29.2.12

Amar, amado

Ser amado é simples: basta amar. 

Talvez seja tarde para descobrir isto, não sei. Mas sei que não é demasiado tarde.

Diário de bordos - 290212

A livraria chama-se Poeme-se. É bonito.

Hoje vi uma publicidade a uma escola de inglês. Uma frase dizia "Rua de Portugal", mas Portugal estava riscado com uma cruz encarnada, e por baixo tinha "Inglaterra". A conclusão era "Se nós tivéssemos chegado primeiro a história seria outra". 

Mudei de hotel. O quarto não é melhor, mas pelo menos é branco, luminoso. E está a dois minutos a pé do Cafofinho da Tia Dica, meu escritório, sala de internet e sala de jantar.

Raimundo da Costa Pereira vende, no mercado da Praia Grande, (ou Casa das Tulhas, ou Casa da Praça, ou uma infinidade de outras coisas) uma bebida - ou melhor, três - que ele garante serem afrodisíacas e eu garanto serem boas. Chamam-se Fogozinho, Fogozão e Fogozada (das três provei duas; são essas cujo gosto garanto. Mas por favor não me perguntem quais foram).

Não há mercado no mundo que não tenha o seu Raimundo da Costa Pereira (sr. Costa, para os amigos e daqui em diante). Adepto fanático de um clube de futebol chamado Corinthians - ao qual, promete, será fiel até à morte - o sr. Costa perora longamente sobre a política local, a micro política local, a história da Casa das Tulhas, as suas conversas com vários e proeminentes políticos. Mas quando lhe faço uma pergunta simples ("quem construiu o espaço onde estamos?") ele não sabe, hesita, tergiversa.

As paredes do seu box estão cobertas de tudo o que diz respeito ao Corithians e a ele próprio, sr. Costa. Uma senhora com cara de socióloga (sem ofensa) acompanhada por um senhor com cara de músico popular (não é um elogio) ouvem-no com atenção. Quando faço a pergunta olham-me reprovadoramente (antes tinha perguntado ao sr. Costa o que estava a beber, e ele disse-me "uma bebida afrodisíaca, etc. - foi muito longo, não retive tudo - e a senhora com cara de socióloga olhou para mim com um sorriso).

Gosto muito dos senhores Costas deste mundo porque ajudam a passar o fim de uma tarde.

Uma vez escrevi uma ode (não é imodéstia, é falta de vocabulário) às cidades em geral e a Lisboa em particular. Hoje poderia acrescentar meia dúzia de coisas à secção "cidades em geral" desse post: o prazer simples, mas generoso, que é almoçar num restaurante onde não tenho de pesar o que como; o prazer, ainda mais simples e ainda mais generoso de ir beber um café e comer um  croissant (mesmo sendo cinco da tarde, e o croissant sendo da família dos densos) numa pastelaria - não era bonita, reparem, apesar de pertencer claramente a um francês, mas era uma pastelaria -; poder escrever este post numa rua onde passam pessoas, e não motas de som, carros de som, bicicletas de som (e algumas dessas pessoas são bonitas, ma foi). E posso jantar "até à meia noite, por aí".

Vou ficar mais um dia em São Luís. Aborrece-me porque mais um dia em São Luís são provavelmente mais dois em Parnaíba.

Tive de voltar ao hotel onde estava; reconheci o caminho pelos vendedores nas esquinas. Talvez as ruas não sejam assim tão inseguras, after all.

O bar à frente da Tia Dica é um dos raros sítios no Brasil (do meu Brasil, naturalmente) que não só sabe que há música fora do Brasil como, aparentemente, não sabe que há música brasileira (é uma qualidade). Infelizmente a meia dúzia de metros alguém lho lembra violentamente.

Por cima do Cafofinho da Tia Dica há uma escola de capoeira. Como os soalhos são antigos um gajo vive na impressão constante de que lhe vai cair em cima um monte de tipos grandes, escuros e sorridentes.

"Relações laborais"


Nada a acrescentar, se não que tenho mais anos de trabalho, e mais patrões despedidos. A certa altura até a mim próprio como patrão despedi.

Distância, laudas

Um gajo pode tecer as loas todas, cantar as laudas todas que quiser à distância, tão bonita, tão poética, tão moderna. Puta que pariu a distância.

Nada como outra pele ao alcance da mão, outro olhar à vista dos olhos, outra voz nos ouvidos, directa [estou no Brasil].

Parabéns

Parece que o Insurgente faz anos. Sete, ou assim. Mais ou menos os mesmos aos quais eu o visito, leio e cito. Parabéns.

Brasil, Portugal, mudança

O Brasil não vai mudar, tal como Portugal não mudou. Daqui a cem anos os brasileiros ainda serão os palhaços do mundo; ricos, mas palhaços. E os portugueses serão os enconados. Mais cheios, mas enconados.

Segurança, adrenalina et al.

"Como é a segurança por aqui?", pergunto ao rapaz do hotel. "Não há problema. Até às onze da noite pode andar à vontade". Saio às onze menos dez, e volto uma hora depois. Estava a precisar de um bocadinho de adrenalina, e ou de dar um murro num gajo.

Não aconteceu nada.

Mas as ruas não são seguras: vendedores em tudo quanto é canto, e nem uma mulher à vista. Contrariamente ao que muita gente pensa, as ruas dos vendedores não são perigosas: as que levam a elas é que o são. E aqui todas levam. E o melhor indicativo de segurança que existe são mulheres nas ruas. Nem uma.

Krugman, japoneses

Não percebo nada de teoria da economia, mas os queixumes da Jugular School of Arts em relação à baixa de salários em Portugal fazem-me lembrar a história do homem que levou o filho ao médico: o rapaz tinha seis meses e ainda não abrira os olhos. "Quem não abriu os olhos é você", diz o médico ao pai. "O seu filho é japonês".

PS - Aqui, por quem percebe.

Pedras, música

Pedras antigas e música nova; ou música antiga e pedras novas. Eis algumas das minhas misturas favoritas.

Ricos, novos e velhos

Não gosto nada dos novos ricos, que gastam o dinheiro porque ele lhes vem da habilidade, e não do talento; mas ainda gosto menos dos velhos ricos, que o gastam (agora; é uma moda) como se fossem pobres.

Os novos ao menos mostram o que são, mostram que o são.

28.2.12

Diário de bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 28-02-2012

O hotel é horrível, deprimente, mas manda a verdade: não é a primeira vez que fico num quarto assim. Espero é que seja a última (espero sempre, a cada vez).

Os meus sapatos hoje levaram uma esfrega. Literalmente, quero dizer. Brau - não retive o nome dele, só a alcunha (o "apelido") - tratou deles. Não lhes pôs produto nenhum, porque não o tinha, mas ficaram melhor, coitados.

Brau parece uma pedra de crack ambulante. Mostrou-me uma fotografia de "antes do vício", com a ex-mulher ("ela disse-me ou eu ou a droga e eu escolhi o vício". "Foi o vício que escolheu por ti, Brau. Mas não há nada a fazer, pois não?")

Logo a seguir passou um senhor a vender cigarros à unidade. Exactamente o que me apetecia. Comprei um "Lucky Strike". Se aquilo era Lucky Strike eu sou a galinha dos ovos de ouro. "Já não se pode vender cigarro importado", explica-me o homem. " A Federal apanha logo".

São Luís tem um "centro histórico" horroroso, feio, degradado (onde fica o meu hotel, de resto); e esse centro tem uma área chamada Reviver que está recuperada e é linda de morrer. É uma área pequena, onde está o mercado (cuja imagem me perseguia há muito tempo e eu não me lembrava de onde era. Foi como reencontrar uma pessoa cujo nome esquecemos), o café da tia Bica,  ou Dica, a livraria e dois ou três sítios que gostei de rever.

Amanhã vou falar com o dono do estaleiro onde queremos pôr o barco aqui em S. Luis. A verdade é que B. não me sai da cabeça. Terá chovido, em Parnaíba? Os cascos estarão a secar como deve ser? Conseguirei convencer o homem a aceitar-nos rapidamente?

Só espero que isto tudo sirva para uma coisa, uma só: ficar definitivamente vacinado contra a necessidade de desafios. Ou então aprender a escolher melhor os desafios.

Vida, freecell

Uma pessoa deve interessar-se por qualquer coisa, ter uma mania, uma obsessão; uma vida interessante é uma vida interessada. Eu, por exemplo interesso-me por freecell. É uma paciência que se joga no computador, para quem não sabe.

O objectivo é separar as cartas por naipes, recorrendo para isso a quatro "células livres [ou vazias, em português]", onde se guardam temporariamente as cartas que não são necessárias. Exije concentração, visão à distância, estratégia.

Um grande jogo, uma grande vida!


Lixo

Não consigo mandar ninguém para o lixo; nem mesmo quem me manda para o lixo.

Varanda sobre o rio - IV

Não digamos nada. Deixemos o rio correr, indiferente às luzes laranja, às cadeiras brancas, rascas. Indiferente ao passado, ao futuro. O rio é, não foi nem será.

Isto é poesia. É mentira.

Heráclito não tinha razão. O rio vem carregado de tudo o que foi, e leva tudo o que será.

Eu sou esse rio, eu sou essa varanda que observa o rio que sou.

Varanda sobre o rio - III

É um rio que me obriga a ser quem não sou, mas quando se é quem não se é, é-se, não é? Talvez seja melhor dizer é um rio que me obriga a ser quem não gosto de ser; mas se calhar essa é a função dos rios.

Este post, pelo contrário, é um rio, um rio bonito; não tem reflexos laranja nem cadeiras de plástico, só tem coisas bonitas porque um homem que fala de si e da sua  necessidade de egoísmo (o egoísmo é como um rio que nos atravessa) é sempre bonito.

Há quem confunda solidão com egoísmo, mas são coisas diferentes.

E há quem confunda os rios. Não gosto de rios. São falsos, traiçoeiros, escondem na sua mansidão rochas e árvores e baixios e naufrágios que não se vêem, nem se adivinham.

O mar é franco. Não é por acaso que os rios desaguam no mar, mas o mar não desagua em lado nenhum.

Talvez aquele post não seja um rio, talvez seja um mar. Mar interior, mas mar.

Talvez tu sejas muito mais do que tu, talvez sejas tanto o meu passado como o meu futuro, talvez sejas o meu futuro, talvez sejas a minha solidão. Talvez sejas eu, disfarçado de qualquer coisa bonita.

Sei que não sou este rio; ou melhor: sei que sou este rio. Sei que sou esta varanda sobre este rio que me olha e me diz: este és tu, barrento e lento. Sei que sou o que serei, porque o que serei és tu.

Uma varanda sobre o rio.

Varanda sobre o rio - II

É uma varanda sobre o rio; corre devagar e traz tudo o que me trouxe aqui no reflexo laranja das luzes da ponte, na fealdade generalizada, na pergunta que me ocorre de cinco em cinco segundos: descerei eu um dia este rio?

Sei que a resposta é sim, descerás um dia este rio; descê-lo-ás de braço dado a um barco de pesca, a olhar para os fundos a ver se há água e para as margens a ver se há pedras e para ti, a ver se me amas ainda, tão longe e tão longe.

Descê-lo-ei a perguntar-me porquê e a dizer-te obrigado, desculpa, obrigado.

Obrigado é sempre a última palavra [para além de "sim, querida", claro].

É um rio que corre de trás para a frente, leva-me a de onde vim, e antes disso a um outro rio que o meu Pai subiu, teria a minha idade? Não sei. Não é nesse rio que este nasce, é muito antes disso.

E traz com ele o conjunto todo dos tempos todos por que já passei.

É por isso que gosto tanto deste rio, e o odeio tanto.


Varanda sobre o rio

É uma varanda sobre o rio e debaixo de algumas caipirinhas que acertaram, finalmente, na quantidade de açúcar: o mais próximo possível de zero, sem ser zero.

Mal vejo a água: é este rio que terei de atravessar, percorrer daqui até à foz. Foi este rio que subi há quinze meses com um barco ferido, magoado; e vou descer com alguns pensos nele, pouco mais.

Um barco com pensos, um rio falsamente calmo, tranquilo, música cansativamente sempre a mesma, caipirinhas com pouco açúcar, cadeiras de plástico branco num sítio que, se não fosse isto tudo, seria magnífico.

Faltas-me cá tu, mas não faltas cá. Cansar-te-ias depressa destas ruas que oscilam entre a via rápida e o caminho de cabras, desta falta de gosto. Cansar-te-ias de mim, cansado que ando sempre, farto que ando de estar cansado.

Não sei não estar cansado, mas sei que agora vou aprender.

Pergunta breve

Será que os brasileiros sabem que existe música fora do Brasil?

Seguramente, e longe

Toda a gente diz que não há visão estratégica em Portugal. Tozé demonstra, violentamente, a falsidade de tal acusação. Pena que venha de um partido que não é capaz de ver nem amanhã.

27.2.12

Diário de bordos - 270212

Um dia bastante preenchido, como um penico.

Tive de castigar o Raimundo: três dias sem trabalho. A verdade é que sou tão castigado como ele, mas enfim. Se não agisse agora, do dedo que lhe dei ao princípio já nem o braço teria, amanhã. Espero que lhe doa; e sirva para alguma coisa pagar-lhe acima de média. A verdade é que o homem é impressionante: dou-lhe tarefas para um dia e em menos de metade ele tem o trabalho feito. Mas estava a ficar com a cabeça muito alta, como nas marionettes, e lá teve de levar uma pancadinha.

Encontrei nove rolos - nove! - de tape. São rolos pequenos, de cinco metros; mas que bem souberam. B. está quase completamente tapado e quase completamente seco por dentro. "Quase é uma palavra que engana muito; os alemães quase ganharam a guerra", ocorre-me cada vez que uso a palavra. Mas neste contexto parece-me que posso usar. Ou devo, não sei.

A verdade é que para encontrar a bendita tape andei uma hora pendurado num moto-táxi cujo colete fazia publicidade ao Jardim Eterno, uma agência funerária que propõe igualmente, caso haja interessados, "planos preventivos de funeral". o homem conduzia bem, cuidadosamente, mas a ideia que ele poderia talvez querer aumentar o proveito levando um cliente prontinho ao Jardim Eterno não me deixou.

Amanhã às seis da manhã vou a S. Luis. O que eu gostaria de lá poder passar meia dúzia de dias!

E depois tudo terminou com uma daquelas dissonâncias cognitivas que me fazem odiar este país. Telefonei ao senhor do aço inox (que aparentemente já foi pago pelo menos duas vezes para fazer um trabalho do qual ainda não entregou uma peça sequer) quanto custaria acabar "as duas peças do mastro". São um galope e um cachimbo, peças não muito diferentes em dimensão. O homem começa "bem, a de cima são 130 reais", pausa. "As duas são 580". Como já sei do que a casa gasta não digo nada e pergunto-lhe "e os turcos [as peças para o bote, ele não sabe o que são turcos]?" "Essas estão incluídas no preço, já não há nada a pagar". "Ok, muito bem, vou aí para falarmos disso tudo.

Chego à oficina, ele confirma-me que as peças do mastro são 580 reais. "Muito bem; e então as peças do bote já estão pagas, não é?" "Não, não estão. Vou ali calcular quanto é". "Genilson, você acabou de me dizer ao telefone que aquilo já estava pago". Páro aqui: o homem tornou-se agressivo, mal-criado e tive que vir embora para não desatar à pancada.

Eu ouviu-o dizer que os turcos estavam pagos; não foi um caso de diz-que-disse. Trabalhar permanentemente neste ambiente é insuportável.

Enfim, as coisas avançam. A diferença entre o que há agora e o que havia quando cheguei é grande. Qualquer dia será maior ainda, e depois deixará de haver diferença: vira-se a ampulheta e começa a contar de novo.

Encontrei finalmente um site com um excelente glossário náutico em português: os meus parabéns à Associação Náutica da Gafanha da Encarnação, ANGE (o glossário está na página Arquivo). O primeiro passo está dado; agora é só continuar. (Estou a falar do site da ANGE.)

A gata não voltou a aparecer. Espero não lhe ter dado a última ceia.

26.2.12

Diário de bordos - Parnaíba, Piauí, Brasil, 26-02-2012

Domingo é um dia triste aqui no cantinho de Parnaíba que habito. Está tudo fechado, salvo a geladaria da esquina; mas o tempo está de chuva e nem ela atrai muita gente.

B. aguentou valentemente a bátega de ontem. Agora é preciso cobri-lo de plástico, para não entrar água e deixar a madeira secar.

E da pousada pode-se dizer o mesmo. Quando cheguei, sapatos encharcados de terem vindo a chapinhar em tudo quanto era poça de água (na verdade era só uma, ao longo dos cem metros de caminho) e toquei à campainha apanhei um choque.

Hoje acordei sem luz, devido a um curto circuito. Vi os electricistas reparar a instalação e perguntei-me como é que não houve um incêndio, com os fios descarnados a passar ao longo das traves da madeira que sustentam o telhado. Aquilo devia estar completamente encharcado, felizmente.

Raimundo convidou-me para almoçar, e eu aceitei, naturalmente. Fui com um misto de curiosidade e temor - não sou muito bom  a inventar conversa, e pensava que ia comer um horror. Ambos infundados, os receios, como quase sempre. O peixe (tilápia) não era grande coisa - nada a ver por exemplo com as tilápias do lago Tanganika com as quais tantas vezes me deliciei. Eram de piscicultura e tinham um ligeiro sabor a lama. Mas era ligeiro, e o molho estava delicioso.

Raimundo vive numa casa grande, mal cuidada, mas limpa e arrumada (enfim, não há grande coisa para desarrumar, verdade seja dita). A sala de estar consiste numa televisão e meia dúzia de cadeiras dessas de plástico das esplanadas à volta. A sala de jantar uma mesa e cadeiras de plástico branco. Em cada quarto entrevia-se uma ou duas redes e uma cama. A casa é "invadida", responde-me quando lhe pergunto se é dele ou alugada. "Invadi-a há dez anos; arranjei-a toda". segue-se uma breve justificação do squatting. Não tenho, nunca tive grande simpatia por squatters. Os que conheci até hoje eram meninos mimados que disfarçavam com roupagem ideológica a sua vontade de viver num sítio central e para o qual não precisassem de trabalhar muito; é a primeira vez que um squatter me desperta um ligeira ponta de simpatia.

Francisca, a mulher de Raimundo, é mulher bonita. sorridente, simpática. Veio juntar-se a nós (comemos os dois sozinhos) e ficou ali a ouvir a conversa, e a banar a cabeça, de vez em quando.

Raimundo tem quarenta e três anos e terminou o ensino básico agora, há pouco tempo. Amanhã começam as aulas do ensino secundário, das sete às dez da noite. Como ele se levanta todos os dias às três da manhã para fazer o cuscus que depois vai vender pelas ruas digo-lhe que é uma decisão corajosa. Responde-me que o sonho dele é fazer um curso superior, em agronomia, e que há-de lá chegar "nem que seja aos cinquenta e cinco anos".

Raimundo é jardineiro, mas aquilo de que gosta mesmo é reflorestamento e recuperação de áreas degradadas. Fala-me longamente no que é preciso para escolher as árvores adequadas a um determinado meio; diz-me que na Amazónia já estão a fazer "desflorestamento sustentável", conceito que não percebi muito bem ("cortam árvores num lado e plantam-nas noutro"). Tentou arranjar dinheiro para fazer uma empresa, mas obviamente não conseguiu. Falei-lhe no microcrédito, mas ele diz que os montantes de que necessita são muito elevados.

O almoço passou rápido. Foi um verdadeiro prazer. Agora percebo melhor de onde lhe vem o gosto pelas palavras caras, por mostrar que sabe que ao princípio me intrigava e irritava ("óleo e água é uma mistura heterogénea", "água - H2O", e por aí fora).

A verdade é que me ensinou uma forma de preparar cabos para uma manobra que eu não conhecia, ou  que pelo menos tinha completamente esquecida. E conseguiu desatar os nós dos cabos que usámos para puxar B., quando eu lhe disse para os cortar, pois não havia nada a fazer.

A parte mais difícil e chata do trabalho está concluída. Agora começa a mais importante, até ao reboque.

Vida, viver

A melhor coisa que me aconteceu na vida foi viver.

Auto-retrato

Não sou lunático nem aluado; sou simplesmente um selenita que se enganou de planeta.

25.2.12

Diário de bordos - Parnaíba, Piauí, Brasil, 25-02-2012

Nunca se sabe por onde começar, não é?, quando as coisas acabam.

O casco de estibordo está a seco; enfim, espero. Certezas só quando for verificar com a maré cheia, amanhã de manhã.

Os macacos hidráulicos são mais civilizados, mas o esforço acaba por ser o mesmo, ou quase. Como são muitos mais pequenos, o trabalho deixa de ser içar o casco e passa para o calçar. É preciso pôr calços muito mais frequentemente, e como tínhamos poucos passámos o dia a jogar uma espécie de Tetris, ou Lego, ou o que quiserem chamar-lhe, com um casco de doze toneladas suspenso na lama.

Enfim, dia é muito: demos volta às duas e meia, mas não parámos para almoçar. Começámos às nove da manhã e foi de empreitada até o casco estar em cima alguns quarenta centímetros. Agora é ver se não abate demasiado, reforçar um calço ou dois, e esperar que seque.

Ao contrário dos jovens deuses, que pensam que tudo lhes é devido, os velhos sabem agradecer. Choveu muito pouco, e quando choveu foi à noite.

Cheguei à pousada exausto. O truque é sempre o mesmo: duche (no quarto cujo chuveiro tem pressão), e depois cama, braços e pernas abertos como no Homem de Vitrúvio (?), ou naquela fotografia de uma inglesa (Tracey Emin? Talvez Lourdes Féria possa ajudar-me) até deixar de sentir o coração. Depois decúbito-fetal (isto existe?) até deixar de sentir tudo; e finalmente a anarquia total: qualquer posição é boa, desde que na horizontal.

O único sítio que encontrei aberto para almoçar foi um bar que tinha três mesas de snooker. Os jogadores eram medíocres, um menos do que o outro. Jogavam a dez reais a partida. O que era menos mau ganhou quarenta num ápice. A carne de sol não estava má.

Os meus sapatos de camurça resistem estoicamente; a verdade é que mereciam morte menos inglória, e espero que a tenham. O resto da roupa anche: as senhoras da pousada lavam roupa como se não lavassem.

Se Deus quiser na segunda-feira à noite estou num autocarro para S. Luiz. Parnaíba fede. Gostaria de ter um bocadinho mais de distância e apreciar isto melhor. Passar os dias na lama (real e metafórica) não é, provavelmente, a melhor forma de o conseguir.

Hoje consegui, finalmente, formular uma - não; a - explicação: não sou capaz de resistir a um desafio destes. Vou ter que aprender.

Não estou a fazer tudo errado. Perdi um quilo, desde que cheguei. O meu médico tinha razão; é melhor beber cerveja.

Chove que Deus a dá.

Parou de chover. O gato de hoje de manhã afinal é uma gata. Veio ter comigo ao restaurante que me serve de escritório, de sala de estar e de sala de jantar, consoante a hora do dia.

Acolhi-a na barriga (por fora, claro), e ela gostou. Pedi restos à cozinha mas não tinham, de maneira encomendei uma porcaria qualquer barata que chegou, como sempre, meia-hora depois, ou mais. Uma empada de galinha, ou coisa que o valha.

O dono explicou-me diplomaticamente que "as pessoas aqui não gostam de animais em ambientes desses", e que "D. armou uma confusão por causa de um gato", e mais "os animais são portadores de doenças" e mais ainda; anuí a tudo, e disse-lhe que sim, que compreendia perfeitamente. "De resto vivi muitos anos em Africa, e lá é a mesma coisa. Nos países pobres as pessoas não gostam de animais. Têm mais com que se preocupar. Bem, o Brasil não é um país pobre, claro, mas em certas coisas...".

Foi um ping pong assim, que acabou com ele a deixar a gata comer desde que fosse num prato descartável; e eu por simpatia (enfim, não só) dei-lhe de comer lá fora, à porta (gostava que ela voltasse amanhã, como ele previa que ia acontecer). Previa é sinónimo de temia, não é?

Não sou particularmente animal lover, mas tão pouco os detesto. E devo reconhecer que aquela gata é linda. Aninhou-se tão perfeitamente na minha barriga que quase tenho pena de a perder.

Chove torrencialmente. Não devia nunca chover se não torrencialmente. É a única chuva aceitável.

Aproveitei a chuva para limpar os sapatos de camurça. São os únicos que tenho, gostava que durassem mais um bocadinho. (Parecia um puto a chapinhar nas poças de água.)

Devia tentar a poesia automática, mas nem para a manual tenho jeito. Falar no verde das paredes e no voo das libélulas, nas qualidades graníticas das caipirinhas, na sensualidade marcial da rapariga que me serve à mesa.

Nada me chateia tanto como as fotografias antigas dos sítios por onde passo. Se gostam tanto do passado porque não ficaram nele? Porque não pôr fotografias do futuro? Seria muito mais interessante.

Chove como se a terra estivesse sem foder há meses.

Multiculturalidades

Este post é de leitura obrigatória para quem se interessa por estas coisas.

24.2.12

Diário de bordos - 240212

Valeu a pena pôr a t-shirt verde. O casco de bombordo está a seco. Amanhã levantamos o de estibordo. Um trabalho que em qualquer parte normal do mundo não seria sequer digno de menção aqui torna-se uma epopeia.

Um dia é bom quando acaba bem; e acaba bem quando atingimos os objectivos que nos fixámos quando começou; pouco importa o que se passou pelo meio.

"És muito inteligente", diz-me D.; "mas quando discordas de mim pareces burro" (ou quando teimo em discordar, verdade seja dita). Não acho. Confesso aqui publicamente e tudo que não me sinto particularmente inteligente (não é grave, note-se); e até acho que de dois teimosos o que cede primeiro é o mais inteligente.

O problema não está na inteligência; nem sequer na teimosia (sou irrevogavelmente teimoso, mas sou capaz de mudar de opinião); o problema está em que as mundovisões não se mudam do pé para a mão. Não se mudam, de todo. Estou feliz com a minha, dou-me bem com ela, apesar de não ser rico nem ser "um homem de sucesso". Por vezes caio, por causa dessa mundovisão, em armadilhas, em situações chatas ou desagradáveis. Mas "sou o que sou, e é tudo o que sou". Não é muito, mas é o que há, e está à vista. Como sou me dou, passe a auto-citação.

Começou a chover; ameaçava desde ontem. Vamos ver como está o terreno amanhã.

A estadia em Parnaíba está a ensinar-me a valorizar o bom humor a um ponto insuspeitável. Não quero ser feliz: estar de bom humor chega-me e sobra.


Carta aberta

Meu caro gatinho,

São seis da manhã e tu andas aqui pela rua a miar lancinantemente, provavelmente porque estás com fome. Não sei, não percebo nada de gatos. Mas percebo de vidas, e algo me diz, na maneira como andas, como investigas tudo, como olhas para mim, que estás com fome. Não há um milímetro de ti que não grite "estou com fome".

Eu queria dizer-te, meu caro, que de nada serve miares. Se queres comer aprende a caçar; és novinho mas se tens idade para andar sozinho na rua também tens para aprender a caçar. Miar, aqui, não te vai servir de nada. Na melhor das hipóteses  suscitará alguns risos alarves; na pior ainda alguém te trucida, para fazer "uma boa acção". Cala a boca, meu caro, cala-a depressa.

E toma atenção, não passes de caçador a caça num ápice, que é como elas acontecem. É que caça e caçador somos todos, sempre; mas passar de um para o outro é um abrir de olhos e fechar de boca. A cidade é dura, tens muita concorrência e a vida não está para rookies.

Esquece que és novinho, de nada te serve a juventude (ou infância, mais provavelmente). Se tiveres muita sorte encontrarás um tipo simpático que tomará conta de ti; se tiveres muito azar, um imbecil qualquer matar-te-á, para mostrar a si próprio e aos outros quão imbecil é. Não contes muito com uma e defende-te do outro. "Espera pelo melhor e prepara-te para o pior", como dizem os marinheiros ingleses (e se calhar não são só os marinheiros, vai lá saber).

Deste teu amigo,

L.

Amigos, trabalho

Tal como não pago para ir para a cama com uma mulher, não pago para ter amigos. O trabalho e o conhaque, o trabalho e o amor, o trabalho e a amizade não são misturas boas.

(Enfim, é forçoso reconhecer que no trabalho e amor há algmas excepções.)

23.2.12

Diário de bordos - 230212

Às três menos um quarto mandei dar volta; o casco de bombordo está 15 cm mais alto, e andávamos, o Raimundo e eu (ele mais do que eu) a chafurdar na lama desde as oito e meia da manhã, com uma breve pausa para o almoço. Têm-me saído poucas sortes grande na vida; Raimundo é uma delas. Nunca vi ninguém trabalhar tanto como aquele homem. É alucinante.

Às três menos um quarto eu já não me tinha de pé; e ele estava cansado, também. Disse-lhe para parar, levei-o - enfim, ele levou-me - a uma tasca para bebermos uma cerveja e fui tomar um duche à pousada. Pedi um quarto no qual o duche tivesse pressão, que não é o caso do meu. Hoje, mais do que todos estes dias, precisava (nos outros dias também, é verdade; mas hoje estava coberto de lama da ponta dos cabelos à ponta dos sapatos de camurça, mal me tinha de pé, e fui tomar o duche ao 10).

Quando pensamos (por exemplo:  "vou levantar o barco com macacos") o nosso cérebro, infeliz mas inevitavelmente, associa essa ideia às nossas experiências passadas. No meu caso, macacos hidráulicos, pequeninos, leves. Uma pessoa levanta o casco, calça-o, e se for preciso repete a operação até o casco estar à altura necessária, calçando também o macaco para ele ficar mais alto.

Os macacos do estaleiro são de rosca, pesam cerca de cinquenta quilos cada um (não é uma imagem) e têm sessenta centímetros de altura. Devem ter cem anos; nunca tinha visto uma coisa daquelas e o Moçambique dos anos sessenta não era propriamente uma montra do progresso.

Foi preciso cavar dois buracos, um relativamente baixo e no seco à popa, outro de setenta centímetros de profundidade, um metro de comprido (para podermos pôr uma prancha de madeira debaixo do macaco) e sessenta centímetros de largura na lama, à proa.

Raimundo cavou-os em pouco mais de duas horas, e desculpou-se por o da proa estar a demorar porque "o solo é argiloso". À tarde, ele no macaco da proa e eu no da popa levantámos o barco quinze centímetros. Foi bonito porque eu já estava a elaborar os planos D, E, F, G e H (que nada me garante não tenha de utilizar, pelo menos o D, porque o casco de estibordo vai ser mais complicado).

Mas a verdade é que estou exausto. Andei pela lama com os macacos, acartei madeira para trás e para a frente para calçar  casco, subi o macaco de joelhos e de costas dobradas porque nem de pé nem sentado o podia fazer, e Deus sabe a força que foi preciso. Não me arrependo nem de metade de uma cerveja de todas as que bebi desde que cheguei.

Amanhã também é dia. Raimundo estava - justificadissimamente - ainda mais cansado do que eu, mas não queria dar parte de fraco. Às três menos um quarto mandei dar volta; convidei-o para beber uma cerveja. "Gostava de ter um patrão como o senhor pelos próximos dez anos", disse-me. "E eu um empregado como tu", não lhe respondi. Deixei-o com a sua Brahma e fui tomar um duche. Amanhã vem mais uma pessoa. Provavelmente vou levantar um casco de cada vez. Não sei. É uma ponte que ainda está longe.

E depois do duche pus a t-shirt verde da esperança, e os calções brancos de cerimónia, porque foi um dia bom e amanhã vai ser melhor ainda.

Diário de bordos - Parnaíba, Piauí, Brasil, 22-02-2012

Não conseguimos puxar B. mais para cima. Às seis e um quarto da manhã fizemos a primeira tentativa, só com um cabo de massa; rebentou. Passei três; rebentaram. Não valia a pena insistir. É para isso que servem os planos B (B podia ser de Brasil, mas não é; o Brasil requer planos até Z, no mínimo).

Vai ficar onde está. Hoje Raimundo cortou madeira para fazer calços. Vou tentar elevar o bote quarenta centímetros. É suficiente para deixar os fundos completamente à vista. Depois é secar, fibrar e pôr na água outra vez.

Vai ser preciso fundear uma embarcação de pesca no rio e  virar [puxar] B. com o guincho. Se a praia-mar calhar bem talvez nem seja preciso fundear. Não sei; tento não pensar muito nisso. Levantar o barco com dois macacos hidráulicos não deve ser muito complicado; não costuma ser, pelo menos. Porque o será amanhã?

Talvez pela mesma razão que leva um cabo de aço de 16 mm de diâmetro a rebentar. Também não é costume.

À tarde fui comprar plástico para impermeabilizar o convés. Foi fácil de encontrar, à segunda loja tinha o que precisava (enfim, quase; mas se for preciso mais não será difícil encontrar). Em contrapartida não encontrei tape boa. A mais resistente que por aqui há é a que se usa para fixar os tapetes ao chão. Já tenho estado em sítios onde não há nada, mas Parnaíba é absolutamente alucinante. Tape.

Andava à procura dela e lembrei-me do ship chandler em St. Martin onde fiz as compras para a Ondeck; depois lembrei-me dos chandlers de Antigua, que eu pensava "não terem nada". Finalmente parei de pensar. Prometo que nunca mais desperdiçarei um centímetro que seja de tape, tal como não desperdiço uma gota de água doce.

Foi um dia calmo, melancólico, nostálgico. Apreciei de novo a solidez daquele casco. Aquilo não é um casco, é um cofre-forte. Passei uma caixa de charutos ao Raimundo por causa da grossa de ontem; maravilhei-me uma vez mais com a sublime incompetência das pessoas que fizeram os quartos na pousada - é impossível um gajo não se extasiar com tanta falta de brio, tanta negligência, tanto desinteresse -; andei pela zona comercial de Parnaíba.

A quantidade de lojas é surpreendente, mas não consigo perceber de onde vem o dinheiro dos seus clientes. Uma vez perguntei e disseram-me que vem do Governo. As pessoas ou são funcionárias públicas ou recebem subsídios.

É verdade que é aflitivo abrir um jornal aqui (em Fortaleza, aqui ainda não abri um desde que cheguei): a presença do governo na vida das pessoas é inimaginável. O governo quer que os brasileiros façam  mais desporto - oops, sai um subsídio, uma pista, um "apoio estatal"; o governo quer... não continuo, é demasiado deprimente.

Que se lixe. Se eles querem dar subsídios em vez de reduzir as taxas aduaneiras e a carga fiscal é com eles. Mas este país é um excelente caso para se ver o resultado das políticas proteccionistas. O que é irónico é que são feitas para "proteger os pobres". Estranha forma de protecção. E não há quem as questione, apesar de o resultado ser ululantemente óbvio.

Aos poucos reabituo-me à paisagem; gosto do rio, barrento e não muito largo, das árvores em tudo quanto é sítio, das casas recuperadas do meu cantinho de Parnaíba. É uma ilha num mar de desolação, mas é uma ilha bonita.

O restaurante Aventur continua prodigioso. O tempo médio de espera por um prato é quarenta e cinco minutos - tempo médio de espera quando está vazio, note-se. Quando tem clientes o prazo dilata, naturalmente. Não chega à hora e meia duas horas de Bujumbura, mas anda lá perto.

Quero ir para Grenada depressa. Um dia páro, e quero chegar depressa perto desse dia. 

22.2.12

Tratado de saber viver para jovens casais que decidam emigrar para, ou viver temporariamente em um país africano ou semelhante (cont. e fim)

Vou terminar este breve mas importantíssimo (é com toda a modéstia de que sou capaz que o digo) tratado fazendo referência a dois tópicos fundamentais: o racismo e o simbólico.

Não há civilizações para quem os símbolos tenham mais importância do que para outras, ou menos: todos nós, humanidade, atribuímos importância aos símbolos. O problema é que não atribuímos a mesma importância a todos os símbolos. Aquilo que para um europeu pode ser inteiramente destituído de valor simbólico para um africano, ou nacional de um país equiparável tem uma importância vital; e vice-versa.

É um dos aspectos mais difíceis (e interessantes, mas isso são outras núpcias) da integração numa sociedade: descortinar os símbolos e respectivo valor.

Associo muitas vezes o racismo e os símbolos porque andam frequentemente de mãos dadas, apesar de serem tão diferentes como o traseiro e as calças.

No Zaire tínhamos um senhor que vinha, três meses por ano, exercer o seu direito de compaixão. Era um idiota, o que não significa que todos as pessoas capazes de compaixão, um sentimento a priori bom, o sejam. Mas este era. Se bem me lembro era proprietário de uma empresa em Lausanne, na Suíça; e todos os anos "dava três meses ao CICR". [Tenho-lhe, ainda no presente, um ódio muito especial porque foi por causa dele que perdi a minha segunda colecção de arte africana, por sinal bastante melhor do que a primeira, vendida em Zurique para compensar o roubo de uma carteira. Esta ficou em Lubumbashi porque o homem pensava que não nos deixariam atravesar a fronteira com ela, quando fomos evacuados pela terceira e última vez. Os guardas nem abriram o carro].

Não lembro o nome do homem, mas cada vez que fazíamos uma viagem de carro ele deixava um dos assistentes pretos da Delegação ir sentado à frente. Aquilo revoltava-me, porque eu sabia que os valores simbólicos eram totalmente diferentes: o que para o nosso idiota era irrelevante (e "racista", um dia que lhe fiz a observação") era para o funcionário um sinal da sua extrema importância dentro da organização. Da qual ele, naturalmente - quem não o faria? - se aproveitava, a tal ponto que tive de o admoestar muito clara (é caso para o dizer) e frontalmente.

Um ocidental - e eu devo dizer que deve haver pouca gente mais colour blind do que eu - educado na crença de que racismo = mau = homem branco chega a Àfrica e não se apercebe - não quer, não pode aperceber-se - de que há cores, e que essas cores estão permanentemente presentes no espírito de quem nos fala. Sempre. E que não ignorar essa realidade simples não é racismo: é realismo e capacidade de adaptação.

Qualquer pessoa que tenha vivido em África sabe que há racismo entre as diversas tribos - e por vezes violento (não preciso de evocar o genocídio do Ruanda, creio). Esse racismo também existe em relação às outras raças. Em África a noção de "nós e eles" faz parte da identidade colectiva, (se é que tal coisa existe). E não lhe dar a devida importãncia é uma fonte de intermináveis sarilhos para os jovens casais etc..

Não é só em África, claro. Uma vez via na televisão um programa sobre a Guiana Francesa, mais especificamente sobre a base de lançamento de foguetões de Kourou [creio]. A certa altura a repórter entrevistava uma empregada de limpezas, que disse "a vida é boa, etc. os salários e tal, só é pena o racismo". "O racismo?", perguntou a "jornalista", entre aspas. "Sim, o racismo. Você olha para estes brancos todos, engenheiros, doutores, físicos, matemáticos, e pensa que eles me falam? Nem me vêem". Seria interessante, claro, perguntar à senhora das limpezas se ela pensava que em França um engenheiro  uma colega dela. Eu sei que não, qualquer que seja a cor da dita empregada. Em África, ou em países similares, o racismo é o referente. Não há classes, grupos culturais, comunidades, o que for. Há raças (e a raça branca é a má). Não é má ideia o jovem casal precaver-se contra isto.

E contra-atacar, naturalmente. Só é racista quem pensa que "um preto" não pode ser estúpido.

PS - Mesmo sabendo que essa estupidez vem, muitas vezes, de carências alimentares graves durante a infância.

Diário de bordos - 210212

A idade não me fez deixar de ser optimista; mas fez-me conhecer-me, o que já não é mau. Pensei que bastaria subir B. dois metros; afinal são mais. Felizmente mandei capinar até bastante mais, para ter a certeza.

A manhã foi passada a passar cabos, arrastar cabos (de aço de 16, para quem sabe o que é) e fazer testes. O barco estava ainda completamente a seco e rebentaram-se dois cabos de massa, que era mais ou menos o que eu pretendia: ver os pontos fracos da coisa.

A maré era às cinco e meia; às duas mandei toda a gente (um senhor de 70 anos, um electricista cuja única função era em princípo operar o guincho, Raimundo e eu) para casa, com o reencontro marcado para as quatro. Raimundo apareceu às quatro e meia perdido de bêbedo.

Às cinco menos um quarto mandei virar, só um bocadinho para ver. B. começou a subir por ali acima como um patinador no gelo. Mau patinador, ou medíocre: vinha um bocadinho de lado. Raimundo estava fora de serviço, de maneira lá andei a patinhar na lama a corrigir a posição dos cabos.

Só tenho um par de sapatos (marca Foreva, oferta de uma senhora há alguns anos), os quais não são de modo algum feitos para isto. Resolvi tirá-los porque estou preocupado com o que vai acontecer quando (ou se, que até agora têm-se portado como soldados de infantaria na Grande Guerra) morrerem.

De repente, estava no meio da carreira extasiado com B. a subir por ali acima, senti os pés desaparecerem. Estavam a ser atacados por uma colónia de formigas minúsculas mas que devem ser para as formigas o que as piranhas são para os peixes. Calcei os sapatos outra vez, claro, esperando que um banho de lama não seja tão mau para a camurça como parece.

Logo a seguir o cabo de aço de 16 que andei a arrastar durante horas rebentou.

Fomos buscar outro tambor. Cinquenta metros para baixo, mais cinquenta metros para cima, mais vinte metros para o lado, o tambor a desfazer-se, empurrar aquilo fazia dos passeios de Sísifo uma volta turística, até chegarmos à conclusão de que o cabo era grande de mais e o tambor do guincho nunca o acomodaria.

É preciso cortá-lo, mas falta uma peça na máquina do electricista. Deixámos para amanhã às seis da manhã: a maré é às seis e um quarto e teremos água que chegue. Se ele encontrar a tal peça, claro.

Não há dias meio vazios, nem copos. Estão meio sempre meio cheios, os dias; e vazios, os copos. Mas isso é porque só me dão copos furados.

A música de Carnaval continua, horrenda, repetitiva, igual. É o último dia; abençoado sejam os últimos dias de todos os calvários.

Tenho os pés cheios de coisas espetadas. Para além de formigas havia muita vegetação que se defendia como podia de pés que a esmagavam.


21.2.12

Tratado de saber viver para jovens casais que decidam emigrar para, ou viver temporariamente em um país africano ou semelhante (cont.)

Nesta segunda parte deste breve tratado de saber viver, etc. vou abordar alguns aspectos infungíveis (é uma palavra bonita que aprendi recentemente) da vida nos países africanos ou similares.

A primeira coisa a ter sistematicamente presente no espírito é que ninguém é obrigado a emigrar ou a viver temporariamente noutro país. As pessoas vão para países diferentes dos seus porque querem. Que eu saiba não há guerrilheiros barbudos armados de Kalashnikov forçando-as a irem para onde quer que seja. (Isto aplica-se igualmente aos "cooperantes" e aos "humanitários", que regra geral fazem mais mal do que bem mas estão cheios de boa vontade e pensam que por causa disso podem fazer o que querem.)

Não devemos esquecer-nos, portanto, de que estamos num país que não é nosso; somos hóspedes. E não compete aos hóspedes ensinar aos anfitriões como governar a sua casa. Isto é tão importante como difícil (sobretudo para nós, portugueses, que sempre vimos nos estrangeiros que nos visitam - se forem do Norte, claro - seres superiores, civilizados, melhores do que nós; e esperamos semelhante antitude quando visitamos "os pretos").

Um erro muito comum é pensar que uma pessoa, só porque não fala correctamente português (ou inglês ou francês) é burra. "Estes pretos são estúpidos, um gajo diz-lhes as coisas e eles não percebem". Não são, e muitas vezes não percebem, ou exprimem mal que perceberam, pela razão simples de que a língua que falamos não é a deles. Habituados que estamos a julgar a inteligência das pessoas pela forma como se exprimem - o que é um erro - pensamos que não saber exprimir-se é sintoma de burrice. Não é.

Igualmente frequente é pensar que por não terem o nosso sistema de educação "não sabem nada". Isto é duplamente falso: por um lado os nacionais dos países que nos acolheram têm conhecimentos que lhes permitem sobreviver naquele contexto (em muitos países, a sanção por não perceber como funciona o sistema não é a assistência social ou o RMI. É a morte); por outro, bastas vezes, têm conhecimentos formais ao nível dos nossos - é frequente em África encontrar engenheiros formados na Rússia ou em países do leste europeu, por exemplo. Vítimas da guerra fria, é certo; mas não ignorantes.

Lembro-me com particular acuidade de assistir a um diálogo no Zaire entre um jovem suiço de vinte e cinco anos, acabadinho de sair da universidade e um engenheiro zairense sobre um problema de pistas de aviação. Quando acabaram, o jovem suíço afastou-se, orgulhoso e satisfeito com a sua generosidade; o engenheiro - uma das pessoas mais competentes com quem tive o prazer e a honra de trabalhar - sorriu-me, encolheu os ombros e continuou a fazer o que fazia como sempre fizera, claro. Mais tarde tentei explicar ao jovem que aquele senhor era engenheiro, tinha mais anos de experiência do que ele de vida, que era local e conhecia o país melhor do que, etc. Não serviu de nada. (Poucos meses depois o jovem suíço foi evacuado, fomos todos; e o engenheiro lá ficou).

Por fim (por hoje e quiçá mais): deve ter-se presente que a estupidez é o melhor escudo. Toda a gente acha detestável a maldade, mas desculpa (mais ou menos)  a estupidez. Portanto, uma pessoa que depende de outra para viver e não tem muitas formas de se defender das agressões, violências (físicas ou não) que sofre - ou, tantas vezes, para se vingar delas, pura e simplesmente - opta pela "estupidez". É um escudo fácil, eficaz e rende bastante.

A este respeito lembro-me de uma história que se passou - não acredito que se tenha passado; penso que é um mito. Mas gosto dela - durante o primeiro choque do petróleo, em 72 ou 73. Nessa altura o governo decidiu criar uma quota de vinte litros de gasolina por automóvel; mas um senhor, mais esperto do que os outros, conseguiu comprar dois barris - 440 litros, para quem não sabe - de combustível. Chegou a casa e disse ao empregado "faz um buraco no jardim e põe a gasolina lá dentro". Coisa que o funcionário fez, com a habitual diligência. Quando acabou bateu à porta de casa e perguntou ao patrão "a gasolina está nos buracos. Agora onde ponho os barris?"

Esta história era contada na então Lourenço Marque para ilustrar a "estupidez" dos pretos. Eu acho-a a mais bonita história de vingança que conheço.

Ou seja: devemos pensar que temos em face de nós pessoas inteligentes, que desenvolveram um conjunto de conhecimentos que lhes permitem viver onde vivem, que são nosso anfitriões - mesmo sendo nossos subalternos. Devem ser respeitadas e compreendidas. Tal como se deve aprender a língua do país para onde se emigra, deve aprender-se a conhecer a cultura e mentalidade dos seus povos.

Diário de Bordos - Parnaíba, Piauí, Brasil, 20-02-2012

O primeiro passo está dado, a primeira ponte atravessada. A carreira foi capinada, está limpa e linda. Já começámos o segundo: o guincho funciona. Amanhã, se tudo correr bem, tê-lo-emos dado: o barco estará dois metros acima na carreira.

Na Europa esta operação duraria um quarto de hora.

Vai ser preciso enrolar o cabo no tambor do guincho, preparar troncos de palmeira (carnaúba) para pôr debaixo do barco, passar um cabo em torno do casco porque à popa tenho medo de partir qualquer coisa (estamos de popa para cima).

O dia esteve lindo, mas agora voltou a chover. Chove há horas, pelo menos três, ininterruptamente. Li uma vez que as chuvadas duram quatro horas, em média, mas suponho que essa média não conte com os trópicos. [A chuva parou ao fim de quatro horas].

T. arranjou um emprego num iate a motor.

Estou ansioso por me ver no mar, nem que seja num barco de pesca a caminho de S. Luiz, dois dias se tudo correr bem.

O carnaval diluíu-se com a chuva. Nem sombra de barulho. Deve ser a primeira vez na vida que aprecio a chuva. Só espero que amanhã ela volte para de onde veio.

Na quarta-feira vou a S. Luiz falar com o dono do estaleiro. Gosto daquela cidade, é das poucas no Brasil onde me senti realmente bem (a outra foi Belém do Pará). Estou contente por rever o centro, tão português. Foi em S. Luiz que encontrei uma livraria muito bonita, que só tinha livros antigos, raros, especiais. Comprei lá uma monografia do rio Parnaíba escrita pelo alemão que lhe fez o levantamento, no séc. XIX.

Deixei esse livro no Mango Bay, no Marin. Pensava que lá ficaria para sempre, mas no mesmo dia uma senhora pegou nele, fez uma cara de espanto e levou-o. Devia ser brasileira. Eu estava na minha mesa habitual, mesmo ao lado do sítio onde se deixavam os livros, mas não lhe disse nada.

Ontem decidi que nunca mais aceito um trabalho que não seja pago correctamente. Deve ser um sintoma de que estou a envelhecer. Espero que sim, de outra forma seria um sintoma de que estou a crescer, o que seria embaraçoso. Ou seja, vou mudar de vida, mais uma vez. É a primeira vez que acontece com tanta antecedência, tanto pré-aviso.

A caipirinha não se exporta bem. Aqui são todas boas, fora do Brasil não há uma que se aproveite. Enfim, há; sou injusto. Mas são raras. As pessoas ficam melhores quando saem da terra, nos dois sentidos de terra. O que há mais que viaje bem? O vinho tinto às vezes, depende; talvez o rum, os livros e alguma música. E as batatas claro, mas quem é que se interessa por batatas?

Os barcos viajam bem, mas são feitos para isso.

Olho para o B. e vejo-o como será daqui a uns meses. Suponho que não há maior prazer num trabalho do que esse. A única coisa que fiz até hoje que me deu mais satisfação, de um ponto devista profissional, foi o trabalho no Burundi e no Zaire.

É uma boa maneira de acabar um ciclo.

20.2.12

Tratado de saber viver para jovens casais que decidam emigrar para um país africano ou semelhante

A primeira coisa que os jovens casais que decidem viver num país africano, ou semelhante, devem ter em mente, sempre, é que naqueles países ou se é temido ou se é desprezado. Não há meio termo. As únicas relações reconhecidas são as de força. É preferível - sobretudo quando se quer fazer alguma coisa - ser-se temido a ser-se desprezado.

Claro que há várias maneiras de se fazer respeitar. Gritos, má-criação, pontapés e murros não são, nem de longe, a melhor. Por vezes só fazem com que se seja simultaneamente desprezado e temido, o que não augura nada de bom. Nas novelas do século XIX sobre o Pacífico Sul, por exemplo, essas eram as pessoas que acabavam na boca e restante sistema digestivo dos indígenas.

Pode, e deve, ser-se firme mas polido e bem educado. A verdadeira força é tranquila.

Outro ponto importante tem a ver com a monetarização das relações. Quando uma pessoa tem fome só pensa em comer. Ou melhor, não pensa. A fome é aquilo que no meu 7º ano de liceu designávamos por englobante. A fome ou uma necessidade aguda de dinheiro, seja para o que for - comida, droga, ter um sítio para dormir, dar de comer à família - transforma as pessoas (isto não se aplica só aos países africanos e similares, naturalmente); e elas começam a ver nas relações sociais, humanas, uma fonte de financiamento. Não é bem assim, elas não começam a ver: elas vêem, tout court.

E agem em consequência. Quando interagem com alguém pensam que essa pessoa tem a obrigação de lhes dar dinheiro - e toda a relação é orientada no sentido de nos fazer ver esse facto para eles evidente, linear. Há que resistir à tentação de lhes dar dinheiro sem motivo; mas ao fim de um certo tempo aproveitar um pretexto qualquer para lhes dar uma pequena - sublinho pequena - quantia. E quando digo pequena digo pequena para eles, não para nós, claro. E ao fim de um certo tempo, não logo.

A bondade não é vista como sinal de humanismo, mas de fraqueza.

Porquê dar, então, perguntar-me-ão os jovens leitores interessados em emigrar para um país africano ou similar? Porque nestes países as teias de relações são importantes para as mais pequenas coisas. Aquilo que na Europa ou no norte do continente americano se consegue formalmente - indo a uma loja, a um organismo do governo, à lista dos telefones - aqui depende de quem se conhece, e, sobretudo, de como se é visto. É importante, e muito útil, ser considerado alguém que não é tolo, mas compreende as realidades locais.

Terceiro ponto, e último por hoje: a resolução de problemas. Deve ter-se sempre presente que não se paga para resolver um problema. Nunca. Paga-se para evitar os problemas. É verdade que este axioma exige tacto, sensibilidade e uma grande quantidade de erros na identificação das pessoas certas. Deve ter-se um certo capital para estes erros, inevitáveis; e outro capital para arcar com as consequências, claro. Lembro-me de uma passagem de fronteira no Burundi (uma fronteira que atravessava frequentemente, com o então Zaire) que me levou quatro horas, em vez dos quarenta e cinco minutos habituais. Mas é preciso ter a noção de que se se abre a torneira é muito difícil fechá-la - e o cano de problemas em África, e noutros países semelhantes vem de uma fonte sem fundo.

Há muitas coisas importantes, mas hoje ficamo-nos por aqui. Isto já devia chegar para fazer reflectir os jovens casais - estão verdadeiramente interessados em emigrar para um país africano ou semelhante? Eu não, por exemplo.

Um desenho por dia

Aqui. A ver, absolutamente.

Acordo ortográfico

Uma miúda de dez anos ouve-me falar com o pai. "De que país és tu?", pergunta. "De Portugal". Vejo o ar espantado dela e pergunto-lhe "sabes onde é? Sabes o que é?" "Não". 

O ensino deve ser péssimo, claro. 

19.2.12

Diário de bordos - 190212

I
"Um homem sem dinheiro não tem palavra", li um dia algures. Não recordo se é um provérbio se uma observação pessoal, mas sei que é verdade. Um homem sem dinheiro não pode ter palavra; quem não tem dinheiro hoje não pode pensar no amanhã. (De um ponto de vista estrictamente biológico não deve sequer, mas isso é outro debate.)

Só pensa no futuro quem tem o presente assegurado - e esse futuro mede-se em dias, não se mede em meses. Daqui resulta que se se quer dar palavra a um homem deve dar-se-lhe dinheiro primeiro; e se se quer que ele tenha fé no futuro deve garantir-se-lhe o presente. É um risco, claro. Alguns desses homens continuarão sem palavra mesmo depois de ter dinheiro; e sem futuro, mesmo depois de ter um presente.

Mas não todos, nem mesmo a maioria. É um risco que vale a pena correr. Mais, que se deve correr. Não por razões humanitárias, humanistas, morais (apesar de estas não serem despiciendas); mas porque os benefícios que dos casos que resultam tiramos são incomensuravelmente maiores do que o que eles nos custaram. A satisfação moral vem depois.

Raimundo continua a roçar. De madrugada vendeu cuscus na rua; em seguida foi para o estaleiro capinar. Disse-me que chegaria às nove e meia. Chegou treze minutos depois, e pediu-me desculpa pelo atraso. Cinco minutos depois estava de catana na mão (creio que machete é espanhol). Tinha previsto mais dois homens para trabalhar com ele, mas não apareceram. É Carnaval, ninguem leva a mal? Não é bem assim. Eu levo. Mas as coisas são o que são, e não como nós queremos que elas sejam (não é forçosamente o mesmo do que "como deviam ser").

Hoje há um bocadinho de sol, e o céu ainda tem restos de azul. Só preciso que páre de chover quatro ou cinco dias. Se não chovesse uma semana eu começaria a considerar a existência ou não de Deus. Mas nesta época do ano é impossível; e Deus não existe, de qualquer maneira.

Já o Diabo sim, é uma maçada. Está em cada homem, como diria Riobaldo, de quem ontem me lembrei.

II
O restaurante Cornélio fica na esquina da rua do Pacífico com outra cujo nome não consigo ver daqui [rua do Coronel Pacífico com 7 de Setembro, ou 7 de Janeiro]. Não tem cardápio: só serve caranguejo, a três reais a peça. A rua cujo nome não consigo descortinar fica à beira-rio e da minha mesa vejo a outra margem, logo depois do fim da rua do Pacífico. Vegetação densa, da qual sobressaem palmeiras - ou coqueiros, não sei - altíssimas. As (ou os) ditos cresceram direitos, apesar do vento. A vegetação é realmente densa.

O único problema que até agora vejo no restaurante Cornélio é que da rua Pacífico me chega uma música altíssima, e péssima; e da outra rua idem, mas, naturalmente, diferente. A cacofonia seria insuportável, se não fosse assim em todo o lado.

Com excepção da vista do outro lado do ria, uma nesga da largura da rua, a paisagem é feia. Mas é bonita. Não sei como explicar esta contradição, como diria um ex-marxista. (Talvez recorrendo à autenticidade, ou coisas do género. Prefiro não o fazer: convivo bem com algumas contradições.)

Ou talvez seja consequência deste calor, tão denso como a selva do outro lado do rio, um calor que só as ocasionais rajadas de vento conseguem disfarçar. Gosto dele. Ando muito a pé e tenho por vezes a impressão de avançar numa piscina invisível, uma piscina de calor que me trespassa a pele e se distribui pelo meu corpo como se fosse sangue.

Tudo se transforma em calor.

É preciso viver nos alíseos para perceber a que ponto o vento é uma benção. E a cerveja, claro.

III
Os caranguejos demoram quarenta e cinco minutos a chegar. As músicas não são o único problema do restaurante Cornélio.

IV
Estou bicicletado, finalmente. Aluguei uma GTS (Good Technology Starting, informa uma das placas) Pro-M1 - esqueço decerto uma série de letras e números - por um valor a determinar.

A bicicleta pertence a Claúdio, que conheci em 2010 na pousada e agora trabalha no restaurante que me serve de escritório, abrigo e restaurante, claro.

Claúdio é de Parnaíba, mas vivia em Brasília. Em Julho de 2010 veio para Parnaíba por causa da asma. Só pensa em voltar para o Planalto. Está a juntar dinheiro para a viagem, que é cara (se o preço for o que ele me disse, claro) para uma pessoa que anteontem, por exemplo, ganhou oito reais numa noite (para referência, o salário mínimo é de 620 reais. Enfim, tudo é caro para quem ganha 10% do que vende num restaurante, mesmo que não seja o mais barato do quarteirão). Pedi-lhe para me procurar uma bicicleta, mas ele só encontrava coisas demasiado caras; até que, hey, presto, encontrou a solução: alugava-me a dele, que não a usa porque mora muito perto do restaurante (o qual só abre às cinco da tarde. Algo me diz que durante o dia vai ser ele a avançar na tal piscina de calor, enquanto eu pedalo nela).

Aceitei e hoje vamos negociar um preço. Claúdio contou-me que a irmã dele, que também vive em Brasília, foi pedir ao marido que ele o ajudasse a comprar o bilhete, mas o cunhado ainda não respondeu. Já lhe disse que o aluguer da bicicleta não conseguirá pagar-lhe o bilhete todo, mas espero encorajar o cunhado, reduzindo-lhe o a taxa de esforço.

V
Amanhã a carreira estará completamente capinada, e o primeiro passo dado. Uma viagem de cem li começa com um passo. E já que estamos nas chinesices: metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.

Vai chover.

VI
É preciso reconhecer que o jantar estava uma porcaria. Fui comer à Beira-Rio, uma zona da cidade (que não é a do restaurante Cornélio) situada, estranhamente, à beira-rio, mas para jusante, cerca de um quilómetro da pousada.

É uma zona cara, e escolhi o restaurante que me pareceu mais baratinho; e nele escolhi um dos pratos mais baratos, "filé com fritas", uma espécie de picapau sem o molho do picapau e, estranhamente, com batatas fritas.

A carne estava rija como um dia de nortada no Guincho, as batatas demasiado fritas e gordurosas. Se alguém conseguisse imaginar as saudades que tenho de uma boa refeição... Parnaíba faz Antigua parecer um Everest da boa cozinha (e é. Que saudades tenho do meu Rum Baba, do Lime & Coconut, do abençoado Sun Ra,  do Mad Mongoose, o melhor fish and chips dos hemisférios sul e ocidental, de beber um rum punch no Waterfront. 

Dúvidas

Às vezes pergunto-me se a linha entre animal lover e human hater não será um bocadinho ténue, demasiado ténue.

Domingo...

18.2.12

"Ser"

Espero que me perdoem a auto-citação. É a parte menos interessante deste post, tão bonito.

Diário de bordos - 180212

As coisas não aconteceram exactamente como eu tinha previsto; mas aconteceram - ou melhor, estão a acontecer.

De manhã não apareceu ninguém para trabalhar; à uma da tarde encontrei um senhor que se disponibilizou para fazer o trabalho. Às duas e meia já havia capim no chão.

Mas não por mim. Raimundo, o senhor, diz que não tinha outro machete (facão, aqui) e que de qualquer forma é muito perigoso. "É preciso saber roçar", explicou. "Não sou dos melhores a roçar, mas também não devo ser dos piores", pensei. Mas não é o mesmo, claro.

Há poucas coisas que goste mais de ver do que uma mulher sensual apaixonada, ou um homem competente e que goste do que faz trabalhar. Raimundo não esperou sequer que o fôssemos buscar - quando cheguei ao estaleiro já ele lá estava; cinco minutos depois cortava o mato com a determinação e a precisão de uma máquina. É bonito ver alguém (seja homem ou mulher, claro) trabalhar bem, precisa e eficazmente.

Suspeito que Raimundo tinha outro machete em casa, mas não insisti e voltei para casa. O comboio saiu finalmente da estação, de nada servia ficar no cais a acenar lenços de papel.

Puxar o barco dois metros para cima não deverá ser muito complicado (bato na madeira). O pior vai ser secar o casco, com esta chuva. E puxá-lo para baixo, quando a fibra estiver pronta. E rebocá-lo até S. Luiz. E encontrar em S. Luiz um estaleiro que seja bom e nos possa receber já.

Penso em cada uma das etapas e lembro-me de que tinha previsto duas semanas para encontrar um reboque e o encontrei num dia (enfim, isto discute-se: só daqui a dez dias terei a confirmação; mas é pouco provável que a resposta seja não). De nada serve tentar atravessar as pontes antes de a elas chegarmos. Basta sabermos que elas lá estão, e tentar imaginar onde, para não atravessar uma que nos leve a um beco sem saída.

Diário de bordos - 170212

À noite o centro da cidade fica deserto. É como a maré: vemos uma coisa quando está cheia, outra quando está vazia.

Conheço pouco de Parnaíba: a cidade é enorme, apesar de "só" ter 140,000 habitantes (é pouco para uma cidade brasileira. Mas não tem prédios, por isso ocupa uma superfície muito grande). Quando por ela me desloco sinto-me fugido de Grande Sertão: Veredas, como se Riobaldo de repente deixasse o mato e em vez de cavalos visse automóveis.

O bairro onde passo a maior parte do dia, e onde fica a pousada é a parte mais bonita (do que conheço, que repito é pouco). Fica onde era antigamente o porto fluvial; as casas - numa área pequena, é certo -  estão bastante bem mantidas. A pousada é num antigo armazém. É muito simples, de uma notável falta de qualidade, mas simpática e gosto de lá estar.

Se Parnaíba me faz pensar em Guimarães Rosa, o Brasil - a parte dele que conheço, que também é pouca - traz-me inevitavel e recorrentemente à memória  Pirsig e O Zen e a Arte da Manutenção de Motociclos. Aquela parte sobre a qualidade. "O que é a qualidade? Se não me perguntam eu sei, se me perguntam deixo de saber". A paráfrase é a Santo Agostinho, creio [é] e referia-se ao tempo. Para este não há remédio; mas para a qualidade há, e é fácil. Basta vir ao Brasil.

Não é obviamente muito pior de que tantos outros países - os de África, incluindo a sua extensão europeia, Portugal e excluindo a África do Sul vêm imediatamente à lembrança - mas aqui é pior porque o dinheiro se sente como se se visse. E vê-se, é certo. Um brasileiro não sabe esconder o dinheiro, quer o tenha quer não. Enfim, talvez seja injusto. "Uns não sabem esconder o dinheiro e outros a ausência dele" talvez esteja mais perto da verdade.

Hoje começam as primeiras festas do Carnaval. Se eu fosse um assassino só actuaria neste período. Ou então talvez pudesse transformar-me num comprimido de aspirina, ou outro analgésico qualquer.

Isto dito, a cidade é relativamente segura. Relativamente: isso não impede as casas de terem muros de três metros de altura encimados por mais um metro de vedação electrificada.

Trabalhar no Brasil é como trabalhar no Algarve, mas duas vezes pior. Duas, só? Sim. Preços que variam sem qualquer espécie de pré-aviso, uma impossibilidade total de acreditar no que ou em quem quer que seja, a noção de que o tempo é para ser desfrutado e não aproveitado. Mas em pior, sem dúvida.

Amanhã vou capinar a carreira do estaleiro, se ninguém se esquecer de me trazer o machete. Vai ser giro. "Um marinheiro é um tipo que sabe fazer tudo, vírgula, mal". A primeira vez que vi um machete tinha oito anos e fiquei completamente traumatizado. Foi usado para me tirar uma matacanha do polegar. Desde aí tenho convivido com muitos, mas que me lembre é a primeira vez que vou utilizar um.

16.2.12

Uma boa definição

"Amigo é quem nos conhece e mesmo assim gosta de nós."

Contenção

Onde antes havia três F agora só há dois. Não sei se é por causa do acordo ortográfico, da crise ou outra coisa qualquer. Mas é chato porque dos três o que desapareceu era o mais inofensivo.

Distância

Perto de ti sou um príncipe. Se a distância me beijar transformo-me num sapo.

As raças e as baratas

Pertenço a uma raça de gente que acha o futuro mais bonito do que o passado. É uma raça que parece extinta, mas estranhamente sobrevive a tudo; mesmo a um ataque nuclear, como as baratas.

Corpo e alma

Há coisas que são aparentemente semelhantes, mas que após uma aturada investigação se revelam completamente diferentes. Os bares e as quecas, por exemplo. 

Isto é: à partida uma queca é uma queca; um bar um bar. Mas à chegada  não é verdade. Há bares que dão de beber à alma; outros dão de beber, tout court. E há quecas que são pedidas pela alma, enquanto outras o são pelo corpo.

Nada a ver, claro; a menos que se, por assim dizer, refiram à mesma pessoa, ao mesmo corpo.

O que as palavras designam

Foi assim que tudo aconteceu: eu pedi uma caipirinha. Depois outra, e outra, até que deixei de ser capaz de dizer caipirinha. Isto é, em vez de dizer "uma caipirinha, por favor" (dizer "mais uma" é para adolescentes, quem não percebe nada disto ou totós armados ao pingarelho) e comecei a dizer "uma, por favor". A rapariga do bar servia-mas sem hesitar, até que deixei de ser capaz de dizer "por favor" e dizia só "uma". "Uma quê?" perguntou-me a certa altura. "Felação", respondi. 

Pensava que ela não saberia o que felação quer dizer, mas ela sabia. Estava num "bar cultural". Respondeu-me "velho do caralho" e eu "nova da cona" (não sei o que é melhor, sinceramente).

Ela chamou um preto enorme que estava à porta mas eu aprendi a dar uns pontapés quando era puto e de repente estava com algemas num carro da polícia. O preto estava furioso, é preciso dizer as coisas como elas são.

Foi uma porra.

A miúda era gira, usava um boné à estivador de Londres e era magrinha e ainda a vi de raspão quando a carrinha da polícia se afastava comigo lá dentro.

Este é o problema dos centros culturais da província: com a internet e a televisão as gajas aprendem muitas palavras novas; e como não sabem dão-lhes valores esquisitos. Se eu tivesse dito "um broche" ela teria compreendido. O problema são as palavras, não o que elas designam.

Funcionários públicos e areia para os olhos

Não partilho inteiramente esta visão idílica, mas reconheço-lhe um fundo de verdade. Um potencial de verdade, digamos.

O amor que sinto por ti

É difícil descrever o amor que sinto por ti porque o amor que sinto por ti é parte de mim. É difícil falar de mim, não é? Seria como falar do meu sangue: "és o sangue do meu sangue" (já li isso algures, não sei onde); ou como falar da vida: "és a vida da minha vida" (idem). Falar do amor que sinto por ti seria como falar das coisas que fazem de mim o que sou: "és o vento do meu vento, o mar do meu mar, o ar do meu ar, o céu dos meus albatrozes". Não sei como dizer a alguém "és o céu dos meus albatrozes" sem parecer patético, ridículo ou coisa que o valha.

Verdade seja dita que não há formas não-ridículas de falar do amor que sinto por ti;  vento, mar, sangue e por aí adiante não são menos ridículos do que um albatroz, a coisa mais bonita que jamais vi voar. Não há ventos feios, nem mares (nem amores).

O amor que sinto por ti é uma parte de mim, como a luz é do sol, não sei, ou a beleza da lua, ou esta noite de que a chuva deixou o rio cheio e lindo parte do dia  que foi lindo e cheio como o rio que agora flui largo e rápido para o mar, parte de mim.

15.2.12

Filosofia

Para uma jovem senhora em Antigua.




Vai ser lindo, vai

Que Portugal suporta mal as evidências já se sabia; e quanto mais evidentes menos. Sobretudo se forem ditas por alguém "de direita" (entre aspas porque se o CDS é de direita eu sou a mulher do Papa). 

Por uma vez que alguém do meio-partido diz alguma coisa sensata, evidente, vai ser lindo ver os rasgos de virtude que por aí virão. Aliás até creio que já vi um hoje, aqui.

Meu Deus, isto são os nossos puguessistas. Que dirão os outros...

Diário de bordos - 150212

I
Até aqui passou depressa. Dormitei, li, freecellei, redormitei, reli, refreecellei.

O dia está feio, coberto; mas sem chuva, ou muito pouca. A paisagem continua fascinante. Extensões quase marítimas de planície, ao fundo montanhas isoladas, como ilhas no horizonte. É fácil imaginar tudo verde - agora está meio seco, castanho. Daqui a dois meses, quando a época das chuva estive no seu auge, o verde será lindo.

A estrada ficou má outra vez, e este condutor vai mais depressa do que o anterior. É difícil escrever. O sol está baixo, a luz chega filtrada pelas nuvens e ilumina a paisagem com tons quase fantasmagóricos, como se fosse pintada. Savana lhana, interminável, às vezes densa e impenetrável, outras esparsa. Os terrenos estão cercados, e as bermas muito mais limpas do que da outra vez que aqui passei. Lembro-me de ter ficado impressionado, e desgostado com os sacos de plástico e lixo diverso que juncavam o campo, ininterruptamente. Agora não há lixo.

A viagem de autocarro é longa, mas mesmo assim melhor do que o avião. Tudo é melhor do que estar dentro de um avião, creio.

II
Da vida animal: chego à pousada onde vou ficar, uma coisa simples mas bem situada e com bastante charme. A senhora mostra-me um quarto, depois outro. Fico neste último. A certa altura, já sem os óculos, vejo uma mancha grande no chão, ao lado da cama. Parece-me grande de mais para ser uma barata (mesmo mutante, private joke). É um sapo, enorme, assustado. Não deve se aquele o seu ecossistema, mas agora não me apetece pô-lo fora. Ele entrou, que saia.

Hoje vi a porta do quarto que visitei aberta e entrei, para confirmar o ajuizado da escolha. Em cima da cama havia uma quantidade grande de excrementos, concentrados numa área de trinta e cinco por trinta e cinco centímetros, aproximadamente. Não reconheci a merda, passe o termo e perguntei à funcionária. "É de morcego", diz-me com um sorriso de orelha a orelha. "A porta ficou aberta e eles entraram". Não sei se foi "eles" se "ele" - ou eram vários e tinham bastante pontaria, ou era só um e estava de contenção há muito tempo.

Hallelujah!

Este blog (Má Despesa Pública) deve ser lido, comentado, acrescentado e divulgado. É a única maneira de tentar diminuir e controlar os gastos do Estado. O que nos separa da "Europa" e nos aproxima de África é a cultura do silêncio e o seu corolário, a impunidade.

(Via Tempo Político.)

14.2.12

Diário de bordos - Fortaleza, Ceará, Brasil,13-02-2012

Um dos recepcionistas do hotel chama-se Mardónio. Mardónio, perdoem-me a repetição.

Amanhã vou-me embora para Parnaíba. É aqui que o filme começa; até agora foi só o genérico. Dez horas de autocarro. O que me aborrece mais são os vidros fumados. Da outra vez encontrei uma janela através da qual se conseguia ver qualquer coisa, e a viagem passou num instante.

Hoje fui passear ao centro de Fortaleza. Visitei a Catedral. Um vitral informa que a construção (enfim, a "benção da pedra fundamental") começou em 1939 e que a inauguração foi em 1978. Por fora não é particularmente bonita (é aliás bastante pirosa) mas o interior é claro, arejado. Sentei-me um bom momento para tentar lembrar-me de quantas catedrais conheço tão ventosas por dentro como esta. Não consegui lembrar-me de nenhuma, mas penso que as haverá decerto em África, por exemplo.

O Centro (é o nome do bairro também) é bonito, vivo. Calçada à portuguesa, edifícios interessantes (poucos, valha a verdade) e a habitual confusão. Nestas cidades o comércio de luxo refugia-se nos centros comerciais, mas o comércio popular mantém a vida e a animação dos bairros centrais. A cidade é muito menos barulhenta do que Salvador, um grande ponto a seu favor, para além da segurança. Foi difícil encontrar uma esplanada para me sentar e beber uma cerveja. Quando finalmente encontrei, lembrei-me do Cidadania Lx: quanto trabalho teria aqui... Não se pode dizer que o Centro está descaracterizado - a vida não se descaracteriza, e provavelmente assim é mais interessante do que seria se tivesse transformado em museu. Mas cadeiras e mesas de plástico, ainda por cima velhas e de várias marcas de cerveja (ou refrigerante, não me lembro) numa praça tão bonita é pena. É a praça onde se concentram os vendedores de livros, em pequenas barracas ou tendas, não sei como chamar-lhes. Os livros estão acumulados em pilhas às vezes directamente no chão, outras em cima de um tecido. O cenário não gera grande vontade de ir flanar (pensei inevitavelmente no que seria a praça se fosse em França, daí o galicismo).

Descubro-me com saudades de Antigua. Não me refiro apenas às saudades de T., mas às que sinto pelo país. É uma surpresa, confesso. Caro que sabia que gostava daquilo, mas nunca pensei que fosse tanto; ou talvez a surpresa venha de ainda sentir saudades de um país, vá saber-se.

13.2.12

Desgraçados

Estes desgraçados vão para a Suíça sem, provavelmente, saber que lá não há salário mínimo, não há despedimentos com ou sem justa causa (há despedimentos tout court e o empregador não precisa sequer de explicar porquê), não há pontes, o trabalho extraordinário é pago - quando é - a 125%, em caso de despedimento a indemnização é no máximo três meses de salário (não é três meses por cada ano trabalhado; é três meses). Coitados, imagino o que os levará a aceitar condições tão exploradoras, tão severas. 

E não percebo como raio de carga de água é que há empregos, num país em que os trabalhadores são tão desprotegidos. A julgar pelas opiniães (sic) dos nossos sindicalistas, num país em que uma empresa pode despedir sem sequer ter de apresentar razões toda a gente deveria estar na rua, não é? Logo, imediatamente. Aliás é para isso que contratam os imigrantes - para os despedir imediatamente, sonho de qualquer patrão.

12.2.12

Ena tantos

300,000 pessoas?  É muita gente. Será que a CGTP usa a base dez, como todos nós?

Enfim, é conhecido o hábito de os comunistas se encavalitarem em quem trabalha; chamam a isso defender os trabalhadores. É portanto plausível que o Terreiro do Paço tenha albergado mais gente do que aquela para que linearmente tem capacidade.

Diário de bordos - Fortaleza, Ceará, Brasil,12-02-2012

Chega-se ao Brasil e muda-se de mundo, de língua; aparecem os sorrisos. Mas não se muda de tempo: o conceito de que as pessoas podem ter mais que fazer, ou querer fazer mais do que esperar numa bicha para os passaportes (2 funcionários para as chegadas internacionais, num aeroporto como o de S. Paulo, é obra; e mais obra ainda é um deles ausentar-se tranquilamente do seu guichet e ir-se embora com um sorriso), para um café, para mudar um bilhete, para o que qur que seja é tão estranha aqui como em Antigua, Portugal ou na maioria dos países africanos. Há tempo; há sempre tempo, nunca se esgota.

Tomara a minha paciência fosse igual. Não é, mas pelo menos aprendi (já há algum tempo, é certo; tanto que por vezes esqueço-me do que aprendi) a não exteriorizar a impaciência, o que já é um progresso notável.

Não gosto de Fortaleza, já por aqui o devo ter dito; a verdade é que não gosto do Brasil e Fortaleza parece-me um condensado, pior do que Salvador; a qual tem pelo menos a graça de ter graça, ser linda e ter história, histórias. Fortaleza é um amontoado de arranha-céus milionários frente ao mar (para onde, de resto, descarregam os esgotos directamente. Não sei se as pessoas que compram os apartamentos por milhões de reais tomam banho na sua própria merda, mas duvido) e de barracas, ou quase barracas, por trás. Talvez devido ao clima as ruas têm pouquíssima vegetação.

Há uma coisa de que gosto: a Beira-mar. Seis quilómetros de passeio, que percorro de manhã cedo, eu e bastante mais gente; alguns andam, outros correm, pedalam, patinam (muito poucos) sozinhos, em grupo, a conversar e rir ou com o ar concentrado e sério de quem está a desempenhar uma missão, a cumprir uma promessa. A vista é linda, a temperatura agradável, o vento refresca.

Por todo o lado perspassa a falta de qualidade. Tudo é imperfeito, partido, negligenciado, mal feito, improvisado. Como se, satisfeitos com a beleza da paisagem, os brasileiros achassem que nada a pode estragar; ou que ela chega para compensar a fealdade de tudo o resto, o lixo, os esgotos a céu aberto, os pedintes, os buracos nas ruas, os vendedores ambulantes, as crianças famintas (muito poucas, felizmente, aqui). A frente de mar é linda, mas as cadeiras das esplanadas são de plástico (fazem-me lembrar um outro país cujo nome agora de repente não me ocorre), estão sujas, desarrumadas, as garrafas e copos vazios não são levantados das mesas.

O Brasil deve a sua prosperidade actual ao facto de a China lhe estar a comprar tudo e mais alguma coisa, não são mudanças estruturais que lhe justificam e sustentam o progresso.

Uma coisa que acho fascinante aqui é o amor que este povo tem pelo país: pobre por mais pobre que seja pode reclamar contra os políticos, contra os ricos, contra tudo - mas acha que o país é o melhor do mundo. Hoje vi uma jangada com uma vela que era a bandeira brasileira.

Há países em que uma pessoa se pergunta "como é que num país tão pobre pode haver gente tão rica?". Aqui a pergunta é a inversa: "como é que num país tão rico pode haver gente tão pobre?" (Não venham com a história dos EUA, etc. Um pobre nos Estados Unidos é muito mais do que um remediado aqui). Uma das razões é o proteccionismo, demente. É incompreensível como o país insiste nestas políticas e se recusa a ver o resultado - todos, mesmo as vítimas delas, as aprovam. Faz-me lembrar um texto de Jorge Luis Borges no qual um povo não sabe que há uma relação entre o acto sexual e o nascimento, nove meses mais tarde, de uma criança.

9.2.12

Diário de bordos -090212

As despedidas foram comoventes (disse adeus ao Skullduggery, à Ondeck, à Connie e ao Billy, claro e ao Rum Baba, onde fomos almoçar). O jantar de ontem acabou por ficar óptimo apesar de o habitual atraso ter sido ainda maior do que o habitual. Divertimo-nos, comemos bem (passe a imodéstia) e reuni o essencial das pessoas que significaram alguma coisa para nós nestes últimos meses.

Quando se deixa um país são pessoas que se deixam para trás. "E paisagens", reflectia no táxi que me trouxe. "Estou em Antigua desde meados de Outubro e conheço esta estrada como se cá tivesse vivido desde os cinco anos". "É a única estrada que conheço em Antigua, para além das de Jolly Harbour e Falmouth Harbour", lembro-me.

Onde quer que vá vivo entre aeroportos e o mar. Pena que goste tanto de um e tanto deteste os outros.

8.2.12

Resumo (continuação)

I (28.01.2011)

Dia 10 de Outubro [de 2010] apanhei um avião da TACV para ir ao Brasil buscar uma embarcação de vela; a qual devia levar de seguida para Portugal, fazendo assim uma viagem com a qual sonho há muito tempo: atravessar o Atlântico (à vela) no sentido Oeste - Leste. Por razões diversas essa viagem atrasou-se e, em vez de regressar à Europa e lá esperar que o barco ficasse pronto resolvi vir para as Caraíbas - realizando assim um outro sonho, ainda mais antigo: vir por terra do Brasil à Guiana Francesa.

Escolhi viajar como "antigamente": camionetes, pensões baratas (podia haver uma vírgula entre "pensões" e "baratas") e, sobretudo, a passagem mágica de barco entre Belém do Pará e Macapá - 24 horas pelo delta do Amazonas que  só elas justificam não ter voltado para Lisboa.

A ideia original era chegar a Trinidade e aí embarcar para as Antilhas; mais uma vez por razões diversas acabei por apanhar um avião e vir directamente para a Martinique, onde não vinha há 27 anos.

A partir do Marin - o porto no sul da Martinique para onde se transferiram todas as actividades da náutica de recreio desta ilha - embarquei algumas vezes (não tantas quanto teria desejado), conheci ilhas como St. Kitts e St. Martin, voltei a Grenada, onde estive pela primeira vez em 2004, encontrei pessoas com quem liguei laços de amizade fortes.

Hoje estou de novo no Marin, onde espero conseguir uma equivalência entre o meu curso e as exigências da legislação francesa; tenho um círculo de amigos e uma vida social; actualizei os meus conhecimentos sobre o mercado do aluguer de embarcações de recreio. Daqui a três semanas começo um trabalho de skipper que vai ser o culminar desta experiência. Uma vez terminado esse serviço regresso ao Brasil para ir buscar a embarcação que me fez, em Outubro de 2010, apanhar uma avião da TACV, ver uma jovem senhora no aeroporto do Sal que parecia saída de um livro do Corto Maltese e trazia ao peito um badge que dizia "Temporário", para o qual todos os homens olhavam como se fosse uma promessa e não uma informação, dormir num backpackers de Belém onde conheci duas alemãs que davam aulas na Universidade local sobre "climate changes" (não sabia que já era tema de aulas nas Universidades), comprar um hamac para dormir no barco entre Belém e Macapá, aborrecer-me mortalmente em Cayenne, apanhar um arraial de pancada entre Grenada e Bequia num catamaran de 40', viajar num super-iate de 82' entre o Marin e St. Martin, conhecer uma velejadora solitária de 66 anos, um skipper filipino de 33, um casal dono de um pequeno teatro em Avignon, um francês cuja única actividade na vida parece ser construir um muro à sua volta para se refugiar sabe Deus de quê, um tipo que atravessa o Equador pelo menos duas vezes por semana e não sabe o que é o Equador, e, sobretudo, descobrir que ao contrário do que pensava não perdi a capacidade de ser feliz.

Uma linha recta talvez seja o caminho mais curto entre dois pontos; não é de certeza o melhor.

II - (08.02.2012)

Escrevi este texto em faz hoje pouco mais de um ano. Afinal não voltei ao Brasil "uma vez terminado esse serviço": vou amanhã. Muitas coisas aconteceram nos doze meses e poucos dias que vivi desde então.

Utilizo o verbo viver propositadamente: depois de ter escrito aquelas linhas arranjei muitos mais "serviços" de skipper; conheci uma jovem (não é fórmula) senhora com quem, todas as coisas bem pesadas, me vou casar, um dia; desesperei: estive quase,  e por várias vezes, a deixar cair o projecto do Brasil, que me condicionou desde que naquele dia de Outubro apanhei o avião; fui infeliz, muito, nos meses de Verão que passei em Portugal e voltei a ser feliz, muito mais do que fui infeliz, nos meses que passei em Antigua; tive comigo a minha filha, dois meses e meio nos quais navegámos duas mil e quinhentas milhas, viagens inesquecíveis que moldarão, tenho a certeza, toda a nossa relação daqui para a frente. Provei cerveja colombiana e a simpatia daquele povo; passei quinze dias à bolina cerrada (o meu recorde até agora); fui rebocado pela primeira vez na vida para um porto por causa de uma avaria, vivi num sítio magnífico em Falmouth Harbour; deixo - pela primeira vez em muitos anos - um país com pena de o deixar.

Se isto não é viver não sei o que viver é.

Ou melhor, sei: é o que me espera. O objectivo é  simples: entregar o barco aos (agora) armadores como gostaria de o ter feito em 2010. Isto significa organizar um reboque de 200 milhas (é pouco, mas é contra o vento e a corrente e não vai ser simples); preparar o barco a minima para uma viagem de 1700 milhas até Grenada (é muito, mas é com vento e corrente a favor, vai ser simples); supervisionar os acabamentos em Grenada, uma ilha de que gosto quase tanto como gosto de Bequia. Quatro meses apaixonantes, quatro meses para fechar um círculo que se abriu há mais de quinze, antes da minha partida de Lisboa. Depois não sei. Um novo círculo começará, uma nova etapa.

A vida é uma sequência de portas que se fecham e portas que se abrem. O importante é fazer com que não fiquem portas mal fechadas para trás, e que se as abram bem abertas para a frente.  

Serviço público - Restaurantes St. Johns, Antigua

O cenário só não é surrealista porque "surrealista" é um termo demasiado gasto. Se não fosse, o cenário seria surrealista. Uma estação de gasolina numa zona mais ou menos afastada da cidade; por trás um farol fora de uso - a torre ainda com as riscas, um catavento no topo, mas sem vidros nem lanterna. É aí que se encontra o restaurante Taste of India (até o nome é surrealista. Se eu tivesse um milhão de dólares por cada Taste of India que conheço seria quase rico).

É um dos melhores indianos que conheço, ponto final parágrafo.

Éramos cinco, comemos cinco pratos diferentes - dos mais banais, como chicken tandoori até coisas menos frequentes, como danya fish (peixe num molho de coentros) -. Tudo entre o bom e o excelente. Os chefs vieram da Índia, de Mumbay (Bombaim para nós, creio).

Uma morada a não perder:

Taste of India
Independence Drive
St. Johns, Antigua

7.2.12

Discurso e respectivos gargarejos

Pedro Passos Coelho faz aquilo que só pode ser classificado como um grande discurso, mais coisa menos coisa. A intelligentsia nacional (em itálico não por ser estrangeiro, mas por ser irónico) espuma baba e ranho, claro. Num discurso de 25 minutos, eivado de verdades irrefutáveis, escolhe uma frase, faz o que pode para a tresler - coisa que consegue com uma facilidade desconcertante, sem qualquer esforço - e ooops, voilà, ecco, habemus gargarizandum.

Imaginem o que para aí iria se o homem tivesse dito, correctamente, que os portugueses deviam ser menos cobardolas, menos merdosos, menos enconados, menos pilinhas à volta do penico, menos não fode nem sai de cima.

6.2.12

Pobres deles

Uma má notícia para os canadianos, coitados. Sobreviverão?

"Falta de apoios financeiros põe em causa apresentação da música portuguesa no Canadá"

Basto rasca

A rasteirice do povo português - ou de parte dele, pelo menos - continua a surpreender-me. Há mais dignidade em qualquer minhoca, e em alguns ratos do que em algumas pessoas que me foi dado conhecer no meu querido país.

Adenda - acabo de ver isto. É magnífico e aterrador ao mesmo tempo. Magnífico pela precisão e concisão; aterrador porque demonstra que Portugal não vai mudar nos próximos séculos - esta descrição poderia ter sido feita há duzentos anos.

Diário de bordos - 060212

Posso averbar um Super Bowl no CV.

A primeira coisa que me fez estremecer foi aperceber-me de quanto eu sei de futebol, afinal. Isto é, olho para um jogo de futebol e sei o que as pessoas que correm atrás da bola tentam fazer. Levei meia-hora e dois artigos pescados na net para chegar quase ao mesmo ponto no que respeita ao futebol americano. Quase é um exagero.

O Mad Mongoose estava cheio, mas menos do que eu esperava; e mais silencioso - se fosse um jogo de futebol equivalente (uma Taça do Mundo, suponho) haveria gritos, exclamações, urros, reclamações, encorajamentos, ameaças, avisos, comentários a um ritmo aproximadamente mil vezes superior às manifestações daquele público ordeiro.

A equipa de B. perdeu. O homem estava destroçado, devastado, desfeito. Encontrei-o hoje de manhã. "Então, estás melhor?" "Não." "Ora, isso vai passar; é só um jogo." "Não vai passar. Vou pensar nisto o ano todo, até ao próximo."

Vi Madonna pela primeira vez. Um gajo pode não gostar da música, mas é impossível não ficar subjugado pelo profissionalismo da mulher, pela qualidade do espectáculo.

Os anúncios são fantásticos; vale a pena vê-los apesar de serem várias vezes interrompidos pelo jogo.

Num jogo que é, passe o eufemismo, violento vi dois jogadores deitar-se ao chão lesionados. Mais ou menos a mesma coisa do que no futebol a cada dois minutos. Com uma diferença: estavam mesmo lesionados.

Foi uma noite gira (sobretudo graças à escassez de ruidosas manifestações de "emoções"), a comida excelente, gostei de perceber um bocadinho do jogo - que me parece mais interessante e complexo do que o nosso futebol, mas isso deve ser por não gostar dele, passe o eufemismo. Não creio contudo que vá reservar já um lugar para o do ano que vem. Mesmo se soubesse onde estarei daqui a um ano.

4.2.12

Erro crasso

António Capucho, quanto a mim um erro crasso ele próprio diz que. Pelo menos sabe do que fala, coitado. Há poucos mais crassos do que ele.

«António Capucho "Não dar o Carnaval é um erro crasso"»

Diário de bordos - Antigua,04-02-2012

Frequentemente há eventos de beneficência, aos quais as pessoas aderem com entusiasmo. Hoje é uma goat race, uma corrida de estafetas pelos caminhos de montanha. Fui enrolado como voluntário e cheguei ao Mad Mongoose às seis da manhã. Houve muitas inscrições e algumas equipas já tinham começado - coisa notável, na manhã a seguir a uma noite de sexta-feira. 

Inscreveram-se oito equipas, mas é possível que ainda haja mais uma ou duas inscrições. Cada uma tem três pessoas. Ganha a que completar mais voltas.

Afinal acabei por não ser preciso - a senhora do organismo para o qual as receitas vão reverter trouxe mais gente do que o previsto - de maneira fui tomar o pequeno-almoço ao Skullduggery, Skull para os íntimos. É sábado em grande parte do mundo e tento lembrar-me de como eram os sábados nos diversos sítios por onde passei. Começavam invariavelmente com a edição semanal de um jornal - o FT (e às vezes também o Independent) em Londres, Le Monde em Paris e em Genebra, o Expresso, claro, em Lisboa (em Genebra lia-o aos domingos, porque chegava sábado à noite) - e um longo, longo café. Aqui não há jornais (há, mas são demasiado caros e chegam também com um dia ou dois de atraso). Nem jornais nem uma boa livraria onde comprar os livros que cada vez menos leio.

Vejo que morreu Ben Gazzara. A primeira vez que o vi foi em "They All Laughed", uma maravilhosa comédia romântica de Peter Bogdanovich, que tem um grande plano de perfil de Patti Hansen com um boné até às orelhas a guiar um táxi numa das pontes de Nova Iorque. Também gostava de ir ao cinema um bocadinho mais - quando estava em Lisboa pouco ia, mas há uma diferença muito grande entre não ir e não poder ir, não é? Há sempre, em tudo.

Hoje é sábado. No charter todos os dias são sábado, e nenhum é. Amanhã vou comprar o FT Weekend, para que o calendário não pense que ganha sempre.

E amanhã é domingo de Super Bowl. Pela primeira vez na vida vou assistir (pela televisão, claro) a essa mítica coisa, que só conheço devido à publicidade e de "ouvir ler". O nosso vizinho B. é um fanático. Já nos ensinou muita coisa; uma das quais é o preço demente dos bilhetes - os mais baratos começam nos mil e quinhentos dólares. Não é propriamente caridade.

Já reservámos os nossos lugares no Mad Mongoose (desnecessário é dizer), na primeira fila. O jantar vai ser chili con carne, entrecosto grelhado, hamburgers, cachorros quentes - game food, chama-lhe Connie. B. está excitado; nós curiosos. Gosto mais de ver futebol americano do que futebol do nosso, se calhar por ser exótico. Amanhã vou, talvez, perceber um bocadinho do jogo.