31.12.15

Bom Ano Novo

Confesso que tenho pena de ver o ano acabar, agora que ia tão bem.

Vai continuar assim, aposto. O meu e o de todos os leitores destas coisas toscas e desajeitadas que por aqui deixo.

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 30-12-2015

Com a dose de rum Mount Gay a três dólares, o espaço praticamente vazio e sem iates atracados  (hoje há um), a música que sem ser boa não é abominável o Soggy Dollar é - é forcoso reconhecer - o melhor bar de Simpson Bay.

Tudo isto é temporário, claro. Mas lembram-se do fim daquele filme de ficção científica do Ridley Scott, quando o herói se apercebe de que está apaixonado por um robot que tem os dias contados e pergunta "Quem não tem?"

Pois aqui é a mesma coisa. O que dura para sempre? "Nada", responde Willie Nelson, "excepto para sempre e tu, meu amor".

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Hoje vi J. no Ace. A recuperação é difícil e está à espera do resultado de uma análise.

A puta perdeu.

Por enquanto, eu sei. Mas cada dia é uma vida. E enquanto ele puder ver esta laguna da sua casa uma vida que vale muitas outras.

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Tive notícias da Grécia. Está quase. No meu imaginário Atenas é igual a uma passagem por Lisboa.

Que tanto eu preciso de uns dias ali. Costumo dizer que não sou um viajante, sou um nómada. Terão os verdadeiros nómadas um laço com um lugar como eu tenho com Lisboa?

Não sei. Que mais me falta: as ruas ou as pessoas que nelas andam? Os sítios ou as pessoas que os frequentam? As casas ou as pessoas que nelas vivem e nelas me acolhem como se eu fosse da casa, da rua, do sítio?

O que me falta mais: Lisboa ou as pessoas de Lisboa?

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Não escrevo para contar como foi, mas sim para me lembrar do que foi.

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Gosto desmesuradamente de St. Martin.

Mas já aqui estive. Como traduzir isto? Seria desonesto dizer que conheço muito bem. Não é isso.

É que já aqui estive e estou agora e a Atenas não vou desde 1983, com a excepção de uma breve passagem há dez ou onze anos.

Tenho vontade de lá voltar e beber cafés e brandies na Plaka e comer pita slouvaki e tzatziki (grafia não garantida) folhas de vinha recheadas e ir à Acrópole e merdas assim, primárias.

Nunca mais verei a minha americana. Muito menos o tunisino, espero que tenha morrido no fogo do inferno. Mas vai ser giro voltar lá.

Com sorte ainda conseguirei falar com um grego ou dois e perceber como é que eles lidam com o aldrabão do Tsipras (é tão raro alguém mentir no bom sentido que deve ser estudado).

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Aconteceu há uns dias. Devo-a à tripulante, que não usa soutien nem para correr, coisa que faz dia sim dia não durante uma hora: descobri que gosto muito de mamas mas têm de ser cultas e ter sentido de humor.

Mamas irónicas. As de primeiro grau seduzem-me pouco.

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Spiritualized, João. E depois a Angelique Ionatos com a Nene Venetzanious.

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De repente lembro-me do Reid's na Madeira. Talvez. O Reid's não tem Mount Gay e se tiver não o serve num copo de plástico e não custa três dólares e a música e no bar não estaria uma rapariga vulgar.

Mas a vista também é muito bonita.

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É tão bom escrever. Talvez um dia o faça.

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Isto tudo dito continuo a preferir o lado francês. A vulgaridade temperada pela civilização é preferível à vulgaridade em estado bruto.

(Além disso há menos).

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O S. M. está quase pronto. Ainda bem. Estava a tornar-se pesado, como uma miúda que nos envia SMS ou nos pergunta como estamos de cinco em cinco minutos.

A partir de agora só lhe faço festas.

30.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 29-12--2015

É uma dissonância cognitiva para quem quiser o termo técnico; unheimlich para os freudianos; uma porra para todos os outros.

J. devia ter voltado de Fort Lauderdale há uma semana e das duas três: ou regressou e não me ligou; ou não voltou. Ainda.

Qualquer das hipóteses é má e não quero sequer pensar nelas. De repente esta ilha deixa de ser uma ilha e começa a fazer parte de um continente que há três meses visitei e não quero visitar de novo.

Tudo isto aprimorado por um profundo auto-desprezo porque ainda não consegui telefonar-lhe. Tenho medo.

Não é bem o medo que me estraga, é o efeito que ele tem em mim. Hoje escondi-me atrás de um SMS. Amanhã ligo. Seja cão.

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Estou outra vez no Yacht Club mas desta prometo não chatear nenhuma jornalista por causa da merda de português que o excesso de trabalho provoca.

E se não for o excesso de trabalho há-de ser outra coisa qualquer. Seja qual for estou-me nas tintas.

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Estou cheio de sono e não consigo dormir, de sede e não há bebida que me seduza, de raiva e não há noite que chegue.

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O dia foi merdoso. Mas se não o tivesse sido tê-lo-ia sido, nada a fazer.

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Há um refúgio óbvio: as palavras. Sintaxe, semântica, léxico, morfologia; verbo predicado sujeito complementos directo e indirecto. Advérbios e pronomes e artigos e assim por diante até o inferno acabar.

A velha questão da pontuação.

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Pergunto-me como estará o Soggy Dollar. E que raio de carga de água faço aqui.

Já devia estar em Atenas, J. E tu aqui.

Não te atrevas.

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Felizmente a música no Yacht Club é infecta e a empregada gorda.

Isto tem de fazer parte de um conjunto, não é?

Homogéneo, se possível.

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Chegou-me dinheiro, o último do S. M. Tenho de começar a procurar trabalho. É pouco; vai fundir-se num instante.

Não sei qual a região do cérebro que gere as questões financeiras mas a minha tem a tarefa particularmente simplificada. Devia agradecer-me todos os dias.

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Curiosa a impressão que algumas pessoas deixam em nós. Capaz de ficar contra ventos marés expectativas e um monte de pieguices dessas. (Aqui não há marés mas há vento, expectativas e pieguices dessas e das outras).

Gosto da curiosidade e de tudo o que a suscita. É uma das coisas que me faz pensar.

As outras importam pouco. Essas e as que me protegem, como a distância, o vento ou o rum Mount Gay.

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Vi o beijo descer. Mais tarde algumas testemunhas disseram que não era um beijo.

- É um anjo.
- Nada! É um aguaceiro.
- É uma nuvem.

Não era. Vi perfeitamente. Um beijo desceu não sei de onde e instalou-se num casal a uma das mesas do Byblos e por ali ficou o jantar todo.

Quando passei o beijo estava feliz. Já o casal não sei; só lhes via os cabelos.

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Está vento. Vou ao Soggy. Com sorte está vazio, com azar não.

29.12.15

Limites

Há um limite para a quantidade de mortes que cada um de nós aguenta num dado lapso de tempo.

Infelizmente a morte não sabe.

Obrigado

O Observador tem, no fim de cada artigo, um link para o autor. Diz "sugira uma pista" ou coisa que o valha.

Ontem li um artigo que me pareceu mal escrito  - para além de ser em acordês, coisa que de todo não ajuda -. Estava no Yacht Club, ao qual agora de vez em quando vou para ver se "por acaso" esbarro no J. Gosto de acasos, sobretudo voluntários.

Pela primeira vez desde que leio e deixei de ler e voltei a ler o jornal utilizei o tal link para sugerir pistas e coisas assim.

Quero deixar aqui o meu agradecimento à autora: não só respondeu ao mail como o fez educadamente.  É uma arte mandar um gajo à merda de tal forma que ele acha bem (Sir Winston tinha uma definição de política que era mais ou menos assim).

De caminho a senhora deixou-me algumas pistas sobre as condições de trabalho das pessoas que escrevem para jornais.

A próxima vez que me chatear com o português de um artigo tê-las-ei em mente. Não há estilo que resista. Nem que a notícia seja sobre o fim de Portas à frente do CDS.

Não sei

É indecente, se calhar. Saí do infame Soggy e acabei - não directamente. Precisei de uma série de desvios - no Byblos a beber Arak.

Arak nas Caraíbas seria um contra-senso se a) não estivesse em St. Maarten - estou - e b) as dissonâncias geográficas fossem relevantes. Não são.

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Resumo: comi e bebi demasiado, o que é bom; e daqui a pouco vou deitar-me. Ainda melhor.

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 28-02-2015 / II

Hoje só me apetece falar da sorte.

Conheço melhor o azar e não sei explicar nenhum deles. Depois do jantar fui ao Yacht Club beber Mount Gay e escrever meia dúzia de patetices. A seguir vim ao Soggy Dollar.

Devia ter começado por dizer que tenho o mais profundo desprezo pelo Soggy Dollar de St. Maarten: uma usurpação de nome desavergonhada, injustificável, imoral.

Pela primeira vez (é a minha terceira) não há mega-iates atracados aqui à frente. O que vejo é a laguna, algumas (poucas, porque estamos no lado holandês) luzes de gajos fundeados e as das colinas em face. A Lua ligeiramente depois de cheia torna todas as outras luzes patéticas: cresçam e apareçam e iluminem a laguna como eu.

Dizer que é lindo fica muito aquém do que é. O bar está vazio, a música baixo, o Mount Gay alto, a Lua brilhante e eu penso "O que é a sorte?" Não sei.

Não é uma fórmula; desconheço verdadeiramente como explicar o que me acontece excepto usando o termo "sorte", cuja definição foge de mim como se fosse uma miúda.

É irritante: devia no mínimo ser capaz de explicar o que me acontece. Sorte é uma palavra vaga,  inoperante e chata. Abre o apetite mas deixa-o insatisfeito. É mais do que ausência de azar.

Sorte é ter esta paisagem à frente, não ter um tusto (vinte dólares é menos do que um tusto) mas ter um barco onde viver, comer e trabalhar, dar um passeio de bicicleta, cair no merdoso Soggy Dollar vazio, pensar "que fiz para que isto me aconteça?" e a resposta ser "Nada".

Nada. Nunca serei budista, mas há momentos em que Nada é uma vida.

28.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 28-12-2015

O habitual chinfrim das segundas-feiras no Lagoonies está a começar e tenho de me ir embora, coisa que me chateia realmente. A luz está magnífica, K. aprendeu enfim a fazer rum punch e tive um dia que merecia prolongamento.

Bebo mais um, vá. As mesas longe da banda já estão todas ocupadas, claro. Mas um dia destes vale bem dez minutos de barulho.

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Ao meu lado chegou um Ron Holland. IOR, provavelmente 3/4.

Porque é que os barcos de regata resistem a tudo - à idade, aos ratings, às modas - e continuam lindos sempre até morrerem?

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A banda ataca Hey Joe. Jimi, perdoa-lhes. Não sabem o que fazem.

(O pior é que substituem falta de talento por nível de som elevado, má troca para quem ouve).

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O meu trabalho no S. M. está quase a acabar. O barco está um mimo.

É tão bom, não é?

Um barco mimado é como uma senhora feliz. Com a diferença que no dia seguinte não nos chateia com a loiça, o vinho ou a janela que está por reparar há uns míseros seis meses.

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Estou inquieto com J. Devia ter regressado dos Estados Unidos há uma semana.

Não te atrevas, J.

(Parece egoísta,  não é?  Que o que parece se foda).

27.12.15

Diario de Bordos - Philipsburg, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 27-12-2015

O dia devia ser de trabalho mas enquanto não conseguir olhar para os dedos sem que eles me doam espero.

Vim à Sucrière beber um café e comer um queque de amoras (se a diabetes pensa que manda bem pode desenganar-se. Hoje é dia de queque. Até pus creme nas mãos).

Como não venho aqui muitas vezes a paisagem é outra. Vejo as mesmas colinas e a mesma laguna e sinto o mesmo vento que ontem me estragou o suporte do bimini mas de uma perspectiva diferente.

Ainda é cedo e as colinas absorvem a luz como as esponjas água e devolvem-na filtrada e verde. Os barcos fundeados também são outros, excepto o cata belga que até ontem estava na Lagoon Marina e agora veio para uma bóia mesmo aqui à frente.

Cada vez quero mais ter um barco meu e fazer para mim as palhaçadas que faço para os outros. Talvez consiga o L. de borla. É pequeno e velho mas lindo de se morrer por ele. Depois precisa de tudo novo, do motor à mastreação. Não sei se lhe ponha um motor, de resto. É um plano German Frers pai que tem alguns sessenta anos e tem tudo de origem: velas, motor (a gasolina), molinetes, mastro... tudo. A construção é impecável. Espero não se tenha degradado muito estes anos que esteve sem cuidados.

Dormi nele muitas noites e fiz alguns bons jantares. Daria um excelente barco escola, fundeado em Mértola e a fazer passeios até Gibraltar e volta. Ou à Madeira.

Tenho de resolver o problema da energia, claro. E o do nome.

Isto caso a actual armadora mo dê. R. acha que sim, mas R. é um optimista. Eu também sou e acho que ela mo vai dar e vou conseguir pô-lo em estado de atravessar e a evolução vai um dia fazer os porcos voar.

Há uma bóia livre entre a esplanada da Sucrière e o cata. E as colinas continuam a reflectir enriquecida a luz que recebem, apesar das nuvens que ocasionalmente se interpõem entre elas e o Sol.

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A descida só não foi gloriosa porque não tenho grande confiança na burrica; se tivesse tão pouco o seria: duas rodas de vinte polegadas é pouco para grandes entusiasmos.

Mas foi boa, mesmo assim. Qualquer descida o é e esta teve a vantagem adicional de ser inesperada. Nunca pensei que conseguiria subir a colina.

Consegui e agora bebo uma Presidente mesmo ao lado da Bobby's Marina em Philipsburg enquanto na tasca ao lado passa Bob Marley e a chuva se anuncia mas faz esperar, como se fosse um prazer.

Daqui a pouco volto para Simpson Bay. Depois da chuva e outras novelas.

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Alguém pôs Bob Marley na categoria Reggae. Se calhar foi ele próprio, na volta.

Enganou-se. Está na categoria Música.

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 26-12-2015

Nunca entendi bem o sentido da expressão Santo Natal. Santo? Feliz, Bom, Generoso talvez. Mas Santo? Uma data na qual vamos desrespeitar pelo menos nove dos dez mandamentos  (e vontade não falta para o outro)?

Não sei. Talvez tenha começado agora a perceber o significado do adjectivo.

Não sair de bordo até às seis da tarde (e ter passado uma grande parte do dia a dormir e ou deitado); depois dar um passeio de bicicleta; e finalmente ser convidado para jantar num excelente restaurante libanês deve andar tão próximo da santidade quanto possível, não?

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Oiço um daqueles discos que comprei porque queria ser actual e li uma boa crítica no jornal. É uma merda.

A necessidade de actualidade dos críticos leva a isso; a culpa não é deles. Salvo raras excepções só se deve comprar um disco dez anos depois de ter saído.

Já com os livros não acontece o mesmo. Não sei se tem a ver com a qualidade da crítica se com alguma característica intrínseca da literatura: um bom livro é bom imediatamente.

(O disco é de um grupo chamado Silver Jews e só isso devia ter-me feito desconfiar).

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O trabalho desta manhã foi para o galheiro. Tenho de recomeçar e em pior.

Felizmente à tarde trabalhei bastante e bem. Tenho os dedos sensíveis como os ladrões de cofres de O'Henry, que limavam as unhas para sentir a combinação.

No meu caso não foi um cofre, foi um dinghy que limpei. Ficou como novo. Mas até pegar no telefone dói.

Amanhã terei de tratar do bimini outra vez. Não há marinheiro que não tenha Sísifo no nome.

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Redescubro fotografias antigas  (dois ou três anos, vá). Gosto de algumas.

Parece um contra-senso e se calhar é, mas devia fazer-se com as fotografias o que se faz com os discos e com os amores: esperar para saber quais os bons.

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A Simpson Bay é obviamente muito mais marina do que a Lagoon. Mas tem dois ou três defeitos que me fazem pensar se "obviamente" é a palavra certa: o Wifi é indescritivelmente mau; o dinghy ficou sujo em dez dias; e, por fim mas não por menos é uma marina de camisa. Um gajo tem de andar de t-shirt ou então aguenta ser o único ou pelo menos dos poucos. Eu aguento e ando sempre de torso nu, mas não me dá muito gozo.

Nunca pensei que numa luta entre a paciência e o decoro ambos podiam perder.

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Se tivesse Neutragena à mão enchia ambas dele. C'est dire. A última vez que usei cremes nas mãos deve ter sido antes do Dilúvio.

Devia perguntar-me que raio de carga de água me passou pela cabeça para raspar o fundo do bote com as mãos nuas mas não pergunto. Tenho medo da resposta.

(Depois pus as luvas. Foi um prazer. Teria sido o mesmo se as tivesse posto logo no início? Duvido.)

25.12.15

Teologia de base

Deus sabe que não acredito nele nem em nenhuma das suas formas. Não sou propenso a religiões sejam elas mono ou politeístas, políticas ou sociais, produtos da moda ou da ganância.

É possivelmente um defeito; não sei. Dizem-me frequentemente "mas acreditas em alguma coisa, de certeza".

Sim: acredito em mim, no vento e no mar, por junto ou em separado. Acredito na música, em alguns dos livros que li e filmes que vi, como Providence, Dersou Uzala, Casablanca ou Dodeskaden.

Acredito na capacidade transfiguradora de um bom rum ou um bom vinho, em alguns olhares e algumas peles que a providência me pôs debaixo das mãos ou dos olhos.

Acredito na vida e na morte, no poder purificador da solidão e na beleza do seu fim. Nas palavras, todas elas: não porque sejam a verdade mas porque são palavras, seja o que for que transportam.

Acredito em milhares de coisas: um sorriso, uma carícia, um bom café ou um chá branco feito como deve ser. Um cozido à portuguesa no Vasco da Parede ou um prato de accras de morue, um rum punch feito pela Tanya no Lagoonies ou um Mount Gay em Bequia.

Acredito na música de Hildegarde von Bingen, Frank Zappa, Miles Davis ou John Coltrane, nos Carmina Burana ou nas Vésperas de Rachmaninov, em Glen Gould e em tudo o que Borges, Beckett, Marguerite Yourcenar e Fernando Pessoa escreveram; num corpo que quer dançar e noutro que quer dormir; no que vejo e no que sei, em tudo o que já esqueci e no que vou aprender. No poder infinito de um determinado verbo quando acompanhado por um pronome reflexo, nos universos que esse verbo descobre e me faz descobrir.

Acredito na elusiva felicidade e na perenidade da sua ausência. Em alguns bares, como o Soggy Dollar em Jost van Dyke ou o Procópio em Lisboa. E restaurantes, livrarias e mercados em toda a parte do mundo.

Não há deuses ou deusas que cheguem sequer ao calcanhar de tudo isto, porque tudo isto existe e eles não.

Carta secreta

Isto, vizinha, ao preço a que estão as coisas cá em casa não se come se não lulas. Olhe, até a Consoada vai ser de lulas, guisadinhas em vinho branco. Pouco tomate, um bocadinho de louro...

A menos que as faça em caril. Não sei ainda. Elas já ali estão, descongeladas e à espera de que eu me levante, este vento deita-me tão abaixo. Ando cansado o dia todo, não imagina a vizinha. Só me apetece estar deitado e consigo na cama, desculpe a sinceridade. 

Pena estarmos tão longe. Batia-lhe à porta, olá se não batia.

Olhe, vou às lulas. Tenha um bom Natal, vocemecê e esse vadio do seu marido. Já está em casa ou ainda está pela taberna a fazer olhos de carneiro mal morto àquela rameira da Idalina, não me leve a mal dizer-lhe mas a vizinha sabe que é verdade.

A culpa é dela, não pode ver um par de calças que não queira deitar a mão ao que lá vem dentro. E depois só se interessa pelos homens da cintura para baixo. O resto é-lhe igual ao litro.

Já jantou? Eu já. Acabei por grelhar as lulas, não ando com paciência para grandes cozinhados. Rosé do Sul de França e aquele rapaz do cavaquinho a acompanhar. É agradável, leve e sempre muda das americanices.

Quem está desesperada é a espanhola, coitada. Quer música alegre. Mas eu só tenho da outra, da boa. Claro que podia arrefinfar-lhe com os Carmina Burana, mas não me apetece. Ela que se desenrasque. A rapariga é simpática e até ajuda, mas eu so me lembro de si, desculpe-me a vizinha mas é verdade.

É coisa da idade, acho eu. Ou do feitio. Ir para a cama com ela não valeria o tempo de conversa que levaria, se tivesse vontade. Ando parco com as palavras ou então são elas que fogem de mim. Tudo foge, porque não as palavras?

Ah, vizinha, vizinha. O que eu me lembro de si. Olhe, estou para aqui escarrapachado na varanda, está vento e quase frio e eu cheio de vontade de ir para a cama mas comi de mais e depois ponho-me a pensar em si e olhe não sei que lhe diga.

Ainda bem que a vizinha não lê estas coisas, isto é segredo meu, é uma carga que eu carrego para onde quer que vá e ninguém a vê.

Deu-me para isto, não sei se é da idade se do feitio.

24.12.15

Desejo, desigualdades

A vaga noção de que o desejo deve nascer como o sol - primeiro está escuro, depois vem o crepúsculo, a seguir o horizonte e de repente há cores (de repente nos trópicos,  naturalmente. Nas altas latitudes não há repentes) - talvez seja defensável.

Depende das circunstâncias. Se for consequência de uma mistura de excesso de rum com Leonard Cohen a cantar Anthem talvez não seja.

Duas coisas boas nem sempre produzem uma positiva, ao contrário de uma das regras básicas da álgebra. Mais ou menos. Isto não é um curso de matemática. Muito menos um discurso.

Álgebra, Cohen, o desejo e nascer do sol nos trópicos.

Isto dito é um conceito  que deve ser discutido. O desejo nasce, etc. Mas qual a relação do nascer do desejo com o rum? Ou melhor (a relação é conhecida e antiga): é legítima? Não.

Nada do que depende das circunstâncias é a priori legítimo.
- Define legítimo.
- Define circunstâncias.
- Conjunto de coisas que me rodeia e não depende da minha vontade.
- Conjunto de acções que tem uma sustentação ética. Isto é, é defensável se deslocarmos o nosso ponto de vista para o de quem é afectado por essas acções.

(Talvez seja essa a crítica do abulismo mais justa: um abúlico não tem mundo exterior. Ora o mundo exterior existe, como magistralmente canta Cohen: There is a crack, etc. É por aí que entra a luz. Podíamos substituir fenda por boca e luz por rum e ficava o círculo fechado.)

Mas agora quem canta é aquele gajo sem dentes dos Pogues e as minhas construções teóricas desvanecem-se.

Christmas Day, fada de Nova Iorque e eu aqui sozinho com o meu rum e agora a Nico. É uma compilação pessoal, para quem não tenha percebido.

Serei o teu espelho, caso não tenhas percebido. Serei a fenda em ti pela qual a luz entra. Serás a minha rainha porque já o és de Nova Iorque. Em breve teremos a Lua cheia.

Não digas nada. Vamos imaginar que há uma relação entre o nascer do sol e o do desejo e vamos imaginar que essa relação é directamente proporcional - quanto mais alto vai o sol maior o desejo - e vamos (agora as coisas complicam-se) imaginar que quem escreve estas linhas é um abúlico assumido, um niilista sem vergonha, um céptico de provas dadas, uma ilusão óptica,  táctil, auditiva e olfactiva.

Que fica se o dito céptico abúlico niilista e apesar disso vítima do desejo morrer atropelado por um triciclo conduzido por uma criança que calculou mal a curva?

Fica o que o homem disse, escreveu e fez, em quantidades desiguais.

Importa sublinhar: quantidades desiguais. Tal como de resto o sol a nascer é conjunto de desigualdades. Variáveis,  mas desigualdades.

E o desejo, a coisa mais desigual do mundo.

23.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 23-12-2015

Não escrevo com a caneta há uma eternidade. Gastei uma fortuna na tinta, mais vale usá-la. Fácil: posso escrever sobre as mulheres da mesa ao lado, a generosa porção de rum que R. me serviu - relembro que só vim ao Lagoonies porque não tenho net a bordo, argumento tão potente como falacioso e que vou gastar com estas palavras pelo menos vinte vezes o que valem -; sobre o tempo, muito ventoso porque estamos em Dezembro e é tempo das brisas natalícias que tornam a temperatura muito agradável.

Temas importantes.

Um delas tem a cara feia mas é atraente. Uma espécie de milagre: ser feio e bonito ao mesmo tempo.

O que faz bonita uma cara feia? O sorriso? O olhar? Ignoro. Tento não olhar demasiado para a senhora na minha tentativa de elucidar esta questão, mas é difícil. Resisto menos facilmente a um mistério do que a uma tentação.

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Está um badanal do caraças. Há dois ou três dias que não pára. Vinte vinte e cinco nós, diz o anemómetro; vinte e cinco trinta, digo eu.

Já agora gostava de ter a certeza. Fiz a viagem toda convencido de que o anemómetro estava errado.

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O dia foi frustrante. Todos nós sabemos como é: começa-se a reparar uma coisa - depois da terceira visita a um dos fornecedores, porque a peça que nos deu estava uma merda - e descobre-se que nos falta uma ferramenta e que outra coisa se partiu e que o trabalho em vez de levar uma hora como se tinha previsto vai levar mais um meio dia no mínimo.

[Adenda: estive hoje o dia todo quase de volta daquilo e tive de chamar um carpinteiro. "Um marinheiro é um gajo que sabe fazer tudo vírgula mal"]

Felizmente o Lagoonies fornece o anti-frustrante quase perfeito (quase porque custa cinco dólares. Se fosse mais barato seria perfeito).

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O S.M. mexe-se como se quisesse ir para o mar. E eu com ele. Quero.

No Mediterrâneo em Janeiro vou apanhar muito mais. Se não fosse pela proa...

Vai ser, claro. Em Setembro apanhei um arraial entre a Córsega e Port St. Louis pela popa e isto deve esgotar o capital de sorte para os próximos dez anos.

Que se lixe. Não é a primeira nem será a última vez. Um arraial de porrada no mar faz bem: põe-nos imediatamente no nosso lugar.

E aos Costas, Centenos e outros palhaços que nos governam. Gostaria de os ter ali a discutir as vantagens de renacionalizar a TAP ou salvar o Banif com o dinheiro dos trouxas que pagam impostos em Portugal  (parece que havia outra solução. Não sei). Força nove na proa e muito gostaria de ver o jeito para político do Toinas.

Eu não pago impostos, nem em Portugal nem em lado nenhum. Mal ganho para comer e beber, quanto mais alimentar cáfilas. E não pago renda de casa. Faria se pagasse.

De qualquer forma tenho de mudar de óculos e ir ao médico. Só isso paga os impostos de cinco anos no mínimo.

Que asco, meu Deus, que asco. Se alguém me tirasse o chip Portugal e mo substituísse por outro azul ou mar ou nenhures eu juro que desta vez diria sim.

Antes apátrida que sujeito daquela corja.

Amártrida. Que palavra tão bonita! Tem mar, amar, ausência de pátria e outras putrefacções.

Não é que não goste de Portugal. Adoro aquele país. Só preferiria não lhe ter nenhuma ligação afectiva e olhar para ele como para o Congo, o Panamá ou St. Vincent and the Grenadines.

Poder comer alheiras ou morcelas de arroz ou farinheira, cozido à portuguesa, peixe no forno, caldo verde, sopa de tomate, carne de alguidar ou fosse o que fosse sem memórias associadas. Que bom seria!

De resto pouco ou nada há a dizer. Pessoas simpáticas  (desde que não trabalhem num guichet de uma repartição), bom clima, boas comida e bebida a preços mais do que suportáveis mesmo por um pobre marinheiro longe de casa.

Só é pena este apego à miséria que nos faz eleger atrasados mentais e apoiar-lhes as políticas.

Atrasados mentais talvez não sejam. Governam-se bem. Mas bolas, isso não é um problema. Bastaria que em troca fizessem alguma coisa pelo país. Não fazem e a culpa não é deles, é de quem os aguenta e vota neles.

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Ardeu em S. Paulo o Museu da Língua Portuguesa. É uma das coisas que lamento não ter visto quando lá  estive. Parece que era realmente interessante e bonito.

João Soares, o nosso inefável ministro da Cultura quer ajudar o Brasil. Não sei exactamente como, nem porquê.

O PIB per capita do Brasil é aproximadamente metade do português. É difícil argumentar que o Brasil é um país pobre. Portanto a ou as causas da pobreza devem procurar-se noutro lado.

Os brasileiros são pobres porque querem. Ou pelo menos porque não querem não o ser. Talvez seja uma mistura: uma parte quer ser pobre e a outra concorda.

Pode dizer-se o mesmo de Portugal, claro. Podíamos ser muito mais ricos. Não somos porque preferimos ser pobres. Ser rico dá muito trabalho e implica correr riscos.

(Se alguém me perguntar porque é não sou rico apesar do que trabalho e dos riscos que corro mando-o apanhar no cu, fica já avisado.)

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Afinal o meu Natal não vai ser solitário. A tripulante resolveu ficar a bordo em vez de ir jantar a casa de uma argentina que não me quer em casa porque não me conhece.

Fiquei comovido e não lhe disse que de qualquer forma já tinha decidido não ir.

Charros, música de merda e conversa ainda pior: nada que uma garrafa de Mount Gay e os meus discos não substituam com vantagem.

A tripulante não fuma e suporta bem o meu silêncio. Vou fazer umas lulas e dormir cedo. O Pai Natal pode ir bater a outras portas. Verdade seja dita que para aí desde Maio ou Junho me tem visitado quase todos os dias.

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De modo é isto: tenho fome mas tenho comida a bordo, nao tenho massa mas tenho trabalho, não tenho mulher mas tenho paz.

Há muito tempo que não via um Natal assim.

22.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 21-12-2015

Há pessoas cujo objectivo na vida é ser ricos; outras, foder um país inteiro, ou muitas mulheres  (ou homens, claro).
Há tantos objectivos quanto pessoas, ou quase.

O meu é lamentavelmente simples: encontrar a receita do hambúrguer perfeito.

Ainda não foi hoje, mas cada dia estou mais perto.

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Se tivesse net a bordo não estaria no Lagoonies a ouvir uma banda lamentável interpretar canções da minha adolescência.

Nem tudo é mau: posso escolher entre vir de dinghy e vir de bicicleta.

Escolhi a burra (neste caso uma burrica), claro.

"Sem uma bicicleta és  como um barco a motor".

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Ignoro como são as outras actividades, mas trabalhar em náutica de recreio implica uma relação fácil com a palavra amanhã. E ter presente uma canção que Peggy Lee interpretava maravilhosamente: Let's forget about tomorrow (for tomorrow never comes).

Tudo o que tinha para fazer hoje fica pronto amanhã.

Ou noutro dia qualquer: amanhã nunca chega.

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Preparo-me para mais um Natal solitário. Espero já ter encontrado a receita do hambúrguer.

20.12.15

Nem mais nem menos

Há alguns anos cheguei a St. Maarten no dia dois de Outubro. Tinha cinquenta euros no bolso e não estava muito preocupado porque pensava encontrar trabalho no dia seguinte.

St. Maarten e a gémea  siamesa,  St. Martin estavam vazias. Nem um barco, para além dos locais. Nada. Zero.

Telefonei a um amigo que aqui vive há muitos anos. Convidou-me para almoçar e durante o almoço contei-lhe a minha história.

J. ficou horrorizado. Cinquenta euros em St. Martin chegam para um dia e é preciso ser poupado e não muito exigente. Tirou uma nota de quinhentos euros da carteira e deu-ma, para que eu "não andasse por aí sem dinheiro". Depois pensou um bocado e encontrou a solução. "Sabes mudar machos de fundo?" "Sei". "Então vais para Antigua mudar os do C." Quando acabarmos de almoçar vamos tratar do bilhete.

Fomos. Depois da agência de viagens  (J. gosta de interagir com pessoas mais do que com máquinas, característica que eu partilho) páramos no banco. Deu-me não me lembro se dois mil e quinhentos se três mil e quinhentos dólares e nessa tarde apanhei o avião para Antigua com um conjunto de instruções muito simples: "o C. está na marina tal, em seco. Quando lá chegares falas com fulano, sicrano e beltrano. Eu já lhes terei telefonado. Tens de mudar todos os machos de fundo e o dinheiro que sobrar é para ti".

Sobrou muito e passei um ano a dizer-lho. Nem nunca sequer me mandou calar.

No ano passado cheguei de novo a St. Maarten com pouco dinheiro. Mas era Dezembro e encontrei trabalho rapidamente. Por razões legais (e outras, mas essas não interessam) passei um mês e tal a trabalhar sem receber um tusto. Sobrevivi porque tinha crédito na crew house onde me hospedava, no café de uma senhora portuguesa onde almoçava e no Lagoonies onde bebia rum punch e por vezes jantava.

Ao contrário de J. nenhum dos proprietários ou gerentes dessas três casas me conhecia. Confiaram em mim, simplesmente.

Hoje é tempo de pagar outra vez, de outra forma. Quando J. veio ter comigo a perguntar se tinha trabalho para ela reconheci-lhe a urgência na voz. Depois disse-me que estava na Little  Crew House mas tinha pouco dinheiro,  etc. e reconheci o filme. Já ali tinha estado.

Disse-lhe que podia vir para bordo contra um pouco de trabalho. Ela ajuda mais do que eu esperava e em contrapartida pago-lhe a comida. Depois arranjei-lhe uns dia de trabalho na empresa de charter para a qual trabalhei e tanto tempo tempo leva a pagar.

Hoje adiantei-lhe uma grande parte do que vai receber pelo seu primeiro dia, "para não andar por aí sem dinheiro" (está muito longe dos quinhentos euros do J., mas a ideia é a mesma).

Não conto esta história para me vangloriar - se ligasse muito ao que pensam de mim não viveria como vivo -; para me dar a conhecer - há duas ou três pessoas que me conhecem e esse número chega-me -; nem por razão nenhuma em especial se não defender o meu conceito de ética. Que é simples, primário a raiar o básico: faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. Ou já fizeram.

Nem mais nem menos.

19.12.15

Pessoas, lugares, azares

Às pessoas que são uma espécie de compilação dos lugares-comuns de uma época deve poder chamar-se pessoas-comuns sem ser ofensivo, não é?

Quero dizer: quem escolheu as tatuagens, as calças pelos joelhos, os soutiens à vista, as perfurações, o léxico PC et al. foram elas. Não foi a época que as obrigou.

Ser comum é uma escolha. Que vulgar seja sinónimo é azar.

18.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 18-12-2015

O dia ainda não acabou, é certo; e esta sucessão de boas notícias não precedidas nem seguidas por más vai acabar, eu sei. O real encarregar-se-á de lhe pôr cobro - e estatisticamente de ma cobrar -.

Paciência. Por enquanto limito-me a usufruir dela, sem pensar demasiado no que aqui me trouxe ou espera.

O cheque que pensava ter disponível daqui a uma semana já o está, foi levantado e parcialmente trocado por comida no supermercado; o mecânico diz que vem hoje à tarde (ainda só tem vinte minutos de atraso. Se chegasse agora seria como ter uma hora de adianto); e para terminar: acabo de fazer um Colombo de peixe (mero) que ficou, no dizer da tripulante, "excelente".

Partilho a opinião, passe a imodéstia. Estava bom. A culpa não foi minha, esclareço; foi das senhoras que me venderam as especiarias, o peixe e os legumes, por esta ordem.

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De modo que hoje é, resolvi, dia de paga e em dias de paga não há marinheiro digno desse nome que trabalhe.

O mecânico veio e foi, o que do Colombo resta está no frigorifico, a tripulante dorme a sesta e eu não tardo a imitá-la. A garrafa de rosé que por acaso e quase sem querer trouxe do supermercado está vazia, o ar condicionado ligado e o S. M. em paz com o mundo.

Harmonia, se preferirem.

Isto se considerarmos que o mundo exterior é uma identidade sem estrutura própria. O calor e a vasta extensão de coisas por fazer são ilusões de óptica e só o que cá dentro acontece conta como realidade.

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 17-02-2015 / II

Misturei costeletas de porco, azeite, amêndoas,  vinho tinto, alho, orégãos e paprika  (e sal e pimenta) na mesma frigideira e deixei frigir.

Faltou um bocadinho de rum e outro de gengibre.

A vida é assim: falta sempre um bocadinho de rum, pelo menos.

Eu gosto dela, apesar disso. Acompanhei o jantar com blues, não fosse a tripulante pensar que só gosto de música com cinco séculos e agora ouço o pior disco de Bruce Springstreen: o que começa com Born in the USA e continua com merda do mesmo nível. Mal acabe de escrever isto vou pôr o Nebraska, ou o fantasma de Tom Ghost  (?) ou algo do género.

Lembro-me mal dos títulos dos discos. Falha que me ficou da adolescência: sempre preferi o conteúdo ao continente. Se calhar é por isso que me esqueço tão facilmente do nome das pessoas.

Não é por pedantice, apesar de o ser. É apesar de o ser. Pedantice ao contrário, ao avesso, humilhante e vergonhosa. Não recordo facilmente o nome das pessoas que cruzo. Nem dos discos.

Mas recordo outras coisas: as noites maravilhosas que passei com N. em Shelter Bay, por exemplo. As noites no mar, sem música, com toda a gente a dormir. As noites em Lisboa naquilo que tenho mais próximo de uma família. As noites em Antigua com a minha filha Lena.

Não que as minhas recordações sejam exclusivamente nocturnas, longe disso. Mas porque agora é noite e oiço um disco que vou mudar não tarda e amanhã vai ser um dia bom como hoje foi e um gajo pensa que está sucessão de dias bons tem de certeza uma sucessão de noites iguais.

Ou pelo menos teve.

Tom Joad, estúpido.

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Começou a chover. Era o que eu precisava para acabar o trabalho no mastro.

Vi-o hoje de manhã na previsão meteorológica. É raro apreciar uma previsão de chuva e ainda mais gostar de que se concretize.

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Enquanto isso as coisas continuam simultaneamente independentes da nossa vontade e moldáveis por ela, em quantidades reduzidas.

Reduzidas não. Variáveis,  consoante a natureza d'"as coisas".

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Quando acabar o Tom Joad vou pôr a Pietra Montecorvino. É uma espécie de Springstreen mediterrânico e feminino. Duas vantagens.

A única coisa que o Mediterrâneo não tem de bom é o mar.

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Cada vez leio menos e escrevo mais. Não é difícil de verificar: isto só não está cada vez pior porque pior é impossível.

Reconfortante e encorajador: saber que nada pode ser pior de que o que está é  meio caminho andado para melhorar.

Infelizmente é a metade mais fácil, mas isso é outra história.

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Se eu tivesse juízo ia buscar um bocadinho de rum. Infelizmente não tenho e vou dormir.

Nunca terei.

17.12.15

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 17-12-2015

Mais uma tarde passada a subir ao mastro e a descer e subir de novo. O S. M. está com tratamento de senhora grande.

Merece-o. É uma grande senhora.

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Uma vida como um rio? Não. Como muitos rios. Uns largos e tranquilos, outros tortuosos e cheios de quedas.

Muitas vidas. Boas, más, assim assim e nem por isso: uma vida.

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Não fosse a porra do ombro esquerdo, claro. Uma porra não é uma vida.

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Queria reduzir a minha exposição ao Lagoonies e falhei redondamente.

Há falhanços tão pouco importantes que são quase felizes.

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Nunca (pelo menos desde que me lembro) fui muito de natais. Estamos a uma semana do próximo e podia estar a um ano.

A verdade é que este ano foi um bom presente. Basta excluir o triste episódio do W. e tive quase dez meses de presentes de Natal.

Tanto quanto me lembro, pelo menos. Talvez tenham sido menos. Não sei.

Mas devemos aferir as coisas pelo fim, não é?

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O gajo que está a tocar guitarra e a cantar no Lagoonies parece o Woody Allen de há quarenta anos.

Toca e canta assim assim mas tem uma qualidade imensa: toca baixinho.

Doxa, zeitgeist e outras doenças

É forçoso, se bem difícil,  desagradável e penoso reconhecer que o zeitgeist é uma merda e a doxa corrente nada melhor.

Mas é neles e com eles que vivemos, não é?

Pergunto-me como seriam os anteriores e serão os vindouros.

Iguais, sem dúvida.


Paisagem

Uma mistura de verticais e oblíquas que apontam todas para o mesmo sítio: a meia dúzia de estrelas e planetas que a poluição luminosa e a minha posição me deixam ver.

Fotografia

Há dois fotógrafos em Portugal com quem eu gostaria de fazer uma viagem: a Isabel Zuzarte e o Miguel Valle de Figueiredo.

Teria - teríamos - o mar fotografado por dentro e por fora.

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 16-12-2015

Preparado ou não, maré baixa é maré baixa. Oiço Cohen deitado no cockpit enquanto fumo um cigarro e me arrependo de não ter comprado um bocadinho de rum no chinês.

Ainda vou a tempo. Cinco minutos de dinghy para lá e cinco para cá.

Custa-me interromper o homem. É um dos raros que sabe pôr no seu lugar os probleminhas de maré.

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Mais um dia de bom trabalho. Deve ser por dias como este que chamam a isto náutica de recreio. Um gajo não pára um minuto, não tem um tostão e continua a gostar do que faz.

Talvez se devesse substituir de recreio por mágica. Ganharia em poesia e em realismo, dupla desconhecida noutras áreas de actividade.

Não é uma fórmula. Alguém me pode dizer qual a profissão cuja descrição realista inclui a palavra mágica? (Refiro-me naturalmente a profissões sérias).

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E qual o trabalho que acaba com um trabalhador deitado num cockpit a ouvir Cohen e a hesitar entre ir comprar rum de dinghy ou de bicicleta?

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Gosto muito de J., a nova tripulante. Mas parece uma compilação de todas as modas modernas. Vegetariana,  vota Podemos - não por ideologia estruturada e refletida; porque sim, porque os "outros são corruptos", "todos" - meio esotérica, etc.

E não é assim tão jovem.

Não percebo e confesso que não me dou ao trabalho de sequer tentar. Não sou sociólogo nem pretendente a confessor.

Basta-me que trabalhe e não faça muitas asneiras. O resto é com ela.

........
Adenda: acabei por ir de dinghy. Era uma falsa questão,  não era?

Era.

O rum não é grande coisa mas custa um dólar e meio a garrafa de cento e setenta e cinco mililitros, mais do que suficiente para o que me resta de tempo acordado a ouvir Cohen e a pensar no que vou fazer amanhã.

Mudar óleo e filtros do motor e do gerador, limpar mastro, vaus e brandais, ir ao lado francês recordar à empresa de sonho que estou disponível por uns dias, acabar de arrumar e limpar o bote, trabalho sisifico s'il en est.

Não vou conseguir fazer isto tudo num dia.

Sorte.

16.12.15

O céu e o inferno

"Céu é um lugar em que os polícias são ingleses, os cozinheiros franceses, os amantes italianos, os engenheiros alemães e tudo é organizado por um suíço.

No inferno os polícias são alemães, os cozinheiros ingleses, os amantes suíços, os engenheiros franceses e tudo é organizado por um italiano."

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 15-02-2015 / II

Trabalhei muito e bem; tanto que consegui cortar uma coisa da lista. Isto é, cortar a cem por cento, eliminar, apagar.

Limpei os tanques de água. Tudo o mais foi começar ou continuar ou avançar ou marcar para data posterior.

Mas não me posso queixar. A quantidade de coisas terminadas está quase a meio da lista. Se tivesse o Microsoft Project a imagem seria bonita.

Não tenho, mas é bonita na mesma.

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A X é a minha marca favorita, mas às vezes tem coisas desconcertantes. Parece que convidaram um engenheiro francês para desenhar algumas partes do barco. Para os tanques de água tinha orçamentado uma hora. Foram mais de três, quase quatro. Para tirar os paneiros que cobrem dois deles tem de se desmontar a mesa do salão (e não foram mais porque um dos tanques não tem porta de visita). Ou seja: dos três tanques limpei dois e levei o triplo do tempo que esperava levar. Parece-me um bom epítome do que é trabalhar numa embarcação. Não acrescento de recreio, se bem a tentação da ironia seja forte. São todas iguais.

As francesices e a lógica de residência secundária  (em vez de barco) no desenho do interior são as duas coisas de que não gosto no S. M. Isto dito, o bote é uma maravilha e quanto melhor o conheço mais gosto dele.

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Seria difícil de outra forma. Deitado no cockpit após um jantar correcto a ouvir Carlo Gesualdo, com uma temperatura perfeita, cansado, feliz e leve... Como não gostar?

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Arranjei uma ajudante. Estava a dormir na Little Crew House mas não tem dinheiro e precisa de um sítio mais barato.

Aqui é de borla: basta trabalhar. Dei-lhe o camarote de vante (o do armador) e disse-lhe que podia ficar três ou quatro dias à experiência.

Ajuda e é simpática. Se continuar assim tem casa para dormir e eu um par de braços para ajudar.

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A dor no ombro esquerdo é uma chata, melga, peganhenta. Pergunto-me se não seria melhor ter dores intensas, fulminantes em vez destas magoa-tolos.

Não.

15.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 15-12-2015

Os dias sucedem-se e todos são bons, sejam eles de mim ou do bote. Ontem foi dele.

Acabou com um jantar simpático  (não sei se bom porque fui eu que o fiz. Rouille de calamars, com um bocadinho de alho a mais) a bordo do S. M.

Há muitos anos que não fazia esta receita, que tirei do Cuisine d'amour, o meu livro de receitas favorito.

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Vêm aí dias de maré baixa, muito baixa. Depois virão outros de maré cheia. E assim por diante. Uma nora mesmo para quem não está à nora.

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Acordo com a loiça para lavar e uma troca de opiniões no Facebook sobre Sócrates. Felizmente gosto de lavar loiça.

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Está na hora de voltar para o mar. A terra é chata.

13.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 13-12-2015 / II

Que rico dia este de S. Mim. Paul Desmond, Sonny Rollins, Paul Motian, Edgar Morin e muitas sestas pelo meio. Arrumei e limpei a cozinha a fundo, ordenei o trabalho da semana que vem e preparei-me para a forte contenção de custos que aí vem.

Se homem prevenido vale por dois, preparado vale muitos mais.

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O S. M. está longe de pronto, claro. As velas ainda estão na velaria à espera dos carros, que ainda não foram sequer encomendados; o mastro só está quase afinado (tinha um desvio de dez milímetros para bombordo, entre outras maleitas. Não admira o nó de diferença de velocidade de um bordo para outro); o motor está como chegou e a respectiva tampa idem; os tanques de água ainda estão sujos; os brandais e o mastro têm de ser limpos, escotas e adriças passadas na máquina de lavar. A lista é grande e muitas coisas dependem de outras.

Daqui a uma semana veremos o que resta. Espero não ter esta sensação horrorosa de que o trabalho todo desta semana não serviu para nada.

Parece dinheiro: nunca faço a mais pequena ideia de para onde foi.

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É-me difícil compreender as pessoas que não conseguem estar sozinhas. Eu gosto, apesar de ser um chato arrogante e teso.

Como seria, se fosse um gajo porreiro?

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 13-12-2015

S. foi-se embora. Seria injusto acrescentar felizmente, mas é verdade que gosto de me reencontrar sozinho. Fritei dois ovos, pus o Fado Bailado do Rão e deitei-me no salão a organizar mentalmente o trabalho que me resta. Não é muito: quatro ou cinco dias plenos.

Começam amanhã. Hoje é dia de S. Mim.

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Jantámos no lado francês (lolo Cisca, se houver interessados). Accras de morue, boudin créole, caranguejo recheado. Precedidos de um ou dois ti'punch no Arhawak e seguidos de um rum punch no Lagoonies.

Neste último havia demasiado barulho. Antes não: só paz e voluptuosidade.

Prefiro de longe o lado francês da ilha, nada a fazer. Por muito FN que votem estão mais perto da civilização. Ou do bom gosto, se se preferir.

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Fado Bailado é o meu disco de fado preferido. O saxofone substitui com vantagem a voz de muitos fadistas e as letras da maioria dos fados.

E adequa-se tão bem ao domingo solitário de um marinheiro longe de casa.

12.12.15

Desordem

O S. M. está na desordem habitual de uma embarcação em reparações. S. não gosta de a deixar assim.

Compreendo e agradeço. Mas quem a vai limpar sou eu. Se há uma coisa que gosto de fazer a uma mulher depois de lhe fazer amor quase um mês é beijá-la.

Um barco não é obviamente um ser vivo, mas é quase tão complexo. Aprender a conhecê-lo - diferente  (infelizmente) de aprender a amá-lo - é um processo longo, curvilíneo, tortuoso.

Um processo amável, no fundo.

Escolha

A única coisa pior do que um gajo que se julga estúpido é um que se julga esperto.

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 11-12-2015

São poucos os armadores com quem me entendo tão bem como com S., o armador do S. M. (pena este hábito de não nomear os barcos. O nome deste é bonito). Hoje disse-me que ia ter saudades minhas.

É recíproco, S. Um dia passaremos o Horn juntos.

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Jantar no S., a beleza pela qual me apaixonei há tantos anos, paixão essa que há tantos anos continua viva. Um recorde.

Retiro-me da conversa para escrever. Prefiro escrever disparates a ouvi-los.

Há sítios que não suportam faltas de respeito, não as merecem, nem aguentam ou digerem.

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St. Martin está a um passo do paraíso. Esse passo é essencial: mais vale morrer de cansaço a um metro da praia do que de aborrecimento na areia.

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Estou a duas semanas do Natal e a vinte anos. Escolho estes últimos: o meu Natal dura trezentos e sessenta e cinco dias (e seis nos anos bissextos). Como escolher um dia?

Não escolho: que o Natal vá dar uma volta ao bilhar grande e volte daqui a muitos anos. Nessa altura talvez possa vestir um fato encarnado e ir para a rua olhar para as miúdas sem ser acusado de tarado.

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Amanhã fico de novo sozinho. É decerto um presente de Natal. Talvez não seja assim tão mau, afinal.

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Consigo viver como vivo sem ter inveja de ninguém. É uma qualidade ou um sintoma?

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Cheguei há dez dias. Tempo de largar. O melhor lugar do mundo é a mil milhas do porto mais próximo; o pior é o porto mais próximo.

Por muito que se goste dele.

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Os marinheiros são homens simples. Não precisamos de muito para ser felizes: mar, rum e uma miúda gira numa cidade qualquer dizer que tem saudades nossas.

Se a cidade coincidir com aquela onde nós estamos melhor. Se não, azar. Num fósforo estou aí, querida.

Se bem assim não possas dizer-me que tens saudades minhas. Melhor do que isso só "amo-te", não é?

Não. Melhor do que isso só "quero amar-te".

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Gosto tanto do Lagoonies em Cole Bay como do café Tati em Lisboa. As razões são basicamente as mesmas. No fundo sou um homem caseiro.

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E sem imaginação. Uma bênção.

11.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 10-02-2015 / II

O vento caiu; a música no Lagoonies oscila entre Johnny Cash e Elvis Presley  (passando por Pink Floyd e Wish You Were Gere à guitarra acústica, soberbo); comi um hambúrguer com pão,  batatas fritas e tudo; os chupitos (a empregada nova é espanhola) sucedem-se sem sobressaltos...

E assim por diante. Podia continuar a lista até o sol nascer. Não continuo: prefiro olhar para a noite a descrevê-la. Questão sem dúvida de gestão de recursos.

Escassos. Entre mim e a outra margem da laguna há dinghies, barcos (um deles é o S. M. É o mais bonito, coincidentemente), água na qual se reflectem as luzes do outro lado.

Atrás está a música, um bar lindo e as garrafas de rum. Podia alargar os conceitos de à frente e atrás, mas não me apetece.

Prefiro olhar para a noite e ouvi-la. O resto virá se tiver de vir.

10.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 10-12-2015

O dinheiro é uma substância simples que serve para transformar trabalho em rum (no meu caso. Há quem prefira barcos ou, menos compreensivelmente, casas e carros).

Se o rum vier com a forma, a cor e o sabor de um rum punch do Lagoonies o dinheiro vale um bocadinho mais; ou um copo de vinho no café Tati, em Lisboa. Se não, não faz mal. Paciência. Transforma-se no que houver, onde houver.

Afora isso não lhe vejo grande utilidade e não percebo a obsessão que a maioria das pessoas tem por uma coisa que desaparece mais depressa do que a Virgem Maria de uma cerimónia voodoo.

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Pouco a pouco o S. M. volta a parecer um barco. Ainda falta uma série de coisas, claro. E não forçosamente as mais simples. Mas não deixo de apreciar a beleza de um circuito que começa com uma coisa da qual se gosta e desagua noutra da qual se gosta o mesmo. Aperto um parafuso agora e daqui a meia dúzia de horas (isto é uma média. Se contasse desde o início andaria mais perto de uma dúzia inteira) esse parafuso materializa-se num copo de rum.

Talvez no fundo a pedra filosofal seja apenas uma garrafa de Mount Gay e os alquimistas da Idade Média só não o descobriram porque não conheciam as Antilhas.

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Daqui a umas semanas direi a mesma coisa de um Ouzo numa taverna qualquer da Plaka.

Talvez. Só terei a certeza quando lá chegar.

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"Pai, vocês vivem num planeta paralelo", dizia-me a minha filha há uns anos em Antigua  (vocês sendo as pessoas que como eu vivem onde trabalham,  em vez de trabalhar onde vivem,  suponho).

Talvez não. Talvez no fim nós vivamos neste planeta mais do que quem dele só vê uma janela.

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 09-12-2015

O vento mudou, claro. Ficou mais forte. Comecei o dia no galope do mastro e lá passei grande parte da manhã, a instalar a tricolor.

Perguntam-me muitas vezes se não tenho medo de estar ali, pendurado numa "cadeira" a quinze ou vinte metros de altura.

A resposta é um não qualificado. Por vezes tenho. Os primeiros minutos, por exemplo. Quando tenho uma faca ou uma ferramenta pesada na mão e penso no que acontecerá ao barco se a deixar cair.

Mas depois o trabalho absorve-me; e a vista, sublime. Esqueço-me de ter medo, faço o que tenho a fazer, volto para baixo e apercebo-me de que mal tenho força nas pernas para andar.

Sim, é um privilégio. O resto é conversa.

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Hoje avançámos muito. Fazer reparações numa embarcação da qual se gosta - e merece, como é o caso desta - é um prazer sem fim.

Em todos os sentidos: o processo é circular. Da lista de coisas a fazer escolhe-se um conjunto delas que se começam. Nenhuma,  sabe-se à partida, vai avançar linearmente: para esta é preciso uma peça, para aquela um técnico que só está disponível "amanhã", a outra é mais complicada do que parecia. O barco fica um caos: paneiros levantados, locas vazias (e respectivo conteúdo espalhado por tudo quanto é sítio), técnicos a entrar e a sair (isto é um bocadinho faz-de-conta. Na realidade nunca aparecem quando disseram que vinham), viagens ao ship chandler seguidas de sessões de improvisação. Avanca-se em quatro ou cinco ou seis frentes ao mesmo tempo e nada avança excepto a desordem.

Pouco a pouco aparecem os primeiros V na lista. A desordem é a mesma, claro, porque o que ficou pronto é o mais simples. Ou por outra razão qualquer, da ordem do bruxedo.

E depois um dia apercebemo-nos, com uma mistura de espanto, gratidão e alívio de que só falta uma coisa: limpar e arrumar. Quase todos os itens a lista têm o V - uma injustiça, esse tracinho tão simples esconde horas de trabalho e dólares às carradas -; os que não têm ficam para a próxima escala.

O barco volta a parecer um barco e se se tiver tido sorte e nada tiver caído do mastro (longe vá o agoiro) - ou de mais baixo - não ficaram marcas. Tudo funciona outra vez. Ficamos a conhecer e a amar mais e melhor o bote.

Ser capaz de raciocinar em espiral, de lidar com a ausência de linhas direitas e estruturas rígidas, capacidade de se adaptar e gerir o imprevisto: o mar não é decerto a única profissão que requer este género de qualidades, mas é a mais bonita.

Pelo menos quando fazemos estas coisas todas em St. Martin, a meia dúzia de metros do Lagoonies e a vista que se tem do galope do mastro é a laguna mai-las baías adjacentes e as colinas que nos separam de Philipsburg, com sol e vento e o barco é uma beleza e qualquer dia estamos a caminho de Atenas para uma viagem de dez mil milhas.

9.12.15

O sono e o rum

A luz foi-se abaixo, outra vez. Há um problema com o gerador, ou coisa que o valha.

As empregadas do Lagoonies aproveitam para pôr os clientes da outra mesa, ruidosos e aniversariantes na rua.

A mim não chateiam. Sabem que não é nem o último rum nem o último sono.

Saúde, desprezo

Gosto da vida mas não faço nada para a prolongar por aí além. Talvez saúde seja isso: não a ausência de doenças, mas o desprezo por elas.

O que é e o que devia ser

Olho para a laguna, linda e poluída e lamento a esquerda: não consegue olhar para o que é sem ver o que devia ser.

Últimos, continuidades

Hesito entre um último rum e ir dormir. Escolho o rum, claro.

Qual seria a opção entre um rum e o último sono?

"Estudos de género"

Pergunta aos estudiosos  (e estudiosas, claro) de género: há mulheres livres e felizes?

Instabilidade, religião

O vento caiu, finalmente. Amanhã volto ao galope do mastro para montar a tricolor que hoje desmontei. Vai estar mais calmo, se nada mudar.

É pouco provável: nada mudar é tão estranho a esta vida como a mudança é para uma religião.

Talvez seja por isso que sou ateu: alguém conhece uma religião que tenha um deus da instabilidade?

Altruísmo

Defendo a alegria do desprendimento e penso em quanto gostaria de ter um computador para escrever e uma máquina fotográfica para mostrar.

Depois lembro-me nos disparates que escrevo e mostro e percebo a sorte que quem me lê e vê tem.

Amanhã?

De que será amanhã feito?

Não sei. Mas tão pouco sei de que foram ontem e hoje feitos.

Sorte

Como explicar a um esquerdista a incomensurável sorte que não ter é?

Liberdade, fatalidade

Ao contrário da saúde  (por exemplo) que tem custos mas não tem preço a liberdade tem um preço mas não tem custos.

Não ter nada e ser feliz assim não é um custo. É uma sorte, ou uma fatalidade.

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 08-12-2015

Começar o dia de trabalho no galope de um mastro de quase vinte metros e acabar o mesmo dia a secar fundos é um privilégio.

Difícil de explicar, mas privilégio.

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Fiquei a trabalhar no S.M. O barco precisa e eu também. Os astrólogos chamariam a isso uma conjunção feliz, suponho.

Eu chamo sorte. É menos exótico, mas igualmente próximo da realidade,  não é?

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St. Martin é uma ilha adorável. A cada dia que aqui estou mais gosto dela.

E me pergunto como consegui passar tanto tempo a detestá-la. Não acredito em amores à primeira vista, é o que é.

Excepto Bequia, claro. Mas isso não foi amor, foi bom senso. E não foi à primeira vista. Foi à segunda vida, ou terceira, ou as que tiverem sido.

Pensava que era específico de marinheiros, mas não. Hoje S., dentista e acessoriamente armador do S.M. disse-me que Bequia é a sua ilha favorita nas Caraibas.

Podia argumentar que não conhece muitas, mas isso seria um argumento barato, desprezível.

Os marinheiros não têm a exclusividade do bom gosto, mais simplesmente.

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Cinco dólares por um Mount Gay pode parecer caro. Parece até se ver a quantidade de rum que há no copo.

É tanta que torna impossível não beber outro.

7.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 06-12-2015

Chego ao Lagoonies no fim da festa. Agora aos Domingos há um brunch e - o Lagoonies sendo o Lagoonies - música ao vivo (bastante boa, se as duas canções que ouvi servem de aferição).

O lugar está cheio de crianças e respectivas progenituras.

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As coisas mudaram de novo. Não é novidade, claro. Isso seria elas não mudarem. A largada de Atenas foi outra vez adiada e tenho de ficar por aqui a trabalhar uns dias. Ou semanas, ou o que for. Não sei. A burocracia grega nada tem a invejar à portuguesa  (ou vice-versa, se calhar).

De maneira hoje lá fui perguntar à empresa para a qual trabalhei na época passada se tinham trabalho para mim. "Talvez". A ver. Parecem-me mais bem organizados, coisa que a confirmar-se verdade seja dita não seria difícil. Já não está ninguém do ano passado.

Talvez. Que se lixe. Se não for ali é noutro lado qualquer. Amanhã chega o armador do S. M. e logo se vê.

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Entretanto vou arrumando e limpando o bote e fazendo experiências culinárias. A de hoje bateu todos os recordes. Ia chamar-lhe Lulas à vou morrer aqui, ou Lulas à vocês não vão acreditar  (para quem não é de Moçambique). A incredulidade vem de terem ficado comestíveis. Omito a receita: desafiar o acaso é uma coisa, provocá-lo outra muito diferente.

Escrever aquilo seria uma provocação e não passaria impune. De qualquer forma sobrou bastante e como só deito comida fora quando nem as bactérias a conseguem comer amanhã posso reavaliar a questão.

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Não me importaria nada de esperar uma semana em Atenas. O Tsipras conseguiu fazer aprovar um conjunto de medidas de austeridade que me encheu de admiração por ele: não sei se aquilo é falta de vergonha se excesso de génio e muito apreciaria saber.

A verdade é que nem a imprensa nem a esquerda lusas (perdoem a redundância) tugiram ou mugiram.

Acho bem. António Costa prepara-se para relançar a economia pelo lado da procura e deve dispensar maus exemplos. Pode ser que o próximo programa de reajustamento,  depois do relançamento que aí vem seja dirigido por um socialista.

Sempre poderão pedir conselhos ao herói grego. Há muitas maneiras de comer sapos e ele conhece-as todas, suponho.

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O PCF acabou. Agora chama-se Frente Nacional e acaba de ganhar a primeira volta de uma eleições regionais em França.

A relação dos franceses com a civilização é inegavelmente fecunda, mas instável.

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http://youtu.be/FF0M7z7DHdM

Rum

"Rum'll drive you mad". These were his last words, said just before his mother tongue died in him and another language descended upon his bald head.

Depuis ce jour il vit caché, dans la crainte légitime de voir ce nouveau langage mourir à son tour en lui.

"Tu comprends : je ne l'ai pas choisi. Bien au contraire" m'explica-t-il quand je l'ai eût finalement retrouvé. "Si je le laisse mourir comment saurai-je lequel suivra?" "Ou même s'il y en aura un autre", répondis-je.

Il me regarda terrorisé. Visiblement l'idée de ne pas avoir de langue ne lui avait pas affleuré l'esprit.

- Digo muitas disparates, não digo?
- Dizes.
- Sabes o que me dá gozo?
- Não.
- É que digo cada vez menos.
- A continuar assim quando morreres deixas de os dizer.
- Verdade. O bom senso é mortal.
- Disparate. Porque não experimentas calar-te em vez de morrer?
- É quase a mesma coisa. Passa-me o rum, por favor.

5.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 05-12-2015

Ontem fiz um Colombo de frango. É uma espécie de caril típico das Antilhas Francesas, assim chamado por ter sido trazido para aqui pelos trabalhadores de Ceilão quando a escravatura acabou e era precisa mão-d'obra para o açúcar.

Não foi o melhor mas tão pouco ficou mal. Cada vez gosto mais de cozinhar. Qualquer dia começo a ouvir vozes como a minha avó Filipa. A ela apareceu o St. António e disse "Filipa, o teu futuro é a cozinha". A senhora obedeceu e transformou-se numa cozinheira excepcional.

Começou a carreira a vender bolos na praia da Nazaré. Tinha enviuvado e não queria depender da sogra.

Eu não estou viúvo e a ter sogra seria o mar, de quem não posso não depender porque o mar é a prisão absoluta, a liberdade absoluta.

Perguntam-me frequentemente se não me aborreço no mar. Não. Aborreço-me mais em terra.

Excepto quando cozinho, claro.

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Terça-feira vou para Lisboa. Depois Atenas - Los Angeles. Até Abril não terei muitas ocasiões de me aborrecer nem necessidade de ouvir vozes.

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No Lagoonies bebo o melhor rum punch de sempre e para sempre. O rum punch perfeito.

Um dia se ouvir vozes e lhes der ouvidos tentarei replicá-lo.

4.12.15


Retratos antigos






Amores rafeiros

As paixões desvanecem-se a uma velocidade directamente proporcional à sua intensidade.

Já o amor é diferente: tenho um que dura há cinquenta e oito anos com uma rameira chamada vida e apesar de alguns altos e muitos muito baixos continua intacto.

Talentos

Uma vez tive uma namorada que cantava maravilhosamente. A relação dela com o seu próprio talento era complicada (as suas relações com tudo, interno ou externo eram complicadas).

Estou no Lagoonies a ouvir um senhor que canta pior do que ela e tem um reportório infinito.

Ela também tinha um reportório vastíssimo, mas tudo o que dele me deixou foi uma tremenda necessidade de aplaudir cada música.

Agora sei o que custa, ou devia custar.

Quase provérbios

Contra factos fracos são os argumentos.

3.12.15

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 03-12-2015

Há uma espécie de satisfação infantil em voltar a um lugar onde se viveu e ouvir muita gente dizer-nos "good to see you again", "c'est bon de te revoir", "é bom ver-te".

Mas não é por ser infantil que é menos bom. Hoje o que mais me surprendeu foi o genuíno prazer dos chineses da frente. Até o marido, circunspecto e reservado sorriu quando me viu.

Prazeres simples mas reconfortantes.

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Comprei um livro. Enfim, é mentira. Não o comprei. Saltou-me para as mãos e tentei repô-lo na estante mas não entrava. Pasta de dentes fora do tubo, leite entornado, amor arrependido.

Uma compilação dos textos de Edgar Morin no Le Monde de 1963 até agora por doze euros.

Para comparar: comprei igualmente um bloco-notas Clairefontaine de capa rígida pelo mesmo preço.  Há aqui qualquer coisa que me escapa, mas agora não estou em modo pesquisa.

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A vantagem de St. Maarten sobre Antigua é a proximidade da França.

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Terça-feira vou para Lisboa. Hesitei entre Lisboa e Genève. Não foi fácil.

Nada é fácil quando se vive. Talvez seja essa uma medida: quanto mais difíceis as escolhas mais vives.

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Penso com nostalgia antecipada no dia em que serei de um lugar. Adorno tinha uma frase sobre os criadores que criam os seus precursores. Como dizer o mesmo de quem cria as suas raízes?

Diário de Bordos - Simpson Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 03-12-2015

Larguei de Port Antonio no dia em que a minha Mãe faria oitenta e cinco anos, se ainda os fizesse. Continuarás a fazê-los, Mãe: estamos cá nós e os netos que te conheceram e até chegar a vez deles serás lembrada, e farás anos, e estarás connosco.

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Ninguém gosta de bolinar. Lembro-me de uma frase que li um dia e cujo autor não fixei: "não gosto de escrever, mas gosto de ter escrito". Acho que se pode dizer o mesmo da bolina: não gosto de bolinar mas gosto de o ter feito.

A viagem correu bem e depressa: sete dias. B. é um gentleman, por vezes um bocadinho exasperante porque não dá um passo sem perguntar. Mas foi um bom tripulante e uma boa companhia. St. Maarten acolheu-nos principescamente: um jantar com J. e no dia seguinte outro a bordo do SINCHRONICITY, um barco pelo qual me apaixonei no dia em que o vi e ainda não me desapaixonei, apesar de alguns tumultos na nossa história.

St. Maarten (ou Martin, para quem está no lado francês) é uma ilha adorável, complexa, bonita. É curioso pensar quanto a detestava quando comecei a cá vir; o mesmo se passou com o Panamá. Com quantos outros lugares, pessoas, coisas?

Os grandes amores começam ao contrário, começam connosco a defender-nos, como se soubéssemos que estamos sempre a um passo do abismo, a um passo do amor.

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Dos sete dias que levámos quatro foram de tempestade ou mau tempo. Não tanto como o que apanhámos à saida de Bocas, mas mesmo assim o suficiente para me fazer pensar que estou farto de mau tempo.

Ma non troppo: de Atenas até às Canárias vou ter de novo mais do que a minha justa parte de pancada. Cada vez que digo que quero mudar de vida aparece-me a grandiosa parede da realidade à frente.

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Passei duas semanas na Jamaica à espera: de tripulantes; de uma decisão sobre a estúpida multa que a Alfândega me pregou, injusta e voraz; do Matthew.

Um marinheiro espera. E felizmente navega e quando navegra esquece-se de tudo o resto, porque navegar é esperar por coisas mais importantes.

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Bolinar é uma chatice: não há gesto, posição ou acção que seja fácil. Estamos a subir permanentemente, até para nos deitar ou sentar temos de fazer um esforço.

Mas a ideia de que estamos a andar contra a energia que nos move tem qualquer coisa de mágico, de fascinante. E quando estou deitado no poço e oiço o S. M. a cortar as vagas, ágil e vivo; quando olho para o céu e vejo que há estrelas e que Orion está à minha proa e ao lado estão Castor e Pollux, as estrelas dos viajantes; quando percebo o que o barco me quer dizer - os barcos falam, não fazem barulho, já por aqui uma vez o disse - deixo-me levar, deixo-me encantar e lá vamos o barco e eu, se não de mãos dadas ao menos de almas juntas.

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Falta pouco para chegarmos; se a terra fosse plana e eu não fosse míope veria o Panamá, a Jamaica. Não é, sou e não vejo. De qualquer forma prefiro olhar para a frente: St. Maarten, Atenas, Los Angeles. Do que está para trás só fica o que aprendi. O resto desvanece-se como a esteira que o S. M. deixa no mar.

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Não sei se por injustiça se por recompensa: depois das tempestades o céu é mais bonito.