28.4.18

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-04-2018 / II

O Limoncello do Café Central em Puerto de Andratx (daqui para a frente este nome será escrito em espanhol de lei e não num destes dialectos patéticos e patetas) é uma merda. A maioria das coisas em Puerto de Andratx são uma merda. Salvam-se a Casa Vera, ship chandler; o restaurante bar Acal; o kebab cujo nome não recordo agora e o supermercado Eroski - que por ironia da sorte é o melhor Eroski que vi até hoje, sendo como sou fã incondicional do Mercadona, cadeia de supermercados que de tão boa resista à troca de duas letras do nome e tudo -. (A esta lista deve acrescentar-se a pizzeria Coppola, cujo único defeito é estar sempre cheia; e o Pepe, que é um homem sério e competente).

Quando encalhar volto para Paguera (ditto), que consegue ser melhor e mais acolhedor do que este buraco.

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Entretanto no bote as coisas avançam, devagar de mais para o meu gosto. Não posso fazer sozinho as duas principais tarefas que tinha para fazer; segunda-feira espero ter ajuda de I., um sul-africano que conheci no hotel de Paguera onde fiquei (trabalha lá mas prefere os barcos, vá lá saber-se porquê).

Gosto a priori de sul-africanos: os melhores marinheiros com quem trabalhei vêm de lá, muito perto (antes ou depois, não sei) dos holandeses. Com uma vantagem sobre estes: são dez vezes mais baratos e dez vezes mais simpáticos, apesar de falarem a mesma língua (pelo menos os boers).

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Pouco a pouco as coisas voltam ao normal. Habituei-me à vida sem Facebook e sem telefone. Este mais difícil; mas mesmo assim fica provado que era possível viver antes da Internet e da telefonia portátil. Era uma vida mais triste, mas era vida.

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Aviso à navegação: o porto público de Puerto de Andratx é quatro vezes mais barato do que o Club de Vela e dez vezes pior. A única coisa que se poupa vindo para aqui é dinheiro; tudo o resto é mais caro.

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Ajudei uns russos a atracar. Cada vez me é mais difícil fazer isto: bolas, se não sabem navegar contratem um skipper, não? Os problemas são sempre os mesmos: deixam o barco atravessar-se por falta de velocidade, demasiada excitação a bordo, o skipper que trata de tudo e mais alguma coisa (mal), falta de lugares atribuídos a cada tripulante.

(Reconheço que sou injusto: nem toda a gente aprendeu a manobrar com os holandeses da Ballast-Nedam...)

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-04-2018

"O excesso de confiança mata o homem e engravida a mulher", diz-me Pepe quando lhe conto da ida ao molho. Teria preferido um outro verbo em vez de "Mata", seria um melhor pendant para o "engravidar" que se lhe segue.

O pior, como sempre, são os ses: se estivesse grosso provavelmente não teria acontecido porque teria tido mais cuidado - não é inteiramente verdade. Uma vez no Texas fui à água de bicicleta e tudo (felizmente era daquelas mais leves do que o ar e foi fácil tirá-la de lá); se o computador não fosse meu teria tido mais cuidado - genericamente verdade, sou mais cuidadoso com o que é meu. Mas bom, para não fugirmos muito: a bicicleta supra-citada não era minha -. Enfim, seja como for: um gajo cair à água porque está grosso é mais aceitável do que cair à água por asneira, excesso de confiança (também conhecido por arrogância), paixão pelo risco (isto é, má avaliação do dito) ou simples e mais provavelmente estupidez.

Já tenho metade do problema resolvido, pelo menos provisoriamente: aluguei um laptop que chega perfeitamente para o que dele necessito; falta-me o telefone. O chip funciona, já o experimentei.

Agora é esperar que a espessa camada de auto-confiança que me cobre saia com mais um furo ou dois, como buracos de bala num armadura da Idade Média. Já tem muitos, verdade seja dita; mas ao contrário do que penso não são de mais.

A verdade é que as minhas experiências de queda no "elemento líquido" são raras, todas salvo uma nos pontões e quase sempre - há excepções, esta é uma delas - provocadas por um excesso de outro elemento líquido. Uma vez na Horta não vi o fim de um finger e entrei na água a andar, o mais direito possível. Felizmente nessa altura não havia computadores portáteis. Também já caí porque a balaustrada estava fraca, mas aí não tinha o telefone - aprendi faz algum tempo a não trabalhar com os telefones no bolso. Foi uma aprendizagem rápida: bastou-me perder alguns vinte. (Mas aprendi: a prova é que este Samsung que foi ao charco estava comigo há três anos). Para não re-mencionar a gloriosa entrada na água com uma bicicleta de titânio e carbono em Galveston, Texas, provocada por uma súbita fuga do pontão para a esquerda, ou direita, já não sei. Não caí à água: entrei nela, como na Horta. Os pescadores - de que o pontão estava cheio - ajudaram-me a sair. O mais fascinante foi que no dia seguinte não houve uma única menção ao incidente. Nada. Ninguém mencionou seja o que for. Quando fui agradecer a um deles respondeu-me "Não me lembro de nada".

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Enfim, o importante é que a marca da bala cá fique. E que a próxima queda seja daqui a vinte anos, no mínimo, quando os computadores portáteis forem à prova de água, vinho e excesso de confiança.

27.4.18

Dois recordes

Ontem bati dois recordes: o da mais longa permanência de um telefone portátil comigo (três anos, mais coisa menos coisa) e o da mais curta permanência de um computador igualmente portátil: pouco menos de nove horas entre o momento em que o fui buscar à loja e aquele em que o dito computador, mai-los telefone e eu foi parar à água.

O mar e a arrogância (a que se poderia neste caso concreto igualmente chamar estupidez - haverá algum em que não se possa?) são imiscíveis. É possível que dentro de alguns decénios a vontade de me esquartejar em bocadinhos pequenos passe. Até lá: "enterrar os mortos e tratar dos vivos".

25.4.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-04-2018

Encontro o P. melhor do que esperava. Amanhã mudo-me para bordo. Não se pode dizer que seja um hotel de cinco estrelas mas é como se fosse. Isto é: é melhor do que qualquer hotel, tenha as estrelas todas do céu se quiser. Está desarvorado, coitado, com o mastro a sair-lhe três metros pela proa e dois pela popa. Hoje tirei-lhe os vaus e comecei a tirar os brandais, andei pelos fundos - o motor já saiu -; tenho de ir a Palma buscar meia dúzia de coisas.

Há pessoas que não gostam de refits. Percebo-as perfeitamente: é como gostar de andar à beira do abismo num dia de muito vento sabendo que a pedra onde caminhamos pode esboroar-se por ali abaixo a qualquer momento. Se não for a pedra é o vento. Se não forem a pedra e o vento somos nós. Ou Deus, a existir. Ou o azar. Sei lá: o universo inteiro conjura para nos pôr lá em baixo. 

Um dia o refit acaba e é a vida: não é como queremos mas é o melhor que podemos e quando vamos a ver já é muito.

Quando o bote merece é ainda melhor, um paraíso. O P. merece.

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Paguera - o sítio onde estou até amanhã, mais ou menos a meio caminho entre Palma e Port d'Andratx - é menos desinteressante do que Port d'Andratx e menos interessante do que Palma. Três em cada duas pessoas são alemãs. Infelizmente a escola de línguas Al Almofada só funciona para quem quiser aprender alemão da Idade Média. 

Uma longa rua com restaurantes, lojas de roupa e dois supermercados  (até agora). É compreensível que os alemães escolham isto como destino de férias: não precisam de articular uma única palavra de espanhol. 

Nutria uma certa simpatia pelos boches, antigamente. Agora cansam-me. Se ao menos fossem jovens... A medecina moderna é uma maravilha mas com a modernização perdeu de vista os critérios estéticos.

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Janto na Casa Enrique, como ontem mas pior. 

Escolhi um prato em vez de tapas. Qualquer dia volto cá, para tirar dúvidas.

Isto dos restaurantes é como as mulheres em menos: não são precisos cem anos para saber se nos enganámos.

23.4.18

Auto-retrato (parece que chegou a altura de re-publicar isto)

Há coisas das quais me posso orgulhar: a liberdade, a independência, a incapacidade total, absoluta de emprenhar pelos ouvidos. Mais do que imune, sou alérgico ao zeitgeist. Sempre fui. A opinião dos outros nunca me interessou se não para aprender com eles o que não sei e ser capaz de fazer as minhas próprias opiniões. E o que pensam de mim é-me tão indiferente que chego a ter vergonha de tanta indiferença, nos dias piores - felizmente são poucos - .

Duvido a priori de tudo o que é consensual - não porque seja contra os consensos, mas porque acho que devem ser investigados e avaliados -.

Nunca me submeti à pressão de um grupo, fosse essa pressão de que natureza fosse. Não alinho em grupos, modas, clubes, partidos, sindicatos, escolas, facções ou seja o que for.

Respeito quem sabe mais do que eu quando me demonstra que sabe mais do que eu (ainda por cima saber mais do que eu não é difícil).

Não aceito argumentos ab auctoritate, não reconheço qualquer valor aos apelidos das pessoas, às suas origens sociais, ao dinheiro que têm ou não têm; - reconheço sim e unicamente ao que fazem. E quando há uma contradição entre o que dizem e o que fazem só me interessa o que fazem. Respeito as regras que devem ser respeitadas - por exemplo a cortesia e a ortografia, uma das suas variantes - faço o que posso para ser um homem decente, sou um bom pai (senão todos os dias pelo menos a julgar pelos resultados). Mas a minha adesão a essas regras é voluntária e não imposta.

Tenho uma aversão profunda, insondável e incurável a rebanhos, sejam eles do que ou de quem forem.

22.4.18

Incompreensivelmente

Não percebo nada de travestis e pouco de disfarces. Não serei portanto a pessoa certa para falar disto. A primeira vez na vida que vi travestis foi em New Orleans em 1977. Pareciam mulheres. O primeiro-maquinista e eu estávamos a fazer-nos ao bife (encorajados pelas ditas senhoras, de resto). Felizmente fomos avisados a tempo pela barmaid, que era minha amiga. Tão pouco percebo de disfarces. Detesto mascarar-me, bals costumés e quejandos.

Posto isto tudo não sei como hei-de qualificar o gajo que ficou à minha frente no jantar: um calmeirão de mais de dois metros vestido de mulher, com carteira e tudo. Mas só vestido. Barbeado, com manápulas que parecem pás de Caterpillar, mini-saia e meias de malha larga. Como aqueles gajos que se mascaram de mulher no Carnaval (coisa de que aliás nunca percebi muito bem o sentido: se são maricas ou travestis ou que for sejam-no o ano todo, como este simpatiquíssimo vizinho de mesa).

As opções sexuais de cada um indiferem-me profundamente (sem jogo de palavras), desde que não mas imponham, naturalmente. O meu lema nessa área - de uma elegância indiscutível - sempre foi "Cada um dá onde pode e leva onde quer". Mas confesso que não percebo por que raio de carga de água o homem anda mascarado. Deve ser alguma tomada de posição política e tal contra o heteropatriarcado machista, contra a opressão de género e dos preconceitos. O texto de apresentação da exposição ia nesse sentido. Mais parecia um catálogo das ideias feitas da época, é verdade. Mas a ideia central era essa. Depois vai-se a ver as fotografias e são bastante interessantes, estimulantes como se dizia há trinta anos.

Esqueci-me de perguntar o nome ao homem, coisa que me aborrece. Gostava de ter uma designação para ele diferente de "calmeirão mascarado de mulher". Travesti sempre usa menos letras, mas parece-me incorrecto pô-lo na estante dos travestis de New Orleans.

Tenho a impressão de que vou continuar a não perceber nada.

21.4.18

Over the telhado

Para além do nome e da música, que é execrável: o Roof 61 tem uma vista bonita, vinho da casa aceitável, serviço simpatiquíssimo e é extremamente confortável. 

Telhados, fogueiras e parolos

Entretanto espero pelo jantar e bebo um copo de vinho no Roof 61. Um dia esta palermada aperceber-se-á de que Telhado 61 é muito mais "in" (aspas porque cito e gozo) do que Roof. Até lá resta-nos reclamar, revoltar-nos, espernear, troçar, apiedar-nos e por aí fora. Não serve para nada se não para nos fazer passar por idiotas reaccionários, mas isso já o sou faça ou diga o que fizer ou disser. Mais uma acha não tornará a fogueira perceptivelmente maior.

Diário de Bordos - Setúbal, 21-04-2018

É preciso começar por dizer, insistir, sublinhar, repetir que o senhor é encantador. Venho com ele a Setúbal ver uma exposição de fotografia cum vídeo cum instalação.

Já lera o texto de apresentação e sabia portanto ao que vinha. Não tenho a desculpa de ter vindo ao engano.

Isto dito, a fotografia não é totalmente falha de interesse: retratos de corpo inteiro de uma senhora nua (a artista) em diversos cenários, vestida com uma capa de plástico transparente. Não ligando muito à verborreia vazia e cliché-ística do citado texto as imagens podem eventualmente levar-nos a paragens interessantes. Do vídeo e da "instalação" - a dita capa de plástico transparente, suspensa do tecto por fios de pesca ou semelhante - não vale a pena falar.

No caminho o senhor explica-me com a maior seriedade do mundo que nos anos noventa Setúbal definhou por vontade expressa do "cavaquismo" (aspas porque cito), por vingança política: "Setúbal, comunismo..." (idem, de memória). Para aquela pobre cabeça - que provavelmente é excelente no seu trabalho ("escultura e terapias quânticas, Reiki, etc" - ibidem) Cavaco foi para o governo com o fito de condenar uma cidade - provavelmente uma região - à miséria porque essa cidade ou região (a extensão é minha) é ou era comunista.

Saio da exposição e venho passear por Setúbal, cidade de que gosto bastante e onde não venho há muito tempo. A primeira paragem é outra exposição, esta de pintura intitulada 5 mulheres artistas (sic). Das cinco escapa uma, à tangente .

Serei eu o único a estar farto do feminismo, dos "géneros" e da verborreia líquida e inconsistente de quem precisa de os montar para ser visto?

E ainda por cima julgam-se na "vanguarda" (aspas porque está cheio de segundos sentidos) e não se apercebem de que não passam de mais um no rebanho, vozes afinadinhas do coro Zeitgeist, coro imortal e tão antigo como o gemido.

Danos colaterais

Convivo bem com a diferença de opiniões, com a diversidade. Seja ela de que ordem for. Em contrapartida - e para meu grande désarroi - cada vez tenho menos paciência para a falta de rigor intelectual.

A questão não está exactamente no confronto de ideias diferentes, mas no de ideias construídas e pensadas de um lado e ideias tipo pombinha do Espírito Santo do outro.

Dano colateral do ateísmo, suponho.

Diário de Bordos - Lisboa, 21-04-2018

O dia está chuvoso, cinzento e chato. Tempo de amar e ler, alternadamente: um capítulo, um beijo. Talvez uma sesta depois dos capítulos e dos beijos, vai saber. Em vez disso escrevo-te esta meia dúzia de disparates, só desculpáveis porque estou de largada. Terça volto para Mallorca, novo do coração aos documentos. Só me falta o computador para tudo voltar ao statu quo ante.

Como se fosse possível. Não é. Uma vez fora do tubo a pasta de dentes não volta para dentro. Antes usá-la até ao fim.

20.4.18

Terceira carta a Pandora

Lisboa, 20-04-2018

Navego os corpos que conheço tanto como os que desconheço. Não me aproximo porém dos que não me atraem. Saber não é sinónimo de querer, tão pouco como desconhecer.

Querer não tem sinónimos; querer-te ainda menos, mas tem um e só um complemento directo.

Talvez não: navegar-te. Imaginar que és um mar e a embarcação, marear-te os panos, definir-te o rumo, dizer-te "Vamos. Larga as amarras". Pegar-te nos bicos dos seios, beijar-te os lábios,  percorrer-te os braços, o ventre e as coxas, virar-te ao contrário.

Tocar-te, ver-te, perder-me.

Não me perco quando navego. Não me perderei quando te navegar.

P.

19.4.18

Rios, lagos, mar, vidas, pensar

Vastos rios subcutâneos; um deserto debaixo do qual cresce uma floresta; um mar que um dia secará ou já esteve seco. Não passamos de metades - duas metades coladas uma à outra -. Planícies inundáveis com uma gota de sangue, uma lágrima; ou iluminadas por um sorriso. Montanhas humildes percorridas por avalanches benéficas, chuvas ingratas, ondas de calor na Sibéria.

Onde estás? Querer pôr ordem neste magma é como fazer uma barragem num rio de lava; ou instalar uma rede para te protegeres dos iões. Pensa nisso: a ordem queima, mata, asfixia. A lava também. Não há nada que não queime; morre então a fazer o que queres. É a isso que se chama viver. Só os mortos fazem o que devem.

Pensa num lago: se tens de morrer afoga-te no mar. Se tens de viver escolhe o sal. Pensa no mar.

Não penses.

18.4.18

Diário de Bordos - Lisboa, 18-04-2018

A caminho de casa comprei um Baga: Ataíde Simões. Não é espectacular. Gosto de castas difíceis, como de pessoas, de resto: Baga, Jaen, Alfrocheiro (das pessoas não digo o nome. São muitas, esqueceria metade e de qualquer forma não gosto de citar nomes neste blog. Estar associado a mim não é propriamente uma condecoração). A este falta-lhe o passe de mágica de Luís Pato, ou o da filha. Mas acompanhou bem as favas, hoje estavam melhores do que ontem - poderia dizer "ainda melhores": cozinhar aceita faltas de modéstia -. Enquanto jantava ouvia Brahms. Nunca gostei muito da música do século XIX, mas ando cada vez mais inseguro de gostos (excepto os referentes às pessoas, claro. E aos vinhos).

O jantar foi bom e tranquilo. Pensava no livro de Josep Pla que estou a ler (Viagem de Autocarro) e se um dia escrever um livro de viagens não será muito diferente: todas as viagens são interiores, todas são reminiscências mesmo quando vamos pela primeira vez a um sítio (o que não é o caso do livro).

Teria preferido Rachmaninoff, Hildegard, Mahler? Outro vinho? Outra coisa em que pensar? Não. Descobrir é um prazer em si, qualquer que seja o resultado da descoberta. Destruir os nossos próprios preconceitos e substitui-los por outros dá tanto prazer como confirmá-los.

Abençoadas favas.

17.4.18

Sequências urbanas

Um gajo perde-se a vir do Parque das Nações para o Saldanha de bicicleta e descobre um universo paralelo. Vários: ora parece que está no campo, ora atravessa bairros de lata, ora está numa versão violenta de uma aldeia do faroeste.

E tudo isto enquanto faz exercício, o qual desencadeia uma fome gigantesca que acaba saciada com uma soberba feijoada à transmontana, seguida por uma sesta num banco do Jardim da Estrela. E ainda há quem não goste de bicicletas.

15.4.18

Segunda Carta a Pandora

Lisboa, 15-04-2018

Minha querida Pandora,

Não abras a caixa. Uma vez soltos os demónios não se deixam apanhar: a liberdade é um vírus e eles não são diferentes de nós. Quem tendo sido livre escolheu voltar para a prisão  que lhe foi imposta?

Tu não e eu tão pouco: nunca não fui livre, nunca deixei um único demónio com fome ou sede de uma carícia, nunca desde que te conheço deixei de te pensar livre.

Mas disso nada sei: que sabe uma nuvem sobre as nuvens, excepto talvez saber a que dá mais água, sombra, neve, vento?

O ideal seria escrever sobre o que sei. Conhecer-te a pele, as mamas, o ventre, ter-te despenteado o cabelo e sido visto por esse olhar transparente, como tu lhe chamas; beijado dos lábios aos pés, ouvido gemer os gemidos que te dei.

O ideal porém morre numa praia, não é?

Um dia trar-te-ei o fogo e enterrar-to-ei fundo, de onde nunca mais sairá; as ruas da cidade serão tuas para sempre.


Prometeu

14.4.18

Primeira carta a Pandora

Lisboa, 10-04-2018

Minha querida Pandora,

Ao longo dos anos fui aprendendo que se a pila e as palavras apontam para a mesma mulher ela é importante. Significativa. Cheia de sentido.

Isto é. Quero dizer: sempre tive a pila vagabunda e as palavras errantes, tu sabes, conheces-me como se me tivesses feito. Só algumas mulheres - raras - conseguiram alguma vez dar casa àquela e direcção a estas. Às vezes coincidiam a casa e a direcção, mas nunca consegui antever essa por assim dizer coincidência e muito menos compreender o seu valor.

Hoje não só sei a raridade que é ter duas agulhas a apontar para o mesmo Norte como aprecio desmesuradamente a coincidência, talvez por o ser cada vez menos. As mulheres que me atraem atraem-me todo, por atacado como se dizia antigamente nas lojas, venda ao retalho e por atacado, não era?

O atacado agora é só um, inteiro, pila e palavras "Quer que embrulhe?" "Não é preciso, obrigado, isto mal chegue a casa vai ser posto a uso, uma e outras" "Óptimo, que lhe façam bom proveito".

Bom proveito fazem, tanto mais que é a dividir por dois e estas coisas quando se dividem multiplicam-se.

Não abras a caixa, mas junta-lhe as palavras e o desejo erecto e duro. Saberás como fazê-lo.

Teu,

Prometeu

Beatriz

"Falemos então de marinheiros bêbedos", dizia-me Beatriz no Bar Subterrâneo, um bar que comecei a frequentar vai para cima de dez meses, ou talvez dez anos, é estranho como tenho melhor memória para números do que para as palavras e digo isto apesar de me lembrar perfeitamente das palavras dela: "falemos então de marinheiros bêbedos".

Disse-lhe que isso era simultaneamente um mito e uma redundância, um pouco como falar dos cabelos "de Beatriz", uma espessa cabeleira ruiva que ela insistia em cortar apesar de eu me opor veementemente.

"Cabelos de Beatriz" tornou-se assim desta forma lenta uma palavra de código entre nós e designava coisas de que não queríamos falar, coisas que sabíamos estarem ali ao alcance da memória mas não ao da mão,  coisas que se nos escapam de tão fluidas e tão densas ao mesmo tempo, como as bebedeiras de um marinheiro quando chega a terra ou os cabelos ruivos de Beatriz quando ela excepcionalmente não os cortava e as minhas mãos - essas mãos que tantos copos haviam levado à boca - se neles perdiam sem se perderem,  como um navio no temporal: não está perdido, mas está e assim nesses cabelos, nesse temporal se as minhas mãos divagavam enquanto eu lhe dizia aos ouvidos o mar e lhe falava de ténue linha que separa um sonho daquilo em que ele se torna, uma linha ténue mas preenchida, vivida, feliz.

Beatriz não respondia,  deixava-me às mãos as palavras, cada carícia era uma sílaba e quando completava uma frase dizia-me: "é bom ser amada pelas tuas palavras", mas eu queria amá-la com as mãos e com a pele toda e por isso continuava e ela cortava o cabelo para eu me reencontrar, acabar com o temporal e voltar ao que sou: um velho marinheiro bêbedo apaixonado pelos cabelos ruivos de um temporal.

Sorte, azar?

No fundo, talvez se possa definir "ter sorte" como "poder esquecer o azar". Os azares, se preferirem.

Ter sorte não é não ter azares; é poder esquecê-los.

12.4.18

Post sobre a incompreensabilidade da mudança e da imanência

O bar Snob já esteve - geográfica  e categoricamente - entre o bar Irreal e o Procópio. Hoje não está: lidera uma categoria à parte, chamada "Doce melancolia da decadência". A geografia mantêm-se, claro. Tudo se mantém. Poder-se-ia dizer que a decadência é feita disso, de tudo ficar como era.

Não é verdade: o bar Procópio é o melhor bar do universo (meço as palavras) apesar ou por causa de estar igual ao que era. (Só faltam os filmes de Charlot).

O bar Snob está igual e por causa disso ficou diferente. Não percebo o suficiente de gestão de bares para explicar este fenómeno.

Não percebo nada de coisa nenhuma, essa é que é essa.

A vida

Todos os bares do mundo deviam ser iguais ao bar Procópio. Os outros podem se quiserem ser como o bar Irreal. Entre os dois não há nada, só vazio (nada e vazio são coisas diferentes).

É um bocadinho como as mulheres, mas não consigo explicitar claramente as analogias. Não quero ser batido, já me basta a vida.

Vastas mas breves considerações sobre dois bares de Lisboa, do mundo

O bar Procópio, sito em Lisboa é  - relembro para os mais distraídos - o melhor bar a Sul do pólo Norte, a Oeste do Meridiano de Greenwich e a Leste da Linha Internacional de Mudança de Data. Ao contrário do bar Irreal tem o melhor barman do mundo, mas seria inadequado compará-los porque não jogam na mesma liga. Não jogam sequer o mesmo desporto.

O bar Irreal é alimento para o pensamento e o Procópio um spa para a alma.

Podia perder muito tempo com considerações filosóficas, mas não me parece curial: quem tem alma e gosta de Alexanders bem feitos vai ao Bar Procópio. Quem não tem não vai a lado nenhum e está muito bem assim.

Os outros vão ao Irreal. 

11.4.18

A cidade e as serras

O bar Irreal tem simultaneamente a melhor música de Lisboa e a pior barmaid, o que explica parcialmente porque gosto tanto dele: os opostos atraem-me.

Sobretudo se forem concomitantes com whisky irlandês do bom a quatro euros o copo. Ou seja: boa música, bom whisky irlandês a preços adequados, uma localização muito apropriada e uma barmaid terrível: melhor do que isto nem no campo.

Hallelujah!

Quatro dias de hospital terminam com umas ginginhas Sem Rival e petiscos no senhor David: os melhores torresmos que conheço em Lisboa, idem para os filetes de choco e para as pataniscas. O tinto é bastante aceitável e o piripiri ao nível dos torresmos.

Não posso dizer que fui maltratado, antes muito pelo contrário, com a notória excepção da primeira noite nas urgências. Essa seria traumática se eu fosse dado a traumatismos. Não sou. Já vi hospitais no Burundi, no Zaire, no Panamá e sei que há pior. Mas também já os vi na Suíça, nos Estados Unidos e na Alemanha e sei que há melhor.

Que se lixe. Agora só é preciso exprimir aqui o meu agradecimento a quem me tratou, conjuntamente com a minha admiração. E celebrar, celebrar sem fim nem fundo: tenho uma máquina que compensa largamente as múltiplas deficiências do órgão que lhe está por cima. Usemos as nossas forças e desprezemos as fraquezas.

Tenho sorte, fui bem feito. Isto não tem nada de talento. Se há aqui algum know how ele consiste simplesmente em saber fazer das fraquezas forças.

Hallelujah!

8.4.18

Diário de Bordos - Lisboa, 08-04-2018

Numa pequena nota à parte e que não tem nada a ver: não sabia que as faculdades de Medicina têm critérios estéticos para a admissão de jovens estudantes do sexo feminino tão severos como os das notas. São todas bonitas, muito mais do que o acaso permitiria se não houvesse os tais critérios.

Antes assim. Um gajo sentir a realidade entrar-lhe pelas orelhas, pouco a pouco, sílaba a sílaba é bastante menos doloroso se as sílabas - ou a realidade, como preferirem - saírem de um bonito palmo de cara.

(Hoje tive um bónus e foram duas as caras bonitas).

A realidade é chata, mas não dramática: o meu coração não é fundamentalmente diferente do das outras pessoas do meu género e idade. Não sou muito dado a grupos e fazer parte deles nunca foi um grande objectivo para mim; este - o das pessoas com riscos cardíacos - é vasto e aparentemente inescapável. Fico a sabê-lo por uma voz calma, sorridente, simpática, que me explica o que vou fazer, os riscos, as escolhas. Optei por ficar: não quero que isto volte a acontecer e muito menos no mar. São sessenta anos que valem por cento e vinte ou cento e oitenta. Vivi muitas vidas, altos e baixos muito baixos e muito altos.

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E preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma? Não será antes É preciso que nada mude para que nada fique na mesma?

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Enfim. Tenho livros, amigos e filhos, um grupo de pessoas que trata correctamente de mim em condições adequadas e energia para o que aí vem.

Não tenho de que me queixar, mesmo que isso implique integrar um grupo.

7.4.18

Léxico hospitalar

Ninguém gosta de passar um monte de horas num hospital, mas esse desgosto pode ser atenuado pelo enriquecimento do vocabulário.

Hoje por exemplo aprendi o termo "enfartar" (fazer um ou nais enfartes) e fiquei a saber que tenho uma "auscultação inocente" (aspas porque cito, verbatim).

Tudo em mim é inocente, doutora. Até - fico a sabê-lo graças a si - o que não controlo.

Da solidão

A maioria das pessoas que fala da solidão não sabe do que fala. É como se comentasse um livro que não leu ou tendo lido não percebeu.

Impenetrável

Seria talvez melhor começar por dizer que estas coisas não se dizem. Imprescindível: cabelos revoltos e densos como alguns desejos desordenados, pesados como granito; hercúleas resistências que nem a distância explica; a subterrânea propagação de dois corpos que nada faria encontrarem-se e um dia se desencontraram. Foi assim: a cada palavra correspondia um olhar; a cada frase uma carícia na densa floresta dos cabelos negros; a cada parágrafo uma escalada no desejo.

Do amor nunca sequer foi questão: algumas ausências são mais aparentes do que uma miragem no deserto. Aparentes, quero dizer:

De cabelos densos e revoltos a imagem apenas. Aparente. De um corpo estendido e expectante outra aparência. De um olhar simples como o monossilábico imperativo de um verbo.

Imperativo impenetrável. Do desejo não mais foi questão .

4.4.18

Alfabetos do amor

Penetrar-te com F grande, o maior que alguma vez me aconteceu e amar-te com o mesmo F e um A tão grande ou maior, acariciar-te com as M mais suaves que terás sentido, olhar-te com a pele mais bela que alguma vez terei visto.

Misturam-se-me as letras como te misturas tu comigo, com a vida, com os sentidos como se os sentidos tivessem letras e a vida não passasse de um alfabeto caótico do qual emerges como uma maiúscula num oceano de letras pequenas.

Diário de Bordos - Aeroporto de Madrid, Espanha, 04-04-2018

Enquanto isso, no pior aeroporto do mundo (do meu mundo, claro; não falo pelo dos outros): um gajo sente-se espoliado, extorquido, chantageado ao almoço. Antes disso aconteceu-lhe pela primeira vez uma coisa fantástica, no sentido primeiro do termo: o avião foi para um terminal, a bagagem para outro e ninguém disse nada a ninguém. Trocando por miúdos: a manga estava no Terminal 1 e nos monitores para os carrocéis das bagagens o voo não aparecia. Ao fim de um quarto de hora um gajo decide perguntar a um senhor velhote, de bigode e badge ao peito. "Ah, se o seu voo era Norwegian as bagagens estão no Terminal 2".

Inútil dizer que o terminal 2 fica para lá de Konamair Street, as indicações são sub-realistas (o termo é pedido de empréstimo) e ir, vir, fazer o check in para o voo seguinte (tenho dois bilhetes, à dúzia é mais barato) foi mais de uma hora. Ou seja: decidi - erradamente, vejo agora - não ir a Barajas, vila que apesar de tudo consegue ser mais apelativa do que o respectivo aeroporto - e andei por aqui perdido à procura de um sítio para comer.

Calhou-me o Coffee and Baker Santagloria (sic), para provar que se uma coisa corre mal tudo correrá a seguir, como nas maratonas de Nova Iorque e outras cidades.

Está quase a acabar este purgatório. Ao menos isso: o vinho é caro, as sandes más e caras, mas acaba tudo deglutido.

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No filtro para entrar no espaço alfandegado a senhora felicita-me pelo meu "paisano". Não percebo e pergunto-lhe quem. "O Ronaldo. Não és português?" (A frase soou como "O Ronaldo, estúpido. Não és português?")

Vi o golo e mesmo eu, que não gosto nem quero gostar de futebol reconheço que é bonito. É como as jogadas no bilhar, antigamente havia um canal de televisão que transmitia jogos de snooker e outras modalidades: são muito bonitas, mesmo quando não se percebe nada.

Adenda: o bilhar tem uma qualidade suporifera que o futebol não tem. Por isso o prefiro.

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Uma das características mais irritantes do aeroporto de Barajas (já aqui a mencionei) é fazer-me esquecer tudo o que tenho aprendido nestas longas e inúmeras viagens.

Da última vez isso custou-me uma hora na aldeia ou vila ou seja o que for de Barajas, porque me esqueci de ler o cartão de embarque como deve ser. Hoje esqueci-me de que as probabilidades de um voo no fim do dia da Easyjet estar atrasado são iguais às que eu tenho de ganhar o Totomilhões.

Infelizmente voo mais frequentemente na Easyjet do que compro os diferentes Totós Milhões.

Adenda: o voo acabou por sair a horas, apesar do embarque tardio. Parabéns Easyjet. Vou continuar a não comprar loterias.

Serviço público - Bares, cafés e laranjadas, Palma de Mallorca

O Bar Sta. Eulália na praça do mesmo nome tem tapas boas, baratas e "caseiras" (aspas porque cito, não porque duvide da palavra dos senhores, que por acaso até são senhoras, tanto quanto sei pelo que a U. da Sifoneria me disse, já que foi ela quem me sugeriu o estabelecimento) e fica perto da Literanta. Isto é: um lugar ideal para se ler os livros que se compraram dois minutos antes, numa praça muito bonita (em Palma poucas o não são, mas isso é outro departamento).

O Bar 7machos (sic) fica em Sta. Catalina, o quarteirão "hot" (entre aspas porque felizmente de "hot" não tem nada, apesar dos yachties gostarem de pensar que tem). É o lugar ideal para quem tem uma crise de fringale a meio da noite (desculpem a exibição de francesismo, mas é o único termo que me parece adequado de entre a vasta quantidade de línguas, dialectos e outros idiomas que domino fluente e perfeitamente. Já agora: significa "uma grande quantidade de fome"). Tem nachos e tacos impecáveis, sem filas pelo passeio fora, rápidos e bastos, como convem quando se tem uma fringale. Isto dito, uma coisa curiosa que ontem me ocorreu enquanto fazia de árbito entre a fome e a montanha de nachos que tinha pela proa: a comida mexicana não se exporta. Nem no Texas, nem na Flórida, nem em lado nenhum fora do México comi mexicano (salvo seja, claro) tão bem como no México.

O Bar Corner é o ponto de encontro dos ditos yachties e não tem ponta de interesse, excepto quand se vai de Sta. Catalina para casa e o canto fica no caminho. É um canto sem encanto.

O Bar Rita... ah, o Bar Rita. esse vai passar para o pódio. Ontem tive uma daquelas cenas que só em Palma, que me fazem amar Palma. Cheguei ao bar e perguntei se tinham a) um lugar onde ligar o computador porque - precisei - está sem bateria e b) wifi. O homem disse-me que sim e acrescentou (sorridente e bem educadamente) "mas olha que isto não é um escritório". "Claro, hombre", respondi no meu melhor espanhol e de caminho aproveitei para encomendar umas hierbas secas

O rapazinho que me trouxe a bebida deixou-a cair mesmo a chegar à mesa. O copo escorregou-lhe da mão e caiu. Molhou um bocadinho do computador, que já estava aberto na mesa, mas a maior parte do líquido caiu ao lado. Desculpas, limpezas, etc., salto para a frente. Bebi três hierbas (num prazo de tempo relativamente longo, não vão os leitores pensar que sou um bebedolas. Digo porque é importante para a história, como poderão verificar já de seguida) e quando ia a pagar o homem - o mesmo que me tinha dito que aquilo não é um escritório - diz-me "não pagas nada. Quem vai pagar é ele" - e aponta para o rapazinho, mas a rir, numa boa onda, passe o exoterismo. Eu insisti "Oferece-me uma e eu pago duas, vá". E ele que não e pronto, vim-me embora.

Rita é sem dúvida nenhuma um nome mágico, aquele bar é mágico e eu tenho uma sorte do caraças, essa é que é essa. (Se bem a descoberta do sítio se deva mais ao meu hábito de me perder pelas ruas de Palma em vez de ir directo pelos caminhos que conheço. Uma daquelas sortes para a qual se trabalhou muito).

Em ti, vamos

Ou seja: vamos transformar em palavreado visível as palavras que se me atropelam no teu corpo.

- Dar-lhes uma sequência mais ou menos lógica;
- Torná-las apelativas para quem as lê (como se os leitores estivessem a ver-te);
- Fazê-las passar-te pela tua pele, olhos e pelo resto de ti, devagarinho;
- Deixá-las escorregar lentamente em ti.

Vamos.

3.4.18

Em favor do rum Mount Gay e outras preces

Acabo a noite no Corner Bar. É a coisa mais deprimente e degradante que me pode acontecer em Palma. Que gente tão triste. E os preços são absurdos: mais de seis euros por um Mount Gay? Pata que os pôs. Detesto o capitalismo. O rum Mount Gay devia ter os preços limitados administrativamente. Nunca mais do que um euro a dose tripla. Não me venham cá com os custos do transporte, mão-de-obra, rendas, impostos e mai-lo diabo a sete. Um euro cada copo cheio, sem gelo.

Diário de Bordos - Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 03-04-2018

Palma tem em comum com Lisboa serem cidades nas quais é melhor perdermo-nos do que conhecer o caminho.

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Novo poiso, para sempre: Bar Rita, Plaça Llorenç Bisbal, 13. Um misto de Tati e Irreal sem a música ao vivo. Depois dos BFF temos os BBF: Best Bars Forever.

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Um dos inconvenientes da Sifoneria (tem muitos: o espaço, que é rústico e adorável; a dona, linda e simpática; os vinhos bons e os preços baixos) é estar perto de uma livraria chamada Literanta. Não é tão bonita como a Babel, porque morei ao lado desta muito tempo (alguns três meses) e só de passagem via aquela.

Dá-se porém um facto inelutável: cada vez que saio da Sifoneria passo à frente da Literanta e hoje vi um livro na montra (esta oração dispensa complementos).

Chama-se Pequeno Tratado de Todas as Verdades sobre a Existência. É um título ao nível de Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Só depois de o comprar vi que a autora é francesa e falhei portanto a decisão de só comprar livros na língua original, se for uma das que leio.

Que se lixe. Pelo que vi do que folheei vale a pena comprá-lo até em esquimó.

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Por que raio de carga de água as traduções espanholas são quase tão boas como as francesas e as portuguesas são a merda que toda a gente sabe?

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As mulheres queixam-se muito dos homens; eu não me queixo das mulheres, muito antes pelo contrário. Excepto numa coisa: algumas entram-nos pela cabeça adentro e não saem. Fazem-me pensar num livro da Ali Smith chamado There But For The: o hóspede de um convite para jantar fecha-se num quarto da casa dos anfitriões e lá fica por meses.

O livro é absolutamente sublime. As mulheres que por simples e evidente indelicadeza não nos largam a cabeça não.

Abandono

Cada vez que deixo um barco acontece o mesmo: sinto-me como se fosse ele que me deixa. Como quando uma miúda que eu amo me deixa antes de tempo.

2.4.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-0402018

Sacana do cansaço colou-se-me à pele e não me larga, sanguessuga maldita. Hoje não há razão nenhuma para estar cansado como estou e a verdade é que continuo cansado, um peso em cada braço e outro maior em cada perna. Isto só se resolve de cama e panos quentes, mas amanhã não é a véspera do dia em que os terei e mais vale descansar-me e pensar noutra coisa.

Enfim, terça vou para Palma e quarta para Lisboa. Chateia-me deixar o P. assim mas tem de ser. Quando regressar em Maio já o motor estará fora, o mastro em baixo e os brandais inspeccionados e se necessário reparados. Depois é só substituir machos de fundo e passa-cascos, impermeabilizar o convés e a quilha, pôr o novo motor, substituir o poleame... Nada do outro mundo. Acho que estou cansado por antecipação do que aí vem.

Não sei. Pouco me interessa, na verdade. Só quero parar meia dúzia de dias, não é pedir muito.

Uma vez cheguei a Brighton de uma travessia do Atlântico num 60' que não tinha piloto nem enroladores (era uma goeleta. Linda de morrer) e quatro dias depois estava a bordo de um 32' para Lisboa e depois Palma. Hoje fá-lo-ia?

Claro que sim, estúpido. Cala-te e dorme. 

Palavras, andaimes

As palavras precisam de sustentação, de algo por trás que as não deixe cair: os sentimentos.

A imagem que me ocorre é a dos andaimes que eu montava quando trabalhava numa empresa chamada TPH (Toujours Plus Haut, isto não se inventa) e o meu trabalho consistia em - exactamente: montar andaimes, toujours plus haut -: as palavras são as pranchas de madeira e os sentimentos as peças em alumínio sobre a qual se apoiam.

Todas as palavras, mesmo os substantivos, o mais simples dos artigos, os advérbios e os pronomes, os verbos intransitivos tanto quanto os transitivos, os adjectivos (meu Deus, os adjectivos)... Todas precisam de um andaime. Sem ele não passam de sons vazios, formas ocas, vãs e condenadas a desvanecer-se ao primeiro sopro.

(Para a L., andaime de muitas palavras).

1.4.18

Domingo de Páscoa - II (continua, espero)

Não acredito em belezas complexas, complicadas. A beleza ou é simples ou não é.

Paz, calma, boa música tocada por um tipo competente, borrego para cima de muito bom, uma paisagem linda, óptimo vinho tinto, a edição da semana passada do FT Weekend, uma empregada com quem me casaria já se ela quisesse (do que duvido e pelo sim pelo não não lho pergunto), Roberto Calasso (a quem decidi dar mais umas páginas, isto dos raptos torna-se viciante): querem beleza mais simples?

Domingo de Páscoa - I (cont.)

Pouco mais de dez nós de vento, sol, "le fonds de l'air est frais", música excelente, vermute seco, paisagem linda, leitura adequada e abundante.

Daqui a pouco vem borrego, trazido pela empregada mais adorável de que me lembro.

Melhor, só se não estivesse sozinho. Como estou, melhor é impossível.