírus é que apagou por completo a estúpida da miúda sueca das notícias. Assim que de repente me ocorra talvez seja mesmo a única.

Não gosto dela e digo-o. Sou homem de amores claros e ódios honestos. Felizmente, muitos aqueles e raros estes.

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O candeeiro de cabeceira dá uma luz fraquinha, amarela acastanhada. Nunca tive luz que me desse tanta vontade de me deitar, que tanto evocasse o sono com a eficácia de um feiticeiro  índio a chamar pela chuva. Só faltam os tambores.

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A primeira etapa do meu plano de circum-navegação chegou hoje ao estreito de Magalhães. A próxima etapa é decidir se a base na Patagónia será Punta Arenas ou Ushuaia e depois começar a aprofundar.

Sempre gostei do planeamento, mas este é especial. É como fazer a corte à mulher da nossa vida.

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Nestes tempos de isolamento apercebo-me sem surpresa de quão poucas pessoas me faltam.

A surpresa é descobrir que desse grupo fazem parte algumas que pouco conheço pessoalmente.  Distanciamento social seria tirarem-me a internet. Fechado em casa? Não passa de uma terminação fraquinha.

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Apanhei uma marretada valente, vinda de quem não esperava. O dia foi difícil. Tento - e consigo - não tirar ilações, não fazer generalizações. As pessoas, tal como as coisas,  são o que são. Qualquer passo para lá desta simples constatação (passe o galicismo) é inútil.

Pensar em Nuno Júdice: "Comecei a fugir para dentro. É cada vez mais difícil deixar de fugir para dentro."

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A chuva não vem. O feiticeiro, cansado abandona a dança e vai dormir.

24.3.20

Diário de Bordos- Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-03-2020

Na saída da manhã vi uma criança, três quatro anos. É a primeira que vejo nestes dez dias, mais coisa menos coisa, que aqui levo.

A cena foi demasiado bonita para não ser recordada: Plaza Mayor vazia, nem um gato à vista. O miúdo vem do lado da Rambla a toda a velocidade, montado numa daquelas motas de brinquedo que se deslocam com os pés no chão, como as primeiras bicicletas. Não lhe vi pai ou mãe, o puto saiu disparado como flecha a sair de um arco tenso há demasiado tempo. Chegado a meio da praça voltou para trás, igualmente na brasa.

Era cedo, a praça ainda estava alaranjada e eu pensei inevitavelmente nos milhares de putos que estão fechados por essa cidade fora.

Ao menos têm sorte, daqui a meia dúzia de semanas já terão isto esquecido.

Não que eu me possa queixar muito. Não posso. Tenho trabalho e vinho, duas coisas com as quais poderia passar uma década. O que me chateia são as consequências económicas desta loucura. Houellebeck devia reescrever a Submissão e dedicá-la à China, em vez de aos muçulmanos, ver se as pessoas abrem os olhos.

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Hoje não comprei o jornal. Na verdade ainda só o comprei duas vezes.

Quando penso na sofreguidão com que os lia, antigamente, não sei se fui eu se foi o jornalismo quem mudou.

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A minha "volta ao mundo" (aspas porque ainda está só no papel) já vai em Montevideo. Agora começa a parte mais interessante desta parte da viagem: Argentina, Falkland, estreito de Magalhães, Chiloé. Já não tinha a idade do puto na mota quando comecei a sonhar com isto, mas pouco faltava.

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Grande vantagem disto tudo: não vou poder apanhar um avião nos tempos mais próximos.

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[Adenda: algures na cabeça das pessoas instalou-se a ideia de que sem quarentena os velhinhos morrem.

Posso estar enganado, claro. Estou muitas vezes. Mas quando vejo as estatísticas parece-me que com "isolamento social" (aspas porque cito) os velhinhos continuam a morrer.

De um ponto de vista ético o problema é vasto e complexo, uma espécie de dilema do eléctrico à escala global. Aponta-se a agulha para um lado: morrem os velhos e mata-se a economia. Para o outro: fragiliza-se a economia e morrem os velhos.

Quem não queria estar no lugar dos políticos, quem é?

Adenda: A maioria escoheu a facilidade: deixar morrer os velhinhos fingindo que estão a salvá-los e matar a economia. ]

Reconhecimento tardio e lamento actual

Nestes dias de clausura quase absoluta, um post cheio de ternura dedicado a todas as mulheres que ao longo da vida me foram chateando para fazer a cama.

Vós tínheis razão, minhas queridas. Melhor: os vossos esforços são quotidianamente postos em prática. Só lamento não estarem aqui para ver.

Ditaduras

Uma das coisas mais exasperantes nos guardiães do bem, da virtude, da responsabilidade social e dos lacinhos à lapela é serem incapazes de conter a bondade. Não lhes basta saberem o que é bom para eles. (Aqui há uma ponta de inveja. Eu nem para mim sei.)

Não: eles precisam de mostrar que são bons, responsáveis sociais. Daí os laçarotes. Depois, ainda não satisfeitos, precisam de impor a sua irreprimível preocupação aos outros. Serem bons não lhes chega. A bondade precisa de convivência,  senão não serve para nada.

Que Deus me proteja dos ditadores do bem. Com os outros posso eu.

22.3.20

Inquietação

As redes sociais são as piores e mais eficazes inimigas da dúvida. Toda a gente sabe tudo e transforma esse "saber" em certeza num ápice.

As duas palavras que menos leio no Facebook são: "não sei", o que é pena porque se dão muito bem, ficam lindamente juntas e têm um longo, promissor e fecundo futuro pela frente. O primeiro filho do casal chama-se "Não sei, mas". O segundo "Sei, mas" e o terceiro "E se?", assim mesmo na forma interrogativa.

(Verdade seja dita: na escola estes miúdos não tiveram sorte nenhuma.)  

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-03-2020

Choveu e a luz ao acordar - ainda não tinha chovido - era aquele amarelo-acinzentado de antes do temporal. Agora caiu o que havia a cair, pelo menos para já, o ar está claro e o cheiro da fabada flutua pela casa, enche-a como espuma um colchão. Barbara canta as suas histórias de amor, que são trágicas e melancólicas e inquietantes porque começaram mal.

Agora é esperar um par de horas, vigiando atentamente a cozedura. Este fogão não é um fogão, é uma dessas merdas de placas de indução e não há maneira de pôr a temperatura que quero. Como é que a modernidade, uma coisa tão boa, consegue criar monstros destes? Cozinhar é uma coisa básica, fundamental. Tenho a certeza de que os trogloditas, meus irmãos assíncronos, conseguiam controlar a temperatura de cozedura dos seus bisontes.

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Oiço Paco Ibañez e penso que em Portugal muita gente põe Zeca Afonso nos píncaros, vê em José Mário Branco um cantor e ouve Jorge Palma com deleite.

O mundo é um lugar curioso.

[Adenda: de Ibañez passo para Brassens, hoje deu-me para a canção. A música é diferente, o espanto mantém-se.]

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A fabada estava boa, mas não canónica. Questão de treino e matéria-prima.

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O Sol voltou e a rua retomou os seus tons monocromáticos. Parece que a rua vai até ao céu

Na volta vai, quem sabe?

21.3.20

Como estás?

- Como estás? - Perguntam-me.
Respondo sempre que estou bem, obrigado. Não é mentira mas tão pouco é a verdade toda. A verdade toda seria: «não sei como estou. Não faço ideia.»

Tenho muito que fazer em casa, que ainda não está formatada para mim. Tenho trabalho, ao qual às vezes sou relapso, mas isso não é muito grave. Sei o que há a fazer e é questão de um dia chegar a vez dessa peça. Ainda não chegou a cem por cento. Trabalho como uma ave debica fruta. Faço-me à casa e faço-a a mim, como quando chego a bordo de uma embarcação que não conheço, mutatis mutandi.

Tenho esta maldita capacidade de adaptação que me permite assistir a isto tudo como se não fosse parte disto tudo. Desde que não me tirem as minhas saídas diárias para ir às compras está tudo bem. Vou ao mercado, ao Mercadona (são no mesmo edifício) e ao supermercado aqui ao lado. Não é muito, mas é o que há. Não voltei a tirar a burra da garagem. Comprei dois maços de cigarros - o primeiro durou-me cinco dias e em mais de ano e meio ou dois anos deve ter sido o único que fumei integralmente. Hoje comprei outro, mas já estou farto de fumar.

Ninguém me chateia com as saídas - passo às vezes por um polícia ou outro, mas nunca me mandaram parar. Ainda não vi o exército, apesar de estar muito perto de casa. Leio menos do que queria. De vez em quando vou à janela olhar para as ruas desertas.

As pessoas perderam o contacto com a morte. Perderam a noção. O direito à vida obnibulou-lhes a ideia de que sem morte não há vida, sem o direito à morte não há direito à vida nenhum, há só esta coisa , esta massa mole de medo e stay the fuck at home. Fica tu, fiquem vocês.  Se os velhos querem sair deixem-nos sair, porra. Têm o direito de morrer como querem. Sinto-me como se estivesse num cinema a ver um filme do qual sou actor mais do que secundário. Terciário? Cameo? Eu fico em casa, claro. Para onde ir, se não? O Antiquary, a Tasquita, o Can Rigo, o Ca na Chinchilla... tudo está fechado.  As ruas estão vazias, parecem aqueles rios secos do deserto, ou os riachos no Alentejo no verão. Como se uma barragem tivesse contido a vida, algures a montante.

Stay the fuck at home? Shut the fuck up. Para onde é que querem que eu vá? Vão dar ordens para o jardim da responsabilidade social, fica-vos tão bem. É tão bonito. Qualquer dia andam aí com um lacinho à lapela, a mostrar solidariedade com o pessoal da saúde e as cachopas do supermercado. Hão-de cansar-se das palmas, vão ver. De que cor será o laçarote? Amarelo, não? Ou encarnado. Gostava era que parassem de mandar videos e memes e anedotas de cães e papel higiénico e putos em casa.

Perderam a noção da morte e a da quantidade, também. Como é que dizíamos, quando éramos adolescentes? «À primeira tem graça, à segunda ainda passa, à terceira maça.» Não é assim muito complicado, pois não? A morte existe e se se deixar de viver para não se morrer nem se morre nem se vive, que ainda é pior do que morrer. Parem com a porra das mensagens, dos attachements, do raio que os parta. São todos iguais, não percebem?

Ontem decidi-me a comprar um colírio, finalmente. Lembrei-me da primeira vez que comprei um anti-histamínico. Não sabia como é que aquilo se toma e enfiei três de uma vez. Íamos todos a uma feira gastronómica em Santarém, ou coisa que o valha. Bebi meia dúzia de copos e tiveram de me arrastar para o carro. Agora leio as bulas. Hoje comprei colírio para o «lacrimejar provocado pela rinite» (aspas porque cito). Duas gotas três a quatro vezes por dia. Nunca preciso de passar das duas vezes. Pergunto-me de onde vem esta resistência a comprar remédios. Porra, até os trogloditas comiam ervas, não? E faziam mezinhas. Que se lixe. O colírio funciona e hoje sou um especialista em anti-histamínicos. Enfim, mais ou menos.

Vejo o filme de um bom camarote, estou bem e vou fumar um cigarro à janela. Amanhã faço uma fabada asturiana, um prato de que gosto quase tanto como de favas à portuguesa apesar de as favas não serem as mesmas. Leva três horas a cozer. Parece que caiu uma bomba de neutrões na cidade. As pessoas que andam na rua - a esta hora nenhuma, claro. Digo durante o dia - são os zombies que sobreviveram. meio-vivos meio-mortos.

Volto para o Marlowe. Não tenho rum potável em casa, nem whisky: estou a fazer uma experiência com a glicemia. Um médico uma vez disse-me que a minha sorte eram aqueles períodos de mar em que não bebo nada. Nesta viagem autorizei o vinho, mas cortei o resto. Quando chegar, decido se vou para a esquerda se para a direita, como se a fisga estivesse deitada à minha frente. O que me está a lixar os números é a fruta, aposto. Mas quero ter a certeza. Sou demasiado burro para tomar decisões que não estejam fundamentadas em números, em provas empíricas. A partir de hoje corto as frutas. Mais semana menos semana reintroduzo o rum. Depois é só comparar, não é? Shut the fuck up.

- Como é que estás?
- Bem, obrigado. E tu?

20.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-03-2020

Janto de pé, no canto da cozinha perto do lava-loiça. Pão torrado, uma fatia de manteiga espessa como queijo, uma de queijo alta como uma de pão e o pão, bem, pão. Copo de vinho, Noa no Windows Media Player - à espera do Paul Simon - silêncio na rua. Penso nas pessoas chatas como sandes sem manteiga e apercebo-me de que posso brincar com os dois sentidos da palavra chata: ela era chata como... O gajo era chato como... Olho para o queijo e lembro-me do meu Pai, que um dia me viu pôr manteiga num bocado de pão e se exaltou "Porra, Luís, isso não é queijo" (foi na última glaciação), revejo passagens do The Big Sleep que releio. Vêm-me à memória lampejos de episódios, há muitas palavras que não percebo e penso - ou repenso? - que em Chandler admiro a justeza do tom, ele escreve como um piano afinado toca, em meia dúzia de linhas define a atmosfera de um capítulo. Não sou invejoso, juro que não sou. Mas... Quem me dera escrever assim, ser capaz de acertar a nota ao milímetro.

Pelo menos tento, vá lá. Mais vale perder do que não tentar.

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Consegui encontrar gel desinfectante. Tinha-o encomendado ontem. Só vendem um por pessoa, mas ficou outro pedido para amanhã. Se não aparecer ninguém que não tenha nenhum vende-mo a mim. Gosto de aplicar aquele princípio da marinha de guerra: um a uso, um em reparação e outro de reserva. Como neste caso não há reparações, podem ser só dois. Assim faço com tudo.

Excepto com a vida, claro. Essa não aceita nem reservas nem reparações. Há que usá-la o mais possível, não vá ela de bodas com um vírus qualquer caído do céu.

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Não me apetece formar opiniões sobre esta merda deste Covid. Limito-me a coleccionar opções, como um jogador de cartas as abre em leque à sua frente. Só no fim do jogo saberei qual devia ter jogado.

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«This room was too big, the ceiling was too high, the doors were too tall, and the white carpet that went from wall to wall looked like a fresh fall of snow at Lake Arrowhead. There were full-length mirrors, and crystal doodads all over the place. The ivory furniture had chromium on it, and the enormous ivory drapes lay tumbled on the white carpet a yard from the windows. The white made the ivory look dirty and the ivory made the white look bled out. The windows stared towards the darkening foothills. It was going to rain soon. There was pressure in the air already.»

(Raymond Chandler, The Big Sleep, ed. Penguin Books.)

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Uma cidade é feita de pessoas nas ruas, por muito bonitas que estas sejam. Uma rua deserta só seduz se antes tiver estado cheia de gente ou se o vier a estar depois. Não há beleza que resista à ausência, seja esta qual for.

Duas ou três coisas que não sei dele

a) Aprender a viver com a ideia de que não sabemos tudo. "Não sei" é provavelmente a coisa mais certa que muitos de nós dizemos. Infelizmente, não o dizemos o suficiente e nem todos o dizemos tão frequentemente quanto devíamos. "Não sei" (ou, neste caso, "não sabemos"). O que é um sinónimo de: "vamos saber" e não de "vamos dar a nossa opinião";

b) O facto de muita gente dizer uma coisa não quer dizer que essa coisa seja certa. Ninguém acreditou em Galileu Galilei, Newton enfrentou uma descrença generalizada, Einstein foi ridicularizado. Isto não significa que a maioria está necessariamente errada. Significa que pode está-lo, talvez esteja;

c) Há uma hipótese - sublinho e repito, hipótese - segundo a qual o Covid-19 já existia há muito tempo, já muita gente em todo o mundo ter sido exposta a ele e ter adquirido imunidade. Em que se baseia essa hipótese?

1 - No caso do M/S DIAMOND PRINCESS. Só vinte por cento das pessoas a bordo contraíram o vírus, apesar de o navio ter um sistema de ar condicionado (se não tivesse, morreriam todos assados ou congelados) e de as refeições terem continuado a ser servidas nas salas de comer (é impossível distribuir refeições por todos os camarotes). Este caso é extremo: o navio esteve fechado a contactos com o exterior, andou para trás e para a frente e esse vírus não conseguiu infectar mais de vinte por cento das pessoas?

2 - Toda a imprensa fala na percentagem de mortes em relação aos casos infectados, mas ninguém fala na relação mortes / população total. É ínfima. Ora se se admitir, como a Islândia acaba de demonstrar, que os casos sintomáticos são cerca de metade dos casos totais infectados - isto é, metade das pessoas infectadas não apresenta sintomas - a questão que se põe é: porque é que a taxa de mortalidade é tão baixa? Porque é que há tanta gente infectada sem sintomas? Uma das respostas possíveis (cf. a)) é que a maioria da população já está imune;

d) Ou seja: se se admitir que esse vírus ((cf a)) estava presente em toda (ou grande parte da) população mundial e se se admitir que as pessoas estavam imunizadas contra ele, o que é que fez essa imunidade falhar em Wuhan? Resposta: Não sabemos. Talvez tenha sido a poluição. Pode ter sido outra coisa qualquer, há um leque de possibilidades, mas a poluição integra esse leque. Ou seja, a atitude correcta é: "Vamos aprender. Vamos estudar. Vamos pesquisar. Vamos analisar."

e) A Holanda está a levar a cabo um estudo serológico. Quando se tiverem os seus resultados, algumas destas hipóteses confirmar-se-ão e outras irão para o caixote de lixo da história. Até lá, aplica-se a a) (e tenta-se não aniquilar a economia, a vida e a liberdade das pessoas, mas isso por agora é outra história. Devo confessar que pela primeira vez desde que as tartarugas têm casca apreciei a acção de António Costa, o que devia servir para demonstrar urbi et orbi que por muito teimoso que seja, sei adaptar-me e não estou preso a preconceitos ideológicos).

Adenda:  seria útil conseguir fazer-se um dia a destrinça entre pessoas que morreram por causa do Covid e pessoas que o tinham e morreram devido às patologias que já tinham antes. Não sei se é possível.

18.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-03-2020

Encaro isto como uma travessia em solitário, com um bónus: posso desembarcar de vez em quando. Por pouco tempo, é certo - hoje já se tem de guardar os talões das compras porque a polícia pode pedi-los - mas posso desembarcar, passear a burra (queixou-se do pouco. Disse-lhe que amanhã haverá mais), comprar fruta e pensar que é melhor deixar o tinto para amanhã, não vá a garrafa partir-se ao chegar a casa.

É como estar parado sem vento e dar um mergulho ou dois, com a diferença de que esta paragem vai durar mais de um mês. Vai durar a travessia toda.

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A casa está praticamente arrumada. Penso que tenho muitas coisas, mas vamos a ver e não são assim tantas. Continuam é a ser demais, mas isso é outra história.

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Com a ajuda pontual da A. (a quem dedico este post, cheio de sentimento e saudade) ando a ver se consigo controlar-me e calar-me no Facebook. Não é fácil, mas já estive mais longe.

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Foi decretado o estado de emergência em Portugal, medida que contesto tudo o que posso (posso contestar muito. Não serve é de nada). Não é só no Facebook que não me calo.

Mas que fazer? Vivemos há anos a ser desresponsabilizados. Já nem uma rua se pode atravessar sem ter um idiota de um semáforo a dizer-nos se podemos ou não. Os cafés vêm com avisos de que o recipiente está quente. Somos tratados como débeis mentais todos os dias "normais". Não há-de ser  em tempos como os de agora que vamos deixar de ser as crianças irresponsáveis em que nos deixámos tornar.

Quem se recusa a ir com o rebanho é apelidado de maluco, anárquico, ou - se for no Facebook - criminoso, cretino, idiota, fascista e por aí fora. Por um lado estou contente, pois já só tenho vinte anos disto, estatisticamente. Por outro triste: vinte anos é tanto tempo.

Não sou de rebanhos. Nunca fui e nunca serei. E agora tenho a vantagem de poder apresentar provas.

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Acredito na importância da ética, na da moral e num princípio base das duas: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti; faz aos outros o que queres que te façam a ti. Acredito na liberdade. Não preciso do Estado nem de sindicatos, clubes, associações e o resto da corja para ser o que sou. Não é muito, mas é tudo o que sou. E não é amanhã que vou mudar.

A sério?

A ridícula, absurda, patética antropomorfização dos animais de companhia que se vive actualmente atingiu um novo cume graças ao Covid-19.

Tem-se a impressão de que os donos dos animais querem que estes possam ser contagiados e transmissores do vírus, como se fossem crianças a sério.

17.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-03-2020

A mudança chegou ao fim - ou melhor, a primeira parte dela; amanhã começa a segunda, que é arrumar  tudo num apartamento que pura e simplesmente não tem arrumações - e eu estou exausto. Devia obviamente ter seguido o plano inicial, que era fazer isto em três ou quatro dias.

Mas um marinheiro é por natureza o tipo mais pessimista do mundo e sabe que amanhã pode ser pior, de modo se está de bonança não se pára. (É também, simultaneamente e sem qualquer contradição, o mais optimista, mas isso são contas de outro rosário.) De modo lá fiz mais não sei quantas viagens e trouxe tudo para cima. Doem-me os músculos todos, desde os que fazem crescer os cabelos até aos que fazem crescer as unhas dos pés.

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E agora vem aí o helicóptero do dinheiro. Duzentos mil milhões de euros (Espanha). Se estes tipos fossem para a pata que os pôs ela não se queixaria de certeza. E nós tão pouco: ficaríamos muito melhor.

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Enfim, ainda é cedo. Esperemos para ver. Pelo menos uma surpresa já saiu da caixa: António Costa, esse verbo de encher balões furados, não quer decretar o estado de emergência. Até um relógio avariado acerta duas vezes por dia. Aquele "estadista" - juro que já vi pessoas a chamar-lhe isso, estadista (e algumas delas inteligentes). Estadista, António Costa? É como se alguém olhasse para mim e dissesse que eu sou esquimó. Desta acertou. Pena aquele relógio ter um ritmo tão lento. Em cinco anos é a primeira vez que o vejo hesitar antes de tomar uma má decisão (vai acabar por ceder ao Marcelo, aposto dobrado contra singelo. Pelo menos não disse logo que sim ou não teve ele próprio a ideia. Não faz dele um estadista, claro. Não faz nada. Cada um é para o que nasce e lagartixa...)

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Do lado do P.: agora, só trabalho de escritório. Esta é a maior viagem que alguma vez planeei. E a melhor, também: uma volta ao mundo em quatro ou cinco anos, passando por todos os lugares com os quais sonhei desde miúdo (eu e metade daquela parte do planeta que sonha com viagens maritimas). Neste momento estou nas Galápagos, à espera de uma informação para continuar para as Marquesas. Mas ainda vou nas linhas gerais. Agora é começar com as particulares: escalas, datas, regatas em que vamos participar, etc., etc., etc. A quantidade de etc. é infinita.

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Já que estamos no P.: estou a preparar-me para uma travessia em solitário que vai durar mais ou menos dois meses.

Só que não é no P., é no quarto andar.

Crise canina

Os cães vão chegar ao fim desta crise estoirados. Nunca terão saído tanto à rua como agora.

16.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-03-2020

É uma corrida de obstáculos, contra-relógio, contra-vírus, contra a indecisão. Vou por etapas: a primeira é conseguir mudar de casa. Estou quase lá. Hoje fiz quatro viagens, ontem três. Mais outras tantas e estou no meu quarto andar, pendurado com vista para uma cidade vazia. Não vi polícia nenhum, espero que continuem ocupados noutro lado.  (Lembro aos distraídos que faço parte de dois grupos de risco. Ficaria estarrecido de agradecido que não me chateiem com isso de ficar em casa a foder o tempo. Salvo duas ou três raras excepções, as raras pessoas com quem me cruzo - a pelo menos três metros, não vá o diabo urdi-las - têm metade da minha idade, em média. Das excepções, algumas fazem-me um olhar culpado, outras um cúmplice, outras ainda nenhum. Respondo com nenhum, sempre. Isto não está para partilhar emoções. De qualquer forma, os dedos das duas mãos não devem chegar para as contar todas. Sobretudo se lhes juntarmos os dos pés). Seja como for, tenho dois ou três argumentos engatilhados para o caso de um Guardia Civil  me mandar parar.

Juro, palavra de honra, xicuembo xa nhaca, nunca pensei que um dia teria de fazer uma mudança clandestinamente. Mas isto é questão de trocar uma morte possível por uma morte segura: ficar neste quarto os dois meses que isto vai durar - se tudo correr bem - conduzir-me-ia ao suicídio ou, pior ainda, ao homicídio.

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O pior vai ser levar a base da minha escultura "Tempo" (designação provisória). Aquilo está pesado pra burro e frágil porque não tem base. A ver vamos: parta-se ou não, será sempre uma mostra do tempo.

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Lancei um concurso para encontrar um tradutor para o Avenida. Das cinco ou seis respostas, uma promete. Entre isto e a circumnavegação tenho com que me ocupar. O problema é o P.: todo o trabalho a bordo está proibido. Nem eu lá posso ir. É um bocado estúpido, vim para aqui para estar perto dele, entre outras razões - todas igualmente válidas, asseguro.

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Vale-me a mudança para abafar a quarentena, como quando éramos miúdos, jogávamos ao berlinde e um gajo qualquer tinha um abafador. Não me lembro bem das regras. Acho que o gajo do abafador tiha de tocar no berlinde e dizer "abafado", ou coisa que o valha.

A minha mudança não diz nada. Está caladinha, atravessa a Plaza Mayor bem pelo meio, não vá algum polícia pensar que se está a esconder e respira de alívio quando chega à porta de casa. Tudo menos ser apanhado a meio (da praça e da mudança ela própria).

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O Alaska, a Groenlândia e a Terra Nova só têm um caso cada um. Vamos a ver e na volta o vírus nao gosta é do frio.

A verdade é que me estou relativamente nas tintas para teorias, pelo menos nesta fase. Quando tivermos os números veremos quem tinha razão. Não gosto de certezas e menos ainda das consensuais. O único campo em que a maioria está sempre certa é quando está em causa uma decisão democrática. Mas isso não significa que tenha razão. Significa que as maiorias são melhores do que um iluminado, é tudo. Sobretudo que a maioria das vezes os iluminados são obscurecidos, o poder turva a vista.

Por isso espero para ver e até lá faço as minhas viagens em bicos dos pés. São curtas, cinco - dez minutos cada uma. Quando acabar, sobram-me as compras e passear a burra.

Não sou grande adepto do Boris Johnson mas gabo-lhe a inteligência - de que já deu bastas provas - e os tomates. Se fosse de rezas, rezar-lhe-ia um terço ou dois. Infelizmente não sou. Contento-me com vinho tinto e Hildegarde von Bingen, uma mistura de cuja eficácia tenho sólidas provas.

(Procurar contradições neste texto é pura perda de tempo, aviso desde já.)

15.3.20

Gravidade - adenda

D. foi finalmente forçada a deixar o quarto onde estava. A senhoria pô-la na rua. Felizmente encontrou outro, com uma colega de trabalho do café onde trabalhou dois dias.

Há muitas coisas a puxarem-nos para baixo e outras tantas a empurrarem-nos para cima. Agora é esperar que isto passe... Leme de ló, estai aquartelado, grande arriada. O resto é conversa de encher chouriços. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha,15-09-2020

A minha bicicleta é um animal de estimação e como tal tem o direito de ser passeada. Levei-a às compras e voltei para casa por vias indirectas. A cidade está deserta. O vírus deve andar de cabeça perdida à procura de alguém para infectar.

Amanhã vai chover e não poderei levá-la para a marina, mas à tarde começo a mudança de casa e conto com a burra para me ajudar. Vai demorar uma semana - sempre coordenada com a compra de comida, claro. Não tenho a certeza de que as autoridades partilhem a minha opinião sobre o estatuto da Peugeot encarnada, a maravilha em versão feminina de outra que me foi roubada num dia negro, perto do Museu Nacional de Arte Antiga. Para mim é óbvio que uma burra deve ser passeada.

Os idiotas que compraram montes de coisas auto-condenaram-se, mas quem sou eu para os julgar? Cada um sabe de si e o outro sabe de todos, seja o outro quem for.

Dormi o dia todo, com algumas breves interrupções para comer (e agora esta, mais longa, das compras e do jantar). Não devo estar a exagerar quando falo de cansaço. A verdade é que já estou a abrir a boca de sono outra vez.

Bom bom é mudar de casa. O N. começa a sair-me pelas orelhas.

A dor de cabeça também. Veio para ficar, a cabra. Ainda por cima não tenho paracetamol, coisa que a assusta como um tiro os pombos.

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A senhora que eu queria traduzisse o meu livro não quer fazê-lo. Não se identifica com a coisa. Preciso de encontrar alguém de língua materna francesa que conheça bem Portugal e escreva bem. S. diz-me que não vai ser fácil. Que se lixe. Quem gosta de coisas fáceis?

Eu, não por gosto mas por estar cansado das difíceis.

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Para além de passear os cães, gatos, caracóis e lagartixas de companhia, o governo espanhol autoriza-nos a sair de casa para ir trabalhar.

A ver se amanhã tenho os dois I. a bordo. Só vou poder ter um de cada vez, que o espaço é contado.

Aposto no I. búlgaro...

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"Stay the fuck home" é muito bonito, mas há ali qualquer coisa que me escapa.

14.3.20

Gravidade

A história é longa, Dickensiana, cheia de circunvalações. Mais vale começar do princípio, algures perto do fim do ano (aviso que vou cortar alguns cantos. Isto é dickensiano mas não sou Dickens): num grupo de yachties de que faço parte vi um post sobre uma rapariga que estava numa situação muito difícil, com um filho de dez anos e sem trabalho, dinheiro nem comida. Esperava um day work para dali a duas ou três semanas, mas por agora a situação era verdadeiramente difícil.

Eu estava na Alemanha e propus-me ajudar com o que podia: dinheiro. A comunidade yachtie - que não é constituída apenas pelos miúdos mimados, demasiado bem pagos e palermas que eu por vezes vejo nela - mobilizou-se e D. recusou a minha oferta - queria trabalho, não queria dinheiro. Aparentemente disse isso a todos os que lhe propuseram o mesmo que eu (está a ser verificado). Aceitou a comida e o trabalho que esperava chegou. Durou três ou quatro dias, diz ela que por ter sido cancelado. Já a convidei para comer - ela e o miúdo, um puto adorável - duas vezes e acredito no que diz. À segunda acabou por aceitar-me dinheiro porque não tinha com que pagar a renda (e tem problemas com a senhoria, claro) e hoje aceitou mais, mas tive de insistir. Ainda está a dever uma parte da renda à senhoria e praticamente não tem comida nem para ela nem para o puto (que devo dizer é surpreendentemente bem educado).

Fez trinta e três anos terça-feira passada. Nasceu na Roménia, é uma daquelas crianças dos orfanatos do Ceausescu. Aos quatro anos foi adoptada por uma família belga, com a qual cortou total e definitivamente. Não lhe perguntei porquê: não faço aos outros o que não quero me façam a mim. (Tenho uma hipótese para explicar a recusa de uma pessoa nestas circunstâncias pedir ajuda à família adoptiva, mas não passa de hipótese.) Algures por volta dos vinte e três anos teve um filho de um inglês. A coisa correu mal, passou cinco anos em tribunais a tentar fazê-lo colaborar na educação do puto, mas sem êxito: o homem esconde-se, foge à justiça, nunca lhe deu um cêntimo que fosse.

Pouco depois (pelas minhas contas, o puto teria cerca de dois anos) apaixonou-se por um belga "adorável, bom" (sic) com quem viveu oito anos, dos quais os últimos três a assisti-lo na morte, causada por um transplante de medula que correu mal. O irmão do homem era alcoólico, morreu antes dele e por uma razão que tão pouco aprofundei deixou-lhe um monte de dívidas.

Ou seja: neste momento temos uma miúda de trinta e um ou trinta e dois anos, com um filho de oito ou nove que de repente se vê privada da primeira pessoa que tomou conta dela correctamente - com a possível excepção da família que a adoptou, não sei - sem formação (estudou para cabeleireira mas não acabou o curso) e que entra numa depressão sem fundo.  Só se fosse idiota é que não entraria, suponho mas não tenho a certeza.

Vai daí resolve fazer os cursos básicos para trabalhar em iates e vem para Palma com o filho procurar trabalho, que não encontra, obviamente, exceptuando uns poucos day works que servem para pagar a comida e pouco mais.

Recentemente encontrou trabalho num bar / café / restaurante alemão - é a sua língua materna, porque cresceu na parte germanófona da Bélgica. Trabalhou dois dias: por causa do Covid o bar vai fechar.

Soube estes útimos pormenores há pouco porque os convidei para jantar - o quarto que ela partilha com o filho é minúsculo, a senhoria não as autoriza a usar a sala e o puto está sem aulas. Dizer-lhes para virem ter comigo era o mínimo que podia fazer.

Gosto muito de equilibrar coisas em cima umas das outras - a quantidade de copos que parti a tentar empilhá-los "assimetricamente" daria para abrir um bar - mas por vezes acredito que algumas coisas se empilham para baixo, a descer, como se se vivesse num poço e tudo o que se faça nos puxasse para o fundo. U. disse-me que tenho alma de bom samaritano (para me explicar - um pouco injusta ou inutilmente - que não queria D. lá em casa). Não tenho. Acredito simplesmente que por vezes se deve ajudar a vencer a gravidade, como agora se fala - pateticamente - em "vencer o vírus".

Diário de Bordos- Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2020 / II

- Ter calma, olhar de fora, não entrar na vaga, reduzir as saídas mas não a zero, evitar grandes aglomerados de pessoas.

- Doutor, tudo isso é fácil, com excepção dos aglomerados. Onde é que eles estão? Não vejo nem um, grande ou pequeno.

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Será possível apanhar um Covid 4 ou 5? Não o quero todo, só um bocadinho para dar ao meu sistema imunitário com que se entreter estes dias.

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Tarde de sábado e a Plaça d'en Coll vazia. Cinco pessoas nas esplanadas todas, contando comigo e excluindo os três traficantes habituais. Isto vai ser lindo.

Um dia a não falhar: aquele em que o estado de alarma for levantado.

Para já, bebo um Gin e peço uma tapa de calamares. Há que encorajar os resistentes. (Fonte segura diz-me que o quinino é eficaz na luta contra o Covid. Na volta vai a ver-se e o Vermute também é...)

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Uma miúda gira e de saia até ao umbigo vem sentar-se a metro e meio de mim. Tem bonitas as pernas e o resto.

Esperemos que os sessenta e picos anos anos que estatisticamente lhe restam de vida sejam tão bonitos como ela.

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Algo me diz que as semanas que aí vêm vão ser boas, profícuas. Não vejo o I. (búlgaro) a ficar em casa. Já o I. (sul-africano) me disse que sim, talvez, renhau nhau nhau bacalhau ao gato.

O P. precisa dele. Espero que se junte ao clube do bom senso e não aos rebanhos do pânico. Os saffas não são conhecidos por moles.

(Saffa é como são conhecidos os sul-africanos nos meios distintos que frequento.)

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D. vem ver-me. Hoje foi dispensada do trabalho que acabou de encontrar (culpa do Covid, não dela) e aborrece-se em casa, mai-lo rebento. Vêm os dois. Confesso que não me importaria nada de continuar sozinho, olhar de vez em quando para as pernas da vizinha (que agora tem acompanhamento, tenho de disfarçar porque ele esta virado para mim) a beber o meu anti-vírus em paz.

Nafa a fazer: não a teria se tivesse inventado uma desculpa qualquer.

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Os efeitos anti-virais do segundo gin são muito mais visíveis do que os do primeiro. (Ou da água tónica ou lá o que é.) Pergunto-me se os governos não poupariam uma data de massa fazendo uma distribuição generalizada e gratuita de G&T.

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Todas as contas feitas, o pior disto tudo são os do-gooders que não conseguem evitar de o ser e não fazem senão  insultar quem não.

Vivam a vossa vida, porra! e deixem a dos outros em paz.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-03-2020

Aquela malta do Crescimento Zero (ou enfim, os seus descendentes. Nunca mais ouvi falar do movimento) deve estar a esfregar as mãos de contente, não? Quando isto acabar, talvez mudem de nome para Crescimento Um.

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Vá lá, acabamos de saber com que linhas nos vamos coser. Pelo menos é permitido ir trabalhar. A ver é se há alguém que queira...

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Por mim, está decidido: volto para o apartamento da Plaza Mayor e só saio de lá para ir às compras e ir ao P., a minha alegria e a minha cruz. O resto do tempo vai ser passado a fazer as duas revisões que tenho à espera, ler, beber vinho tinto, escrever, ouvir música e cozinhar.

Será que sempre vivi em quarentena e não me apercebi?

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Não me esquecer: comprar velas em número suficiente para que a escultura avance.  Hoje recebeu o nome (provisório) de O Tempo. É um nome extraordinariamente original, eu sei.


(Se por acaso alguém conhecer um senhor chamado Pedro Cabrita Reis: Pedro, V. vende-me isto e dividimos a meias, pode ser?

Nota: ainda não acabou.)

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Caso seja verdade essa coisa de que o vírus não resiste ao calor: podemos finalmente dizer que nem tudo é mau no aquecimento global?

13.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-03-2020

E assim me recebeu Palma: cálida, azul e pálida. Pouca gente nas ruas, mas tudo bem no melhor dos mundos, disse-me a jovem (e bonita, claro) taxista. Meia dúzia de horas depois o idiota do Sanchez - sem relação com esta decisão. Já era idiota muito antes - decreta o "estado de alarma". À boa maneira socialista, ninguém sabe bem em que consiste o dito estado.

F., dono do Antiquari diz-me que todos os cafés, bares e restaurantes serão obrigados a fechar. O do café Santa Eulália, onde gosto de ir comer uma tapa ou duas ao fim do dia, diz-me que obrigado talvez não seja, pelo governo. Mas abrir sem ninguém a quem servir serve-lhe de pouco e talvez feche. A Uta da Sifoneria não abriu. Prefere ir beber copos onde há gente a ficar sozinha no estaminé.

Venho à Tasquita, oiço o Bob Dylan arranhar a garganta a cantar "Não penses duas vezes, está tudo bem", encomendo umas pataniscas - mais para ajudar a S. do que por ter fome - e abro a frincha às gatas. Elas sabem para onde vão. Eu não.

(Gatas são as palavras; o resto fica para depois.)

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Fui ao Mercadona logo a segui ao almoço. Estava mais ou menos normal. Voltei lá às oito da noite porque a Sifoneria está fechada e preciso de vinho tinto, o vírus não aguenta um copo. Parecia um supermercado da Rússia soviética.

As prateleiras, as ruas, os cafés estão vazios. Eu não, mas de pouco serve; ou nada. Na verdade este vazio é-me indiferente. (Tudo é, excepto a fixação no papel higiénico. A mente humana é gregária e mimética, nada a fazer. E o P., mais cela va sans dire.)

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Como serão os próximos dias? Só espero que não sejam como a travessia do Pacífico no M/V RIO CUANZA, a minha primeira, mais longa e dolorosa experiência de isolamento.

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Não deixa de ser reconfortante um gajo poder pensar que pelo menos viveu. Aconteça o que acontecer, esta já ninguém ma leva. 

12.3.20

Diário de Bordos - Lisboa, 12-03-2020

A caminho de "casa" - o hotel Botânico, no qual me sinto como se não estivesse num hotel - páro no Chafariz do Vinho. Mudou de dono: já não é de João Paulo Martins. Que dizer? Nada. Os empregados já não estão fardados, a lista de vinhos não está actualizada e a música é o Bob Marley. Sete euros o LBV mais barato (é de 2015), que fica a milhas do Warres 2007 (para quem não sabe, o Deus dos LBV) que ainda agora bebi por oito. Vale pelo lugar, que esse não muda.

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Tento ocupar o espaço entre mim e a perene dor de cabeça que me habita como um pombo o pombal: sai de vez em quando mas acaba sempre por regressar.

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Aconteça o que acontecer, é praticamente certo que já não tenho de cá voltar na quarta-feira. Talvez só no domingo e por um dia. Ainda acabarei a acender velas ao Covid, ou a dar esse nome a um cachorro. (Pelo menos teria a praia só para mim e faria montes de amigos. Covid, anda cá. Covid, senta. Covid, traz.)

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Amanhã volto para Palma com a sensação de que vou para uma prisão: não sei quando poderei de lá sair.

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Aposta com a T. Diz que o Covid vai mudar o capitalismo. Seria preciso definir muito melhor o que ela entende por «mudar o capitalismo», mas não o faço. Não me importo nada de lhe pagar um jantar, seja qual for o pretexto.

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Tempo de reler Camus: vivemos a Peste, mas é Meursault que me sinto. Ou nem tanto: talvez seja simples cansaço. Ou fim de ciclo: qualquer dia estarei na Costa Brava, o P. a funcionar, o segundo livro no forno, Mértola cheia de barcos e Moura de foils.

Qualquer dia, estes rios todos irão desaguar num grande rio tranquilo, quem sabe?

Facilidades, cont.

"Do I have to be polite?" I asked. "Or can I just be natural?"
"I haven't noticed that you suffer from many inhibitions, Mr Marlowe."
"Do the girls run around together?"
"I think not. I think they go their separate and slightly divergent roads to perdition.  ...  Neither of them as any more moral sense than a cat. Neither have I. No Sternwood ever had."

11.3.20

É tão fácil um gajo preparar-se para uma quarentena, não é?

"IT WAS ABOUT ELEVEN O’CLOCK in the morning, mid October, with the sun not shining and a look of hard wet rain in the clearness of the foothills. I was wearing my powder-blue suit, with dark blue shirt, tie and display handkerchief, black brogues, black wool socks with dark blue clocks on them. I was neat, clean, shaved and sober, and I didn’t care who knew it. I was everything the well-dressed private detective ought to be. I was calling on four million dollars."

(Incipit, The Big Sleep, Raymond Chandler.)

Iliteracia, bondade e demónio

Alguém me sabe dizer quando é que a iliteracia económica adquiriu o monopólio da bondade e qualquer argumento baseado em factos económicos passe à categoria de obra do demo? É para um amigo.

Há vírus e vírus

Talvez se pudesse aproveitar a boleia do Covid-19 e decretar que o AO-90 é um vírus mortal que ataca a língua portuguesa e pode provocar danos irreversíveis em quem o usa e em quem o lê e matá-lo de vez, não? Decidir que nunca mais se "deteta" seja quem for, que as "infeções" desaparecerão para todo o sempre da face da terra e que o português - mesmo amputado de acentos graves nos advérbios de modo e outras feridas menores - volta a ser escrito como deve ser.

Cada vez que vejo uma "infeção" ser "detetada" fico mais doente do que se tivesse uma família inteira de vírus dentro de mim.

9.3.20

Reza do sono

Sono, abençoado sono: sei que hoje não me vais largar de mão. Preparei bem a tua vinda, andei, deixei-te muito espaço na mente. Só pensei no P. de manhã; à tarde limitei-me a pensar no que via e a não ver nada que não estivesse à minha frente. Já li - pouco mas li - e pensei um bocadinho na história (Tristesse et beauté, de Kawabata).

Tens o lugar todo à disposição. 

Dias da mulher

Afinal parece que se chama Dia Internacional da Mulher. Devia haver o dia nacional, regional, distrital, local da mulher, o dia solar, galáctico, universal, o dia lunar da mulher... trezentos e sessenta e cinco dias da mulher: o dia Internacional da mulher da minha vida.

O resto é conversa. 

Retrato

Cabelos castanhos muito claros,  quase loiros mas sem lá chegar: a mulher ainda é mulher, não a boneca que vejo em qualquer loira.

7.3.20

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 09-03-2020

07-03-2020, Sábado

Meu vinho de comer: Balanches 2018. (Copyright MJPC.)

Mal sai do copo o vinho enche-nos o palato de tal forma que se tem de mastigar. E depois não sai. Fica lá para sempre. É preciso rever os conceitos "ataque", "corpo" e "fim de boca".

Como o Haut Marbuzet, faz-nos reconsiderar o conceito de vinho.

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Jantar no Tamuje. Não é bem um restaurante, é um templo de acção de graças à cozinha alenjana. Carne de matança com migas eu, secretos com batatas fritas a MJ. E o acima mencionado Balanches, claro. Que bênção... A carne bem condimentada, batatas que nunca viram um congelador, medronho de Almodôvar que me dá vontade de mudar de Mértola para aquela aldeia, aqui tão perto.

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08-03-2020, Domingo

Duas primeiras: Cacela Velha e M. L.

Cacela Velha é muito bonita, alcandorada sobre a ria de Faro, casas de bonecas bem mantidas, arroz de lingueirão feito por um deus inspirado.

Mas as pessoas interessam-me mais do que as paisagens. Por muito bonitas que estas sejam - penso no lago Tanganica, a península de Burton com as montanhas a norte e a floresta tropical a sul, penso nos Açores, nas ilhas San Blas, en Bocas del Toro, Singapura ao amanhecer, a ilha de Moçambique, revejo a chegada a Nakhodka, o canal do Panamá, a Suíça... revejo isso tudo e mantenho: as pessoas interessam-me mais do que as paisagens. Talvez sendo geólogo fosse ao contrário, mas não sou.

ML: olhos vastos e verdes como a tundra. Pergunto-me quantas vezes terá ouvido "os teus olhos são tão bonitos" e abstenho-me de o pensar, quanto mais dizer. Consigo este, falho naquele. Mulher autónoma, ideias claras e estruturadas, nada daquela bruma esotérica que tantas vezes esconde o vazio intelectual de quem nele nada. Mas isto não foi surpresa: já várias vezes trocáramos ideias por teclado interposto.

Novidade foi a voz nos registos baixos que me estonteia: vozes tectónicas a suportar uma inteligência elaborada, límpida. (O termo que me ocorre é andaimada: ideias andaimadas, bem sustentadas.) Pergunto-me quantos dos seus formandos serão como eu atazanados quando a ouvem.

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Voltamos para Mértola e outra surpresa: os irmãos Sérgio e Vítor e o pai Carlos Garcia. Estão de férias, se bem para mim isto não seja bem férias: vão de  Sevilha para Vigo em todo o terreno, os mais novos de carro e o pai de mota. Tiveram uma avaria e ficaram em Mértola, em vez de Moura, destino do dia.

O Sérgio ligou-me, completamente ao acaso e jantámos os cinco no Esquina. Outro grande jantar, outro medronho fora de série. Tenho sorte: por mais que coma e beba não engordo, não tenho problemas de açúcar no sangue, não tenho tinnitus, nada.

- Você é bom garfo, não é? - pergunta-me o cozinheiro, que entretanto já fechou a cozinha e se bate, mai-los colegas, com uma cabeça de porco grelhada.
- Não - respondo. Aponto para a barriga e concluo: - Isto é uma ilusão de óptica.

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09-03-2020, Segunda

O dia começa com um telefone da marina de Calanova. Passo os pormenores: estou demasiado farto daquela ilha para sequer me lembrar que ela existe. Faço o que é preciso e conbino com a Melanie que na quarta-feira lhe mostro os trabalhos. Deus sabe que Mallorca é linda (e a Melanie também) mas aquela gente...

Pequeno-almoço com a família Garcia, que segue o seu caminho. Eu continuo aqui: hoje o programa é ir ao Pomarão e depois comprar medronho para a Lpa. Podia ser pior.

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Secção boas notícias:
a) o Sérgio vai precisar de mim este Verão. Vou poder conciliar o P. com meia dúzia de charters. Falou-me num trabalho em Vigo como chefe de base. Não posso: o P. monopolizou o meu futuro.
b) Parece que encontrei finalmente uma casa maior em Mértola. O meu futuro tem dois monopólios a tomar conta dele. Felizmente dão-se bem. 

Diário de Bordos - Lisboa, 07-03-2020

É Lisboa outra vez, está sol e eu continuo cansado. Nada muda, ao contrário do que dizi o outro. Nada se transforma, nada - aí ele tinha razão - se perde nem se cria. Como se o mundo fosse um eléctrico às voltas a si próprio. É o que é, mas em ponto grande... O corpo trai-me. Não descansa, não faz nada senão chatear-me: ele é o açúcar, ele é o Menières, ele é as articulações, rle é os olhos. Ingrato, é o que ele é. O P. lá continua o seu caminho, montanha acima. Sísifo chegava lá acima e voltava para baixo. O P. é diferente: a cada passo que dou em direcção ao cume este afasta-se outro tanto. Estou a ser injusto: não se afasta outro tanto. Afasta-se o que eu ando para cima menos um bocadinho, microscópico. Agora temos uma data. Ao menos isso: depois dela não há cume, só há abismo.

É Lisboa, é sábado e parece que até o Sol está cansado. Páro na minha pastelaria favorita da Almirante Reis, a Continental, grande e sempre com pouquíssima gente. Os estrangeiros estão todos lá fora, claro. E eu cá dentro cansado de tudo o que ainda não fiz hoje e de tudo o que vou fazer: buscar a digitalizadora, livros, o chapéu que ontem ficou esquecido no restaurante, ir para Mértola passar o fim-de-semana. Bebo cafés atrás de cafés e a cada um fico mais cansado.

Se me apanho em Mértola amarrado a uma cadeira, feito Murphy lusitano, nem acredito.

(Até o computador está cansado. Continua.)

6.3.20

Imanência, mais coisa menos coisa

O restaurante Soajeiro pouco mudou desde que aqui vim pela última vez; na verdade, desde que aqui vim pela primeira vez.

Respectivamente há seis ou trinta anos, mais coisa menos década.

Cada vez que peço para me tirarem o chip português da mente, é por causa disto e de outras como esta que sei que não passa de um voto piedoso.

Palavras que conhecemos por fora

Sabemos o que significam quando as ouvimos ou lemos mas não as encontramos quando as procuramos. 

Louvor e simplificação da mulher portuguesa (meia paráfrase)

O restaurante está a abarrotar - nunca o conheci sem estar assim - e a senhora espera de pé, sozinha no meio da sala um lugar.

Portuguesa, de tão mulher. 

Monopólios

A tristeza é ditatorial, absolutista. A pior coisa que se lhe pode dar é algo que a contrarie, anule, lhe prove que em beve passará.

(Obrigado, A. V.)

5.3.20

Diário de Bordos - Lisboa, 05-02-2020

Fim de dia feliz:

a) Gosto de entrar em bares fechados, do cheiro a tabacum (como diria a minha Mãe, que acrescentava o sufixo «um» a tudo o que lhe parecia exagerado e portanto desagradável), dos murmúrios das conversas que ficaram do fecho, da geografia que muda porque as luzes estão apagadas e as cadeiras todas vazias. Gosto sobretudo do sinal de confiança, de amizade, que há em ser convidado para um copo no melhor bar do mundo quando este está fechado. Viva o Procópio, obrigado M. J.;

b) Desco a pé sem destino pré-fixado e passo na Livraria da Travessa. Pergunto se têm o Avenida. Têm, num expositor e não numa estante;

c) Venho ao Comida Independente, único sítio em Lisboa onde posso comer um petisco que seja simultaneamente muito bom, muito caro e parco na quantidade (não é piada; é a única forma de me fazer comer menos). Tudo estava magnífico (tudo sendo um brioche com um chouriço acebolado e mais uma dúzia de ingredientes e um vinho do Cadaval  - região da qual não sou, de ordinário, grande fã) até me lembrar de perguntar se têm «uma sobremesa que seja simultaneamente pouco doce, pequena e se deixe acompanhar por um vinho generoso, um colheita tardia, qualquer coisa assim» (aspas porque me cito). «Não temos sobremesas, mas posso improvisar-lhe uma. E vinhos assim, só Porto e Madeira. Olhe que o Madeira é muito bom».

O Madeira é melhor do que bom, é sublime e a «improvisação» (doce de leite de cabra com iogurte) uma maravilha.

Se não tivesse já uma casa ali para os lados de Anjos, o Comida Independente seria a minha casa. Talvez casa seja como vidas e se possa ter várias, não? Tenho tantas, por esse mundo fora...

[Adenda: afinal não foi assim tão caro. E se na equação integrarmos os factores subjectivos, foi dado.]

d) Compro o meu primeiro - e de longe não último - livro de João Luís Barreto Guimarães, autor que conhecia de forma difusa, osmótica. O livro chama-se «você está aqui (sic)». Maravilha de humor e sensibilidade, folheio-o docemente, como se estivesse a percorrer uma pele ferida, um corpo magoado, um olhar que tenta esconder as lágrimas atrás de um sorriso.  Que bem vai com este dia no qual me perco, tento despistar-me como uma raposa a fugir da horda de caçadores que a persegue.

4.3.20

Filtros de segurança nos aeroportos

A única coisa boa dos aeroportos é não terem ainda inventado filtros contra a tristeza.

Adenda: mentira. Nem tudo é mau. Acabo se comprar um copo de vinho à melhor vendedora de bar desde a última alteração climática.
- Tens vinho aberto? - pergunto.
A rapariga faz um olhar provocante, na fronteira do adequado e responde:
- Para ti tenho.

Só lhe faltam para aí uns trinta e muitos anos.

(Não há filtros anti-tristeza, mas há paliativos.)

Dispersas do dia - Palma, 03-03-2020

Alguns corpos fazem o desejo sorrir-me. Infelizmente, poucos mo fazem rir.

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O pianista é cansativo; mas também é verdade que o oiço há três horas. Talvez o deva felicitar em vez de criticar, não?

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Não há bolo sem cereja no topo. A questão não é essa. É: haverá cereja sem bolo?

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Para quem conhece os Carmina Burana de Clemencic, Carl Orff roça o insuportável. Para quem não tem alternativa, também. Obrigado, Youtube.

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Gosto mais das pessoas, de lhes observar os comportamentos, de as compreender antes de as conhecer, do que depois. Deve ser por isso que me esforço tão pouco.

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A diferença entre tristeza, melancolia, depressão, ansiedade é simplesmente alfabética? Não. É estética, também. Melancolia é uma palavra bonita.

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Cada vez mais me pergunto se já li o suficiente para saber ler. Quanto mais para saber pensar...

(A resposta é não, claro.)

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Saber escrever é saber não-escrever, tal como saber falar é saber não-dizer.

(Há não-dizer e não-dizer.)

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Assim se apanham os dias: aos bocados, dispersos por aí, como esses cartões vazios que o vento agora arrasta e com os quais enche as ruas da cidade: sabemos que já contiveram muitas coisas. Agora há que perceber quais.

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Pergunto-me se esparramar-me num tatami seria suficiente. Me responde: depende do tamanho do tatami. Arranja um tão grande como três Mediterrâneos e talvez chegue.

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Comprei The big sleep. Pergunto-me o que faço aqui e me responde: nada, palerma.

3.3.20

Carta abertíssima

Ó senhor da tristeza, pode dizer-me quanto tempo é que este filme dura? É que já investi uma pipa para lhe ver o fim e esta merda nunca mais acaba e a continuar assim acabamos zangados, V. e eu.

Detesto filmes que duram mais do que precisam. (E livros, mulheres, dias, tudo.)

Reconheço o seu trabalho afincado comigo, agradeço-lhe a persistência, mas agora peço-lhe encarecidamente que enrole as bobines, feche a caixa e vá para casa.

Filmes, só no cinema. Ou na cama.

Tralha

Vem a noite entrando, pouco a pouco. Com ela vêm o dia e a noite e os dias todos e as noites todas que a precederam.

Não sei se terei lugar para tanta tralha.

A descer

A vida é um escorrega. Vamos subindo as escadas durante a infância e a adolescência e quase no fim desta chegamos ao topo e sentamo-nos. A partir daí é sempre a descer.

Mentira.

O lugar no topo chama-se "quero ser amado" e atingimo-lo a qualquer idade, não tem nada a ver com a adolescência ou o seu fim.

A descida começa quando queremos ser como os outros, não depende da idade.

Tolerância

Há quem acredite em Deus, quem acredite nas medicinas alternativas, em fantasmas, no Candomblé ou no Voodoo, no socialismo ou na ideia de que o homem novo está ali à esquina, basta mudar o léxico corrente para que tal milagre se realize.

Sou incapaz de hierarquizar estas crenças (ou outras quaisquer, claro). É isso que faz de mim um homem tão tolerante.

Talvez

Talvez no fundo não haja escolha e o sarcasmo não passe da forma civilizada, suportável da comiseração.

2.3.20

Sem pré-aviso

A ideia é recorrente. Tem mudado pouco ao longo destas décadas todas que leva em ti. Provavelmente não tem resposta, nunca saberás se os dias são uma pista de patinagem no gelo para a qual te faltam os patins, se uma escada sem corrimão que ora sobe ora desce, sem pré-aviso.

Sabes onde estás hoje, não onde estarás amanhã nem como aqui chegaste? Isso preocupa-te? Não devia. Imagina uma escada com os degraus feitos de gelo, sem corrimão, a mudar de sentido abrupta e irregularmente.

Talvez um dia a escada se imobilize e o gelo derreta. Sem pré-aviso. 

1.3.20

Beatriz

A senhora chama-se Beatriz, anda pelos quarenta anos e tem uma daquelas caras difíceis de descrever ou qualificar. Não é feia nem bonita, é séria mas não banal, o olhar é vivo e prescrutador. A primeira coisa que me ocorre é: "esta mulher faz qualquer homem com quem esteja passar por um tipo sério, administrador de empresas ou alto funcionário público."

Logo a seguir entrou o tipo que estava com ela. É o maior bêbedo do bairro.

Vieram sentar-se à minha mesa, era a única que tinha lugares. Hoje tocava um pianista, um miúdo novo, vinte, vinte e poucos. O namorado, amante, amigo ou o que fosse bebia vodka atrás de vodka. A certa altura levantou-se, disse-nos adeus e foi-se embora.

Beatriz olhou para ele, depois para mim, encolheu os ombros e respondeu que ficava.

O pianista anunciou uma pausa.

- Quer um cigarro?
- Sim, obrigado.

Levantámo-nos, fomos lá para fora, tirei o maço do bolso e estendi-lho.
- Obrigado. A música é triste, não acha? Como é que se chama? Eu sou Beatriz.

Acendi-lhe o cigarro e disse-lhe o meu nome.

- É como escrever cartas de amor sem ter a quem as enviar, não é? - continuou no mesmo tom desprendido, como se me estivesse a falar da mulher a dias ou do penteado da empregada na boutique onde comprara o tailleur que tinha vestido.

Mesclas de uma tarde de domingo

«Oh! Anda ver
uma bola de neve
a arder.»

Matsuo Bashò, Japão, in O Vinho e as Rosas, Antologia de poemas sobre a embriaguês, org. de Jorge Sousa Braga, ed. Assírio & Alvim, Lisboa 1995.

«Embora não tenham limites as minhas conquistas
Para mim há apenas uma cidade
E nessa cidade um palácio
E nesse palácio um quarto
E nesse quarto uma cama
E nessa cama uma mulher
Adormecida
A jóia mais valiosa
de toda a minha coroa.»

Anónimo, Índia, idem

«Embora tenha o Sol para me alumiar
e a Lua e as estrelas depois do Sol se pôr
sem a luz dos teus olhos negros
é sempre negra a noite em meu redor»

Bharthrarit, Índia, idem

«Ela:

O teu amor penetra o meu corpo
como o vinho a água
quando o vinho e a água se misturam»

Anónimo, Egipto, idem

Chata

Está na hora de dizer adeus à noite. O dia espera-me. Não percebo porque não me larga de mão, esta chata e não me deixa dormir em paz, é para isso que ela foi feita. 

Arcos, violinos e esquecimentos

É curioso como o mesmo arco e o mesmo violino tanto podem tocar um samba como um requiem. (Não faço a mais pequena ideia se um violino pode tocar samba, mas isto não é uma aula de música.)

Bolas, esqueci-me do que ia dizer. Mania dos parênteses...