31.3.17

Ranho

- Está uma noite viscosa, horrível, não sentes? As coisas agarram-se à pele, escorregam devagar, peganhentas.
- Que coisas? Referes-te a mim? Às minhas coisas?
- Não. Deixa-as estar onde estão que estão bem. Refiro-me a tudo. Às memórias, ao futuro, às palavras, à noite, o sono, os sonhos... Tudo.
- Talvez sejas tu que te agarras à noite e escorregas viscoso por ela abaixo, como ranho espesso numa parede de vidro fumado.
- Sim. Talvez eu não saiba o que fazer com esta substância que me sai das tripas a que tu chamas ranho e não é,  é muito mais, mistura de meia dúzia de memórias e meia dúzia do que está a chegar e não chega, não há maneira, é demasiado viscoso, não ata nem desata.
- Dorme. Amanhã não existes. 

Luz

Se a vida se parecesse com alguma coisa parecer-se-ia com um circuito de bicicleta numa serra: apesar de um gajo voltar ao ponto de partida - e ter portanto subido a mesma quantidade de metros que desceu, ao milímetro - as subidas foram mais, muitas mais do que as descidas. (Quem diz bicicleta diz ski. Ou a pé...)

Ou seja: o que levamos da vida é uma ilusão, que só não é óptica porque a sentimos no corpo todo. Um logro.

Dormi um terço da minha vida, e desse terço talvez um por cento das noites dormi acompanhado. Talvez mais. Nunca contei. Teria de fazer as contas ano a ano. Semestre a semestre, vá.

Há uma relação escondida entre estes dois factos. Ou melhor, entre este facto e aquela opinião. Relação estranha, esta. Os factos só deviam relacionar-se com factos e as opiniões com outras opiniões. Quem é que quer esta miscigenação, "a quem é que ela interessa?" (Perguntar com ar conspirativo, de quem sabe mas não diz).

(Das noites que passei acompanhado há que retirar aquelas em que tinha bebido demasiado ou estava apaixonado).

Apagas tu a luz, querida, por favor? Ou preferes que seja eu a apagá-la? Não é para fazermos amor às escuras, bolas. É para dormimos. Gosto demasiado de ti, percebes? O amor dá cabo do sexo. Transforma-o numa cerimónia religiosa, uma espécie de missa. Este é o meu corpo, tomai e comei. Este é o meu sangue. Tomai e bebei. Detesto missas. Troco todas as hóstias do mundo por uma das tuas mamas numa das minhas mãos. Faria as duas nas duas. Para não falar do cálice, do tabernáculo, do ostensório, dessas coisas todas que misturamos numa liturgia arfante, nocturna, diurna - sim, também contariam, se me desse ao trabalho estúpido de contar quantas noites dormi acompanhado, quantos dias -.

Que se lixe. Estávamos a falar da luz, não é?

Apaga tu. Eu adormeço com ou sem ela.

Ouve. Ouves-me? Gosto muito de mulheres, mas tento não gostar. Tudo aquilo de que gosto desaparece. Mais vale não gostar.

Imagina-te numa igreja, no coro. Estás encostada ao balcão, olhas para o presbitério, para o altar, para as talhas, lembras-te de quando eras miúda. Sentes uma pila tesa contra as nádegas. Está frio. Tens saia e collants e cuecas, sei lá. De repente isso está tudo no chão. Perguntas-me "e se vem alguém?" "Não faz mal. Ele está a ver e avisa-nos". "Estúpido". Depois fizeste "Aaaah" e toda a igreja ressoou.  Como se fossem os sinos a tocar mas mais baixo e contínuo.

"Vou começar a chamar-te Teresa d'Ávila" digo-te cá fora. "Estúpido". "Ainda bem que a igreja estava vazia". "Não estava. Entrou uma senhora para rezar. Mas era tarde de mais. Estava quase na hora da comunhão". "Não a vi". "Não perdeste nada. Era feia".

Eras tão bonita, não eras? Com esses cabelos pretos curtos, olhos verdes muito grandes, mamilos que te ocupavam quase metade das mamas, pernas curtas nem demasiado gordas nem demasiado magras. "Era feia".

Gosto de mulheres bonitas que se sabem bonitas. Arrogantes porque querem e podem.

Lembras-te daquele dia no lago, alugámos um kayak e acabámos dentro de água agarrados à borda daquilo, dava voltas e mais voltas...

Apagas a luz, por favor? Na margem havia um gajo que nos esperava, dentro do carro. A água estava fria.

"Que se lixe. Não importa. Despacha-te". Não me despachei. "Até ficaste arrepiada". "Foi por causa da água, parvo ". Já foi há muito tempo, não foi?

Foi ontem. Apaga a luz.

30.3.17

Diário de Bordos - Miranda do Corvo, Portugal, 30-03-2017. A vida no campo - III

Às cinco da tarde vou tomar chá, como se fosse inglês ou aspirante a. Nem uma coisa nem outra. O chá é medíocre, a começar pela qualidade - nunca apreciarei chá em pacotes, creio - e a acabar na maneira como é servido, quase morno, uma chávena com o pacote lá dentro e um pequeno recipiente ao lado com água que suponho era para estar quente e não está. Ponho o pacote dentro do recipiente de água - não sei como se chama, é daqueles que se usa também para leite, natas ou café - e bebo duas chávenas. Por um euro, valha isso.

No café-pastelaria Jardim, até agora o meu sítio favorito em Miranda do Corvo. Já lá almocei duas vezes e hoje, depois de uma experiência ao almoço desastrosa num café que aparentemente pertence a uns ingleses - não sei, não tenho a certeza - resolvi que voltaria mais vezes, muitas mais.

A vila não me é particularmente simpática. Traz-me demasiadamente à memória os tempos em que a ideia de passar mais do que três dias longe de uma cidade com menos de meio milhão de habitantes (ou Genève, que tem metade mas não parece) me provocava uma crise de urticária. Ou então aquela anedota do concurso: primeiro prémio uma semana em ------ com todas as despesas pagas; segundo prémio, duas semanas no mesmo sítio e nas mesmas condições. (Antigamente o alvo da piada era o Porto, mas agora não faz sentido. A cidade está bestial. Miranda ainda faz).

As pessoas, pelo menos aquelas com quem tenho de lidar mais vezes - a biblioteca e no início o centro de saúde - são antipáticas, secas, quase agressivas.

Não sei se tem a ver com a região e confesso que me interessa pouco. Amanhã chega o computador - se o amanhã de hoje for diferente do amanhã de ontem - e deixarei de ir à biblioteca. Já desisti de tratar da dor no cotovelo. Fica para Lisboa, juntamente com as consultas. Tratar das coisas por telefone ou mail com o SNS não vale simplesmente a pena. Parece uma gruta com um serviço de hotel de luxo quando se está lá dentro. Mas até entrar é um sarilho.

Verdade seja dita que se fosse ao invés seria pior.

........
Ou seja: para a semana tenho de ir a Lisboa. Não telefone, vá. É muito mais prático, mais barato e mais rápido.

Amar Portugal é tão desesperante como amar uma mulher feia.

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"À medida que envelhecemos começamos a gostar da Suíça". A frase é da Triomphante, o livro que começa com aquela frase sublime: "Tenho a imaginação portuária".

Não sei o que é a minha imaginação ou sequer se tenho alguma; mas a propósito da Suíça parece-me cada vez mais verdade.

Bom, mau

Bom... Por escrito tenho de grafar assim, três pontos. As reticências tem três pontos só, mas José seguia prolongar o som de tal forma que a certa altura parecia que só se ouvia o m.

José conseguia transformar consoantes em vogais. Enfim, semi-vogais, vá lá.

Se eu quisesse reproduzir mais ou menos o som teria de fazer qualquer coisa assim: Bo...om... ... ommm...Como se fosse um trissílabo. José fazia milagres. Levava-nos a todas, com aquele Bo...om... ...ommm.

Fazíamos fila à porta de casa dele.

Até que um dia a Mariana gritou Mau... à saída. Ma...a... ...au.... E desfez-se a ilusão.

Mau é aquilo em que o bom se transforma, dados o tempo suficiente e a pessoa certa.

29.3.17

Charlatão e os parênteses

Toda a gente sabe que charlatão é uma contracção de Charles e então. Ao princípio, aliás, levava obrigatoriamente um ponto de interrogação: charlatão? Depois a multiplicação da espécie fê-lo cair.

Charles era um francês que andava pelas bibliotecas todas do país com o objectivo só raramente confessado (e mesmo assim apenas nas tabernas e sob o efeito de muito álcool) de engatar as bibliotecárias. Uma em cada biblioteca, pelo menos, explicava tarde e a más horas a uma assistência cuidadosamente seleccionada. Charles tinha o condão de envolver todos quantos o ouviam no seu projecto. A tal ponto que quando conseguia levar, por fim, uma das funcionárias da biblioteca local "ao castigo" (aspas porque o cito) todos os participantes nessas tardias e semi-clandestinas sessões tabernísticas se sentiam como se tivessem sido eles - individualmente, cada um - a cometer a proeza.

Prometia mundos e fundos às pequenas - às vezes não tão pequenas - que depois vinham à porta da igreja perguntar por ele. Charles, então?

(A vírgula foi a primeira a cair, o que não é de espantar. Tudo o que separa cai. Quero dizer: o desejo, não é? Como se fosse um lago do qual o monstro tivesse comido de mais, depressa de mais. Uma bibliotecária come-se devagar, como se fosse um livro. Aliás: é um livro e muito mais, é uma quantidade infinita de livros.

Charles então?

Poder-se-ia dizer o mesmo das bibliófilas, sonhava Charles por vezes em voz alta. Uma vez comi uma bibliófila. Ofereci-lhe um livro brasileiro, comi-a e depois ela comeu-me e deitou-me fora, cheio de marcas de dentadas, não chegou ao fim, enjoou. Parece. A audiência estava horrorizada,  cheia de compaixão por Charles.

Charlentão?

Charles era francês, não o esqueçamos. Pronunciava Charlantan, as duas últimas sílabas muito nasaladas. Charlantan.

A verdade é que lá me deitou fora, a bibliófila e agora eu vingo-me nas bibliotecárias, explicava Charlatan. Têm mais sílabas.)

O parênteses de fecho está no lugar. Posso acabar aqui a história, se quiser. Uma história requer parênteses aos pares.

Sou um parêntese só, terminava Charles. A solidão, a terrível e traiçoeira solidão. Os olhos da audiência - restricta, selecta e atenta - enchiam-se de lágrimas. E pergunto-lhes: Quer ser o meu parêntese de fecho?

O mar que eu navego

Perguntas-me Como estás? e eu respondo Bem, obrigado. Pudera: vejo mar, só mar à minha volta. A toda a volta, quero dizer. Para onde quer que olhe vejo mar.

Azul, muito calmo, quase sem vagas, parece uma gigantesca folha de papel que alguém amarrotou um pouco e depois desamarrotou com cuidado e ficaram as marcas. Azul.

De modo estou bem, rodeado de azul, parado porque não há vento mas como estou sem pressa não me preocupo muito. Estou bem. Impossível estar mal no meio do azul. Os ingleses - ou terão sido os americanos? Não sei - enganaram-se. Trocaram as cores. Azul significa alegria, bem estar, harmonia.

Não sei se já reparaste, mas hoje estás azul, toda azul. Da ponta dos cabelos - os quais continuam loiros - à ponta das unhas dos pés estás azul. Talvez sejas tu o mar que eu navego.

Quase retrato e metáfora

Era um excelente bombeiro. Tão bom que nem uma lareira sabia acender. Só conseguia apagá-las.

Vasos comunicantes

Há aqui um padrão: os hospitais só são bons quando se está lá dentro (pelo menos os de Lisboa; com o de Coimbra não fiquei extremamente impressionado); a TAP é uma companhia aérea esplêndida desde que se entre no avião. Até lá parece uma Air Maybe qualquer, de um país ao Sul do Sahara; os restaurantes portugueses - a maioria, não todos (e felizmente cada vez menos) - parecem espeluncas até termos a comida no prato.

Será que a lei dos vasos comunicantes não se aplica a Oeste do Guadiana? 

Diário de Bordos - Miranda do Corvo, Portugal, 28-03-2017

Hoje fui turistar à Lousã. Enfim, não sei se turistar é o verbo adequado: passei metade do tempo na Moneygram para enviar dinheiro ao D. Está em Barcelona num buraco maior do que o meu, com mulher e dois filhos, um dos quais recém-nascido.

Poderia argumentar-se que não é sensato um gajo nas minhas circunstâncias ajudar outro nas circunstâncias do D. A verdade é que os gajos sensatos não ajudam; com o argumento - defensável (mas não justificável. Enfim, passons) - de que não nos compreendem encarregam-nos a nós, insensatos que sabemos o que é estar no buraco, de o fazer.

Fi-lo, claro; em Dezembro (para só mencionar a mais recente) beneficiei eu da ajuda de um insensato.

Insensatos de todo o mundo, uni-vos!

(Com um abraço amigo e sensato ao A. G. P., irmão na insensatez e cúmplice de montanhas russas. Que vivamos muitas mais).

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O centro da Lousã tem a habitual mistura de edifícios lindos em ruínas e novos e viçosos horrendos. Mesmo assim aguenta-se. Entre a solidariedade e o autocarro acabei por passear pouco tempo; mas devo ter visto o essencial.

Há uns anos, quando ouvia falar de desertificação do interior pensava que o milagre era não ser ela maior, total. Não percebia o que prendia as pessoas que resistiam. Agora não só as percebo como também compreendo quem se muda para o interior: não é preciso estar muito atento para ver nisto um mundo novo.

Estando atento vêem-se milhares de mundos novos.

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Em breve irei a Lisboa. Lá mais para a semana. Vou comovido: o desvelo com que ando a tratar de mim é uma novidade. Não me sabia capaz de tamanho auto-amor.

Espero que o sacana do corpo o veja, deixe de se comportar como um menino mimado e de fazer birras e - sobretudo - retribua.

Não é por ele que faço isto, é por mim. Dias como o outro domingo não, obrigado.

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Tudo indica que vou mesmo à Guadeloupe buscar um cata de cinquenta pés para Atenas.

Não sou grande fã da Guadeloupe mas um pouco de calor e água tépida, azul e profunda não me farão mal.

E passar de novo Corinto, regressar a Atenas, com quem me reconciliei faz agora pouco mais de um ano. Espero que seja o último transporte que tenho de fazer, mas não está mal escolhido (ignoro por quem...)

Melhor só o de Toronto, mas não se confirmou. Esse teria feito mesmo sem precisar...

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Hoje falei ao telefone com o dono de uma empresa turística.

Parecia que acabara de sair da gruta de Platão e alguém lhe pusera um telefone portátil nas mãos.

28.3.17

Diário de Bordos - Miranda do Corvo, Portugal, 28-03-2017. A vida no campo - II

Ontem o problema no Centro de Saúde foi o tempo de espera. Tinha a consulta marcada para as duas e dez e a médica - uma rapariga jovem, nos seus trinta e poucos anos - chamou-me às três e dez. Fiz-lho notar (em termos que me parece terem sido correctos e educados), a senhora não apreciou e saí de lá sem ser atendido. Uma hora para nada.

Hoje voltei. Pedi para ser atendido pela médica com quem conversei no sábado, uma senhora provavelmente da minha idade, simpatiquíssima. A funcionária do guichet das marcações avisou-me de que a médica "estava atrasada" (ontem comecei por reclamar ao balcão). "Muito bem. Mas quão atrasada?" "Olhe, para o senhor ter uma ideia uma senhora tinha a consulta marcada para as dez e quarenta e ainda não foi atendida".

Era uma da tarde.

27.3.17

Diário de Bordos - Miranda do Corvo, Portugal, 27-03-2017. A vida no campo

O que marca o ritmo da vida doméstica é a salamandra. Acordar e acendê-la para aquecer a casa para o duche; ir buscar lenha - agora ou logo à tarde? É preciso ter sempre uma reserva que me permita ter fogo ao chegar -; chegar: acender a salamandra; ir buscar lenha para a noite; na cama, antes de dormir: levantar-me regularmente para alimentar o bicho. A casa é pequena e aquece depressa, mas como todas as casas portuguesas está mal isolada e perde o calor num instante.

Comprei três caixas de fósforos e dois pacotes de acendalhas, não vá o diabo tecê-las. Ainda não teceu.

Gosto do cheiro do eucalipto a arder.

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O conto de fadas do SNS acabou hoje no centro de saúde local. Confronto com o real. Amanhã volto à carga.

A médica é gira, mas prometi que ia tomar conta de mim. E de qualquer forma é provável que tenha um transporte daqui a três semanas, não quero correr riscos.

Se Deus quiser será o último. Inch'Allah. Pelo menos assim tão grande.

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Hoje a taxa de coiso deixou de estar abaixo dos duzentos e passou a acima dos cem. É  uma efeméride importante. A próxima etapa é pô-la à volta dos cem, a dançar à roda dos cem como uma vaca nos Açores em torno do pau.

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Onze quilómetros a pé. Pena a paisagem construída ser tão feia. As casas são horrendas, moradias à la patô bravô, muitas com janelas tipo fenêtre e portas como as portôs.  Uma vez fora das zonas construídas tudo muda. O campo é lindo, tanto que nem a inevitável praga de eólicas consegue estragá-lo.

Hoje vi bastantes estrangeiros. Há muitos ingleses na região, parece. Cruzei-me com três senhoras alemãs  (ou pelo menos germanófonas) e um casal que se não era francês era francês.

Miranda do Corvo é um pólo cosmopolita ignorado.

Obrigado, sempre

Nunca prestei muita atenção à audiência do Don Vivo. Era impossível não reparar que tem estado a aumentar, mas enfim. Não parecia estratosférico. Até que ontem fui espreitar com mais cuidado.

Não são todos, mas há posts com trezentas e quatrocentas e muitas visualizações. Continua a não ser estratosférico, mas para mim é como se fosse.

Primeiro hesito entre o espanto e a gratidão, ambos infinitos. Depois opto por esta. O meu obrigado a quem perde o seu precioso tempo a ler estes disparates é como o tempo: vem de sempre e vai até sempre.

Solidão, tempo

O lado bom da solidão é o tempo. Torna-se mais fluido, mais macio, suave. Estende-se ao infinito porque nós somos o infinito, cada um de nós e quando estamos sozinhos apercebemo-nos melhor disso.

O defeito é passar depressa de mais. Sozinho, uma hora é meia; um dia uma hora.

Só a vida não muda: continua a ser o raio de sol que hoje de manhã vi espreitar entre duas nuvens e que de tão breve nunca acabará. 

Melancolias, solidões

Gosto da doce melancolia da solidão e deploro-a quando se torna amarga, insuportável. Felizmente a primeira é mais frequente do que a segunda.

Como se a solidão fosse um Janus imperfeito, assimétrico, diacrónico.

Nem penses

Uma sala às escuras. Só uma das paredes está iluminada: tem uma palavra escrita e visivelmente quem a escreveu quer que seja lida.

A palavra, contudo, muda. Nem todos os dias é a mesma. Às vezes é um simples e claro "Não!". Outras é "Proibido"; ou "Interdito". Às vezes são duas palavras: "Nem penses". A sala é grande como o desejo e o gozo consiste em chegar o mais perto possível da parede que está iluminada sem nela esbarrar.

Apesar de iluminada vê-se mal. Tem de se lhe andar milimetricamente perto mas sem pensar sequer em lhe tocar. O jogo prolonga-se, como o prazer num dia de sol ou o mar visto de uma esplanada na praia. A iluminação da sala também muda, passa do mais claro ao mais escuro, do dia à noite sem crepúsculo. Ou então é um longo lusco-fusco, sem que se possa perceber se matinal se vespertino. Nada é estável, excepto uma palavra: a que dá o nome à parede - e mesmo essa muda de vez em quando, aleatoriamente.

Por vezes afasta-se (a parede); fica invisível (a palavra). Há que correr atrás dela: não se pode ficar longe do que foi escrito, no escuro, por alguém que visivelmente não sabe ler mas quer ser lido.

Não vale tactear. Não vale fingir. Não vale hesitar. Nada é válido excepto o esforço de andar o mais perto possível da parede sem lhe tocar, sem luz e sem mãos.

Nem penses. Interdito. Proibido. Não. Sem mãos. 

26.3.17

Quem manda aqui?

Talvez pudesse dizer: "pouco a pouco retomo o controle do corpo. Já não somos inimigos. Temos um objectivo comum".

Escamotearia porém um dado importante: esse objectivo fora-lhe imposto pelo corpo.

25.3.17

Perplexidade, amor

Há três palavras na língua francesa que são masculinas no singular e femininas no plural. Começa-se por achar mágica, intrigante esta mudança de género em função do número. Quando se conhecem as palavras a magia e a perplexidade são substituídas por uma admiração profunda pelo francês. Amor, praticamente.

As palavras são: amour, délice e orgue.

24.3.17

Lixarada

Lixarada. É isso: estou cheio de lixo. O meu corpo parece um campo de lixeiras que se batem entre elas com a sanha de gaivotas esfomeadas.

Refugio-me na cama, no bendito sono, na alternância benéfica do frio e do calor, no silêncio.

Com um pouco de sorte os lixos matar-se-ão a si próprios. Para variar sobreviverei.

A imprensa regional vai publicar uma notícia sobre a guerra de trincheiras nas lixeiras locais. Estranhamente não há maus cheiros, dirá a concluir.

Sinónimos

Nunca se deve dizer "vamos então ao que importa" porque isso é como dizer "vamos saltar para aquele vazio".

Um autor francês que escreveu um livro sobre a sedução pergunta (em francês,  claro): "se você tiver duas portas à sua frente, uma disser [talvez] escritório e outra vazio, qual escolhe?"

Para esse autor a sedução é essa segunda porta. Vazio no sentido de abismo, desconhecido, vertigem.

Seduzir alguém seria portanto abrir-lhe a porta do vazio. Do poço. Uma queda sem fim no fim da qual (sou eu o único a ver aqui uma incongruência? ) correm coelhos com relógios e ovos para quem as palavras têm o significado que se lhes quer dar e não o que elas têm de facto.

Luz poderia ser, por exemplo, sinónimo de medo; tarde de amor; sexo de tarde; calor de água, sol, vento, Caraíbas (os significados podem saltar categorias gramaticais, tal como um olhar unir os dois lados de um precipício, se os tiver).

Talvez precipício seja, então, sinónimo de amor.

Riachos

Para começar é tarde; para continuar, tem de dizer-se que o gajo do fato amarelo e do estojo de violino - sabe-se lá com o quê dentro - não era marreco. Podia ser, repare-se. Podia ter uma corcunda interior,  invisível a quase todos os olhos. Ou talvez fosse ao contrário e essa deformação lhe permitisse ver melhor as outras. Nunca saberemos ao certo. É porém uma certeza: as nossas deformações ajudam-nos a ver melhor as dos outros; um pouco como a nossa experiência profissional nos habilita a entender os não-ditos dos nossos interlocutores do mesmo ramo de negócio. Se alguém me disser "para começar é tarde", por exemplo, eu sei perfeitamente o que essa pessoa quer dizer com isso, porque sou um gajo que se deita tarde e acorda igualmente tarde.

Aliás faço tudo tarde, desde a manteiga (com o leite da manhã, mas não fui eu quem ordenhou as vacas) até à por exemplo feijoada (com feijões do ano passado, plantados por mim em plena noite). Quem lesse isto pensaria que vivo no campo, mas tal não é o caso. Puro acaso. Se quisesse contaria uma história como se vivesse a cem quilómetros da cidade mais próxima. Não quero.

Vivo na cidade, a cem quilómetros do campo mais próximo. Isto é mentira. Questão de simetria. Simetria não, que a simetria não mente: um corcunda simétrico é menos inquietante do que um assimétrico. A simetria é um artifício da natureza para nos fazer ver por fora as perfeições interiores. Ou seja: disse que vivia a cem quilómetros do campo mais próximo porque.

Não vivo. Estou a perder-me. Não comprei cadeira nenhuma mas decifrei a loucura. Percebi a essência do amor: consiste basicamente em.

Isto muito resumidamente, claro. Tão pouco faço manteiga e de feijões só conheço as latas. Não vivo na cidade. De qualquer forma sempre gostei de riachos. A minha família tem uma ligação antiga mas vivaz aos riachos. Saltam, fazem barulho e por vezes galgam as margens. É preciso ver nisto uma imagem e uma descrição, como em tudo: acredito na biunivocidade. Na relação profunda e única da forma e do conteúdo. Nas corcundas interiores, por exemplo. Bom. Acredito em tudo e na relação ponto a ponto de tudo com tudo. Acredito na solidão, por exemplo, mas só depois de a relacionar com a existência de outros seres, eventualmente de outros planetas, outras solidões. Não existe solidão se não existir outro. Bom.

Vivo ao lado de um riacho, ao qual cheguei vestido de amarelo, com um estojo de violino vazio. Comprei uma cadeira à minha vizinha. Um dia morri, mas antes disso percebi o terrível mistério da aldeia. Tal é incontrolável o poder do amor.

Por isso me refugiei no estratagema: mais vale amar do que ser amado; qualquer aprendiz de adolescente o sabe. Ser amado é como ser escorraçado da gruta na qual hiberna o leão que está na selva. Quero dizer, vírgula, dois pontos: metaforicamente. Os leões não hibernam. Esperam, demasiadamente.

Bebem a água dos riachos e fazem manteiga com o leite da manhã, toda a gente sabe.

Menos eu, claro.

(Para a Alice L.)

23.3.17

Regionalização e assimetria

Sendo pela regionalização num plano teórico e dela céptico na prática penso que há uma área de actividade que devia absolutamente ser regionalizada: refiro-me à imprensa televisiva. Em particular à RTP, uma estação de televisão que como todos sabemos está ao serviço do povo.

Imagine-se a abertura do telejornal da região de Miranda do Corvo de hoje: "desembarcou esta manhã  na nossa Vila - à segunda tentativa - da camionete proveniente de Coimbra um estrangeiro. Não tinha um estojo de violino (sabe-se lá com quê) nem vestia um fato amarelo. Se ontem deu nas vistas - mal chegou regressou a Coimbra numa ambulância dos Bombeiros - hoje a chegada processou-se normalmente".

[Seguem-se várias entrevistas de rua a pessoas que foram vistas a interagir com o dito estrangeiro.]

A notícia continuaria - as nossas televisões têm uma certa tendência para fazer render o peixe, porque é mais barato - sem mencionar uma só vez uma assimetria fundamental: é que ao estrangeiro interessa muito mais chegar a Mirando do Corvo do que a esta simpática vila tê-lo cá. Primeiro devido ao seu reduzido poder de compra; e segundo porque a visita será breve: uma semana, talvez duas. Pelo menos por agora. Nada impede que daqui a uns meses a estadia seja mais longa.

"Descoberta do país", "calma para escrever" e "exploração do futuro" foram as três principais razões que o estrangeiro não mencionou a ninguém: todos os interlocutores foram unânimes  [todos e unânimes na mesma oração? Anda aqui regionalização a mais] em apontar a parcimónia de palavras do senhor, só compensada pela sua extrema jovialidade.

[Ou seja, o gajo fala muito mas não diz nada.]

21.3.17

Dia internacional da poesia

A ideia de que no dia internacional da poesia começa uma etapa poética da sua vida é em si mesma poética.  Ele é reconhecidamente um péssimo poeta, excepto se se considerar que um dia pode ser um verso, uma hora uma vírgula e a manhã, tarde, noite, madrugada estrofes.

Ainda assim o poema seria mau, suspeito (tenho fortes razões para isso, aliás). Mas talvez fosse menos mau. Talvez se pudesse considerar, sendo a vida um poema, que é um poema sem fim - a morte seria, a ser assim, apenas uma repetição (um replay, diríamos há alguns anos) uma repetição silenciosa e estática do poema da vida de cada um -.

Imagine-se um poema que começasse por "um marinheiro mete-se pela terra adentro". Qualquer pessoa de bom senso interromperia a leitura ali, logo ali, no coloquialismo "adentro", como se o navio do marinheiro tivesse batido numa baleia adormecida (isto é um pleonasmo. Se a baleia estivesse acordada a embarcação não lhe bateria).

Deixemo-nos de pormenores técnicos. Um marinheiro mete-se pela terra adentro, poeticamente. Pelo menos parece-lhe e como o faz no dia da poesia deve ser.

- Como classificar este tipo de poesia?
- Poesia da vida, poesia dos dias,  poesia da acção, poesia dos caminhos de ferro (expressão que o autor / vivente prefere a comboio)?

Pouco importa, na verdade. É impossível ler esta poesia: vista de fora é como se lhe faltassem dois terços  (pelo menos) dos caracteres.

Espera. Estou a dispersar-me. O poema faz sentido, mas tu não o podes ler. Pouco interessa: um marinheiro escreve um poema sentado num comboio não porque o esteja a escrever mas porque o está a fazer. A viver. A construir. O ritmo é-lhe dado pelo ruído dos boogies. O marinheiro transforma-se em hobo, esses seres que tanto o fizeram sonhar numa fase anterior, já antiga do poema.

O marinheiro não sabe o que o espera, mas isso não o inquieta: está habituado a escrever os poemas linha a linha, verso a verso, palavra a palavra, sem lhes contar as sílabas ou se preocupar com as rimas.

É assim. No Dia Internacional da Poesia um novo poema começa a escrever-se. Poético, não? Mais - pelo menos - do que ler poemas já escritos por poetas que morreram sem perceber o principal poema, isto é: a vida.

A vida, o cheiro a sangue vomitado, o ritmo dos boogies nos carris e os hobos, esses poetas desconhecidos.

E os marinheiros, naturalmente. As mamas, os ventres e os olhares com os quais o marinheiro - ou nos quais? Nos - o marinheiro vai viver o poema, escrevendo-o para quem nunca o conseguirá ler.

No Dia Internacional da Poesia um poema começa, terra adentro, corpo adentro, futuro adentro.

Diferença de idades

Na cama ao lado da minha - a um metro, um metro e meio - está o senhor Marcelino (o nome foi alterado. Entre os milhões de leitores do DV talvez haja que o conheça).

- O senhor Marcelino está com muito bom aspecto. Vive com quem? - pergunta-lhe Rosa (ditto), a simpatiquíssima e eficaz enfermeira.
- Ora! Com a minha mulher, pois então?
- E que idade tem ela?
- Oitenta anos. É dez anos mais nova do que eu.

20.3.17

Pequeno sermão interno

Há entre mim e aquele conjunto de órgãos desajeitados e exigentes a que à falta de melhor chamamos corpo um guerra aberta, acesa, por vezes violenta.

É uma guerra desigual: todos sabemos quem vai ganhar. Mas enquanto essa vitória não chegar, os resultados intermédios variam: eles ganham às vezes e perdem outras.

Ontem um deles - aliado a vários outros, é preciso dizê-lo - ganhou e mandou-me para o hospital.

Tive assim mais uma oportunidade de contactar o nosso serviço nacional de saúde.  Dado que a última vez foi em Junho do ano passado é de começar a ficar chateado com os filhos da mãe dos órgãos que - seja com a desculpa da idade seja com a dos maus tratos a que foram submetidos - prevaricam tão frequentemente.

Vou ceder um pouco - estar doente é coisa de ricos e eu estou longe de o ser -, mas espero que não se habituem. É que se pensam que estarem vivos chega estão muito enganados. Têm de trabalhar para isso, como toda a gente.

Doenças e pobreza

Pobre e doente estão frequentemente associados. É mais uma prova de que os pobres não têm juízo. Para um pobre estar doente é uma irresponsabilidade. Doença é coisa de ricos.

19.3.17

Lasciva e lânguida Lisboa

Oh luminosa Lisboa, és uma cabra. Quem não te conhecer que te compre, que aos íntimos ofereces-te lasciva e lânguida, puta púdica.

18.3.17

Lisboa, dois mil e dezassete

Foi assim. Eu vinha no metro, linha Verde para Sul. Uma voz mecânica, gravada, dizia as estações: "Próxima estação Alameda. Há correspondência com a linha Vermelha" (não sabem dizer "Encarnada", coitados). "Próxima estação Arroios". E por aí fora. Conhecem a linha.

Antes do Martim Moniz a voz anunciou: "Próxima estação Martim Moniz. Há correspondência com o resto do mundo".

Aposto que não fui eu o único a ouvir.

Soou-me um bocado exagerado. Afinal a festa era "Bollywood". Mas quando saí percebi que quem quer que tenha mudado aquilo estava prenhe de razão. 

17.3.17

Triângulos de éter

Como todas as coisas boas da vida a ginginha Sem Rival, sita à rua das portas de Santo Antão em Lisboa deve ser consumida aos pares. Isto é. Enfim. Esta frase merecia uma clarificação, uma separação da loja e do produto que é vendido na loja. Um exemplo: pensemos em todas as coisas boas que vêm aos pares e nas que não vêm. Isso, exactamente. A ginginha Sem Rival deve ser bebida aos pares, mas com UMA SÓ GINGINHA em cada copo. Isto vai em maiúsculas porque é importante.

Uma espécie de triângulo etéreo. 

Alice e os desertos

Saí de casa a pensar que ia rever Alice nas Cidades, mas afinal fui vê-lo.

O filme envelheceu terrivelmente no acessório e mantém-se actual no essencial: um homem vazio só percorre desertos; o mundo só se enche quando o viajante se enche.

Que esse milagre tenha sido conseguido por uma miúda de nove anos só torna o filme mais belo.

16.3.17

Diário de Bordos - Lisboa, 15-03-2017

Hoje fui jantar a casa de uma senhora por quem tenho uma admiração infinita. Enfim, uma mistura de admiração e gratidão, irresistível. Infinitas ambas mai-la mistura das duas. Não pus o dedo no nariz e só o pus na boca muito depressa, tinha um bocado de carne entre dentes e em vez de educadamente me levantar e perguntar onde é a casa de banho e mal chegado ao corredor enfiar o indicador e escarafunchar os dentes todos fui directa e disfarçadamente ao assunto. Acho que ninguém viu e acho que talvez seja altura de começar a variar as minhas fontes de adrenalina.

Enfim, nada disto seria verdade, claro, se eu quisesse; excepto a parte do jantar e da senhora que partilha comigo o gosto dos contos do Salinger (que ambos preferimos ao Catcher in the Rye, é suficientemente raro para ser assinalado; e ambos gostamos de um livro de Albert Cohen chamado Le Livre de ma Mère, que de resto ela traduziu para português e eu vou ler essa tradução porque preciso desesperadamente de começar a acreditar nas traduções portuguesas).

Foi um jantar tão bom porque me fez sentir vivo. Não sei como explicar isto sem ser piegas ou parecer maricas, mas é isso. Foi um jantar bom. E partilhamos também uma veneração por um livro chamado A Curva do Rio, em português e A Bend in the River no original inglês, um livro sem o qual não se pode entender África, apesar de ser sobre o Congo, só (o rio é o Zaire e a cidade Kisangani, onde nunca estive. Mas estive em Kindu, mais para sul no mesmo rio).

.........
Depois fui a uma discoteca abominável. Fui não é adequado como verbo: entrei e saí aproximadamente um minuto depois. Há pessoas que gostam daquela mistura de muita gente, música muito alta, paredes negras e espelhos. Borges dizia que os espelhos e a fornicação deviam ser proibidos (porque aumentam o número de seres humanos), mas o que me ocorreu foi a discoteca toda branca onde há duzentos e cinquenta anos estive em Amsterdam e daí lembrei-me de Baruch, o velho Baruch: "nada em si mesmo é bom ou mau, tudo depende do que os homens fazem das coisas" (entre aspas mas a citação não é literal).

Nada em si mesmo é bom ou mau? Porra, quanto não pagaria eu para ver qualquer coisa boa naquele lugar?

"Não faço parte desse grupo" (dos que gostam de discotecas e boîtes)" dizia. E nem sequer tenho pena, não é? Não gosto. Já gostei. Enfim, não sei. Gostava duma discoteca que havia perto de Setúbal à qual ia de barco e que ardeu, era de madeira. Dessa sim, gostava. E daquela toda branca em Amsterdam. Nada em si mesmo é bom ou mau.

Quando era puto ia ao dois mil, claro. Já não sou, Allah uAqbar. Inch'Allah. Oxalá.

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Que mais? Leio Vila-Matas, outra vez (mas o livro é diferente, vá lá); folheio Le Clézio, um dos que trouxe de Genève. Penso no Vieux Dégueulasse de Reiser. Que pena não ser mais conhecido em Portugal, não é?  "Toutes des putains, sauf maman". Pelo menos poderia ser comparado a um gajo verdadeiramente nojento, se fosse apanhado a pôr os dedos no nariz ou a dar puns à mesa.

.........
Há pessoas que sabem o que querem e eu sinto-me verdadeiramente feliz por elas. Não faço parte desse grupo, mas já estou mais perto: sei o que não quero.

Ser infeliz, por exemplo. Ninguém quer, claro. Enfim, uma coisa sei que quero: uma casa para os meus livros. O primeiro livro do autor do Bend on the River chama-se Uma Casa para Mr Biswas. Muito esperou o senhor Biswas pela casa dele. Eu também posso esperar. Espero.

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Que mais? Uma coisa boa dos espelhos: os caleidoscópios. Uma coisa boa da fornicação: o amor, por breve e ténue que seja. Ou a esperança, vá. 

15.3.17

Palavras, vagas

As palavras vinham morrer no areal, vagas e enroladas como miúdas tímidas.

Vagas desempenha aqui um papel fundamental, ambíguo.  Qualquer pessoa percebe: vagas de palavras vagas, vagas enroladas em si próprias, vagas tímidas de miúdas enroladas, vagas. Como divagas, como devagar, como há vagas na vida?

Há: tantas como os grãos de areia nos quais as vagas vêm morrer, leves e rendidas. As palavras, quero dizer.

Produtividade, desespero

A conversa era sobre a sesta; ou, melhor dizendo, a problemática da sesta. Coisa complicada e que não se resolve de um dia para o outro. Os intervenientes Milan Kundera e Marguerite Yourcenar. A Insustentável Leveza do Ser e o Livro do Riso e do Esquecimento contra a Obra ao Negro e as Memórias.

Marguerite ganha por dentro o que Milan descreve por fora. Quem perde é a sesta: em breve será noite. Ou seja,  demasiado tarde para um sono post-prandial e cedo para um pré-prandial.

O aspirante a sestador (assustador neologismo) sabe que vai ter de se levantar como Adriano sabia que ia morrer e Tomás que o destino tem muita força, sobretudo quando somos nós que o escolhemos.

A sesta vai ter de esperar. Um chorrilho de palavras substituí-la-á: dissolve-se em verbos e substantivos. Já em adjectivos é mais complicado.

Saber esperar é mais fácil do que saber desesperar, mas menos produtivo.

(Para a R., com gratidão).

14.3.17

Fátima - I

Vamos ao que interessa: quem se atirou primeiro foi ela. De certa forma percebo-a: a noite estava chata como um jantar sem sedução. A analogia é fraca: era um jantar de casais; as mulheres há muito perderam a vontade de seduzir fosse quem fosse e os homens eram demasiado estúpidos ou estavam cansados de mais para falar doutra coisa que não fosse futebol.

Ou seja: fui, uma vez mais, vítima inocente do meu desdém pela bola e da minhas incapacidades diversas: conversar, misturar-me, ser como toda a gente. Vamos chamar-lhe Fátima, é um nome bonito que justifica peregrinações.

As minhas obrigações - auto-impostas - consistiam em dizer à Isabel (a dona da casa) que o jantar estava óptimo (meia mentira), responder vagamente a quem me perguntava onde vivo ou o que faço e esperar sem impaciência que o tormento acabasse.

Quem atacou foi ela. Magra - demasiado magra, pareceu-me - mamas grandes, casada com um rapaz simpático e palerma que dá aulas num liceu qualquer e vota PS porque o cachorro votaria também, se votasse. Há muito tempo que deixei de responder aos ataques de gajas chateadas com a vida, mas havia ali uma série de combinações às quais não fui treinado para resistir.

Que se fodam os antecedentes. Estávamos num jantar chato como uma mulher sem mamas, quatro ou cinco casais todos iguais e transparentes e eu. Uma das senhoras atirou-se a mim. Em princípio não deveria sequer ter notado, mas ela tornou aquilo impossível: posso resistir a tudo menos à uma miúda magra de mamas grandes, sorriso aberto como um hospital ou um bordel, inteligência acima da média e sentido de humor em forma daqueles cilindros que antigamente víamos a trabalhar no alcatroamento das ruas.

Não sei dizer não a uma mulher que me diz sim (verdade seja dita às outras não é preciso dizer nada). Fátima era um sim gritado da ponta dos cabelos à dos pés. Isto é.

Fátima era um pedido de socorro de um metro e sessenta e cinco e eu ajudei-a, é tudo.

(Cont.)

Notas dispersas - PSEC (e simplificação)

O PSEC - Processo de Sedentarização em Curso - não é fácil. É difícil, complexo, complicado, cheio de altos e baixos e curvas e contracurvas, estreitos apertados e gargantas profundas.

Uma cabeça de pescada na Merendinha do Arco alisa e descomplexifica o processo. Por pouco tempo, é certo. A conta chega e um indivíduo em processo de sedentarização pergunta-se "Porra! Isto é tão barato e ainda assim é caro?"

Ou seja: sedentarizar é trocar uma vida em que se finge que se é rico às vezes e pobre quase sempre por outra em que se é sempre pobre, sem fingir.

Sem fingir.

ADENDA - Comer uma cabeça de pescada (ou de outro peixe qualquer) funciona como descomplicador de vidas por transferência de complexidades. Requer atenção em todas as fases do processo, desde a recolha do que se vai pôr no garfo - acto que para ser bem sucedido deve ser minucioso e lento, executado com a atenção e a expectativa de um garimpeiro - até à degustação. A carne da cabeça do peixe é de muito longe a melhor e é firme. Separa-se em pequenas e sólidas pepitas de gosto, textura e - sim - simplificação que se fruem pondo de lado tudo o que possa interferir. Isto é: o corpo reduz-se a um conjunto de pailas gustativas.

No meu caso autorizo sempre uma ligeira intrusão da memória: a de ir com o meu Pai e um colega dele ao mercado 31 de Janeiro às - penso, mas não tenho a certeza e de qualquer forma pouco importa - quintas-feiras comer uma cabeça que o senhor do restaurante seleccionava e punha de lado para nós. Era o dia do Little Sheraton e era maravilhoso; por isso esta memória - mas só esta - é autorizada cada vez que como uma cabeça de peixe cozida com maestria e amor (como de resto tudo o que é feito na Merendinha do Arco, laudas sejam cantadas ao senhor David e à senhora da cozinha, cujo nome desconheço mas merece um stock de velas na Igreja de S. Domingos).

13.3.17

Lágrimas, palavras

Um bocado como se as palavras tivessem caras com olhos narizes lábios orelhas e tudo e um gajo escolhesse as que vêm com lágrimas.

É sempre mais fácil pôr as palavras a chorar do que chorarmos nós próprios. Ou seja: chorar por interpostas palavras. As que vêm com lágrimas, claro. As outras escrevêmo-las, para disfarçar. 

12.3.17

Diário de Bordos - Lisboa, 12-03-2017

Regresso a Lisboa de passagem, como sempre. A caminho de não sei onde. Um dia será "a caminho de Lisboa". Ou de Mallorca. Ou da Conchinchina. Para ficar.

A puta da cadela negra abocanhou-me há dois meses e não me larga. Não sei porquê - se soubesse já a tinha sacudido, não é? - Tem muito por onde morder, a cabra, diga-se de passagem. Do corpo à mona, passando pelo que nem de uma nem da outra depende.

Quem me dera estivesse ela de passagem por mim como eu estou por Lisboa, amada e vivida e tudo.

........
Volto a ti de passagem, Lisboa.  "Ejaculação precoce", dirias se fosses feminista. Não és. És mulher, simplesmente e sabes que todas as ejaculações são precoces.

.........
O Tati está cheio de estrangeiros. Vieram ouvir o Gonçalo, como eu.

É tão bom partilhar aquilo de que gostamos, não é? 

11.3.17

Acreditar

É como se um gajo se preparasse para engolir o anzol que a vida lhe pôs à frente desde que ele se conhece e evitou quando tinha isco de lagosta e agora não tem isco e o gajo apresta-se a engoli-lo isco e tudo.

Espera. Tem isco ou não tem, esse anzol que te vês a engolir e te dói dores imaginárias, dores a priori como se o que acontece antes de acontecer acontecesse?

Antecipar dores é tão estúpido como comprar uma casa porque se comprou um bilhete da lotaria. Ou acreditar no amor porque se é amado.

Serviço público - Restaurantes

A palavra do dia é Maelstrom.

É o melhor lugar do mundo para gerir maelstroms chama-se Casa Machado e fica na rua 27 de Fevereiro, 1, Afurada. O número de telefone é 919 358 189.

Na Figueira da Foz conheci o Núcleo Sportinguista. O futebol continua  a ser-me indiferente, mas peixe grelhado como deve ser e àquele preço não.

No Porto, graças à F. conheci um restaurante chamado The Bird. É uma esplanada pequena e linda. Tive duplamente sorte: com a companhia e porque quando chegámos ainda havia uma mesa livre. Fica na Rua da Agra 143, na Foz.

E graças à C. conheci o Solar do Moinho de Vento. É um restaurante tradicional, perto da Cedofeita e demonstra que não se perde nada por esperar: Favas como as que comi ali podem esperar uma vida.

Em Aveiro - ou melhor, na Costa Nova - fui beber um copo ao Bronze. É um bar de praia e se não fosse uma barmaid excepcional seria um bar de praia banal.

A esta lista convém acrescentar o Petit Raphael, em Genève: Boulevard d'Yvoi, 7.

(Cont.)


8.3.17

Há coisas que se perpetuam

Fui ao escritório buscar os sacos. Uma das recepcionistas disse-me "desculpe, mas..." Interrompi-a: "Não faz mal. De qualquer forma vou-me embora. Têm o meu número de telefone..."

Dez minutos depois estava à mesa do café com as duas senhoras que me iam entrevistar. Tiveram pelo menos a simpatia de inventar uma desculpa daquelas ("um cabo no veio...")

Gosto do Porto e a perspectiva de navegar no Douro atrai-me muito para lá do razoável.

Há coisas que não mudam

A reunião era ao meio-dia. Cheguei às onze e quarenta e cinco e a senhora pediu-me para ir beber um café. Voltei ao meio-dia. A senhora não estava, mas uma das empregadas explicou-me que estava "um bocadinho atrasado" porque "há outras pessoas". É meio-dia e meia-hora. Não me admira que as empresas portuguesas tenham de pagar salários baixos. A desorganização não se compadece com salários correctos; e a falta de respeito pelos outros é vista como sinal de poder e não como aquilo que é: falta de respeito e falta de educação.

Algo me diz que daqui a pouco me vou embora. Não consigo habituar-me a isto. Ou não quero.

7.3.17

Novos provérbios portugueses

Entre dormir e escrever venha o diabo e escolha. 

Sentir agora, talvez

Se alguém te cortar as pernas tu continuas a senti-las, toda a gente sabe.

E se tas puserem outra vez? Ainda são as tuas? Sente-las ou só as imaginas, como se fossem tuas mas não fossem?

(Isto tudo não passa de um exercício vago e aleatório sobre o uso do verbo sentir).

Vida, vidas

Daqui a pouco tenho de acordar e daqui a ainda menos devia estar a dormir. Não estou.

"Nous avons toute la vie pour nous amuser /
Nous avons toute la mort pour nous reposer".

Mentira: temos a vida toda para viver e outra vida inteira para descansar.

Sem futuro, ponte

A tensão no fundo é entre eu quero isto e quanto tempo aguentaria isto.

Todas são, umas mais explícitas do que outras: entre o que fui, sou e quis ser a ponte é estreita, instável, sem futuro.

6.3.17

Alma penada, cidadão do mundo

Talvez no fundo um "cidadão do mundo" (entre aspas porque é uma expressão que me faz rir desde que a conheço) não passe de uma alma penada que não consegue ter no mesmo sítio tudo aquilo que quer e de que gosta.

5.3.17

Animação musical não-solicitada

Por que raio de carga de água os Roma tocam mal música de merda, em toda a Europa?

Há tantas combinações: tocar bem má música, mal boa, bem boa... Não: é sempre má (ou pelo menos banal) e mal tocada. E nos momentos em que não quero ouvi-los. Mas disso não têm culpa.

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 05-03-2017

Não somos navios especados na banquise à espera do degelo; nem pequenas embarcações numa eclusa, que se limitassem a subir e a descer sem dali sair. Devemos mudar regularmente de gostos, desgostos, antipatias, simpatias, óculos e vida.

........
Domingo de sol, outra vez. O mercado de Plainpalais está cheio logo de manhã. Os stands preparam as comidas e os cheiros dos pratos de todo o mundo misturam-se num só: começa com as bifanas do português; ao lado os frangos assados de não sei quem. É uma longa geografia que acaba no stand da congolesa e o seu Poulet à la Mouamba (ela é do Sul do Congo), duzentos metros depois; entre elas tajines, hoummous, poulet grillet, mezze libaneses e por esse mundo fora; à frente dela um marroquino vende especiarias que me fazem sonhar: tenho vontade de as comprar todas, misturá-las e fazer um prato global, um pan-prato, pan-palato, pan-gastronomia, pan-tudo.

........
Últimos dias em Genève. Há muito tempo que não passo por tanta ambivalência. Janus não deve ter tido uma vida fácil.

........
A vida é uma azinhaga em terra batida, sinuosa, na qual os automóveis circulam a cento e cinquenta e nós vamos pela berma a ver quando podemos atravessar e a tentar evitar os despistes e os choques dos outros.

3.3.17

Reedição - Auto-retrato parcial

Há coisas das quais me posso orgulhar: a liberdade, a independência, a incapacidade total, absoluta de emprenhar pelos ouvidos. Mais do que imune, sou alérgico ao zeitgeist. Sempre fui. A opinião dos outros nunca me interessou se não para aprender com eles o que não sei e ser capaz de fazer as minhas próprias opiniões. E o que pensam de mim é-me tão indiferente que chego a ter vergonha dela, nos dias piores - felizmente são poucos - .

Duvido a priori de tudo o que é consensual - não porque seja contra os consensos, mas porque acho que devem ser investigados e avaliados -.

Nunca me submeti à pressão de um grupo, fosse essa pressão de que natureza fosse. Não alinho em grupos, modas, clubes, partidos, sindicatos, escolas, facções ou seja o que for.

Respeito quem sabe mais do que eu quando me demonstra que sabe mais do que eu (ainda por cima nem é muito difícil, portanto não me parece que seja pedir de mais).

Não aceito argumentos ab auctoritate, não reconheço valor aos nomes das pessoas, às suas origens sociais, ao dinheiro que têm ou não têm; - reconheço sim e só ao que fazem. E quando há uma contradição entre o que dizem e o que fazem só me interessa o que fazem.

(Este post devia ser reeditado a intervalos regulares. Género uma vez por semana).

1.3.17

As coisas que um gajo escrevia...

M.

Prologue

L'autre jour j'eus une violente, soudaine et irréparable envie de M., comme un coup de foudre dans un paratonnerre.

Espiègle et coquette, M. a des grands cheveux noirs, deux grands yeux amandés, deux grands seins qu'elle porte avec une nonchalance apparente et en fait avec beaucoup de soin. Elle les enveloppe dans les soutiens-gorge d'un magasin de la spécialité de notre ville, où elle se fait servir par les deux propriétaires de l'établissement, les employées n'en étant pas, à son avis, suffisamment fournies. M. dormait les yeux ouverts, sa grande chevelure étalée sur le coussin, son regard étalé dans le vide, ses seins pendus, l'un de chaque côté du corps, satisfaits et rassasiés. Je la laissais s'endormir et partais- je n'aime pas partager mon réveil, le moment le plus intime de la journée.

En réalité je n'aime pas partager mes journées, ni ma vie. De temps en temps je partage mes envies prenantes avec M., qui les accepte apparemment avec plaisir - je ne crois jamais sérieusement aux soupirs de femmes, vu l'extrême facilité qu'elles ont à les feindre; ni à leurs spasmes, pour la même raison.

Après je m'en vais. J'ai ma vie, de laquelle je ne me plains point; de temps en temps elle croise celle de M., ses soutiens-gorge, ses sourires, ses phrases dites en riant comme si chaque mot avait un deuxième sens et moi l'obligation de le comprendre. Elle ne me pose jamais de questions, ne me demande pas où vais-je quand je la quitte, d'où viens-je quand je la retrouve; moi non plus, je ne lui pose pas de questions: je sais qu'elle écrit dans un journal de mode, qu'elle aime le théâtre et pas le cinéma, qu'elle apprécie les fleurs que je lui amène si par hasard le magasin de fleurs près de mon hôtel est ouvert.

I

Connaissez-vous Lisbonne ? « C’est une ville de contrastes », disent les autorités touristiques. Elles ont raison, pour une fois. Lisbonne est un ville de contrastes: entre les magnifiques monuments et les maisons à l’abandon (il y a environ 4200 bâtiments nécessitant une réhabilitation, dit la mairie); entre les rues, belles, pavées, et l’impossibilité quasi totale de les parcourir en marchant, car les trottoirs sont pleins de voitures (et si l’on a une poussette l’impossibilité devient totale); entre la lumière, superbe comme dans toutes les villes baignées par la mer (ou un fleuve, dans ce cas) et les odeurs de pisse, d’ordures et de merde de chien. Les contrastes pourraient continuer ad infinitum. On s’en fout.
La civilisation est simplement un synonyme de police efficace. Mettez un policier entre chaque groupe de x centaines, ou x milliers de personnes; donnez-lui les moyens d’effectuer son travail correctement – et vous aurez une ville civilisée. En revanche, si votre policier est plutôt un boy-scout, “ami” de la population, dans le meilleur des cas; ou un corrompu, dans le plus commun, vous n’aurez point de civilisation. Lisbonne n’est pas une ville civilisée; mais elle est une ville adorable – en part car elle n’est pas civilisée, en part malgré cela. J’y ai un appartement, cadeau de mon père le jour où j’ai reçu mon diplôme à l’Uni. Il est dans le quartier de la ville que je préfère, celui de Príncipe Real. J’ai une vue sur le Tage, je suis à proximité de tout et loin du bruit; j’ai de bons restaurants, un marché de produits “biologiques” (je ne sais pas ce que sont des produits alimentaires non biologiques; jamais vu une tomate en béton dans ma casserole, par exemple; ou du riz en fer forgé. Mais la désignation a pris, hommage à l’irrationalité collective d’une espèce qui se croit rationnelle et parfois parvient à faire croire qu’elle l’est).

Je ne suis pas souvent à Lisbonne et je loue l’appartement à des étrangers de passage. Si je viens pour une fin-de-semaine je descends à l’hôtel; si je reste plus longtemps j’attends que mes locataires partent et je prends mon espace comme si c’était une maison de vacances, une maison dont les objets me sont familiers mais qui n’est pas la mienne.

C’est le cas maintenant: je suis ici pour trois mois.

Lisbonne fût jadis la capitale d’un empire; je me demande aujourd’hui si elle n’est plutôt une capitale de province: on y vit comme dans un village. Les gens sont les mêmes depuis des dizaines d’années; grâce à la loi des loyers, qui provoque une hécatombe dans les bâtiments, les magasins les plus modestes se maintiennent et n’ont guère besoin de se renouveler. Les relations avec le voisinage – les petites épiceries, les cafés, la pâtisserie – s’établissent rapidement. Il suffit d’y aller régulièrement pendant une semaine ou deux et nous sommes considérés “de la maison”.

II

M. habite loin, au Parque des Nations, une partie nouvelle et relativement laide de la ville. Je vais rarement chez elle: normalement je lui téléphone quand j’arrive à l’aéroport, on se donne rendez-vous pour un peu plus tard si elle est libre ou pour le lendemain et l’on se retrouve à l’hôtel (plutôt une pension, non loin de chez moi, qui me rappelle l’appartement de ma grand-mère et non pas une auberge de luxe).

Cette fois les choses ne se passent pas ainsi: elle a, elle me l’annonce heureuse, « un homme dans sa vie ».
- Ce n’est pas une raison pour que l’on ne se retrouve pas, M.
- Ok, mais cette fois je ne pourrai pas te faire l’amour.
- Je survivrai.

Nous nous retrouvâmes donc, les deux ou trois mois suivants, sans qu’elle me “fasse l’amour”. Nous allions à la petite pâtisserie de M. Leal, qui fait des madeleines intégrales et des pastéis de nata “meilleurs que ceux de Belém”. Nous mangions au Pão de Canela, qui me faisait croire être à New York ou à Paris, lieu favori de la bourgeoisie locale et des intellectuels (à Lisbonne ils sont les mêmes, quelle que soit l’appartenance politique); où au Trivial, d’où la Perdiz à Convento de Alcântara me donnait envie de devenir moine au dit couvent d'Alcântara; nous marchions au jardin du Príncipe Real, récemment détruit par la mairie avec des travaux de “récupération”; nous buvions des Alexanders au Procópio, ou un barman appelé Luis en fait les meilleurs de Lisbonne – et avec ça les meilleurs cocktails, tout court. C’est un bar classique, avec une décoration classique, un service classique et une beauté unique.

Des fois nous allions nous promener au bord du Tage; nous nous asseyions aux Cais das Colunas, qui est un concentré de l’histoire du Portugal – en face Almada, ses horreurs, son ex-chantier naval, en arrêt depuis de décennies; derrière la Praça do Comércio, Terreiro do Paço, jadis lieu du pouvoir et aujourd’hui de mauvais restaurants pour touristes. Et nous parlions. Nous parlions beaucoup: d’elle et de son homme; d’elle et de pourquoi elle se maquillait moins, elle se soignait moins, elle s’habillait moins; d’elle et de ses doutes sur la maternité, sur la vie de famille, sur la vie de couple. D’elle et des pressions de sa famille pour qu’elle se marie avec “son homme” – il s’appelait Matias, mais elle ne le nommait que très rarement.

« Tu comprends, João, je n’ai plus besoin d’un masque, maintenant. Je puis être moi. Il m’aime, il n’aime pas mes habits, ou mes bâtons à lèvres ». « Il est ingénieur, il s’en fout de ces choses. Il n’est pas sensible aux apparences ». « Il est tellement drôle. Figure-toi qu’il ne sait pas que Pierre Cardin est une marque d’habits, où que Yves Rocher fait des cosmétiques ».

Mais au bout de deux mois elle commença à changer. M. était trop intelligente – et trop intéressée par elle-même - pour ne pas s’en apercevoir. « Est-ce que tu aimes cette petite robe? » « Que penses-tu de cette couleur? » - elle me tendait les ongles, peints comme je ne les avais jamais vus.

III

Un jour elle m’a dit « j’ai envie de te faire l’amour ». Nous sommes allés dans mon appartement du Príncipe Real, vue sur le Tage, cadeau de mon père qui, sans doute, rêvait justement de scènes comme ça quand il me l’a offert et nous nous fîmes l’amour. Nous nous fîmes quatre ou cinq mois d’amour en retard, pour être plus précis.

Je dis « nous nous fîmes l’amour » car l’on ne peut, malheureusement, pas dire nous « nous fîmes l’amitié ». Nous nous connaissions parfaitement; trop bien pour tomber amoureux l’un de l’autre. S’énamourer est découvrir; dès que l’on découvre l’autre l’amour cesse et se transforme soit en amitié soit en ennui, haine ou, simplement, indifférence et distance.

Entre M. et moi il n’y a jamais eu d’amour: nous sommes passés par différents stages d’amitié, comme une rivière qui a traversé des montagnes, des plaines, des lacs et arrive à la mer la même rivière qu’au départ, mais différente – plus calme, plus large, plus profonde.


IV

« Tu sais, João? Il n’y a pas d’intérieur et d’extérieur. Nous sommes un. Nous pensons que nous avons besoin d’un masque pour séduire et qu’une fois l’objectif atteint il n’est plus nécessaire; mais ce n’est pas vrai. Nous sommes ce masque, et ce masque est nous. Il est inutile de penser que l’on peut les séparer. C’est comme croire qu’il y a une différence entre la chair et l’esprit: les deux sont faits de la même matière, naissent des mêmes cellules, croissent et se développent ensemble ».
- Je crois à l’amitié entre un homme et une femme. Pas toi?
- Oui, si la femme n’est pas la femme de mon meilleur ami, ou est très laide.
- Je ne suis ni l’une ni l’autre.
- Non.
- Tu crois que je dois dire à Matias que je ne l’aime plus ?

V

- Je le lui ai dit. Il m’a remercié. Il voulait se séparer de moi et ne savait pas comme me le dire lui-même. Quel fils de pute!


Épilogue

L'autre jour j'eus une violente, soudaine et irréparable envie de M., comme un coup de foudre dans un paratonnerre.