1 - Porreres
O carro trouxe-me a Porreres, aonde parei para um café e uma coca de albaricoque, especialidade local que se fosse traduzida daria provavelmente bolo de pêssego. Tanto o bolo como o fruto são bastante agradáveis. Logo à tarde vai haver uma festa em honra do dito pêssego, os restaurantes e cafés terão menus especiais à base dele e estou cheio de pena de não estar cá mas estarei do outro lado da ilha, se o carro quiser e eu deixar.
Porreres - pelo menos a pequenina parte dela que vi e vejo - é uma aldeola igual às outras com a sua praça, um café com o nome apropriado de S'Escrivania (bonito e bem arranjado, por sinal) e estas casas cor da terra, parece que dela saíram e não que foram construídas. A azáfama da preparação da festa é visível. Ou melhor: sente-se. Não salta propriamente aos olhos.
2 - Sineu
Próxima paragem, Sineu. Via Petra, não estamos aqui para andar em linhas rectas. Desta vez fui eu que impus o destino. O carro estava claramente a preparar-se para me levar a Colonia de San Jordi comprar hierbas e quem sabe comer no Hostal de la Playa. Não, meu caro. Não. Um dos objectivos deste passeio é ver terra. Outro é ir a sítios aonde não vou com frequência. Colonia de San Jordi não responde a nenhum destes critérios. Quanto às hierbas, ainda há a bordo.
Ou seja: bordo a terra. Guina a bombordo tudo. Carrega-me esse leme e vai para onde te digo.
Passo por Petra sem parar, só para vet a igreja. Nunca percebo como cabe coisa tão grande numa aldeia tão pequena. Em Sineu o restaurante dos holandeses (?) ou está fechado ou é um hotel, de maneira sento-me ao acaso - isto hoje é dia de S. Acaso, está visto - numa das tascas da praça. Tasca é uma inexactidão grosseira mas não faz mal. O tempo está chato e não faço - nem tenho vontade de fazer - fotografias. Pergunto-me se é só o tempo, se não o estarei eu também. Como não tenho resposta, pego na carta da ilha (está no telefone onde escrevo) e penso no futuro próximo. Reassumi o comando da embarcação, de maneira estas chatices são para mim.
Rota: Muro, Sa Pobla, Alcudia, Port de Pollença. Daí logo se verá, mas o mais provável é fazer escala em Soller. Logo se verá, que não estamos aqui para ver ao longe. Com a possível excepção de amanhã, se o tempo estiver bom: vou à praia.
3 - Soller (ou melhor: Port de Soller)
Chego ao Port de Soller (doravante Soller) à hora a que uma parte das hordas começa a sair. A outra já está sentada à mesa para jantar. Jantar às seis da tarde,
"... antes do anoitecer suavíssimo dos deuses
antes do começar da sombra rente às árvores..." Ruy Belo dixit.
Sento-me na esplanada do Payesa, a única coisa ainda mais ou menos potável, penso na beleza deste dia, desta terra, espero que os deuses anoiteçam suavemente. Fiz o que tinha a fazer em Pollença, tentei ir ao cabo Formentor mas o estacionamento estava cheio e não me apeteceu procurar um lugar, com tantos carros cá em baixo aquilo lá em cima estaria insuportável e depois vim para Soller pela Tramuntana, decidi que daqui vou para Palma pela autoestrada e que amanhã venho por Andratx e vou até Estellencs ou mesmo mais, talvez Banyalbufar ou Valdemossa mas não mais. Tudo isto resultado de uma tão violenta quanto silenciosa batalha entre o bom senso e o resto de mim, batalha essa que o resto de mim ganhou. Como de costume, seja Deus louvado.
Pelo menos até ver.
Soller continua esta bacia de beleza. A menos de se estar sentado mesmo em frente da boca da baía parece que se está num lago, um micro-lago cheio de barcos e de silêncio. Bebo uma vodka com sumo de laranja natural, olho pela milésima tricentésima quinquagésima sexta vez para as montanhas e penso que este é um dos raros sítios aonde o excesso de construção não estraga a paisagem. Talvez porque "excesso" é um exagero. Ou porque isto é demasiado bonito. Ou porque simplesmente não me apetece que nada estrague nada. A verdade é que as casas e os barcos fazem um continuum harmonioso, maneira pouco subtil de me lembrar que também eu - até eu - terei um dia uma casa outra vez. E terei então a sorte de ter uma casa e ter tido uma vida antes dela.
O Payesa é o único estabelecimento da marginal de Soller que ainda apresenta alguns locais, por vezes sozinhos por vezes em grupo. Nos outros já só se ouve falar alemão e por vezes um pouco de inglês e francês. Há muitos franceses aqui. À tarde não tem comida: fecha às oito, diz-me a senhora, pesarosa. Às oito? Se isto não é resistência não sei o que é resistir.
Um dia também o Payesa desaparecerá, transformar-se-á em manjedoura para turistas, jantares às seis da tarde e cocktails "de autor". Contudo, as montanhas ficarão, as casas continuarão a olhar para os barcos com inveja e estes em troca dar-se-ão ares de gente vivida, como se saíssem muitas vezes do porto.
(Cont., se calhar.)