Largamos amanhã. Isto não significa que largamos amanhã quinta-feira trinta de Abril. Significa que largamos amanhã, amanhã a qualquer momento amanhã.
Todas as largadas têm esta fase: a do "largamos amanhã". Um marinheiro experiente pensa logo naquela canção que o Frank Sinatra canta: "Let's forget about tomorrow for tomorrow never comes".
Ou na da Peggy Lee Mañana is soon enough for me.
E depois conforma-se. Continua a ouvir Peggy Lee,
Enfim: um marinheiro com inclinações literárias sabe que amanhã é uma metonímia. Um assincronismo. Significa Não largámos hoje, e não largamos amanhã. Mas amanhã poderemos dizer Largamos amanhã.
A partir de amanhã vamos dizer todos os dias Largamos amanhã até que um dia acordaremos e diremos Largámos ontem.
Largamos amanhã é isso e nada mais do que isso: uma paragem antes de Largámos ontem, a melhor frase que um marinheiro conhece, mesmo antes de chegamos amanhã (chegámos ontem não existe: chegar tem o condão de dissolver a noção de tempo, a sucessão de dias, inclusivé os tempos verbais).
Um dia largaremos; esse dia não é amanhã. Amanhã largamos. Se alguém vir nisto uma dissonância cognitiva é por uma de duas razões: ou não percebeu nada ou é terráqueo.
........
Hoje apareceu-nos mais uma vigia completamente podre, e de qualquer forma ainda não temos a balsa.
Tirando isto estamos praticamente prontos.
O que eu gosto de praticamente.
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Voltemos ao que importa:
30.4.15
29.4.15
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 28-04-2015 / II
Reintegro-me em Bocas como se nunca de cá tivesse saído. Sensação estranha: tão pouco que gostava disto e tanto gosto agora; e ver que muito mais gente me conhece do que eu pensava, eu que estava sempre de fora, sempre ao lado, sempre "não sou daqui, amanhã vou-me embora".
Fui, voltei; e quase poderia ficar, agora que sou capaz de apreciar finalmente a beleza do local, a qualidade das pessoas que por aqui escolhem viver (ou parte delas, mas isso é outra história) e, sobretudo, as qualidades daqueles que aqui nasceram.
Há qualquer coisa de grandioso nesta independência altaneira, nesta indiferença que ao princípio parece simples má-educação e não é, só. É mesmo principalmente indiferença.
........
A tripulação do W. acomoda-se, encontra-se como peças num saco que alguém agita. G. é esplêndida a trabalhar madeira, C. gosta de lavar a loiça, P. é bricoleur, A. curioso e interessado por tudo (menos pelas fontes de caracteres. Estava a ler um livro sobre elas e achou-o aborrecido; eu estou fascinado).
........
Hoje decidi que largamos quinta, irrevogavelmente. Claro que acreditar nisto faz um gajo sentir-se um bocadinho Portas, coisa que de todo não sou. Sei perfeitamente que a minha decisão não é decisão nenhuma, é bravata. Só acredita quem quer.
Mas enfim, a ideia é essa: largar daqui quinta-feira, ir a Almirante buscar a jangada, comprar mantimentos e combustível e sair ao fim do dia.
Vale o que vale, claro. Ainda nem sequer tenho a garantia de que a jangada já terá chegado (uma regra base da vida no Panamá é que só acreditamos no que temos perante os olhos, e isto depois de limpar muito bem os óculos).
Fui, voltei; e quase poderia ficar, agora que sou capaz de apreciar finalmente a beleza do local, a qualidade das pessoas que por aqui escolhem viver (ou parte delas, mas isso é outra história) e, sobretudo, as qualidades daqueles que aqui nasceram.
Há qualquer coisa de grandioso nesta independência altaneira, nesta indiferença que ao princípio parece simples má-educação e não é, só. É mesmo principalmente indiferença.
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A tripulação do W. acomoda-se, encontra-se como peças num saco que alguém agita. G. é esplêndida a trabalhar madeira, C. gosta de lavar a loiça, P. é bricoleur, A. curioso e interessado por tudo (menos pelas fontes de caracteres. Estava a ler um livro sobre elas e achou-o aborrecido; eu estou fascinado).
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Hoje decidi que largamos quinta, irrevogavelmente. Claro que acreditar nisto faz um gajo sentir-se um bocadinho Portas, coisa que de todo não sou. Sei perfeitamente que a minha decisão não é decisão nenhuma, é bravata. Só acredita quem quer.
Mas enfim, a ideia é essa: largar daqui quinta-feira, ir a Almirante buscar a jangada, comprar mantimentos e combustível e sair ao fim do dia.
Vale o que vale, claro. Ainda nem sequer tenho a garantia de que a jangada já terá chegado (uma regra base da vida no Panamá é que só acreditamos no que temos perante os olhos, e isto depois de limpar muito bem os óculos).
28.4.15
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 28-04-2015
Não sei bem há quanto tempo não chove. Ontem à noite não choveu - esqueci-me dos sapatos lá fora e hoje de manhã estavam secos - e ontem durante o dia tão pouco. Mas não me lembro se choveu de manhã ou não. Hoje, nem uma gota o dia todo.
Nestes dias Bocas parece uma senhora que nos ama demasiado, Devia ter um defeito. Não tem. Ser demasiado amado é muito chato, inquietante. Mas mesmo assim melhor do que não ser amado de todo.
Não me queixo, note-se. Constato, coisa muito diferente se bem frequentemente confundida.
Tenho de reconhecer que quero tanto ser amado como quero sedentarizar-me: muito e nada simultaneamente. E que prefiro não ser amado a sê-lo demasiado: questão de familiaridade, sem dúvida.
........
O W. está quase e eu mais do que pronto. Se tudo correr bem largamos quarta-feira; se tudo correr normalmente, quinta. É uma sorte ter uma discrepância tão pequena entre correr bem e normalmente. Raro.
.........
Tenho uma tripulação de sonho. Tanto gostaria que eles pudessem dizer o mesmo do capitão...
........
Comecei a seguir as previsões meteorológicas. Tudo indica que vamos parar no Haiti e não em Cuba.
Não sei. Estão avisados: saberemos dois dias antes. Digo estão, mas devia dizer estou. Um dia começarei a pensar em mim tanto como penso nos outros, no trabalho, nessas mariquirices.
Amanhã não é a véspera desse dia. Tão pouco a daquele em que terei dinheiro: isto anda tudo ligado.
........
Há noites em que precisava de um comprimido para dormir: sinto-me como se tivesse feito uma declaração de amor à vida e ela tivesse dito sim.
Nestes dias Bocas parece uma senhora que nos ama demasiado, Devia ter um defeito. Não tem. Ser demasiado amado é muito chato, inquietante. Mas mesmo assim melhor do que não ser amado de todo.
Não me queixo, note-se. Constato, coisa muito diferente se bem frequentemente confundida.
Tenho de reconhecer que quero tanto ser amado como quero sedentarizar-me: muito e nada simultaneamente. E que prefiro não ser amado a sê-lo demasiado: questão de familiaridade, sem dúvida.
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O W. está quase e eu mais do que pronto. Se tudo correr bem largamos quarta-feira; se tudo correr normalmente, quinta. É uma sorte ter uma discrepância tão pequena entre correr bem e normalmente. Raro.
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Tenho uma tripulação de sonho. Tanto gostaria que eles pudessem dizer o mesmo do capitão...
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Comecei a seguir as previsões meteorológicas. Tudo indica que vamos parar no Haiti e não em Cuba.
Não sei. Estão avisados: saberemos dois dias antes. Digo estão, mas devia dizer estou. Um dia começarei a pensar em mim tanto como penso nos outros, no trabalho, nessas mariquirices.
Amanhã não é a véspera desse dia. Tão pouco a daquele em que terei dinheiro: isto anda tudo ligado.
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Há noites em que precisava de um comprimido para dormir: sinto-me como se tivesse feito uma declaração de amor à vida e ela tivesse dito sim.
27.4.15
Sense and Sensibility, crítica literária elaborada
Numa primeira fase fica-se preocupado. Olhar para uma miúda gira como tudo e pensar "gostaria de viver com ela" em vez de "quero ir para a cama com ela" parece preocupante.
Não é, claro. Já alguém escreveu um romace sobre isso. Chama-se Sense and Sensibility.
Não é, claro. Já alguém escreveu um romace sobre isso. Chama-se Sense and Sensibility.
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 26-04-2015
Tenho vindo a conduzir um estudo apurado e científico sobre a possível relação de causalidade entre o consumo de álcool e a felicidade.
Zero.
É indecente: gasta um gajo uma pipa de massa em rum e é táo feliz como quando não bebe nem uma gota.
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Domingo de praia. Isto é: nadar muito; dormir a sesta (comemos a bordo); beber um rum ou dois; nadar; falar com amigas de há um ano; nadar; beber um rum; falar com umas senhoras francesas de Annecy que já estiveram em Bequia, mas não se lembram; beber um rum; vir para bordo.
Quando penso que não gosto de praia.
Gosto de praia quando gosto de mim. É raro mas acontece. Ou quando a praia é bonita, adjectivo insuficiente para Red Frog Beach.
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A tripulação está completa. É uma boa tripulação. Vou chegar a Lisboa com marinheiros e com amigos, aposto. Se bem prefira aqueles a estes.
25.4.15
25, 25, 25 para sempre
É bom ver tanta gente regozijar-se com o 25 de Abril e uma pena ver que ainda não chegaram ao 26.
Vivem no passado.
Vivem no passado.
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 25-04-2015
Cada vez que o meu amor pelo Panamá em geral e por Bocas em particular cresce desmesuradamente (o meu amor por um sítio cresce desmesuradamente quando começo a pensar "podia viver aqui") chove torrencialmente e lá vai a desmesura pelas sarjetas.
(Chover torrencialmente em Bocas é o mais das vezes mas nem de longe sempre um pleonasmo. Há momentos - normalmente um pouco antes e um pouco depois da chuva - em que a precipitação é por assim dizer normal).
.......
On savait il y a fort longtemps (le roman homonyme a été publié en 1973) que la vie est ailleurs.
Les téléphones cellulaires ne font que le confirmer.
........
Dizer que os americanos são barulhentos não é uma generalização; é estatística.
É desagradável estar ao lado de uma mesa com quatro americanos aos gritos. Em dez minutos ficamos a saber de onde são, para onde vão, quantos filhos têm, o que fazem e quanto ganham e por aí adiante.
Quando esse lugar é o Palmar começa-se rapidamente a perceber o porquê da pena de morte; e a lamentar que não esteja mais generalizada.
(Chover torrencialmente em Bocas é o mais das vezes mas nem de longe sempre um pleonasmo. Há momentos - normalmente um pouco antes e um pouco depois da chuva - em que a precipitação é por assim dizer normal).
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On savait il y a fort longtemps (le roman homonyme a été publié en 1973) que la vie est ailleurs.
Les téléphones cellulaires ne font que le confirmer.
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Dizer que os americanos são barulhentos não é uma generalização; é estatística.
É desagradável estar ao lado de uma mesa com quatro americanos aos gritos. Em dez minutos ficamos a saber de onde são, para onde vão, quantos filhos têm, o que fazem e quanto ganham e por aí adiante.
Quando esse lugar é o Palmar começa-se rapidamente a perceber o porquê da pena de morte; e a lamentar que não esteja mais generalizada.
Viver
Ou vives cada molécula do teu corpo ou estás calado. Ou gritas cada uma delas ou não falas.
Viver não é sentir, é dizer o que sentes.
(Para a S., com gratidão)
Viver não é sentir, é dizer o que sentes.
(Para a S., com gratidão)
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 24-04-2015
Panos todos envergados - genoa (não é uma genoa, é um yankee), estai, grande e mezena. Balancine - como se diz isto em português? Balancine. Topping lift? - na grande; e lazy-jacks. Amanhã vão as da mezena, e chega G., o tripulante polaco.
Bocas - ou melhor, Red Frog - é isto: trabalhar, Palmar, comer e dormir. Não é difícil ver o que está errado: falta muita coisa. Mas o que lá está é tanto que um gajo nem se apercebe. Pensa que tem tudo.
Por isso, entre o jantar e o dormir ouve as Vésperas de Rachmaninov: precisa de certezas e é nas dúvidas que elas se escondem.
Não há certezas, claro: a noite está demasiado escura, continuo sem saber por onde vou furar o arco das Antilhas, começo, muito aos pequenos passos a gostar do bote (já me aconteceu não me lembrar que é um ferro-cimento) e antecipo o que me espera como um puto espera o Natal.
As Vésperas de Rachmaninov são o complemento directo dos Cânticos do Êxtase de von Bingen: um arco de oitocentos anos. A dúvida em que estou agora - por onde vou passar? - é mais recente: cinco séculos.
Se tudo correr bem passo pelos Miskitos, com os quais há tanto tempo sonho, e por Cuba; e se tudo correr bem não passo por aí e vou directo à Mona Passage. É um problema irrelevante, no fundo. O que alguém escolhe por ti está escolhido. E esse alguém ouve, como tu agora, Rachmaninov e como tu agora está-se nas tintas: vais passar por onde puderes passar.
No fundo não é isso que te atormenta. É o cheiro a mar, o cheiro a casa.
........
Amanhã é o 25 de Abril. Poucos dias depois há quarenta e um anos houve uma manifestação em Lourenço Marques. Misturei-me a ela e perguntei às pessoas porque estavam a manifestar. Disseram-me que vinha um governador novo.
Não é daí que vem o meu cepticismo. Já vinha dantes. Mas foi muito provavelmente nesse dia que me ficou marcado a fogo.
........
Acontece que numa noite destas não se pode ser céptico: não há melhor antídoto para a descrença do que uma noite negra e sem vento. Isso e o Novo Mundo de Dvorak interpretado por Karajan.
É de chorar e não há cepticismo que resista a um chorrilho de lágrimas.
Bocas - ou melhor, Red Frog - é isto: trabalhar, Palmar, comer e dormir. Não é difícil ver o que está errado: falta muita coisa. Mas o que lá está é tanto que um gajo nem se apercebe. Pensa que tem tudo.
Por isso, entre o jantar e o dormir ouve as Vésperas de Rachmaninov: precisa de certezas e é nas dúvidas que elas se escondem.
Não há certezas, claro: a noite está demasiado escura, continuo sem saber por onde vou furar o arco das Antilhas, começo, muito aos pequenos passos a gostar do bote (já me aconteceu não me lembrar que é um ferro-cimento) e antecipo o que me espera como um puto espera o Natal.
As Vésperas de Rachmaninov são o complemento directo dos Cânticos do Êxtase de von Bingen: um arco de oitocentos anos. A dúvida em que estou agora - por onde vou passar? - é mais recente: cinco séculos.
Se tudo correr bem passo pelos Miskitos, com os quais há tanto tempo sonho, e por Cuba; e se tudo correr bem não passo por aí e vou directo à Mona Passage. É um problema irrelevante, no fundo. O que alguém escolhe por ti está escolhido. E esse alguém ouve, como tu agora, Rachmaninov e como tu agora está-se nas tintas: vais passar por onde puderes passar.
No fundo não é isso que te atormenta. É o cheiro a mar, o cheiro a casa.
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Amanhã é o 25 de Abril. Poucos dias depois há quarenta e um anos houve uma manifestação em Lourenço Marques. Misturei-me a ela e perguntei às pessoas porque estavam a manifestar. Disseram-me que vinha um governador novo.
Não é daí que vem o meu cepticismo. Já vinha dantes. Mas foi muito provavelmente nesse dia que me ficou marcado a fogo.
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Acontece que numa noite destas não se pode ser céptico: não há melhor antídoto para a descrença do que uma noite negra e sem vento. Isso e o Novo Mundo de Dvorak interpretado por Karajan.
É de chorar e não há cepticismo que resista a um chorrilho de lágrimas.
24.4.15
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 23-04-2015
Ao longe - muito ao longe - via-se um mastro e por baixo um casco e uma ilha. Não conseguia perceber-se se o casco estava na água ou no topo da terra. Enfim, não conseguia perceber-se com os olhos. Conhecendo o sítio sabia-se imediatamente que o barco estava na água, algures entre Bocas e a ilha - Solarte, um nome bonito para uma ilha -.
Solarte. Vou solarte hoje à noite, minha querida. Ou vem tu solarme, se puderes e quiseres. Vamos solarnos? A tua ausência solame. Solarte é bom. E assim por diante.
........
Dia quase perdido. Salvou-se por um cabelo, uma boa notícia que valeu tudo o resto.
É curioso como as coisas se pagam umas às outras. Deve ser a isso que eles chamam uma vida equilibrada.
A mim parece-me uma injustiça, muito mais do que um equilíbrio.
........
Estou a começar a amar o Panamá e isso aterroriza-me. Já tenho sítios que cheguem. Mas a geografia é como as mulheres, não é? Todas diferentes, todas amáveis.
........
Estou a ser assassinado por uma mesa que assassina tudo o que é música. Acho isto um excesso de identificação: mais uma coisa em mim que devia ser trazida para a mediana.
São tantas. E tão pouco o tempo.
........
A hiper-sensibilidade devia ser punida.
Que estupidez: já o é, tanto.
.........
Penso em Nietzsche, que durante tanto tempo pensei ser o único daquela mágica trilogia do século XIX (ele, Marx e Freud) que não se enganou. Hoje sei que não é verdade: Deus não morreu e qualquer dia alguém vai descobrir a base neurológica do complexo de Édipo.
Que pena. Prefiro Zaratrusta a qualquer patacoada sobre os sonhos. E ser o que sou a tudo o resto. Apesar de saber que nunca serei mais do que o que sou.
Solarte. Vou solarte hoje à noite, minha querida. Ou vem tu solarme, se puderes e quiseres. Vamos solarnos? A tua ausência solame. Solarte é bom. E assim por diante.
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Dia quase perdido. Salvou-se por um cabelo, uma boa notícia que valeu tudo o resto.
É curioso como as coisas se pagam umas às outras. Deve ser a isso que eles chamam uma vida equilibrada.
A mim parece-me uma injustiça, muito mais do que um equilíbrio.
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Estou a começar a amar o Panamá e isso aterroriza-me. Já tenho sítios que cheguem. Mas a geografia é como as mulheres, não é? Todas diferentes, todas amáveis.
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Estou a ser assassinado por uma mesa que assassina tudo o que é música. Acho isto um excesso de identificação: mais uma coisa em mim que devia ser trazida para a mediana.
São tantas. E tão pouco o tempo.
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A hiper-sensibilidade devia ser punida.
Que estupidez: já o é, tanto.
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Penso em Nietzsche, que durante tanto tempo pensei ser o único daquela mágica trilogia do século XIX (ele, Marx e Freud) que não se enganou. Hoje sei que não é verdade: Deus não morreu e qualquer dia alguém vai descobrir a base neurológica do complexo de Édipo.
Que pena. Prefiro Zaratrusta a qualquer patacoada sobre os sonhos. E ser o que sou a tudo o resto. Apesar de saber que nunca serei mais do que o que sou.
Cegueiras
As pessoas que vêem no Passos Coelho um neo-liberal são as mesmas que vêem diferenças de fundo entre o nazismo e o comunismo?
O mar e os mourinhos
Joshua Slocum, um dos maiores marinheiros de todos os tempos disse um dia que são os capitães demasiado seguros de si próprios que perdem os seus navios. Falava por experiência - tinha acabado de encalhar o navio de que era armador e capitão, o que na altura significava perder tudo -.
No mar não há lugar para pessoas demasiado seguras, para a arrogància, para o desprezo: o mar é um grande igualizador. Valemos pelo que sabemos, não pelo que temos - seja dinheiro, nome, origem social ou o que for -.
Não interessa o que cada um pensa ou faz: interessa o que sabe; e saber é por definição ser humilde: é saber que não se sabe tudo e que não há uma experiência que valha a de todos.
Talvez seja por isso que me dou melhor no mar do que em terra: no mar não há Mourinhos. E muito menos mourinhos.
No mar não há lugar para pessoas demasiado seguras, para a arrogància, para o desprezo: o mar é um grande igualizador. Valemos pelo que sabemos, não pelo que temos - seja dinheiro, nome, origem social ou o que for -.
Não interessa o que cada um pensa ou faz: interessa o que sabe; e saber é por definição ser humilde: é saber que não se sabe tudo e que não há uma experiência que valha a de todos.
Talvez seja por isso que me dou melhor no mar do que em terra: no mar não há Mourinhos. E muito menos mourinhos.
23.4.15
Liberdade
De tanto viver livre perdeu a noção de que o era; não sabia o que era a liberdade porque não se lembrava de a não ter. Um dia viu a palavra escrita na praia. Não a reconheceu imediatamente. Teve de lhe procurar o significado nos cantos da memória.
É isto a liberdade: um sonho escrito na areia lido pelo vento e o mar.
(Para a L., com um beijo).
(Para a L., com um beijo).
Lua, não-amor
A lua está deitada, muito longe. Parece uma rede, pequenina, só com uma franja iluminada na parte de baixo. A Lua deitada e eu de pé, imagina tu, minha querida, que raro não é?
Parece uma rede e eu pergunto-me se és tu quem nela se deita hoje, ou eu.
Somos ambos selenitas. "Oprimidos pelas figuras da tragédia". (Infelizmente acrescentamos-lhe sempre o drama, sem o qual não saberíamos viver).
O drama e a noite, esta escuridão que parece uma tela do Hopper: dois neons ali saídos do nada; uma panga que entra, só se lhe vê o encarnado e o ruído; e a distância, que no fundo foi o que sempre nos uniu: não-estarmos é a nossa forma de estar. De nos amarmos, ou nos gostarmos.
A literatura é basta em declarações de amor; alguém deveria começar a escrever uma de não-amor.
Não te amo. Sem ti esta não-noite hopperiana não passa de uma não-noite com algumas luzes e o ruído de uma panga que a corta como um bisturi corta a pele de um bêbedo crasso, caído numa rua e atropelado por vinte automóveis que o não-viram.
Não te amo. Não-penso na tua não-pele como se não estivesse em mim, pele da minha pele. Não te toco, não te afago, acaricio, olho. Nada disso: estamos unidos pelo maior não-amor da história da humanidade (é preciso dramatizar um bocadinho, se não fica demasiado pitoresco).
Não te amo. Nunca nos amaremos no mar, como se nos amássemos e o mar a nós; (é intrometido, mete-se por tudo quanto é fresta: dás-lhe uma unha e leva-te a vida).
A panga vai-se embora, a lua continua deitada, decerto à espera que alguém a aborde e eu de pé só penso em deitar-me. Está muito longe e tu também. Que sorte não nos amarmos.
Parece uma rede e eu pergunto-me se és tu quem nela se deita hoje, ou eu.
Somos ambos selenitas. "Oprimidos pelas figuras da tragédia". (Infelizmente acrescentamos-lhe sempre o drama, sem o qual não saberíamos viver).
O drama e a noite, esta escuridão que parece uma tela do Hopper: dois neons ali saídos do nada; uma panga que entra, só se lhe vê o encarnado e o ruído; e a distância, que no fundo foi o que sempre nos uniu: não-estarmos é a nossa forma de estar. De nos amarmos, ou nos gostarmos.
A literatura é basta em declarações de amor; alguém deveria começar a escrever uma de não-amor.
Não te amo. Sem ti esta não-noite hopperiana não passa de uma não-noite com algumas luzes e o ruído de uma panga que a corta como um bisturi corta a pele de um bêbedo crasso, caído numa rua e atropelado por vinte automóveis que o não-viram.
Não te amo. Não-penso na tua não-pele como se não estivesse em mim, pele da minha pele. Não te toco, não te afago, acaricio, olho. Nada disso: estamos unidos pelo maior não-amor da história da humanidade (é preciso dramatizar um bocadinho, se não fica demasiado pitoresco).
Não te amo. Nunca nos amaremos no mar, como se nos amássemos e o mar a nós; (é intrometido, mete-se por tudo quanto é fresta: dás-lhe uma unha e leva-te a vida).
A panga vai-se embora, a lua continua deitada, decerto à espera que alguém a aborde e eu de pé só penso em deitar-me. Está muito longe e tu também. Que sorte não nos amarmos.
22.4.15
Hildegarde e as ilhas
Se estivesse numa ilha deserta e tivesse de escolher um disco, um só, escolheria os Cânticos do Êxtase de Hildegarde von Bingen. Gosto muito de música moderna, mesmo que tenha sido composta no séc. XII.
O problema é que seria salvo imediatamente, aposto.
O problema é que seria salvo imediatamente, aposto.
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 21-04-2015
O Palmar agora tem comida. E boa, consequência da passagem do Joe. Está muito melhor. E ainda mais estaria não fosse uma execrável gambiarra, daquelas que mudam de cor, por baixo do balcão. Não faz lá nada, palerma.
........
Não me posso queixar do excesso de trabalho: tenho mais tempo e tripulação do que coisas a fazer. Nem do armador: simpático, educado, inteligente e sabedor. Não é todos os dias que se tem uma mistura destas. (Tive-a no D. H., por sinal um inglês também).
De maneira não faço: vou fazendo. O ambiente a bordo é óptimo, as coisas vão-se fazendo, e os fins de tarde são passads no Palmar, com ou sem gambiarra.
O mau gosto e a parolice têm muita força, mas não a têm toda.
........
Pouco a pouco, com uma surpresa a cada passo, vou amando o Panamá. Isto é: vou querendo amá-lo, conhecê-lo (por esta ordem. É assim que as coisas se passam).
Aquilo de que antigamente não gostava aparece-me agora como um simples conjunto de características com as quais é facílimo conviver (agora. Um dia amá-las-ei).
O mundo é um espelho: olhamo-lo e vemos o que somos. Ou melhor: como estamos.
........
Um 57' vazio (a tripulação foi comer a terra com amigos); o sopro da ventoinha chega-me fraco, longinquo; Hildegarde von Bingen explica-me, uma vez mais, que toda a surpresa tem uma gratidão e que a felicidade é a maior e a mais frágil de todas as surpresas.
O jantar estava assim assim: carne picada que refoguei com muita cebola e gengibre em óleo de palma e azeite, e à qual misturei feijão preto e frijoles refritos. Tudo isto em montanhas de especiarias: culantro seco (uma espécie de coentros mais mais intenso), cominhos, paprika.
Continuava a faltar qualquer coisa, um sabor. Fritei umas tiras de bacon e esmifrei-as lá para dentro. Ainda não sei como ficou, após esta adição. A ver.
........
O W. está praticamente limpo e arrumado; o mastro grande está limpo; amanhã é a vez da mezena, e de envergar os panos: genoa, estai, grande e mezena. O paiol está quase arrumado; tudo está quase pronto.
Excepto eu: estou muito mais do que pronto.
........
Quem acusa os portugueses de serem parolos (são alguns, às vezes. Não todos sempre) devia ver um saloio americano.
Confesso que parolo por parolo prefiro os meus.
........
Não me posso queixar do excesso de trabalho: tenho mais tempo e tripulação do que coisas a fazer. Nem do armador: simpático, educado, inteligente e sabedor. Não é todos os dias que se tem uma mistura destas. (Tive-a no D. H., por sinal um inglês também).
De maneira não faço: vou fazendo. O ambiente a bordo é óptimo, as coisas vão-se fazendo, e os fins de tarde são passads no Palmar, com ou sem gambiarra.
O mau gosto e a parolice têm muita força, mas não a têm toda.
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Pouco a pouco, com uma surpresa a cada passo, vou amando o Panamá. Isto é: vou querendo amá-lo, conhecê-lo (por esta ordem. É assim que as coisas se passam).
Aquilo de que antigamente não gostava aparece-me agora como um simples conjunto de características com as quais é facílimo conviver (agora. Um dia amá-las-ei).
O mundo é um espelho: olhamo-lo e vemos o que somos. Ou melhor: como estamos.
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Um 57' vazio (a tripulação foi comer a terra com amigos); o sopro da ventoinha chega-me fraco, longinquo; Hildegarde von Bingen explica-me, uma vez mais, que toda a surpresa tem uma gratidão e que a felicidade é a maior e a mais frágil de todas as surpresas.
O jantar estava assim assim: carne picada que refoguei com muita cebola e gengibre em óleo de palma e azeite, e à qual misturei feijão preto e frijoles refritos. Tudo isto em montanhas de especiarias: culantro seco (uma espécie de coentros mais mais intenso), cominhos, paprika.
Continuava a faltar qualquer coisa, um sabor. Fritei umas tiras de bacon e esmifrei-as lá para dentro. Ainda não sei como ficou, após esta adição. A ver.
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O W. está praticamente limpo e arrumado; o mastro grande está limpo; amanhã é a vez da mezena, e de envergar os panos: genoa, estai, grande e mezena. O paiol está quase arrumado; tudo está quase pronto.
Excepto eu: estou muito mais do que pronto.
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Quem acusa os portugueses de serem parolos (são alguns, às vezes. Não todos sempre) devia ver um saloio americano.
Confesso que parolo por parolo prefiro os meus.
21.4.15
Dia, vida
Chega-se ao fim do dia transpirado, pegajoso como se se o tivesse passado a foder a vida. (E ela agradecido o empenho e retribuído).
Noite, calma
Sei da noite que está quase a meio; não sei desta calma, desta paz quanta ainda resta.
Espero que seja muita: estou cansado de estilhaços.
Espero que seja muita: estou cansado de estilhaços.
Definição
Viajar não tem nada a ver com conhecer novos lugares, novas pessoas, culturas ou mariquices do género.
Tem a ver com estar em casa onde quer que estejemos.
Tem a ver com estar em casa onde quer que estejemos.
Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 20-04-2015
Não sou grande fã de praia. A areia, a logística, a promiscuidade levam-me a preferir o recato de um bar (de praia, se for absolutamente necessário). Red Frog Beach tem uma desvantagem por cima destas todas: é impossível resistir-lhe. Nem a presença do Palmar Tent Lodge facilita a troca de um banho por um bar. Cada vez que tento a tensão é enorme. (Agradável, note-se. Mas enorme).
Ontem não resisti. Trouxe uma toalha (na verdade o tecido para a rede que comprei em Belém há cinco anos), pus o fato de banho azul, o que mais parece calções e fui nadar.
Mesmo sem óculos é a praia mais bonita que conheço - incluindo Ponta do Ouro, Salt Whistle Bay, Salines e Guincho (que de resto não é uma praia particularmente bonita. Parece porque a que conhecemos desde a infância). Se fosse preciso escolher uma praia para morrer por ela escolheria Red Frog Beach, apesar do nome.
Hoje não fui nadar. Refugiei-me num rum ou dois, num cigarro e numa daquelas cadeiras que nos transportam de onde estamos para o céu sem passar pela morte. A logística é mais simples: basta um porta-moedas pequeno e uma infinita capacidade de sonhar. Eu sei sonhar.
........
Bocas del Toro, sobretudo em dias como o de hoje tem uma luz que faz a de Lisboa passar por um gigantesco néon. A razão é a humidade, claro. Tal como em Lisboa, de resto. A diferença é que aqui a luz é reflectida pelo mar, dum lado; e absorvida pela floresta tropical, do outro. Se alguém quiser testar a teoria do Einstein sobre a constância da velocidade da luz devia vir para Bocas del Toro. Vê-se imediatamente que não é constante. Muda a cada passa que damos, consoante a direcção para a qual olhamos.
........
Mais um dia. Menos um dia. Não me refiro à contabilidade da vida. Refiro-me ao tempo que me separa de ir para o mar.
Ontem não resisti. Trouxe uma toalha (na verdade o tecido para a rede que comprei em Belém há cinco anos), pus o fato de banho azul, o que mais parece calções e fui nadar.
Mesmo sem óculos é a praia mais bonita que conheço - incluindo Ponta do Ouro, Salt Whistle Bay, Salines e Guincho (que de resto não é uma praia particularmente bonita. Parece porque a que conhecemos desde a infância). Se fosse preciso escolher uma praia para morrer por ela escolheria Red Frog Beach, apesar do nome.
Hoje não fui nadar. Refugiei-me num rum ou dois, num cigarro e numa daquelas cadeiras que nos transportam de onde estamos para o céu sem passar pela morte. A logística é mais simples: basta um porta-moedas pequeno e uma infinita capacidade de sonhar. Eu sei sonhar.
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Bocas del Toro, sobretudo em dias como o de hoje tem uma luz que faz a de Lisboa passar por um gigantesco néon. A razão é a humidade, claro. Tal como em Lisboa, de resto. A diferença é que aqui a luz é reflectida pelo mar, dum lado; e absorvida pela floresta tropical, do outro. Se alguém quiser testar a teoria do Einstein sobre a constância da velocidade da luz devia vir para Bocas del Toro. Vê-se imediatamente que não é constante. Muda a cada passa que damos, consoante a direcção para a qual olhamos.
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Mais um dia. Menos um dia. Não me refiro à contabilidade da vida. Refiro-me ao tempo que me separa de ir para o mar.
Por partes
As coisas têm estado a correr bem, demasiado bem e tenho-me perguntado como irei pagar tudo isso.
A pergunta era retórica, claro. Sabia a resposta. Hoje chegou a segunda parte. Está. infelizmente, longe de ser a última.
Ou felizmente.
A pergunta era retórica, claro. Sabia a resposta. Hoje chegou a segunda parte. Está. infelizmente, longe de ser a última.
Ou felizmente.
20.4.15
Bocas del Santo
Os dias de S. Bocas são bastante mais raros do que os de S. Guincho e não lhes ficam a dever nada. Sol, vento fraco e estas ilhas onde a vista se perde e a reboque dela a imaginação.
Um ping-pong entre memórias: a do que foi e a do que será.
Um ping-pong entre memórias: a do que foi e a do que será.
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 20-04-2015
As coisas vão como de costume; o que já é muito bom (basta dar a de costume o sentido de como deve ser. Não é sempre, mas por vezes coincidem). O S/Y W. tinha obviamente muito mais trabalho do que o armador dizia; mas isso é a norma, não a excepção. Mas tenho uma magnífica tripulação e a limpeza, arrumação e selecção dos milhares de coisas que T. o armador acumulou a bordo ao longo dos seis anos que lá viveu avança a bom ritmo.
Fiquei-me pelos quatro tripulantes (dos quais três já embarcaram): e mesmo assim já vamos um bocadinho cheios. Dois franceses, um canadiano e um polaco, todos na casa dos vinte e muito poucos.
De hoje a uma semana largamos, rumo a Lisboa. Com uma escala em Cuba (espero. Será desta?) e outra na Horta.
Fiquei-me pelos quatro tripulantes (dos quais três já embarcaram): e mesmo assim já vamos um bocadinho cheios. Dois franceses, um canadiano e um polaco, todos na casa dos vinte e muito poucos.
De hoje a uma semana largamos, rumo a Lisboa. Com uma escala em Cuba (espero. Será desta?) e outra na Horta.
18.4.15
Inaceitáveis
As duas qualidades mais incompreendidas num homem são a felicidade e a liberdade.
Pior do que incompreendidas: inaceitadas.
Pior do que incompreendidas: inaceitadas.
17.4.15
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 17-04-2015 / II
As rapàrigas da mesa ao lado da minha são de Nova Iorque. sei porque ouvi a conversa entre elas e um gajo que tentou dar-lhes isso mesmo. Não teve muito sucesso e foi-se embora.
Uma delas está de costas para mim. Só lhe vejo os cabelos escuros, quase negros. A outra tem um chapéu pequeno, lábios grandes, espessos e olhar que parece trocista; não consigo defini-lo. Estou no Taco Surf, um pequeno restaurante que se dedica à comida mexicana e ao surf com igual empenho.
A comida não é grande coisa, mas tão pouco é má. É difícil encontrar boa comida mexicana fora do México; e mais ainda em Bocas del Toro, um sítio onde já me aconteceu percorrer todos os supermercados e não encontrar salsa.
A rapariga do olhar trocista não bate com o lugar. Talvez por causa do olhar; ou do chapéu. É feio.
Uma delas está de costas para mim. Só lhe vejo os cabelos escuros, quase negros. A outra tem um chapéu pequeno, lábios grandes, espessos e olhar que parece trocista; não consigo defini-lo. Estou no Taco Surf, um pequeno restaurante que se dedica à comida mexicana e ao surf com igual empenho.
A comida não é grande coisa, mas tão pouco é má. É difícil encontrar boa comida mexicana fora do México; e mais ainda em Bocas del Toro, um sítio onde já me aconteceu percorrer todos os supermercados e não encontrar salsa.
A rapariga do olhar trocista não bate com o lugar. Talvez por causa do olhar; ou do chapéu. É feio.
Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 17-04-2015
De Manaus a Bocas del Toro a viagem custou-me, para além do preço, um desodorizante e uma pasta de dentes (Manaus), um corta-unhas e uma tesoura (Panamá). De vez em quando gostaria de perceber os critérios dos aeroportos. Mas é só de vez em quando, e felizmente passa depressa. Em Lisboa tive de deixar o pouco que me sobrava (mesmo assim muito) de um frascão de Fahrenheit que comprara em Colon a preço de hiper-saldo num dia de festa e desde aí nada me aborrece - mesmo que me surpreenda, ao contrário da água de colónia, puro esquecimento -.
........
Reencontro Panamá com prazer: a memória é um aramzém de coisas boas. Para as más lá terem lugar ou forma muito más ou a memória não pertence a um incurável optimista.
........
A Marina de Red Frog tem um restaurante, finalmente. Chama-se Castaways. É parco, como novidade. Continua a ser a marina mais mal gerida do planeta e arredores.
........
Bocas continua a habitual mistura de beleza e chuva, verde e cinzentio, água e água. Estou contente por regressar a este lugar no qual pensava não me ter integrado muito. Vejo agora que fazia mais parte dele do que pensava.
........
Surfers e backpackers. A população flutuante de Bocas é jovem e nem sempre, mas frequentemente bonita. Poucos carros, muitas bicicletas, skaters, peões.O ambiente é simpático, cordial, amigável. O calor e a humidade envolvem-nos como se tivéssemos permanentemente um cobertor a agasalhar-nos.
........
W. é um ketch em ferro-cimento. Se alguém um dia me tivesse dito que um dia atravessaria num barco de pedreiro ter-me-ia rido até ficar sem pulmões.
Lição número um milhão duzentos e cinquenta e qautro mil trezentos e vinte e três: não rir do que tem mais força do que nós.
........
Notas de Panamá (14-04-2015)
É com um estranho mas inegável prazer que revejo os Panamás, a cidade e o país. Alexis estava à minha espera; o trajecto até à cidade demorou o mesmo que o voo de Manaus aqui; às sete dá manhã estavam vinte e seis graus e provavelmente oitenta e muitos por cento de humidade; a reserva das pessoas (ou secura, para quem gosta de eufemismos. Má educação para os outros) continua, claro.
Levei muito tempo a habituar -me, mas agora está feito. Até tenho pena de não ficar uma noite aqui.
É provável que nas próximas semanas isto venha a mudar; por agora esta duplicidade, esta cidade que à superfície parece uma coisa e na verdade é outra seduz-me.
Vim para o Balboa Yacht Club esperar até serem horas de ir comer ao Casco Viejo. De lá vou para o aeroporto. Terei visto os três pólos da minha vida aqui.
........
Reencontro Panamá com prazer: a memória é um aramzém de coisas boas. Para as más lá terem lugar ou forma muito más ou a memória não pertence a um incurável optimista.
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A Marina de Red Frog tem um restaurante, finalmente. Chama-se Castaways. É parco, como novidade. Continua a ser a marina mais mal gerida do planeta e arredores.
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Bocas continua a habitual mistura de beleza e chuva, verde e cinzentio, água e água. Estou contente por regressar a este lugar no qual pensava não me ter integrado muito. Vejo agora que fazia mais parte dele do que pensava.
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Surfers e backpackers. A população flutuante de Bocas é jovem e nem sempre, mas frequentemente bonita. Poucos carros, muitas bicicletas, skaters, peões.O ambiente é simpático, cordial, amigável. O calor e a humidade envolvem-nos como se tivéssemos permanentemente um cobertor a agasalhar-nos.
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W. é um ketch em ferro-cimento. Se alguém um dia me tivesse dito que um dia atravessaria num barco de pedreiro ter-me-ia rido até ficar sem pulmões.
Lição número um milhão duzentos e cinquenta e qautro mil trezentos e vinte e três: não rir do que tem mais força do que nós.
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Notas de Panamá (14-04-2015)
É com um estranho mas inegável prazer que revejo os Panamás, a cidade e o país. Alexis estava à minha espera; o trajecto até à cidade demorou o mesmo que o voo de Manaus aqui; às sete dá manhã estavam vinte e seis graus e provavelmente oitenta e muitos por cento de humidade; a reserva das pessoas (ou secura, para quem gosta de eufemismos. Má educação para os outros) continua, claro.
Levei muito tempo a habituar -me, mas agora está feito. Até tenho pena de não ficar uma noite aqui.
É provável que nas próximas semanas isto venha a mudar; por agora esta duplicidade, esta cidade que à superfície parece uma coisa e na verdade é outra seduz-me.
Vim para o Balboa Yacht Club esperar até serem horas de ir comer ao Casco Viejo. De lá vou para o aeroporto. Terei visto os três pólos da minha vida aqui.
14.4.15
Diário de Bordos - Belém, Pará, Brasil, 13-04-2015
Vim para a Rodoviária de moto-táxi. Questão de conforto económico; do outro é melhor não falar. Isto dito tenho o maior respeito e admiração pelos motoqueiros brasileiros. Conduzem muito bem, cuidadosamente. Impossível andar sem capacete, por muito que se tente. Não me incomoda por aí além: de maneira geral os brasileiros são bastante asseados e pôr um capacete sem aquelas ridículas toucas que se têm de usar em Lisboa parece-me legítimo.
A diferença de preço não é grande, mas amanhã no Ver-o-Peso vai saber-me bem.
.......
Múltiplas melancolias: demasiadas para um homem só. A pior não é a do computador, que resolveu avariar de vez. Já andava a ameaçar há uns tempos. Nem sequer a de me ir embora de uma cidade da qual cada dia gosto mais. Ou a da falta de dinheiro, que nunca terá remédio. Nem a molha que apanhei por ter confundido os autocarros e ter tido de atravessar a rua para apanhar o bom que entretanto já tinha saído e estar a chover como chove nestas latitudes. (Estou encharcado. Felizmente a roupa vai secar daqui a Belém).
Nenhuma dessas. A pior melancolia é. .. Não posso dizer. Melancolia antiga, já aprendi a viver com ela. Está-me no sangue, e sinto-a como o sinto a ele: às vezes, quando a aflição é muita.
Enfim. Estou no autocarro, molhado como um pinto (piada com várias geografias, o que não implica que seja boa), teso (isto hoje está mau) com um utensílio de trabalho que não funciona vá lá saber-se porquê (talvez tenha trabalhado demasiado. Não sei). Amanhã estarei em Belém, no hostel do meu amigo Eloízio (pelo menos durante os momentos livres do dia. A razão pela qual vou a Belém é tentar tirar as peças que ficaram retidas na Alfândega em Novembro do ano passado! )
E depois de amanhã terei o Alexis à minha espera no aeroporto de Panamá. O mais provável é que tenha de lá passar o dia por causa do laptop.
.......
Mário, o jovem funcionário da livraria Poeme - se diz-me que não gosta de viajar. "A minha família é de Pinheiro e ir até lá já é um sacrifício", explica-me. Algo me soa errado.
Ir a Pinheiro não é uma viagem, Mário. É uma deslocação e é compreensível que não gostes. Viajar é diferente. Mas só no autocarro resolvo a equação e agora só por mail.
Mário é um jovem adorável, grande conhecedor de Borges, finalista de filosofia apesar de ter apenas vinte anos, educado, sorridente. Deve haver muita senhora por esse Maranhão a sonhar com um genro assim.
........
Tento dormir mas é difícil: autocarro cheio, roupa encharcada e a cheirar mal apesar dos três duches do dia.
Pensamentos confusos, pouco claros passeiam-se-me pela mente. Têm a ver com a diferença entre os meus bolsos, sempre vazios e os da minha vida, sempre cheios. Neste torpor é difícil apanhá -los. Será bolsos ou algibeiras, por exemplo? E de onde vem a ideia? Por que raio de carga de água não durmo? O autocarro é confortável. É verdade que não tenho sono: dormi bem e muito, apaziguado. Não sei o que é uma algibeira da vida. E estou-me nas tintas para o que possa muito bem ser.
Porém o torpor é agradável. Deixo o espírito divagar pelos bolsos; os meus e os outros. A roupa está quase seca. Mais uma hora. Talvez o sono apareça por milagre, vindo de um bolso vazio mas seco; ou um outro metafísico, cheio das coisas boas que me aconteceram. São tantas que nem as melancolias múltiplas com as quais comecei a viagem as conseguem aliviar.
........
O autocarro no qual entrei por engano ia para Parnaíba. Há coincidências que não lembram ao diabo.
Felizmente havia alguém com um bilhete para o mesmo lugar do que eu. A mesma "poltrona", se bem poltrona seja um bocadinho exagerado.
Parámos para comer e o outro também. Não sabia que Belém, que fica para Norte e Parnaíba, para Sul partilhavam tanto trajecto comum. Quase duas horas e meia.
........
Duas menos vinte da manhã. Fizemos pouco mais de metade do percurso. A roupa está seca, com excepção dos sapatos.
Eu também estou seco, mas é uma secura diferente. Mais parecido com estar cansado, ou farto.
Até há uma hora dormi mais ou menos bem.
Agora está difícil: o ar condicionado, que como de costume está regulado para uma temperatura glacial; estou vestido e a camisa é incómoda; o assento ("poltrona" tem mais a ver com o feminino de poltrão do que com o conforto do lugar). Pés gelados, com ou sem os sapatos. Medo de partir os óculos, únicos que tenho. Todos os pretextos são bons para me manter acordado.
Já fiz este trajecto umas quatro vezes. Não é difícil. Chega-se a Belém e vê -se que o tempo passou depressa, espécie de bom amigo ao contrário.
........
Chega -se a Belém uma hora antes de chegar a Belém. É a pior parte da viagem, a mais longa.
A diferença de preço não é grande, mas amanhã no Ver-o-Peso vai saber-me bem.
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Múltiplas melancolias: demasiadas para um homem só. A pior não é a do computador, que resolveu avariar de vez. Já andava a ameaçar há uns tempos. Nem sequer a de me ir embora de uma cidade da qual cada dia gosto mais. Ou a da falta de dinheiro, que nunca terá remédio. Nem a molha que apanhei por ter confundido os autocarros e ter tido de atravessar a rua para apanhar o bom que entretanto já tinha saído e estar a chover como chove nestas latitudes. (Estou encharcado. Felizmente a roupa vai secar daqui a Belém).
Nenhuma dessas. A pior melancolia é. .. Não posso dizer. Melancolia antiga, já aprendi a viver com ela. Está-me no sangue, e sinto-a como o sinto a ele: às vezes, quando a aflição é muita.
Enfim. Estou no autocarro, molhado como um pinto (piada com várias geografias, o que não implica que seja boa), teso (isto hoje está mau) com um utensílio de trabalho que não funciona vá lá saber-se porquê (talvez tenha trabalhado demasiado. Não sei). Amanhã estarei em Belém, no hostel do meu amigo Eloízio (pelo menos durante os momentos livres do dia. A razão pela qual vou a Belém é tentar tirar as peças que ficaram retidas na Alfândega em Novembro do ano passado! )
E depois de amanhã terei o Alexis à minha espera no aeroporto de Panamá. O mais provável é que tenha de lá passar o dia por causa do laptop.
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Mário, o jovem funcionário da livraria Poeme - se diz-me que não gosta de viajar. "A minha família é de Pinheiro e ir até lá já é um sacrifício", explica-me. Algo me soa errado.
Ir a Pinheiro não é uma viagem, Mário. É uma deslocação e é compreensível que não gostes. Viajar é diferente. Mas só no autocarro resolvo a equação e agora só por mail.
Mário é um jovem adorável, grande conhecedor de Borges, finalista de filosofia apesar de ter apenas vinte anos, educado, sorridente. Deve haver muita senhora por esse Maranhão a sonhar com um genro assim.
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Tento dormir mas é difícil: autocarro cheio, roupa encharcada e a cheirar mal apesar dos três duches do dia.
Pensamentos confusos, pouco claros passeiam-se-me pela mente. Têm a ver com a diferença entre os meus bolsos, sempre vazios e os da minha vida, sempre cheios. Neste torpor é difícil apanhá -los. Será bolsos ou algibeiras, por exemplo? E de onde vem a ideia? Por que raio de carga de água não durmo? O autocarro é confortável. É verdade que não tenho sono: dormi bem e muito, apaziguado. Não sei o que é uma algibeira da vida. E estou-me nas tintas para o que possa muito bem ser.
Porém o torpor é agradável. Deixo o espírito divagar pelos bolsos; os meus e os outros. A roupa está quase seca. Mais uma hora. Talvez o sono apareça por milagre, vindo de um bolso vazio mas seco; ou um outro metafísico, cheio das coisas boas que me aconteceram. São tantas que nem as melancolias múltiplas com as quais comecei a viagem as conseguem aliviar.
........
O autocarro no qual entrei por engano ia para Parnaíba. Há coincidências que não lembram ao diabo.
Felizmente havia alguém com um bilhete para o mesmo lugar do que eu. A mesma "poltrona", se bem poltrona seja um bocadinho exagerado.
Parámos para comer e o outro também. Não sabia que Belém, que fica para Norte e Parnaíba, para Sul partilhavam tanto trajecto comum. Quase duas horas e meia.
........
Duas menos vinte da manhã. Fizemos pouco mais de metade do percurso. A roupa está seca, com excepção dos sapatos.
Eu também estou seco, mas é uma secura diferente. Mais parecido com estar cansado, ou farto.
Até há uma hora dormi mais ou menos bem.
Agora está difícil: o ar condicionado, que como de costume está regulado para uma temperatura glacial; estou vestido e a camisa é incómoda; o assento ("poltrona" tem mais a ver com o feminino de poltrão do que com o conforto do lugar). Pés gelados, com ou sem os sapatos. Medo de partir os óculos, únicos que tenho. Todos os pretextos são bons para me manter acordado.
Já fiz este trajecto umas quatro vezes. Não é difícil. Chega-se a Belém e vê -se que o tempo passou depressa, espécie de bom amigo ao contrário.
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Chega -se a Belém uma hora antes de chegar a Belém. É a pior parte da viagem, a mais longa.
12.4.15
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 12-04-2015
A Cachaçaria Baptista tinha um equivalente na Lisboa de setenta e quatro. Não me lembro do nome. Era perto do Martim Moniz, na rua de S. Lázaro, à direita quando se sobe.
Esta também desaparecerá, cilindrada pela modernidade e pela ganância. Baptista recusa terminantemente que se tirem fotografias e se cuspa no chão (há uma tabuleta de cada lado do balcão: "Por favor não cuspam no chão e não tirem fotografias". É pena: aquilo é lindo, com as prateleiras encurvadas sob o peso das garrafas. Goiaba, Coco, Gengibre (a minha favorita), Acerola, Hortelã, Pêra, Graviola - todas arrumadas, ordenadas, datadas. O efeito visual é fascinante e ampliado pela figura de Baptista lui-même: pequeno, sempre de branco, elegante chapéu de palha atarrachado à cabeça, pera. Um senhor.
Baptista justifica a sua recusa de fotografais com uma explicação que me parece tão legítima como insuficiente: "isto é um negócio e tem as suas regras". Deve haver qualquer coisa por trás, mas enfim.
O problema fica resolvido: que se lixe a fotografia. Bebo o meu "gengibre" - um decilitro custa dois reais, menos de um euro - e absorvo o que posso. O que não posso fica para depois.
........
M. (não faço de propósito. Têm a mesma inicial) leva-me a um evento musical, uma homenagem a um professor de música que morreu há meia dúzia de anos e no qual ela foi contratada para tirar fotografias.
Toda a gente se conhece - podia estar em Mértola, ou numa aldeia qualquer do interior de qualquer país do mundo -; a diferença está na parte da população ao qual "toda" se refere, claro.
O nível musical é altíssimo - deixei de dizer surpreendentemente porque já estou habituado, mas na verdade é admirável - e a beleza e sensualidade de "toda a gente" também. O Brasil tem decididamente a burguesia mais bonita e mais sensual do mundo.
........
E vejo que estou definitivamente em modo partida: oiço os músicos, olha para a sala cheia de mulheres bonitas e penso na rota que vou fazer à saída de Bocas.
........
Dia de fazer a trouxa e zarpar. Fiz uma grande limpeza nos papéis e seleccionei cuidadosamente o que vou deixar em S. Luís: equilíbrio delicado entre importante e dispensável.
Esta também desaparecerá, cilindrada pela modernidade e pela ganância. Baptista recusa terminantemente que se tirem fotografias e se cuspa no chão (há uma tabuleta de cada lado do balcão: "Por favor não cuspam no chão e não tirem fotografias". É pena: aquilo é lindo, com as prateleiras encurvadas sob o peso das garrafas. Goiaba, Coco, Gengibre (a minha favorita), Acerola, Hortelã, Pêra, Graviola - todas arrumadas, ordenadas, datadas. O efeito visual é fascinante e ampliado pela figura de Baptista lui-même: pequeno, sempre de branco, elegante chapéu de palha atarrachado à cabeça, pera. Um senhor.
Baptista justifica a sua recusa de fotografais com uma explicação que me parece tão legítima como insuficiente: "isto é um negócio e tem as suas regras". Deve haver qualquer coisa por trás, mas enfim.
O problema fica resolvido: que se lixe a fotografia. Bebo o meu "gengibre" - um decilitro custa dois reais, menos de um euro - e absorvo o que posso. O que não posso fica para depois.
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M. (não faço de propósito. Têm a mesma inicial) leva-me a um evento musical, uma homenagem a um professor de música que morreu há meia dúzia de anos e no qual ela foi contratada para tirar fotografias.
Toda a gente se conhece - podia estar em Mértola, ou numa aldeia qualquer do interior de qualquer país do mundo -; a diferença está na parte da população ao qual "toda" se refere, claro.
O nível musical é altíssimo - deixei de dizer surpreendentemente porque já estou habituado, mas na verdade é admirável - e a beleza e sensualidade de "toda a gente" também. O Brasil tem decididamente a burguesia mais bonita e mais sensual do mundo.
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E vejo que estou definitivamente em modo partida: oiço os músicos, olha para a sala cheia de mulheres bonitas e penso na rota que vou fazer à saída de Bocas.
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Dia de fazer a trouxa e zarpar. Fiz uma grande limpeza nos papéis e seleccionei cuidadosamente o que vou deixar em S. Luís: equilíbrio delicado entre importante e dispensável.
11.4.15
Alianças
Há poucas coisas das quais um homem sensato deva fugir tão depressa como de uma aliança entre a estupidez e a perturbação mental. Separadas cada uma delas é invencível; juntas são um tsunami.
Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 11-04-2015
Sol, Cecília Bartolli, um bom café numa sala linda. Conheço melhores maneiras de começar o dia, mas são poucas.
Entretanto preparo os últimos cartuchos em S. Luis: encharcar a memória em futuras memórias, olhar para as coisas com olhos de lembrar. Ontem fui jantar com R. e o filho a um restaurante libanês que não conhecia. Hoje vou beber uma cerveja à AVEN... Não sei quando voltarei a S. Luis. Espero que seja em breve, acabar a porra do B., que não há há maneira de ter o fim à vista, ir ao Mercado das Tulhas, deambular pela Praia Grande - que está, é agradável reconhecê-lo - muito melhor do que há seis meses: mais limpa, menos crack, menos pedintes.
E sonhar com o mar e Lisboa depois dele.
Entretanto preparo os últimos cartuchos em S. Luis: encharcar a memória em futuras memórias, olhar para as coisas com olhos de lembrar. Ontem fui jantar com R. e o filho a um restaurante libanês que não conhecia. Hoje vou beber uma cerveja à AVEN... Não sei quando voltarei a S. Luis. Espero que seja em breve, acabar a porra do B., que não há há maneira de ter o fim à vista, ir ao Mercado das Tulhas, deambular pela Praia Grande - que está, é agradável reconhecê-lo - muito melhor do que há seis meses: mais limpa, menos crack, menos pedintes.
E sonhar com o mar e Lisboa depois dele.
Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 10-04-2015
"Quando olhamos para uma pessoa só vemos metade dela". ("E muitas vezes a melhor metade", acrescenta R., um dos meus grandes amigos ludovicenses).
.........
A rua está deserta. A Tia Dica e o Raimundo preparam-se para a noite. As pessoas que vejo estão-me na memória ou na imaginação.
Como seria hoje o provérbio chinês? Quando nos correspondemos com uma pessoa só lhe conhecemos a metade? Que acrescentaria R. - a pior metade? A mais brutal e directa, sem a mediação das boas maneiras que a proximidade física impõe?
"Gosto de ti"; "Interessas-me"; "Não fazes o meu género"... Quanto tempo levaríamos a dizer isto se em vez de um teclado e um monitor tivéssemos entre nós uma mesa e dois copos? E já agora - porque assumimos imediatamente que um encontro facebookiano tem como objectivo imediato um relacionamento, ou pelo menos o sexo -?
Não sei. Pouco me interessa, na verdade. As pessoas nos computadores não são fundamentalmente diferentes das pessoas atrás de um volante ou do outro lado de uma mesa. Se são merda é a mesma, mas mais directa; se não, são melhores, porque o vemos mais rapidamente.
.........
Há mulheres que sabem distinguir entre um flirt a sério, com objectivos e um flirt sem eles - ou melhor, cujo objectivo é ele mesmo. Um flirt em si (são os melhores. Os outros acabam frequentemente em dó).
"As-tu des intentions cachées?", perguntaram-me uma vez. "Non. Mes intentions sont bien visibles". A senhora não percebeu que eu me referia ao magnífico par de mamas que o decote expunha generosa e um bocadinho provocadoramente.
Lenny sabe que o meu flirt com ela não tem outro objectivo, outra intenção escondida ou visível se não ele mesmo. Provoca-me e diverte-se com as minhas respostas. É por isso que gosto de vir à Tia Amélia. Ela sabe que as mamas são para vender cerveja e inspirar humor. E sabe que eu sei. Uma cumplicidade gambrínico-mamária não pode dar errada.
........
É sexta-feira e o Mercado das Tulhas está a abarrotar. O barulho parece, como sempre, um cilindro compressor, daqueles que se usam para fazer estradas.
Lenny passeia as mamas e o sorriso - os sorrisos. Variam de cliente para cliente - por esta multidão com o porte de uma raínha. É uma raínha.
E eu fundo-me neste magma primordial, nesta sopa vital como se a Lenny fosse uma raínha e eu o Rei.
10.4.15
M.
"As palavras são umas putas. Sei do que te falo, repara. Fui puta durante três anos. E com sucesso. Comecei na rua e quando parei tinha o meu apartamento e só recebia com marcação. Dez clientes por dia, vinte minutos cada um, dez para as lavagens, limpezas, etc. Tinha dois quartos. enquanto fodia num a empregada limpava o outro. Enchia a cona de gel anestesiante (só recebia homens, as gajas não gostavam do sabor daquilo)". Estava num bar da Singapura de antes do Lee; ou talvez na Havana do Baptista. Não me lembro. Éramos os dois escritores conhecidos e tínhamos aproveitado uns dias depois de um congresso literário num local qualquer das imediações - Florida? Tailândia? Não sei.
M. era uma mulher alta e magra, com cabelos pelos ombros. Vendia muito mais do que eu, mas não ligava muito à fama. Quando olhava para as pessoas parecia que não as estava a ver, que o olhar lhes passava pelo corpo e nada o retinha. Falsa impressão: uma das razões do seu sucesso como escritora era a densidade que dava às personagens. Vejo agora que lhe vinha dos tempos de puta, provavelmente. Não constavam em nenhuma biografia. Aparentemente ninguém sabia, no meio.
Tão pouco sei. Passaram muitos anos. M. morreu há uma semana, daí eu ter pensado nela e naquela noite que passámos juntos, em Singapura, ou Havana. Podia ter sido em qualquer cidade: uma cama e dois corpos são um país em si mesmos, não dependem do que os rodeia.
Eu era muito mais novo do que ela, uns vinte ou trinta anos. Vimo-nos várias vezes depois disso, irregularmente, ao acaso dos congressos ou dos encontros literários.
Uma vez comecei a falar-lhe das rugas e de como gostava delas e da vida que contavam e ela respondeu-me "cala-te e fode".
Uma manhã em Paraty - tínhamos sido convidados, finalmente, eu pela primeira vez - fomos dar um passeio pela praia de manhã cedo. Estava deserta - de manhã cedo em Paraty só há homens e mulheres a limpar as ruas -. Não sei se conhecem a vila: um antigo posto colonial de escoamento de ouro e pedras preciosas que depois se especializou na destilação de açúcar e teve a sorte de estar longe de tudo quando tudo isto acabou. Ficou parada, a decair tranquilamente, até ter sido descoberta para o turismo.
Aquilo é surpreendentemente bonito; mas do que gosto mais é da luz matinal, que enche tudo - a areia, o mar, as fachadas, o ar - de tons alaranjados, densos. Anda-se por ali de manhã e tem-se a impressão de estar a penetrar num segredo.
M. ficava particularmente feliz naqueles momentos. À medida que o dia avançava e a luz diluía os pormenores numa cor normal ia-se calando e retomava o seu olhar neutro, vazio ou pretensamente vazio.
Foi numa manhã dessas que me falou dos seus anos de prostituição. E me contou que tinha dois preços. "Um com, o outro sem. Com era com fingimento e custava o dobro. Acreditas que a maioria dos gajos queria que eu fingisse e me pagava para isso?"
........
"As palavras são umas putas. Há quem pague para que elas finjam. Não caias nessa asneira. Fode-as como elas são. Se não gostares ou és tu que estás a foder mal ou escolheste as erradas".
Para a M., que nunca dormiu comigo em Singapura.
M. era uma mulher alta e magra, com cabelos pelos ombros. Vendia muito mais do que eu, mas não ligava muito à fama. Quando olhava para as pessoas parecia que não as estava a ver, que o olhar lhes passava pelo corpo e nada o retinha. Falsa impressão: uma das razões do seu sucesso como escritora era a densidade que dava às personagens. Vejo agora que lhe vinha dos tempos de puta, provavelmente. Não constavam em nenhuma biografia. Aparentemente ninguém sabia, no meio.
Tão pouco sei. Passaram muitos anos. M. morreu há uma semana, daí eu ter pensado nela e naquela noite que passámos juntos, em Singapura, ou Havana. Podia ter sido em qualquer cidade: uma cama e dois corpos são um país em si mesmos, não dependem do que os rodeia.
Eu era muito mais novo do que ela, uns vinte ou trinta anos. Vimo-nos várias vezes depois disso, irregularmente, ao acaso dos congressos ou dos encontros literários.
Uma vez comecei a falar-lhe das rugas e de como gostava delas e da vida que contavam e ela respondeu-me "cala-te e fode".
Uma manhã em Paraty - tínhamos sido convidados, finalmente, eu pela primeira vez - fomos dar um passeio pela praia de manhã cedo. Estava deserta - de manhã cedo em Paraty só há homens e mulheres a limpar as ruas -. Não sei se conhecem a vila: um antigo posto colonial de escoamento de ouro e pedras preciosas que depois se especializou na destilação de açúcar e teve a sorte de estar longe de tudo quando tudo isto acabou. Ficou parada, a decair tranquilamente, até ter sido descoberta para o turismo.
Aquilo é surpreendentemente bonito; mas do que gosto mais é da luz matinal, que enche tudo - a areia, o mar, as fachadas, o ar - de tons alaranjados, densos. Anda-se por ali de manhã e tem-se a impressão de estar a penetrar num segredo.
M. ficava particularmente feliz naqueles momentos. À medida que o dia avançava e a luz diluía os pormenores numa cor normal ia-se calando e retomava o seu olhar neutro, vazio ou pretensamente vazio.
Foi numa manhã dessas que me falou dos seus anos de prostituição. E me contou que tinha dois preços. "Um com, o outro sem. Com era com fingimento e custava o dobro. Acreditas que a maioria dos gajos queria que eu fingisse e me pagava para isso?"
........
"As palavras são umas putas. Há quem pague para que elas finjam. Não caias nessa asneira. Fode-as como elas são. Se não gostares ou és tu que estás a foder mal ou escolheste as erradas".
Para a M., que nunca dormiu comigo em Singapura.
Retratos
Esparramada pela vida toda fora, vivia-a ao contrário; era a vida que a vivia a ela. Ou melhor, as vidas: chupavam-na até ao tutano e quando já não tinha mais nada a dar cuspiam-na.
9.4.15
Conselho
Vai-te às putas das palavras com gana e brio, mas protege-te dos esquentamentos literários.
Letras, alfabetos
O amor é um país do qual desconhecemos a língua. Não lhe sabemos sequer o alfabeto de A a Z. Isto assumindo que as letras são as mesmas, coisa de que nem de longe estou seguro.
Talvez seja porque nem a língua nem o alfabeto do amor existam totalmente: são coisas meio-feitas, kits incompletos que aprendemos, aos poucos e difficilmente, a montar.
Talvez seja porque nem a língua nem o alfabeto do amor existam totalmente: são coisas meio-feitas, kits incompletos que aprendemos, aos poucos e difficilmente, a montar.
E depois da eternidade?
A pergunta é saber o que fazer depois. Felizmente depois é daqui a muito tempo: três meses, uma eternidade.
Similitudes
Um salão de beleza torna bonitas as senhoras feias, e ainda mais bonitas as que já o são. Um escritor torna bonita a dor, e ainda mais bonita a sua ausência.
Diário de Bordos - S. Luis, Maranhão, Brasil, 09-04-2015
S. Luís continua a amar-me, a surpreender-me, a acolher-me nas suas ruas sujas como braços de uma mulher transpirada depois de uma noite de orgia.
E eu deixo-me ir, entrego-me, dou-me sem pensar demasiado que em breve partirei. Não "durmo numa rede com uma bela maranhense", como me dizia alguém ontem; mas é por falta de vontade, que belas maranhenses e redes há aqui muitas. Ou de paciência, mais provavelmente.
Que bem fiz em vir passar estes dias aqui. Durante muito tempo pensei que amamos quem nos ama; um recente e violento desgosto fez-me ver que nem sempre é verdade; agora estou-me nas tintas: limito-me a viver, sem mais, o amor que a cidade tem por mim e a retribuir-lho o melhor que posso. Sem compromissos, mas com sentimentos.
E eu deixo-me ir, entrego-me, dou-me sem pensar demasiado que em breve partirei. Não "durmo numa rede com uma bela maranhense", como me dizia alguém ontem; mas é por falta de vontade, que belas maranhenses e redes há aqui muitas. Ou de paciência, mais provavelmente.
Que bem fiz em vir passar estes dias aqui. Durante muito tempo pensei que amamos quem nos ama; um recente e violento desgosto fez-me ver que nem sempre é verdade; agora estou-me nas tintas: limito-me a viver, sem mais, o amor que a cidade tem por mim e a retribuir-lho o melhor que posso. Sem compromissos, mas com sentimentos.
Exercício
Acabei por ir ao Baptista, que estava fechado, claro. É assim que se pagam as hesitações. Mas felizmente preciso de fazer exercício e resolvi fazê-lo. Fui à Tia Dica, ao Bar do Porto, ao Chicodiscos e a uma tascazinha informal na Fonte do Ribeirão onde estavam a tocar os miúdos Hijos de Mari.
Imagino que o açúcar no meu sangue ande aos saltos, coitado. Ele que espere, como eu. Temos dois meses de mar pela frente e no mar só bebo água, café e chá de gengibre.
Imagino que o açúcar no meu sangue ande aos saltos, coitado. Ele que espere, como eu. Temos dois meses de mar pela frente e no mar só bebo água, café e chá de gengibre.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 08-04-2015 / II
Um dia tranquilo que acaba tranquilamente tem vários méritos. Um deles, e não o menor, é ser harmonioso. Mérito iniludível, simpático, sedutor e anestesiante.
Não fiz tudo o que queria fazer: a lista era, reconheçamos, extenuante. Falta-me ir ao Baptista beber uma cachaça. Não vou. Está a chover, teria de mudar de roupa, há montes de cachaça gratuita no Frank (se bem de longe não tão boas como as dele. E o preço não é um argumento: não vou aqui revelá-los porque se não amanhã vai vir charters do mundo inteiro, mas não é por eles que um viajante teso não pode degustar uma excelente cachaça) e, de qualquer forma, a vontade de chatear a diabetes é fraca. Consequência sem dúvida da harmonia do dia. Nada de violências.
........
Quando me fui embora ofereci a minha bicicleta ao M. o jovem empregado da Poeme-se. Agradeceu-me comovido. Quando lá fui na segunda-feira o Ribas perguntou-me o que havia de fazer com a burra. Fiquei surpreendido. Pensava que o jovem a tinha.
Hoje explicou-me que não: quer uma de estrada. Mais uma coisa para a lista: vender a bicicleta. E eu que vinha aqui para descansar e ver os amigos.
Coisas que fiz, forçoso é reconhecer. E continuo a fazer.
........
A tripulação para a travessia está composta, se todos comparecerem: dois franceses, um polaco, um americano, eu e - assim deus e os poderes que são queiram - um português que há muito tento ter ao meu lado numa viagem destas.
........
V ouao Baptista. Prefiro arrepender-me do que faço, sobretudo quando não há razões nenhumas para me arrepender.
Não fiz tudo o que queria fazer: a lista era, reconheçamos, extenuante. Falta-me ir ao Baptista beber uma cachaça. Não vou. Está a chover, teria de mudar de roupa, há montes de cachaça gratuita no Frank (se bem de longe não tão boas como as dele. E o preço não é um argumento: não vou aqui revelá-los porque se não amanhã vai vir charters do mundo inteiro, mas não é por eles que um viajante teso não pode degustar uma excelente cachaça) e, de qualquer forma, a vontade de chatear a diabetes é fraca. Consequência sem dúvida da harmonia do dia. Nada de violências.
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Quando me fui embora ofereci a minha bicicleta ao M. o jovem empregado da Poeme-se. Agradeceu-me comovido. Quando lá fui na segunda-feira o Ribas perguntou-me o que havia de fazer com a burra. Fiquei surpreendido. Pensava que o jovem a tinha.
Hoje explicou-me que não: quer uma de estrada. Mais uma coisa para a lista: vender a bicicleta. E eu que vinha aqui para descansar e ver os amigos.
Coisas que fiz, forçoso é reconhecer. E continuo a fazer.
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A tripulação para a travessia está composta, se todos comparecerem: dois franceses, um polaco, um americano, eu e - assim deus e os poderes que são queiram - um português que há muito tento ter ao meu lado numa viagem destas.
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V ouao Baptista. Prefiro arrepender-me do que faço, sobretudo quando não há razões nenhumas para me arrepender.
8.4.15
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 08-04-2015
Não lavei a loiça do jantar. A Frankie's House tem uma senhora da limpeza chamada Josimara - ou, mais correctamente, Santa Josimara - e deixei-lhe a tarefa. Mai-la frigideira do pequeno-almoço, de resto.
O Brasil está cheio de pessoas assim: Josimara, Maciel... Pessoas por quem tenho um infinito respeito e que mereceriam muito mais do que o que têm.
O Maciel, por exemplo. Uma história brasileira: segundo de três filhos "educados sem pai". A mãe veio para S. Luis com eles quando Maciel tinha doze ou treze anos e ele interrompeu os estudos para ajudar a sustentar a família.
Maciel é curioso, só vê programas educativos na televisão: documentários, progaramas de viagens, etc. No dia seguinte comenta-os comigo, faz perguntas boas, inteligentes, de quem quer saber mais.
É honesto ao cêntimo. Emprestei-lhe dinheiro para tirar um curso de condutor de máquinas - que acabou por não fazer por causa daquele conjunto de coisas a que se chama Brasil - e quando voltei perguntei-lhe como estavam as contas (o dinheiro era pago com as viagens que ele fazia comigo para o estaleiro e depois começou a fazer com o Frank - ou seja, não era um empréstimo. Era um pagamento adiantado). "Devo-te cento e trinta e cinco reais".
Na segunda-feira veio buscar-me ao aeroporto - é de uma pontualidade absolutamente notável em qualquer parte do mundo. No Brasil parece simplesmente um extra-terrestre - . Na véspera tinha passado um programa sobre Cuba e a conversa foi, naturalmente, sobre os médicos cubanos que o Brasil importou, a pobreza dos cubanos, etc.
Acabou a dizer-me "ainda há quem se quer ir embora do Brasil. Podem ir todos. eu fico"
........
Eu não fico, Maciel, mas tenho pena.
Oiço Jeanne Lee acompanhada por Mal Waldron neste casarão lindo, bebo o excelente café da santa e planeio o dia - seleccionar roupa a levar para o Panamá, arrumar o resto das coisas, ir à Poeme-se buscar dois livros, dormir a sesta, beber uma cachaça no Baptista, enviar dois ou três mails de trabalho, escrever meia dúzia palermices, não necessariamente por esta ordem -.
E penso na sorte que tenho.
O Brasil está cheio de pessoas assim: Josimara, Maciel... Pessoas por quem tenho um infinito respeito e que mereceriam muito mais do que o que têm.
O Maciel, por exemplo. Uma história brasileira: segundo de três filhos "educados sem pai". A mãe veio para S. Luis com eles quando Maciel tinha doze ou treze anos e ele interrompeu os estudos para ajudar a sustentar a família.
Maciel é curioso, só vê programas educativos na televisão: documentários, progaramas de viagens, etc. No dia seguinte comenta-os comigo, faz perguntas boas, inteligentes, de quem quer saber mais.
É honesto ao cêntimo. Emprestei-lhe dinheiro para tirar um curso de condutor de máquinas - que acabou por não fazer por causa daquele conjunto de coisas a que se chama Brasil - e quando voltei perguntei-lhe como estavam as contas (o dinheiro era pago com as viagens que ele fazia comigo para o estaleiro e depois começou a fazer com o Frank - ou seja, não era um empréstimo. Era um pagamento adiantado). "Devo-te cento e trinta e cinco reais".
Na segunda-feira veio buscar-me ao aeroporto - é de uma pontualidade absolutamente notável em qualquer parte do mundo. No Brasil parece simplesmente um extra-terrestre - . Na véspera tinha passado um programa sobre Cuba e a conversa foi, naturalmente, sobre os médicos cubanos que o Brasil importou, a pobreza dos cubanos, etc.
Acabou a dizer-me "ainda há quem se quer ir embora do Brasil. Podem ir todos. eu fico"
........
Eu não fico, Maciel, mas tenho pena.
Oiço Jeanne Lee acompanhada por Mal Waldron neste casarão lindo, bebo o excelente café da santa e planeio o dia - seleccionar roupa a levar para o Panamá, arrumar o resto das coisas, ir à Poeme-se buscar dois livros, dormir a sesta, beber uma cachaça no Baptista, enviar dois ou três mails de trabalho, escrever meia dúzia palermices, não necessariamente por esta ordem -.
E penso na sorte que tenho.
Be thyself
Deixar de ser quem somos para agradar a quem amamos ou nos ama é uma garantia de fracasso. Ou melhor, fracassos:
- Nunca conseguinos realmente deixar de ser o que somos;
- Quem amamos (ou nos ama, são frequentemente a mesma pessoa) vai rapidamente detectar a fraude;
- Vamos detestar-nos porque a)tentámos uma coisa que não devíamos ter tentado, b) falhámos e c) não serviu para nada.
Melhor ler Peer Gynt e beber uma boa caipirinha.
- Nunca conseguinos realmente deixar de ser o que somos;
- Quem amamos (ou nos ama, são frequentemente a mesma pessoa) vai rapidamente detectar a fraude;
- Vamos detestar-nos porque a)tentámos uma coisa que não devíamos ter tentado, b) falhámos e c) não serviu para nada.
Melhor ler Peer Gynt e beber uma boa caipirinha.
S. Luis, casa
S. Luis é um bordel que em vez de putas tem amigos.
(Substitua-se amigos por familiares e tem-se a definição de casa).
(Substitua-se amigos por familiares e tem-se a definição de casa).
Fatalidades
As coisas são o que são, não o que queremos que sejam ou pensamos que deviam ser.
Felizmente: há muito tempo que não me passa pela cabeça que um dia estaria como estou hoje.
........
Franco & The OK Jazz band.
Felizmente: há muito tempo que não me passa pela cabeça que um dia estaria como estou hoje.
........
Franco & The OK Jazz band.
Neguentropia
A felicidade é um sistema caótico que se auto-alimenta. Um gajo começa não sabe bem onde e acaba a fazer o melhor chilli con carne que jamais fez.
Cidades, casas
Uma cidade é uma casa: aqui a sala de jantar, ali o quarto, ao lado a sala de estar e ao fundo do corredor a cozinha.
A diferença é que em vez de irmos a pé de uma divisão para a outra vamos de metro.
A diferença é que em vez de irmos a pé de uma divisão para a outra vamos de metro.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 07-04-2015
Passo a vida a dizer que não tenho uma casa, tenho muitas. E depois volto a S. Luis e penso "voltei para casa" e não sei como explicar(-me) que isto não é uma contradição.
Uma vez dizia a uma namorada que o Peter's é a minha segunda casa e ela perguntou-me "qual é a primeira"? Não soube o que dizer-lhe, claro, excepto gabar-lhe a inteligência e as mamas, duas coisas (ou três, para os preciosistas) que ela tinha extremamente bonitas.
Agora estou em casa e não sei se é a primeira, juro, ou a segunda. Na verdade é a minha casa agora, ponto.
É preciso um esforço de imaginação: um casarão no centro histórico de S. Luis, recuperado com gosto e com dinheiro (por esta ordem); um jantar ao qual faltou a maioria dos convidados e que acabou por ser comido na cozinha, tigela e colher (e foi um dos melhores chillies que jamais fiz, "juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim"); e no fim da noite um arquitecto dinamarquês de setenta e um anos fala-me em Sam Mangwana.
É por estas e por outras que eu acho que não preciso de fumar ou injectar drogas. A vida chega.
Acabámos a ouvir o Sam, o Lars foi deitar-se e eu oiço Franco, Mbilia Bel, Tabu Ley Rochereau, Papa Wemba e pergunto-me como, quando e quanto vou pagar isto.
Porque a felicidade não é de borla. Paga-se e paga-se caro. Mas porra!, que a factura venha o mais tarde possível é tudo o que eu peço. Estou-me nas tintas para o montante.
Vou ficar aqui até Domingo. Parece uma vida, não é?
........
Ceci n'explicant que très partiellement cela: tudo indica que tenho as primeiras inscrições firmes para a travessia.
........
Estou quase a encontrar a resposta a uma pergunta célebre: "um animal que come merda e fode uma vez por ano ri de quê?" Quando souber conto. Está quase.
........
Uma vez dizia a uma namorada que o Peter's é a minha segunda casa e ela perguntou-me "qual é a primeira"? Não soube o que dizer-lhe, claro, excepto gabar-lhe a inteligência e as mamas, duas coisas (ou três, para os preciosistas) que ela tinha extremamente bonitas.
Agora estou em casa e não sei se é a primeira, juro, ou a segunda. Na verdade é a minha casa agora, ponto.
É preciso um esforço de imaginação: um casarão no centro histórico de S. Luis, recuperado com gosto e com dinheiro (por esta ordem); um jantar ao qual faltou a maioria dos convidados e que acabou por ser comido na cozinha, tigela e colher (e foi um dos melhores chillies que jamais fiz, "juro palavra de honra sinceramente vou morrer assim"); e no fim da noite um arquitecto dinamarquês de setenta e um anos fala-me em Sam Mangwana.
É por estas e por outras que eu acho que não preciso de fumar ou injectar drogas. A vida chega.
Acabámos a ouvir o Sam, o Lars foi deitar-se e eu oiço Franco, Mbilia Bel, Tabu Ley Rochereau, Papa Wemba e pergunto-me como, quando e quanto vou pagar isto.
Porque a felicidade não é de borla. Paga-se e paga-se caro. Mas porra!, que a factura venha o mais tarde possível é tudo o que eu peço. Estou-me nas tintas para o montante.
Vou ficar aqui até Domingo. Parece uma vida, não é?
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Ceci n'explicant que très partiellement cela: tudo indica que tenho as primeiras inscrições firmes para a travessia.
........
Estou quase a encontrar a resposta a uma pergunta célebre: "um animal que come merda e fode uma vez por ano ri de quê?" Quando souber conto. Está quase.
........
7.4.15
6.4.15
Sentidos, corpos
Imagens e sons, porque o que sentes é feito tanto pelo que vês como pelo que ouves.
Faltam o cheiro e o tacto. E o gosto. É para isso que temos corpos.
Faltam o cheiro e o tacto. E o gosto. É para isso que temos corpos.
"BRIO"
"meu avô quando perdeu as terras
ficou rodando com um bando de jagunços
por dois anos o interior do Pará
em busca dos culpados
acabou sozinho e doente
nos fundos de um posto de gasolina
no norte do Mato Grosso
do Sul
dormia numa rede emprestada
pelo dono do restaurante
e passava os dias bebendo
numa mesa do canto
uma vez
espancou um sujeito que
sugeriu que alguém tão calado
devia ter muito que esconder
enquanto batia sua cabeça
contra a quina do balcão
meu avô gritava
"EU TENHO BRIO"
cresci ouvindo essa história
da boca do meu pai
que foi buscá-lo assim que
descobriu seu paradeiro
alguns poemas
simplesmente me chegam por herança"
Fabrício Corsaletti, in Revista Piauí, 102, Março 2015
ficou rodando com um bando de jagunços
por dois anos o interior do Pará
em busca dos culpados
acabou sozinho e doente
nos fundos de um posto de gasolina
no norte do Mato Grosso
do Sul
dormia numa rede emprestada
pelo dono do restaurante
e passava os dias bebendo
numa mesa do canto
uma vez
espancou um sujeito que
sugeriu que alguém tão calado
devia ter muito que esconder
enquanto batia sua cabeça
contra a quina do balcão
meu avô gritava
"EU TENHO BRIO"
cresci ouvindo essa história
da boca do meu pai
que foi buscá-lo assim que
descobriu seu paradeiro
alguns poemas
simplesmente me chegam por herança"
Fabrício Corsaletti, in Revista Piauí, 102, Março 2015
Em louvor das viagens e do amor
A linguagem babeliana do amor é a viagem. Não há "Amo-te" que valha "Estou aqui por e para ti".
A menos que
"Uma das coisas entre mim e Lisete é que não havia o menor resquício de amor, e isso estava longe de ser ruim, pelo contrário, concedia ao sexo uma objectividade implacável; a menos que se chame de amor um desejo e um tesão sem nenhuma tolice romântica para atrapalhar."
Sérgio Sant'Anna, in Lencinhos, O Homem-Mulher, ed. Companhia das Letras
Sérgio Sant'Anna, in Lencinhos, O Homem-Mulher, ed. Companhia das Letras
Beleza, inquietude
"A thing of beauty is a joy for ever:
its loveliness increases, it will never pass
Into nothingness..."
Keats, in Endymion.
Por pouco que se goste do romantismo há que reconhecer-lhe uma clarividência única na história da arte. Fatal, trágica, mas única.
Prefiro o optimismo da Renascença; ou, na música, a profundidade do medieval. Uma profundidade cheia de surpresa, espanto. Inquietude, sem a qual não existe beleza.
its loveliness increases, it will never pass
Into nothingness..."
Keats, in Endymion.
Por pouco que se goste do romantismo há que reconhecer-lhe uma clarividência única na história da arte. Fatal, trágica, mas única.
Prefiro o optimismo da Renascença; ou, na música, a profundidade do medieval. Uma profundidade cheia de surpresa, espanto. Inquietude, sem a qual não existe beleza.
5.4.15
Lapa, Cinderella
É noite e a Lapa acorda, espécie de Cinderella ao contrário, Cinderella com três sapatos à procura do quarto.
(E eu vou deitar-me. a minha carteira é um continente à procura de um contido).
(E eu vou deitar-me. a minha carteira é um continente à procura de um contido).
Diário de Bordos - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 05-04-2015
Mudei de hostel. O preço é o mesmo, mas este está vazio. Felizmente. Não consigo imaginar isto cheio. E o dono é muito mais simpático. E fica na Lapa, um bairro de que me lembrava muito pouco e do qual gosto bastante.
Fui almoçar a um boteco chamado Os Primos, aqui mesmo ao lado. E depois fiquei-me a ler mais um conto do Sérgio Sant'Anna (melhor ainda do que o anterior) e a beber um bocadinho de cachaça. Conheço bastante gente que pensa que para se conhecer uma cidade é preciso calcorreá-la; é verdade. Faço parte desse grupo. Mas isso é para quando se vai ficar muito tempo, uma semana ou mais. Para quem está de passagem - descontando dois ou três sítios obrigatórios, como a Torre Eiffel ou a praia de Copacabana - o melhor é sentar-se num bar e olhar para a cidade como se vê um filme. Se o realizador for bom e se tiver escolhido um bom lugar fica-se a conhecer o lugar em pouco tempo.
Claro que há filmes mais lentos. Mas o de hoje foi excelente. Ri-me bastante, porque os cariocas têm um bom sentido de humor; comi mediocremente mas barato, porque Os Primos é um boteco popular, nada sofisticado (como de resto o seu homónimo de Alcântara, com a diferença notória e notável de que neste se comem umas das melhores chamuças de Lisboa).
E depois vim dormir uma sesta no meu dormitório vazio.
........
Alguém me falara numa feijoada que ia ser servida na Catedral. Pensei que uma feijoada com a mão de Deus não seria decerto má e fui ver. Voltei para trás. Aquilo era mais uma experiência etnográfica (ou sociológica, se preferirem) do que gastronómica; com a desvantagem adicional de o preço ser um beijo ao bispo antes do almoço e depois de uma fila enorme.
Compreendo que a igreja faça aquela clientela pagar adiantado, mas lembrei-me de S., o representative do UNHCR no Burundi. Era judeu, parecia que tinha saído de um filme do Woody Allen ou de um livro do Roth (consoante estava sozinho ou com a mulher), e dizia que as instituições (ou empresas, para quem preferir) católicas de ajuda humanitária prestavam um óptimo serviço "à saída da missa".
Havia muita imprensa, daí a necessidade do pagamento ab ante.
........
Amanhã estarei em S. Luís, depois Belém, Panama City e Bocas del Toro. Onde quer que esteja estou a caminho de. Mesmo em Bocas, onde vou "para casa" - um ketch de 57' que vou levar, se tudo correr bem, a Gibraltar - estarei a caminho de.
A caminho de. On my way to. Sur la route de.
Bof. O fim é o mesmo, qualquer que seja o caminho que se escolha para lá chegar.
(Confesso que não me importaria nada de que o meu tivesse sido um bocadinho mais confortável e com menos curvas. Mas enfim. Ainda vai a tempo de se corrigir. Não cheguei sequer à recta final).
Fui almoçar a um boteco chamado Os Primos, aqui mesmo ao lado. E depois fiquei-me a ler mais um conto do Sérgio Sant'Anna (melhor ainda do que o anterior) e a beber um bocadinho de cachaça. Conheço bastante gente que pensa que para se conhecer uma cidade é preciso calcorreá-la; é verdade. Faço parte desse grupo. Mas isso é para quando se vai ficar muito tempo, uma semana ou mais. Para quem está de passagem - descontando dois ou três sítios obrigatórios, como a Torre Eiffel ou a praia de Copacabana - o melhor é sentar-se num bar e olhar para a cidade como se vê um filme. Se o realizador for bom e se tiver escolhido um bom lugar fica-se a conhecer o lugar em pouco tempo.
Claro que há filmes mais lentos. Mas o de hoje foi excelente. Ri-me bastante, porque os cariocas têm um bom sentido de humor; comi mediocremente mas barato, porque Os Primos é um boteco popular, nada sofisticado (como de resto o seu homónimo de Alcântara, com a diferença notória e notável de que neste se comem umas das melhores chamuças de Lisboa).
E depois vim dormir uma sesta no meu dormitório vazio.
........
Alguém me falara numa feijoada que ia ser servida na Catedral. Pensei que uma feijoada com a mão de Deus não seria decerto má e fui ver. Voltei para trás. Aquilo era mais uma experiência etnográfica (ou sociológica, se preferirem) do que gastronómica; com a desvantagem adicional de o preço ser um beijo ao bispo antes do almoço e depois de uma fila enorme.
Compreendo que a igreja faça aquela clientela pagar adiantado, mas lembrei-me de S., o representative do UNHCR no Burundi. Era judeu, parecia que tinha saído de um filme do Woody Allen ou de um livro do Roth (consoante estava sozinho ou com a mulher), e dizia que as instituições (ou empresas, para quem preferir) católicas de ajuda humanitária prestavam um óptimo serviço "à saída da missa".
Havia muita imprensa, daí a necessidade do pagamento ab ante.
........
Amanhã estarei em S. Luís, depois Belém, Panama City e Bocas del Toro. Onde quer que esteja estou a caminho de. Mesmo em Bocas, onde vou "para casa" - um ketch de 57' que vou levar, se tudo correr bem, a Gibraltar - estarei a caminho de.
A caminho de. On my way to. Sur la route de.
Bof. O fim é o mesmo, qualquer que seja o caminho que se escolha para lá chegar.
(Confesso que não me importaria nada de que o meu tivesse sido um bocadinho mais confortável e com menos curvas. Mas enfim. Ainda vai a tempo de se corrigir. Não cheguei sequer à recta final).
Liberdade
Por vezes começo a pensar que se fosse um bocadinho menos livre... se fosse um bocadinho menos livre... e encalho aqui. Não há nada para lá da liberdade.
Diário de Bordos - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 04-04-2015
Comprei a revista Piauí para ler na camionete. E uma edição bilingue de Keats. Ode à Melancolia. O título pareceu-me adequado, o preço justo e o facto de eu não ser grande fã de poesia romântica despiciendo.
Na Piauí - uma grande revista, seja onde for - li uma crítica de um autor brasileiro chamado Sérgio Sant'anna. Nunca o tinha lido, e à chegada comprei uma obra dele. Chama-se Homem-Mulher. É um livro de contos, dos quais ainda só li o primeiro.
Abençoada Piauí.
.........
Fui jantar com E., uma jovem pediatra que conheci em S. Luís. É bonita e inteligente e faz esforços enormes para se libertar das pressões todas que fizeram dela o que é.
Espero que consiga. Não há prisão que mereça tanta beleza e tanta inteligência embrulhadas em tanta simpatia.
........
Estou a ficar farto de hostels. Em S. Paulo fiquei num que era mau mas estava vazio; o de Paraty estava cheio, mas era assim assim. Este é péssimo e está a abarrotar.
Gosto de jovens e da juventude, mas esta convivência é um bocadinho exagerada. Para não falar da falta de conforto, claro. Felizmente passei bastante tempo a bordo de barcos de regata, coisa que habilita um gajo a praticamente tudo. Nos hostels pelo menos estou seco, as coisas não mexem e se houver uma avaria não tenho de a reparar.
........
Fui acompanhar E. a casa e no regresso parei num bar para escrever e beber uma caipirinha, duas coisas que não faço desde antes do jantar.
Só depois de entrar reparei que sou o único homem, e mesmo assim foi preciso ver duas gajas aos beijos.
É assustador, mais do que qualquer bar de maricas onde tenha estado. A coisa mais próxima que conheço (ou conheci, neste caso) foi o café de surdos-mudos que antigamente havia em Lisboa, na rua do Arsenal.
E agora, para compor o ramalhete, começa uma cena de porrada entre duas das senhoras. Não percebo a causa, mas juro que não me vou intrometer.
........
PS - As senhoras contiveram-se. Ficaram pelas invectivas. Acho bem. Uma delas tem os cabelos demasiado curtos para serem puxados.
Na Piauí - uma grande revista, seja onde for - li uma crítica de um autor brasileiro chamado Sérgio Sant'anna. Nunca o tinha lido, e à chegada comprei uma obra dele. Chama-se Homem-Mulher. É um livro de contos, dos quais ainda só li o primeiro.
Abençoada Piauí.
.........
Fui jantar com E., uma jovem pediatra que conheci em S. Luís. É bonita e inteligente e faz esforços enormes para se libertar das pressões todas que fizeram dela o que é.
Espero que consiga. Não há prisão que mereça tanta beleza e tanta inteligência embrulhadas em tanta simpatia.
........
Estou a ficar farto de hostels. Em S. Paulo fiquei num que era mau mas estava vazio; o de Paraty estava cheio, mas era assim assim. Este é péssimo e está a abarrotar.
Gosto de jovens e da juventude, mas esta convivência é um bocadinho exagerada. Para não falar da falta de conforto, claro. Felizmente passei bastante tempo a bordo de barcos de regata, coisa que habilita um gajo a praticamente tudo. Nos hostels pelo menos estou seco, as coisas não mexem e se houver uma avaria não tenho de a reparar.
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Fui acompanhar E. a casa e no regresso parei num bar para escrever e beber uma caipirinha, duas coisas que não faço desde antes do jantar.
Só depois de entrar reparei que sou o único homem, e mesmo assim foi preciso ver duas gajas aos beijos.
É assustador, mais do que qualquer bar de maricas onde tenha estado. A coisa mais próxima que conheço (ou conheci, neste caso) foi o café de surdos-mudos que antigamente havia em Lisboa, na rua do Arsenal.
E agora, para compor o ramalhete, começa uma cena de porrada entre duas das senhoras. Não percebo a causa, mas juro que não me vou intrometer.
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PS - As senhoras contiveram-se. Ficaram pelas invectivas. Acho bem. Uma delas tem os cabelos demasiado curtos para serem puxados.
4.4.15
Dois corpos, espaço
Dois corpos não podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço excepto se esses corpos forem os nossos, meu amor.
Ocupamos o mesmo espaço, o mesmo tempo, a mesma pele e até, vê lá tu, a mesma dor, tão longe que estamos e tão juntos.
Ocupamos o mesmo espaço, o mesmo tempo, a mesma pele e até, vê lá tu, a mesma dor, tão longe que estamos e tão juntos.
Deita-te e dorme
Deita-te e dorme. Não deixes que as gaivotas te venham roubar as palavras como os olhos quando cais ao mar, à saída da boca ou da alma ou seja de onde for que elas vêm, as palavras.
Predadoras e barulhentas são as gaivotas. Não as deixes aproximar-se de ti, protege delas a noite e o silêncio. Deita-te e dorme.
Predadoras e barulhentas são as gaivotas. Não as deixes aproximar-se de ti, protege delas a noite e o silêncio. Deita-te e dorme.
Diário de Bordos - Paraty, Rio de Janeiro, Brasil, 03-04-2015 / II
A vila é pequena e está cheia de gente. Demasiada, para quem como eu está a precisar urgentemente - e a caminho de - dois meses de mar.
Mas é indubitavelmente bonita, mais gira do que St. Augustine, a última cidade turística onde estive.
Tem montes de cafés e restaurantes bem decorados, com menus diferentes do peixe frito com arroz e feijão, tão diferentes quanto é possível. Jantei um quibe no forno com salada de grão-de-bico que estava uma delícia e era um bocadinho demasiado grande - na verdade não era um quibe, era uma forma de carne do tamanho de um bolo inglès, quase -. Trouxe metade, vai ser o meu pequeno almoço amanhã.
Mas de longe o melhor é a ausência de barulho nas ruas. Há música, claro; mas não aos berros, e confinada aos respectivos locais. Não consigo deixar de comparar com S. Luís, onde em breve estarei, e no escarcéu que seria, que é, aquela Praia Grande com esta quantidade de turistas.
........
E descobri mais uma livraria; todavia saí mal entrei, como se tivesse esbarrado numa parede de bom-senso.
........
Amanhã vou para o Rio. Estive lá em setenta e seis, mais ou menos por esta altura do ano. Trinta e nove anos... Os Passos em Volta é o melhor título de livro (e acessoriamente um dos melhores livros) que conheço.
"Só no mar é possível morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode".
Mas é indubitavelmente bonita, mais gira do que St. Augustine, a última cidade turística onde estive.
Tem montes de cafés e restaurantes bem decorados, com menus diferentes do peixe frito com arroz e feijão, tão diferentes quanto é possível. Jantei um quibe no forno com salada de grão-de-bico que estava uma delícia e era um bocadinho demasiado grande - na verdade não era um quibe, era uma forma de carne do tamanho de um bolo inglès, quase -. Trouxe metade, vai ser o meu pequeno almoço amanhã.
Mas de longe o melhor é a ausência de barulho nas ruas. Há música, claro; mas não aos berros, e confinada aos respectivos locais. Não consigo deixar de comparar com S. Luís, onde em breve estarei, e no escarcéu que seria, que é, aquela Praia Grande com esta quantidade de turistas.
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E descobri mais uma livraria; todavia saí mal entrei, como se tivesse esbarrado numa parede de bom-senso.
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Amanhã vou para o Rio. Estive lá em setenta e seis, mais ou menos por esta altura do ano. Trinta e nove anos... Os Passos em Volta é o melhor título de livro (e acessoriamente um dos melhores livros) que conheço.
"Só no mar é possível morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode".
3.4.15
Ovos descozidos
"Não podemos descozer ovos cozidos", li recentemente não recordo onde.
Pois não. Mas podemos a) aprender a cozê-los melhor e b) tornar melhores os que já estão cozidos.
Ou ainda pedir desculpa pelos que não cozeram bem, claro. Mas isso é mais complicado: é preciso começar por saber o que são ovos bem cozidos.
Pois não. Mas podemos a) aprender a cozê-los melhor e b) tornar melhores os que já estão cozidos.
Ou ainda pedir desculpa pelos que não cozeram bem, claro. Mas isso é mais complicado: é preciso começar por saber o que são ovos bem cozidos.
Diário de Bordos - Paraty, Rio de Janeiro, Brasil, 03-04-2015
Mais uma crise de pedras nos rins. Esta felizmente breve e muito menos intensa do que a última, que eu pensava ter sido há um ano e afinal foi há nove meses. Mas fiquei de rastos, como se tivesse sido das grandes. Febril, exausto.
Uma por ano é menos mau, mas muito gostava eu de saber de onde vêm esta porra destas pedras; se são de ontem ou da semana ou do ano; se as estúpidas dores de cabeça com que tenho andado estão relacionadas com elas; e sobretudo o que fazer para que o ritmo não aumente.
Não sei. Durou duas horas. Quando resolvi ir comprar o chá quebra-pedras já podia andar (felizmente. Em Paraty não há drogarias, ou se as há estão fechadas).
Passeei pela vila, a qual consegue o prodígio de ser ainda mais bonita do que um gajo que ouve falar dela há trinta anos e vê fotografias imagina. (Uma pequena palavra para os inúmeros e jovens exemplares da recente arquitectura feminina, - não só brasileira, nesta altura de feriados, mas também internacional - que muito contribuem para a alegria dos olhos e das ruas do povoado).
........
Vim aqui parar à boleia. O método é fácil: vai-se a um site chamado, por exemplo, tripda e depois dos registos e das porras todas faz-se uma "procura de carona" na qual se põe a cidade de partida - no caso S. Paulo - e se deixa em abertas a cidade de destino e a data.
O primeiro da lista é um senhor chamado Matias G. (o site não dá os apelidos) que se revela um jovem argentino, gestor de um tour operator de luxo, que vai para Paraty com a mãe e é educadíssimo, pontual, simpático e, não despiciendo, bom condutor.
A viagem durou seis horas, das quais duas para sair de S. Paulo.
Por coincidência vinham para o mesmo hostel que eu, de maneira a boleia foi literalmente até à porta.
Agora trata-se de ir fazendo a mesma coisa, com frequentes consultas ao Google Earth.
.........
Resisti à tentação de comprar um livro na pequena mas bem recheada livraria de Paraty. É de assinalar porque houve pelo menos quatro que me saltaram para as mãos.
........
Ideia para os marketeers das cervejeiras: oferecer mesas e cadeiras de madeira aos bares, em vez destas abomináveis, obscenas, gritantes e irritantes coisas em plástico. As que tenho à frente tiram-me a vontade de beber Skol pelos próximos dez anos, tal a discrepância entre a beleza da paisagem e a fealdade do mobiliário.
(Forçoso reconhecer que a música não ajuda).
Uma por ano é menos mau, mas muito gostava eu de saber de onde vêm esta porra destas pedras; se são de ontem ou da semana ou do ano; se as estúpidas dores de cabeça com que tenho andado estão relacionadas com elas; e sobretudo o que fazer para que o ritmo não aumente.
Não sei. Durou duas horas. Quando resolvi ir comprar o chá quebra-pedras já podia andar (felizmente. Em Paraty não há drogarias, ou se as há estão fechadas).
Passeei pela vila, a qual consegue o prodígio de ser ainda mais bonita do que um gajo que ouve falar dela há trinta anos e vê fotografias imagina. (Uma pequena palavra para os inúmeros e jovens exemplares da recente arquitectura feminina, - não só brasileira, nesta altura de feriados, mas também internacional - que muito contribuem para a alegria dos olhos e das ruas do povoado).
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Vim aqui parar à boleia. O método é fácil: vai-se a um site chamado, por exemplo, tripda e depois dos registos e das porras todas faz-se uma "procura de carona" na qual se põe a cidade de partida - no caso S. Paulo - e se deixa em abertas a cidade de destino e a data.
O primeiro da lista é um senhor chamado Matias G. (o site não dá os apelidos) que se revela um jovem argentino, gestor de um tour operator de luxo, que vai para Paraty com a mãe e é educadíssimo, pontual, simpático e, não despiciendo, bom condutor.
A viagem durou seis horas, das quais duas para sair de S. Paulo.
Por coincidência vinham para o mesmo hostel que eu, de maneira a boleia foi literalmente até à porta.
Agora trata-se de ir fazendo a mesma coisa, com frequentes consultas ao Google Earth.
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Resisti à tentação de comprar um livro na pequena mas bem recheada livraria de Paraty. É de assinalar porque houve pelo menos quatro que me saltaram para as mãos.
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Ideia para os marketeers das cervejeiras: oferecer mesas e cadeiras de madeira aos bares, em vez destas abomináveis, obscenas, gritantes e irritantes coisas em plástico. As que tenho à frente tiram-me a vontade de beber Skol pelos próximos dez anos, tal a discrepância entre a beleza da paisagem e a fealdade do mobiliário.
(Forçoso reconhecer que a música não ajuda).
2.4.15
Diário de Bordos - S. Paulo, S. Paulo, Brasil, 02-04-2015
As coisas "não deram certo" com L., como dirão os meus amigos brasileiros. Estou outra vez sozinho naquela longa e dificil estrada dos afectos.
E na outra: o projecto para o futuro muito próximo mudou, claro. Vou para Belém por terra. Uma mistura de boleia, camionetes, o que vier. Por causa de um breve e falhado romance conheci um bocadinho pequenino de uma grande cidade e vou conhecer mais um bocadinho de um grande país.
........
Em 2006 ou 2007 organizei uma regata da classe Mini, com uma largada de Marselha e chegada a Lisboa, via Algeciras e Rabat. As coisas correram mal, claro, como sempre (excepto como sempre a regata em si, que correu muito bem): os patrocínios chegaram tarde e a más horas, eram insuficientes, os custos dispararam - a receita habitual, que no caldeirão do meu "incurável optismo" dá sempre, porque é inevitável, maus resultados -.
Mas o mal absoluto não existe, tal como o bem; a Regata dos Oceanos correu mal, mas teve dois efeitos positivos: um deles foi ter conhecido o Ph., a cuja casa ontem fui jantar.
Quem tem amigos assim não pode ser má pessoa, por muito mal que as regatas, ou os romances corram.
E na outra: o projecto para o futuro muito próximo mudou, claro. Vou para Belém por terra. Uma mistura de boleia, camionetes, o que vier. Por causa de um breve e falhado romance conheci um bocadinho pequenino de uma grande cidade e vou conhecer mais um bocadinho de um grande país.
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Em 2006 ou 2007 organizei uma regata da classe Mini, com uma largada de Marselha e chegada a Lisboa, via Algeciras e Rabat. As coisas correram mal, claro, como sempre (excepto como sempre a regata em si, que correu muito bem): os patrocínios chegaram tarde e a más horas, eram insuficientes, os custos dispararam - a receita habitual, que no caldeirão do meu "incurável optismo" dá sempre, porque é inevitável, maus resultados -.
Mas o mal absoluto não existe, tal como o bem; a Regata dos Oceanos correu mal, mas teve dois efeitos positivos: um deles foi ter conhecido o Ph., a cuja casa ontem fui jantar.
Quem tem amigos assim não pode ser má pessoa, por muito mal que as regatas, ou os romances corram.
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