30.9.14
29.9.14
Apego e desapego
Quem como eu não tem onde cair morto - em todos os sentidos da expressão, desde não ter terra nem casa a não ter dinheiro - apega-se por vezes a coisas ou outras pessoas de uma forma estúpida para alguns.
Por várias razões, dizem: as pessoas têm pernas e cabeça e podem abandonar-nos; as coisas podem partir-se, ser roubadas ou nós decidirmos dá-las a alguém que delas precise ou as mereça.
Uma vez estava apaixonado por uma senhora. Só agora o sei, retrospectivamente. De muitos amores e apegos só nos apercebemos depois. Veio ao restaurante onde eu jantava em Alcântara para me dizer que não queria mais nada comigo. Eu sabia, esperava, e fingi que não fiquei muito magoado. Mas fiquei. Tinha acabado de jantar. Deixei a bicicleta no sítio onde sempre a deixava quando ia àquele restaurante e fui com ela de carro. Foi no jardim à frente do MNAA que me deu a notícia. Fê-lo com sensibilidade e ternura e graça, porque era uma senhora. Ainda é, suponho. Nunca mais a vi.
Mas quando me levou de volta ao restaurante a minha bicicleta tinha desaparecido. Era uma Peugeot encarnada, linda e veloz.
A senhora levou-me a casa - eu vivia então num tugúrio de dezanove metros quadrados no Príncipe Real - ; deixou-me na esquina do quiosque do senhor Oliveira. Era Novembro, creio. Chovia e a noite estava fria e escura. Eu tinha a minha gabardine e um chapéu verde, em pelo de coelho, do qual gostava muito e que anos mais tarde esqueci num táxi em Alfama.
Por várias razões, dizem: as pessoas têm pernas e cabeça e podem abandonar-nos; as coisas podem partir-se, ser roubadas ou nós decidirmos dá-las a alguém que delas precise ou as mereça.
Uma vez estava apaixonado por uma senhora. Só agora o sei, retrospectivamente. De muitos amores e apegos só nos apercebemos depois. Veio ao restaurante onde eu jantava em Alcântara para me dizer que não queria mais nada comigo. Eu sabia, esperava, e fingi que não fiquei muito magoado. Mas fiquei. Tinha acabado de jantar. Deixei a bicicleta no sítio onde sempre a deixava quando ia àquele restaurante e fui com ela de carro. Foi no jardim à frente do MNAA que me deu a notícia. Fê-lo com sensibilidade e ternura e graça, porque era uma senhora. Ainda é, suponho. Nunca mais a vi.
Mas quando me levou de volta ao restaurante a minha bicicleta tinha desaparecido. Era uma Peugeot encarnada, linda e veloz.
A senhora levou-me a casa - eu vivia então num tugúrio de dezanove metros quadrados no Príncipe Real - ; deixou-me na esquina do quiosque do senhor Oliveira. Era Novembro, creio. Chovia e a noite estava fria e escura. Eu tinha a minha gabardine e um chapéu verde, em pelo de coelho, do qual gostava muito e que anos mais tarde esqueci num táxi em Alfama.
Consigo ver-me naquela noite triste: a chuva, a cabeça baixa, as mãos nos bolsos, perdido e sem a minha Peugeot encarnada.
De meu tenho pouco, quase nada: um móvel, meia dúzia de caixotes de livros e outros tantos caixotes com objectos que fui acumulando e trazendo de alguns dos sítios por onde passei. Tenho algumas pessoas a quem quero muito e, até ontem, uma bicicleta.
Ontem roubaram-me a Rolex Voadora.
Não é por acaso que gosto de quem ou do que gosto. Por isso os meus afectos tendem a durar e alguns não acabam nunca. O desapego aprende-se, claro. De Buddha a Jesus não há lider religioso que não lhe gabe as virtudes, a necessidade ou a sageza.
Apesar disso prefiro o apego. Doloroso e efémero que seja, longos e
solitários que sejam os caminhos pelos quais nos leva - prefiro o apego.
Não somos o que temos, mas somos o que perdemos.
Já não tenho a Rolex Voadora como já não tenho muita gente e muitas coisas na minha vida. Mas a minha vida é essas coisas, essas pessoas. Quer me tenham sido roubadas ou tenham partido de vontade própria; quer se tenham despedido de mim com graça e ternura ou sem uma palavra; quer me magoem ainda ou não sejam já mais do que a memória de uma noite triste.
Prefiro os apegos, o amor, o afecto, a ternura.
São prisões, eu sei. Mas que seria a liberdade se não pudesse escolher prisões?
São prisões, eu sei. Mas que seria a liberdade se não pudesse escolher prisões?
28.9.14
Casas, corpos
Conheço uma casa como conheço um corpo: quando por eles posso navegar sem luz e sem medo de bater nas paredes.
26.9.14
Diário de Bordos - Porto, 26-09-2014
Não. Não. Não. Não. Não. Não.
Sinto-me numa escola de freiras a pedir namoro às alunas, ou em S. Luís a tentar trocar uma nota de vinte reais (se fosse de cinquenta nem responderiam. Pensariam simplesmente que era um marciano).
Estou em Santa Apolónia a tentar levar a bicicleta para o Porto num comboio Intercidades, escolhido porque pensei que teria mais probabilidades do que num Alfa.
Não tenho.
Pelo menos em teoria. Portugal sendo Portugal a cada pequeno hitler (ou, vá lá, funcionário cumpridor) corresponde uma pessoa compreensiva, sensata, moderada na aplicação das regras - numa palavra: portuguesa -. (Aproveito para aqui agradecer aos dois revisores da CP que me permitiram pôr a bicicleta nos comboios - de resto em locais já equipados para elas -. Ninguém me explicou porque não se pode levar bicicletas, mas eu suponho que a CP queira ter todos os comboios equipados com aqueles ganchos. Suponho, não sei).
De maneira a Rolex Voadora foi ao Porto, de comboio. E voltou. Com a mania de que agora se chama Rolex Trepadora, mas isso passa-lhe.
"Sobe? Não faz mal. Depois desce" é o que costumo responder quando me falam numa potencialmente terrível subida. É verdade, Tudo na vida se equilibra, ou quase. Se sobe desce e se agora desce em breve subirá. Se hoje vais a um largo em breve estarás à bolina. A glória fugaz de uma descida, por mais longa que seja, será sempre compensada pela miséria de uma subida. Ou quase.
Em Lisboa há subidas longas e subidas íngremes; mas poucas o são simultaneamente. No Porto é o contrário: raras são apenas curtas ou apenas íngremes. Mas a Rolex portou-se bem, mostrou o que vale e ao que veio e galgou aquelas calçadas como se tivesse ao guiador um Eddie Merckx (um bocadinho mais lento, verdade seja dita).
Depois furou um pneu, mas enfim. De epifenómenos não reza a história.
........
Pela primeira de muitas vezes uma estadia no Porto foi demasiada curta. O tempo ajudou, claro. E as companhias. E a tradicional simpatia das pessoas ou a qualidade da comida, que são as mesmas de sempre. Mas não foi só isso. A cidade mudou, parece mais leve e aberta e menos complexada em relação a Lisboa do que era.
E não me refiro aos bares e restaurantes, que são muito iguais aos de todo o lado. Refiro-me às pessoas, à dinâmica da cidade, aos discursos que fui ouvindo aqui e ali.
........
Passeio pela margem do Douro. Uma embarcação da Douro Azul largava. Fizemos um pedaço do caminho juntos. Lembrei-me do meu Pai, que fez literalmente à força de braços a navegabilidade do Douro.
Foi a grande viagem da vida dele. A próxima vez que for ao Porto refarei esse trajecto, refastalado numa cadeira a beber um copo de vinho. E ver-te-ei, Pai, nas margens a passar cabos porque a barragem abriu antes da hora, ou porque vinha mais água do que o previsto; ver-te-ei a subir o rio com não sei quantos batelões e um rebocador insuficiente para o trabalho; ver-te-ei a falar com os tripulantes, tu que tanto jeito tinhas para as pessoas e tão respeitado eras.
Sinto-me numa escola de freiras a pedir namoro às alunas, ou em S. Luís a tentar trocar uma nota de vinte reais (se fosse de cinquenta nem responderiam. Pensariam simplesmente que era um marciano).
Estou em Santa Apolónia a tentar levar a bicicleta para o Porto num comboio Intercidades, escolhido porque pensei que teria mais probabilidades do que num Alfa.
Não tenho.
Pelo menos em teoria. Portugal sendo Portugal a cada pequeno hitler (ou, vá lá, funcionário cumpridor) corresponde uma pessoa compreensiva, sensata, moderada na aplicação das regras - numa palavra: portuguesa -. (Aproveito para aqui agradecer aos dois revisores da CP que me permitiram pôr a bicicleta nos comboios - de resto em locais já equipados para elas -. Ninguém me explicou porque não se pode levar bicicletas, mas eu suponho que a CP queira ter todos os comboios equipados com aqueles ganchos. Suponho, não sei).
De maneira a Rolex Voadora foi ao Porto, de comboio. E voltou. Com a mania de que agora se chama Rolex Trepadora, mas isso passa-lhe.
"Sobe? Não faz mal. Depois desce" é o que costumo responder quando me falam numa potencialmente terrível subida. É verdade, Tudo na vida se equilibra, ou quase. Se sobe desce e se agora desce em breve subirá. Se hoje vais a um largo em breve estarás à bolina. A glória fugaz de uma descida, por mais longa que seja, será sempre compensada pela miséria de uma subida. Ou quase.
Em Lisboa há subidas longas e subidas íngremes; mas poucas o são simultaneamente. No Porto é o contrário: raras são apenas curtas ou apenas íngremes. Mas a Rolex portou-se bem, mostrou o que vale e ao que veio e galgou aquelas calçadas como se tivesse ao guiador um Eddie Merckx (um bocadinho mais lento, verdade seja dita).
Depois furou um pneu, mas enfim. De epifenómenos não reza a história.
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Pela primeira de muitas vezes uma estadia no Porto foi demasiada curta. O tempo ajudou, claro. E as companhias. E a tradicional simpatia das pessoas ou a qualidade da comida, que são as mesmas de sempre. Mas não foi só isso. A cidade mudou, parece mais leve e aberta e menos complexada em relação a Lisboa do que era.
E não me refiro aos bares e restaurantes, que são muito iguais aos de todo o lado. Refiro-me às pessoas, à dinâmica da cidade, aos discursos que fui ouvindo aqui e ali.
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Passeio pela margem do Douro. Uma embarcação da Douro Azul largava. Fizemos um pedaço do caminho juntos. Lembrei-me do meu Pai, que fez literalmente à força de braços a navegabilidade do Douro.
Foi a grande viagem da vida dele. A próxima vez que for ao Porto refarei esse trajecto, refastalado numa cadeira a beber um copo de vinho. E ver-te-ei, Pai, nas margens a passar cabos porque a barragem abriu antes da hora, ou porque vinha mais água do que o previsto; ver-te-ei a subir o rio com não sei quantos batelões e um rebocador insuficiente para o trabalho; ver-te-ei a falar com os tripulantes, tu que tanto jeito tinhas para as pessoas e tão respeitado eras.
25.9.14
Imagina a música
Imagina por exemplo agora - agora mesmo - a música.
Estás deitada ao meu lado, percorro-te a pele com o indicador direito. Imagina a música: percorres-me o olhar com os seios, os dois. Música: um dedo e dois seios.
Dois desejos que lentamente se fundem num só. Duas peles em uma. Mãos que se afundam no outro como se o outro fosse um som numa noite de nevoeiro, vindo ou indo não se sabe de onde nem para onde.
Imagina a música: dois corpos que se amam e se perdem, duas peles que se procuram e se afastam, dois desejos.
Imagina a música: dois silêncios.
Estás deitada ao meu lado, percorro-te a pele com o indicador direito. Imagina a música: percorres-me o olhar com os seios, os dois. Música: um dedo e dois seios.
Dois desejos que lentamente se fundem num só. Duas peles em uma. Mãos que se afundam no outro como se o outro fosse um som numa noite de nevoeiro, vindo ou indo não se sabe de onde nem para onde.
Imagina a música: dois corpos que se amam e se perdem, duas peles que se procuram e se afastam, dois desejos.
Imagina a música: dois silêncios.
Abismo(s)
Quero perder-me. Suplico: encontrem-me um abismo. Penso nas flechas de Ulisses, tão certeiras. Penso na tempestade do Narcissus. Nos fósforos do London. Nos milhares de abismos que até hoje li, vivi, sonhei.
Nenhum deles chega aos calcanhares do que procuro: o teu olhar, saciada e grata.
Nenhum deles chega aos calcanhares do que procuro: o teu olhar, saciada e grata.
Noite, abismo
É muito noite. Isto é: é muito noite sem ti. Contigo não há noite. Há luz. Há - como dizer o contrário de noite, quando todos sabemos que a noite não tem antónimos? - uma coisa que prolonga a noite.
Como se de repente a noite se vestisse de pele e de arrepios e de um fremir quase mudo, quase nocturno, como se de repente a noite se vestisse de orvalho e nós nela navegássemos como se de cada gota fizéssemos um mar, o mar: o Atlântico. O Pacífico. O Índico.
Cada pele é um mar e cada mar uma noite e cada noite uma vaga.
E eu? E tu? Onde estamos nessas noites que nos perderam, nas quais nos perdemos, que se perderam, que perdemos?
Noite? Que é a noite sem ti? Que é o abismo?
Como se de repente a noite se vestisse de pele e de arrepios e de um fremir quase mudo, quase nocturno, como se de repente a noite se vestisse de orvalho e nós nela navegássemos como se de cada gota fizéssemos um mar, o mar: o Atlântico. O Pacífico. O Índico.
Cada pele é um mar e cada mar uma noite e cada noite uma vaga.
E eu? E tu? Onde estamos nessas noites que nos perderam, nas quais nos perdemos, que se perderam, que perdemos?
Noite? Que é a noite sem ti? Que é o abismo?
Imagina
É preciso imaginares um labirinto cheio de luz. Nele um cego tacteia. Não sabe quando anda para trás, para a frente, para os lados. Anda e tacteia. Um cego num labirinto cheio de luz, imagina.
Por vezes encontra um corpo. Outras uma mente. Imagina: um cego tacteia e encontra uma mente.
Que há numa mente? Nada: ar. Ideias. Desejos. Sonhos. Memórias. Passados. Nada.
Compara por exemplo uma mente com um corpo. Que há num corpo? Pele. Mamas. Um ventre. Mãos. Coxas que te encerram e encerram o cego num labirinto cheio de luz do qual ele nada vê. Imagina: um cego num labirinto feito por duas coxas que o apertam tanto que ele vê. Finalmente ele vê.
Que vê o cego? Duas mamas. Se estiver suficientemente longe. Se não apenas uma. Duas mãos. Idem. Duas vidas. Idem. Ad infinitum: só vês a dobrar quando estás longe. De perto, tudo é um. Imagina um corpo. Imagina uma vida ávida de ti. Imagina um olhar.
Uma vida ávida de ti. Qual a diferença entre essa vida e outra a quem tu indiferes? Um olhar. Qual a diferença entre esse olhar que te olha e te come e te percorre a pele e pede e diz sim e outro que não te vê sequer? Nenhuma.
Cego. Imagina.
Por vezes encontra um corpo. Outras uma mente. Imagina: um cego tacteia e encontra uma mente.
Que há numa mente? Nada: ar. Ideias. Desejos. Sonhos. Memórias. Passados. Nada.
Compara por exemplo uma mente com um corpo. Que há num corpo? Pele. Mamas. Um ventre. Mãos. Coxas que te encerram e encerram o cego num labirinto cheio de luz do qual ele nada vê. Imagina: um cego num labirinto feito por duas coxas que o apertam tanto que ele vê. Finalmente ele vê.
Que vê o cego? Duas mamas. Se estiver suficientemente longe. Se não apenas uma. Duas mãos. Idem. Duas vidas. Idem. Ad infinitum: só vês a dobrar quando estás longe. De perto, tudo é um. Imagina um corpo. Imagina uma vida ávida de ti. Imagina um olhar.
Uma vida ávida de ti. Qual a diferença entre essa vida e outra a quem tu indiferes? Um olhar. Qual a diferença entre esse olhar que te olha e te come e te percorre a pele e pede e diz sim e outro que não te vê sequer? Nenhuma.
Cego. Imagina.
De nada; futuros
De nada. Ponto. Foi assim. Dois pontos. Lembro-me do teu ventre e dos teus olhos e das tuas mamas e da tua ausência. Eu em ti e tu tão longe. Ponto. Talvez por isso tenha tanta vontade de ti. Ponto. Nada me atrai mais do que a distância. Dois pontos. Dois olhos. Os teus. Duas mãos. As tuas. Duas mamas e duas coxas. Dois suspiros e dois olhares. Os nossos. Ponto. Desencontrados.
De resto nada. Mar. Vento. Ruas. Ruas que se cruzam e desencontram. Pernas: braços: mãos: tudo.
Um corpo dois corpos três futuros. Nadas. Olhares. Mãos. Corpos desencontrados. Futuros.
Sem abrigo.
De resto nada. Mar. Vento. Ruas. Ruas que se cruzam e desencontram. Pernas: braços: mãos: tudo.
Um corpo dois corpos três futuros. Nadas. Olhares. Mãos. Corpos desencontrados. Futuros.
Sem abrigo.
Lisboa, reatar
Reatamos, Lisboa, como dois velhos amantes que um do outro conhecem os truques todos.
22.9.14
Os monstros
A mesa és tu e sem cerimónia eles chegam e sentam-se e repastam. Deixam-te exausta, seca e vazia como uma fonte abandonada, aterrorizada, insone; como se se alimentassem de ti e não simplesmente em ti.
Conhecem-te. Amam-te. Foste tu que os fizeste.
Conhecem-te. Amam-te. Foste tu que os fizeste.
Dar-te Lisboa a ver
Dar-te Lisboa a ver, dar-te de Lisboa os braços aconchegantes, as ruas tranquilas, o sorriso. Dar-te de Lisboa a ternura, o tempo suspenso em cada parede, o rio mergulhado em luz, de cada esquina a memória, de cada esquina a vida que te espera a cada esquina, a beleza palpável do vento.
Dar-te de Lisboa o amor, como se te me desse.
Dar-te de Lisboa o amor, como se te me desse.
Diário de Bordos - Lisboa, 22-09-2014
Devo ter chegado à Pastelaria Nortenha, um estabelecimento digno, clássico, respeitável em Algés com o olhar ligeiramente esgazeado do ciclista, que lhe vem da felicidade; ou pelo menos do bem estar. A descida de Carnaxide para Algés, ao ar fresco e picante das oito da manhã é gloriosa.
Nunca a minha Rolex voadora tanto mereceu o epíteto.
E nunca eu tanto fiz de Lisboa como estes dois dias. Lx Factory, pizzeria Casanova, café Tati, o sublime passeio da beira-Tejo ao fim do dia e de manhã, a pastelaria Versailles, o Museu Nacional de Arte Antiga, cujo jardim há tanto tempo não visitava.
E tudo indica que tive muita sorte, porque a manter-se esta chuva não sei se poderei voltar a sobrevoar as ruas de Lisboa na minha Rolex.
Nunca a minha Rolex voadora tanto mereceu o epíteto.
E nunca eu tanto fiz de Lisboa como estes dois dias. Lx Factory, pizzeria Casanova, café Tati, o sublime passeio da beira-Tejo ao fim do dia e de manhã, a pastelaria Versailles, o Museu Nacional de Arte Antiga, cujo jardim há tanto tempo não visitava.
E tudo indica que tive muita sorte, porque a manter-se esta chuva não sei se poderei voltar a sobrevoar as ruas de Lisboa na minha Rolex.
21.9.14
Boas Almas
Uma grande cabeleira ruiva encaracolada à volta de um rosto comprido, ligeiramente cavalar, de grandes dentes brancos à vista num sorriso permanente. É decerto inglesa ou irlandesa e trabalha num daqueles organismos sociais cuja função principal é ajudar senhoras de sorriso beato a encontrar um marido, ou enganar o que já têm. Ao mesmo tempo ajudam-se os pobres, as crianças que têm sede ou, sei lá, gatos que perderam os bigodes ou nunca os tiveram.
Boas almas, claro. E intenções.
Boas almas, claro. E intenções.
Pina Bausch
De dança sei zero. Da gravidade pouco: nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado. Da leveza apenas que não é ausência de gravidade. É muito mais.
Mas de vida e dor sei; de emoções e sentimentos - já por cá todos passaram e voltarão -. Da solidão e da graça, da beleza e das interrogações sem respostas, da magia e do génio, do medo e do abismo. Daquilo que transforma o tempo em eternidade.
Pina Bausch de Wenders no Intendente. Por vezes sentia-me numa estação de caminhos de ferro: as baias iluminadas em contra-luz pelos faróis dos automóveis na Almirante Reis, vultos atentos na escuridão, um grande painel de avisos a falar de infinito e de movimentos e da beleza das paisagens da alma. Todas, mesmo as mais obscuras.
Mas de vida e dor sei; de emoções e sentimentos - já por cá todos passaram e voltarão -. Da solidão e da graça, da beleza e das interrogações sem respostas, da magia e do génio, do medo e do abismo. Daquilo que transforma o tempo em eternidade.
Pina Bausch de Wenders no Intendente. Por vezes sentia-me numa estação de caminhos de ferro: as baias iluminadas em contra-luz pelos faróis dos automóveis na Almirante Reis, vultos atentos na escuridão, um grande painel de avisos a falar de infinito e de movimentos e da beleza das paisagens da alma. Todas, mesmo as mais obscuras.
19.9.14
Diário de Bordos - Belém, Pará, Brasil, 19-09-2014
Chego a Belém depois de uma viagem de treze horas de autocarro. Brasil sendo Brasil o veículo que fez a viagem é diferente do que estava no plano onde o jovem senhor do guichet me instou a escolher o lugar.
Que importa? Tudo passa quando se chega ao A-Ver-o-Peso, um dos meus mercados favoritos, à beira do Amazonas, ponto de partida e ponto de chegada para tudo o que a humanidade produz, seja onde for. Peço ao taxista que me deixe ali, e acabo o trajecto a pé.
Sinto-me numa colmeia da qual a rainha se embebedou e as abelhas tentam organizar-se sem ela.
O mercado é grande, ocupa vários edifícios e está arrumado por sectores: peixe, comida, produtos manufacturados, tascas. As ervas, frutas, comidas cheiram maravilhosamente. Não há melhor maneira de avaliar a qualidade do peixe do que pelo cheiro, e um mercado de peixe que não cheire mal é sempre um prazer.
Há muitos que não conheço: peixes do rio, alguns enormes, com nomes como filhote (imagino o tamanho dos pais). Envolvo-me num diálogo à desgarrada com um dos vendedores, como um quibe, procuro em vão um café sem açúcar.
Amanhã.
Espera-me mais uma noite de viagem, uma só. Agora espera-me Belém do Pará, e é nela que me vou perder.
Que importa? Tudo passa quando se chega ao A-Ver-o-Peso, um dos meus mercados favoritos, à beira do Amazonas, ponto de partida e ponto de chegada para tudo o que a humanidade produz, seja onde for. Peço ao taxista que me deixe ali, e acabo o trajecto a pé.
Sinto-me numa colmeia da qual a rainha se embebedou e as abelhas tentam organizar-se sem ela.
O mercado é grande, ocupa vários edifícios e está arrumado por sectores: peixe, comida, produtos manufacturados, tascas. As ervas, frutas, comidas cheiram maravilhosamente. Não há melhor maneira de avaliar a qualidade do peixe do que pelo cheiro, e um mercado de peixe que não cheire mal é sempre um prazer.
Há muitos que não conheço: peixes do rio, alguns enormes, com nomes como filhote (imagino o tamanho dos pais). Envolvo-me num diálogo à desgarrada com um dos vendedores, como um quibe, procuro em vão um café sem açúcar.
Amanhã.
Espera-me mais uma noite de viagem, uma só. Agora espera-me Belém do Pará, e é nela que me vou perder.
18.9.14
O que é a vida - II?
Daqui a quatorze horas estarei a reconhecer Belém. Daqui trinta e seis delas estarei a reconhecer Lisboa.
Não é reconhecer. É reatar com.
Não é reconhecer. É reatar com.
Je ne comprends pas (premier d'une série infinite)
Je ne comprends pas pourquoi se ruent les gens sur les derniers disques parus, quando on sait que s'ils sont bons d'ici dix ans ou pourra encore les écouter.
O universo e eu
A Escócia vota e eu parto.
PS - Face a tão importantes notícias, pergunto-me quanto tempo vai a televisão portuguesa dedicar ao futebol.
PS - Face a tão importantes notícias, pergunto-me quanto tempo vai a televisão portuguesa dedicar ao futebol.
17.9.14
Reedição - Escrever (Linhas programáticas, quatorze anos depois)
Escrever
Já não sei a que língua pertenço, a que país. Escrever é um pouco como procurar o melhor itinerário nas ruas de Genebra, actividade à qual me dedico todos os dias, montado num scooter velho, extenuado e extenuante. Cá estou, outra vez entre duas vidas, dois países, duas ou três línguas e uma incálculavel quantidade de paisagens, geográficas ou emocionais, pelas quais fui desde sempre atraído e das quais fui sempre fugindo, umas vezes voluntariamente, outras não.
Escrever é como percorrer as ruas frias, feias e pouco convivais de Genebra sem um mapa; a cada esquina um precipício e indescritíveis monstros, disfarçados de polícias. Mas os caminhos da escrita são mais bonitos – e há mais palavras do que ruas, o que torna o exercício mais cativante; se bem que as punições sejam piores: não há multa que pague uma frase mal escrita, uma palavra mal escolhida, uma analogia deselegante, uma vírgula fora do lugar.
Do francês, Cioran dizia: “esta língua de empréstimo, com todas as suas palavras pensadas e repensadas, afinadas, subtis até à inexistência, dobradas sob as exacções da nuance, inexpressivas porque já exprimiram tudo, assustadoras de precisão, discretas até na vulgaridade... Uma sintaxe duma rigidez, duma dignidade cadavérica encerra-as e atribui-lhes um lugar do qual nem Deus os poderia desalojar”. E depois do que é para mim a melhor descrição da língua francesa que jamais li, vem este notável bocado: “A pátria não passa de um acampamento no deserto, diz um texto tibetano. Não vou tão longe: trocaria todas as paisagens do mundo pela da minha infância”.
A verdade é que eu não sei a que chamar, realmente, “a paisagem da minha infância”: será a Linha de Cascais, com a Marginal, esse cordão umbilical que sempre me ligou a Lisboa, e onde, ainda hoje, me acontece chorar quando vejo o sol pôr-se atrás do farol da Guia, e a luz se torna espessa e dengosa e côr-de-laranja como uma mulher das ilhas? Ou será Quelimane, em Moçambique, com aquelas intermináveis filas de coqueiros, onde sonhei as minhas primeiras aventuras, sentado na mangueira ao lado de casa, a encher-me de mangas verdes com sal, porque era o título de um livro de poesia (de um poeta que só muito mais tarde vim a conhecer e apreciar)? Ou ainda, esticando um pouco os limites da infãncia, Lourenço Marques, cuja baía conheço como as minhas mãos, onde a adolescência me apanhou e com ela as primeiras dores de amor, imediatamente diluídas em Nietzsche e em whisky? Onde é, o país da minha infância?
Percorro as ruas de Genebra montado na minha scooter e tateio o meu caminho através da escrita, tarefa nobre mas fastidiosa – e penso em todas as coisas que escrevi e deitei fora, porque não sabia, só hoje sei, que escrever é um castigo, uma faxina, um embaraço. Pensava nessa altura que cada frase devia ser sublime imediatamente, porque no fundo sou preguiçoso e não há nada que mais tema do que a lassidão. Hoje sei que não é verdade, as palavras vêm como vómito, depois é preciso limpar tudo, cada sílaba, cada gaveta, cada prateleira, cada canto do espelho - porque escrevemos e vomitamos sempre à frente de um espelho, numa tentativa - falhada - de nos desgostarmos de nós e da escrita para sempre.
Hoje, montado na scooter, não são as ruas de Genebra que eu vejo: são as inúmeras avenidas, ruas, becos, autoestradas, por onde andei ao longo dos anos, labirinto sem fim do qual o ponto de chegada é, inevitavelmente, o ponto de partida; e onde não há polícias para nos castigar – só as palavras e a morte, porque uma vida perdida é uma morte antecipada. E é dessas ruas, avenidas, becos sem saída, carreiros e caminhos de cabra que quero falar, um pouco como um arquitecto que fizesse os planos da casa depois dela construída.
Genève, 2000
Já não sei a que língua pertenço, a que país. Escrever é um pouco como procurar o melhor itinerário nas ruas de Genebra, actividade à qual me dedico todos os dias, montado num scooter velho, extenuado e extenuante. Cá estou, outra vez entre duas vidas, dois países, duas ou três línguas e uma incálculavel quantidade de paisagens, geográficas ou emocionais, pelas quais fui desde sempre atraído e das quais fui sempre fugindo, umas vezes voluntariamente, outras não.
Escrever é como percorrer as ruas frias, feias e pouco convivais de Genebra sem um mapa; a cada esquina um precipício e indescritíveis monstros, disfarçados de polícias. Mas os caminhos da escrita são mais bonitos – e há mais palavras do que ruas, o que torna o exercício mais cativante; se bem que as punições sejam piores: não há multa que pague uma frase mal escrita, uma palavra mal escolhida, uma analogia deselegante, uma vírgula fora do lugar.
Do francês, Cioran dizia: “esta língua de empréstimo, com todas as suas palavras pensadas e repensadas, afinadas, subtis até à inexistência, dobradas sob as exacções da nuance, inexpressivas porque já exprimiram tudo, assustadoras de precisão, discretas até na vulgaridade... Uma sintaxe duma rigidez, duma dignidade cadavérica encerra-as e atribui-lhes um lugar do qual nem Deus os poderia desalojar”. E depois do que é para mim a melhor descrição da língua francesa que jamais li, vem este notável bocado: “A pátria não passa de um acampamento no deserto, diz um texto tibetano. Não vou tão longe: trocaria todas as paisagens do mundo pela da minha infância”.
A verdade é que eu não sei a que chamar, realmente, “a paisagem da minha infância”: será a Linha de Cascais, com a Marginal, esse cordão umbilical que sempre me ligou a Lisboa, e onde, ainda hoje, me acontece chorar quando vejo o sol pôr-se atrás do farol da Guia, e a luz se torna espessa e dengosa e côr-de-laranja como uma mulher das ilhas? Ou será Quelimane, em Moçambique, com aquelas intermináveis filas de coqueiros, onde sonhei as minhas primeiras aventuras, sentado na mangueira ao lado de casa, a encher-me de mangas verdes com sal, porque era o título de um livro de poesia (de um poeta que só muito mais tarde vim a conhecer e apreciar)? Ou ainda, esticando um pouco os limites da infãncia, Lourenço Marques, cuja baía conheço como as minhas mãos, onde a adolescência me apanhou e com ela as primeiras dores de amor, imediatamente diluídas em Nietzsche e em whisky? Onde é, o país da minha infância?
Percorro as ruas de Genebra montado na minha scooter e tateio o meu caminho através da escrita, tarefa nobre mas fastidiosa – e penso em todas as coisas que escrevi e deitei fora, porque não sabia, só hoje sei, que escrever é um castigo, uma faxina, um embaraço. Pensava nessa altura que cada frase devia ser sublime imediatamente, porque no fundo sou preguiçoso e não há nada que mais tema do que a lassidão. Hoje sei que não é verdade, as palavras vêm como vómito, depois é preciso limpar tudo, cada sílaba, cada gaveta, cada prateleira, cada canto do espelho - porque escrevemos e vomitamos sempre à frente de um espelho, numa tentativa - falhada - de nos desgostarmos de nós e da escrita para sempre.
Hoje, montado na scooter, não são as ruas de Genebra que eu vejo: são as inúmeras avenidas, ruas, becos, autoestradas, por onde andei ao longo dos anos, labirinto sem fim do qual o ponto de chegada é, inevitavelmente, o ponto de partida; e onde não há polícias para nos castigar – só as palavras e a morte, porque uma vida perdida é uma morte antecipada. E é dessas ruas, avenidas, becos sem saída, carreiros e caminhos de cabra que quero falar, um pouco como um arquitecto que fizesse os planos da casa depois dela construída.
Genève, 2000
Húbris, falácias, medo, morte, sorte, azar, tempo
A vida é curta, tu és jovem e qualquer dia vais-te embora. Façamos depressa tudo o que temos a fazer: viver, zangarmo-nos, amarmo-nos. Não percamos tempo - temos tão pouco - com floreados, frases bonitas, palavras sentimentais, preliminares prolongados. Não tarda um fósforo estaremos sós, façamos o que fizermos.
Se tivermos azar. Com sorte estaremos enterrados.
Se tivermos azar. Com sorte estaremos enterrados.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 16-09-2014
Fabio tem o restaurante composto, como se diz no jargão do métier. Apesar disso sai comigo à rua procurar um táxi. Os telefones não respondem - fico a saber depois que a rede fixa está em baixo -; "Não quero que andes sozinho por essas ruas", explica num português quase perfeito (é italiano). Não há táxis em nenhuma das estações por onde passamos.
Numa farmácia consigo pedir um carregador para o meu telefone esperto e por conseguinte descarregado. Miguel não pode vir, mas vai mandar um colega. Tento dar quatro reais à miúda da farmácia que me emprestou o carregador. Recusa-os. "O que é isso? Imagina..."
Voltamos para o restaurante, Fabio oferece-me mais um Limoncino (é ele que o faz) e um café.
Recentemente pedi a um miúdo, amigo do filho da senhora que faz a limpeza na pousada - e dela (pousada) frequentador assíduo - que me fosse comprar cigarros. Deu-me o troco: "foram dez reais". Dei-lhe dois de gorjeta, que aceitou com um obrigado respeitoso, educado.
Hoje fui eu comprar os cigarros. Custam oito reais.
O colega de Miguel não aparece. Volto à estação de táxis. Está lá um. É ele quem me diz que só os celulares funcionam. Traz-me à pousada. Para poupar tempo digo-lhe que fico duas esquinas antes da pousada - é preciso dar uma volta grande e nestas ruas andar de carro é mais desconfortável do que andar.
Mete-se em contra-mão e na esquina seguinte diz "Espero até o senhor entrar em casa. Estas ruas não são seguras".
No caminho falara-me de política e de futebol, dois temas para os quais não tenho troco.
Tenho com S. Luís a relação que tenho com algumas senhoras: amo-lhe uma metade e detesto-lhe a outra mais do que qualquer delas merece.
........
Li a nada kafkiana Carta ao Pai aos quinze ou dezasseis anos, como toda a gente. É bastante útil: ajuda os adolescentes a perceber que todos os pais são uns monstros castrantes e conforta-lhes a ideia de que progenitores horrorosos garantem uma carreira literária ao virar da puberdade.
Depois esqueci-a, claro.
Ontem fui ver uma peça (Pai e Filho, ou Filho e Pai, já não me lembro) baseada nela.
A peça era gratuita, como todas as que vi em S. Luís com uma excepção. Financiada por vários organismos, parte integrante de um interminável rol de "projectos", ou de um só com muitos tentáculos. A primeira pergunta que me fiz - mas não pela primeira vez - é se há cultura no Brasil que não seja financiada pelo Estado (há, eu sei. Celso está a organizar uma Feira do Livro e o Estado não paga; ou pelo menos não paga tudo).
A segunda é "de onde vem esta qualidade de representação?" A qualidade do jogo é espantosa.
Infelizmente neste caso - uma première, é verdade - desajustado, fora de tom. Perfeitamente adequado a uma peça de Beckett, mas nada a ver com a Carta. A qual tive o cuidado de reler (só por isso agradeço à Pequena Companhia de Teatro. Ler sem reler é como um par de óculos ao qual caiu uma lente).
Mas foi um bom momento, apesar disso. Gosto de teatro, mesmo desafinado. E lembrou-me de que tenho de lá ir mais vezes.
Numa farmácia consigo pedir um carregador para o meu telefone esperto e por conseguinte descarregado. Miguel não pode vir, mas vai mandar um colega. Tento dar quatro reais à miúda da farmácia que me emprestou o carregador. Recusa-os. "O que é isso? Imagina..."
Voltamos para o restaurante, Fabio oferece-me mais um Limoncino (é ele que o faz) e um café.
Recentemente pedi a um miúdo, amigo do filho da senhora que faz a limpeza na pousada - e dela (pousada) frequentador assíduo - que me fosse comprar cigarros. Deu-me o troco: "foram dez reais". Dei-lhe dois de gorjeta, que aceitou com um obrigado respeitoso, educado.
Hoje fui eu comprar os cigarros. Custam oito reais.
O colega de Miguel não aparece. Volto à estação de táxis. Está lá um. É ele quem me diz que só os celulares funcionam. Traz-me à pousada. Para poupar tempo digo-lhe que fico duas esquinas antes da pousada - é preciso dar uma volta grande e nestas ruas andar de carro é mais desconfortável do que andar.
Mete-se em contra-mão e na esquina seguinte diz "Espero até o senhor entrar em casa. Estas ruas não são seguras".
No caminho falara-me de política e de futebol, dois temas para os quais não tenho troco.
Tenho com S. Luís a relação que tenho com algumas senhoras: amo-lhe uma metade e detesto-lhe a outra mais do que qualquer delas merece.
........
Li a nada kafkiana Carta ao Pai aos quinze ou dezasseis anos, como toda a gente. É bastante útil: ajuda os adolescentes a perceber que todos os pais são uns monstros castrantes e conforta-lhes a ideia de que progenitores horrorosos garantem uma carreira literária ao virar da puberdade.
Depois esqueci-a, claro.
Ontem fui ver uma peça (Pai e Filho, ou Filho e Pai, já não me lembro) baseada nela.
A peça era gratuita, como todas as que vi em S. Luís com uma excepção. Financiada por vários organismos, parte integrante de um interminável rol de "projectos", ou de um só com muitos tentáculos. A primeira pergunta que me fiz - mas não pela primeira vez - é se há cultura no Brasil que não seja financiada pelo Estado (há, eu sei. Celso está a organizar uma Feira do Livro e o Estado não paga; ou pelo menos não paga tudo).
A segunda é "de onde vem esta qualidade de representação?" A qualidade do jogo é espantosa.
Infelizmente neste caso - uma première, é verdade - desajustado, fora de tom. Perfeitamente adequado a uma peça de Beckett, mas nada a ver com a Carta. A qual tive o cuidado de reler (só por isso agradeço à Pequena Companhia de Teatro. Ler sem reler é como um par de óculos ao qual caiu uma lente).
Mas foi um bom momento, apesar disso. Gosto de teatro, mesmo desafinado. E lembrou-me de que tenho de lá ir mais vezes.
Restaurantes: critérios
Distingue-se um bom restaurante de um mau porque neste come-se e naquele respira-se.
Que tirar de um olhar?
Um bom texto é aquele do qual nem uma vírgula se pode tirar.
E de um bom olhar? Tudo menos o passado.
E de um bom olhar? Tudo menos o passado.
Riso, siso
Se de ti o riso e de mim o siso alguém trocar quem veria? Ninguém: o teu riso é único e o meu siso... coitado.
Porto, inquietação
As águas calmas do porto são mais inquietantes do que o mar revolto da tempestade.
16.9.14
15.9.14
Fragmento
Gosto muito de ti e pouco de mim. Mas quando (ou se, sejamos optimistas) tiver que escolher escolho-me a mim.
Reedição - Carta (incompleta e confusa) ao meu filho
Meu querido filho,
Algumas pessoas gostam de dizer aos outros aquilo a que elas chamam pomposamente “as verdades”. Geralmente, aqueles a quem elas são destinadas não gostam de as ouvir. A razão é que, a maioria das vezes, “as verdades” a que os primeiros se referem não o são: são opiniões. É da diferença entre “verdades” e “opiniões” que te quero falar hoje. Dir-me-ás que és demasiado novo para isso. Talvez, mas não precisas de perceber tudo já: basta ir pensando nisto ao longo do tempo, e um tempo chegará em que eu estarei todos os dias (ou muitos dias) ao teu lado para te ajudar.
Há muitas diferenças entre uma verdade e uma opinião. Apesar disso, é por vezes difícil perceber onde acaba uma e começa a outra. Há alguns métodos mas nenhum deles é simples, ou eficaz, ou absoluto:
Há pessoas como a tua mãe cujo trabalho consiste em destrinçar as verdades das opiniões. Elas elaboram aquilo a que chamam uma hipótese (outro nome para “opinião”) e depois tentam verificar se essa “hipótese” é verdade ou não. Isto só é possível em algumas áreas do conhecimento, da vida. Outras pessoas partem das verdades (“as maçãs caiem”) e elaboram depois opiniões que talvez se venham a revelar, por sua vez, verdades: a "a maçã cai por causa da gravidade", por exemplo.
O que há de comum nestas duas démarches é que estas verdades são transitórias, e as pessoas que as descobrem sabem-no: um dia alguém, baseado numa verdade descobre outra verdade. Isto não acontece com as opiniões: é por isso que nós podemos ler as opiniões de um filósofo grego, mas as suas “verdades” só interessam aos historiadores da ciência. Isto significa que as verdades são dinâmicas e as opiniões são estáticas.
Porque é que é importante saber diferenciar uma verdade de uma opinião? Afinal de contas há milhares de pessoas que confundem as duas e não são menos felizes por isso. É preciso, primeiro porque sofremos - e fazemos sofrer - mais quando ouvimos -ou emitimos- opiniões do que quando descobrimos ou partilhamos verdades. Além disso, como tão bem o diz Cioran, é díficil viver com as verdades - mas é melhor pela simples razão que sem as verdades não se vive, morre-se: “Les "vérités", nous ne voulons plus en supporter le poids, ni en être dupes ou complices. Je rêve d'un monde où l'on mourrait pour une virgule.”
Podes construir as tuas verdades (a verdade é uma palavra esquisita que não tem singular...) como se fosse um Lego do qual as peças são as opiniões: algumas encaixam nelas, outras não - e com as mesmas peças constróiem-se verdades diferentes. Não obrigues nunca aqueles que te rodeiam a utilizar as tuas peças para construir as verdades deles - e não aceites as opiniões deles para construir as tuas verdades. Aceita-as, isso sim, para as comparares com as tuas. E sobretudo lembra-te de que se as tuas verdades são melhores - é por isso que as tornaste tuas - não são mais "verdadeiras": as dos outros têm tanto direito de existir como as tuas. Porque para eles elas são melhores do que as tuas.
Daqui poderíamos passar para as opiniões: fica para outro dia.
... Não ficou. Descubro a carta agora, oito anos depois de a ter escrito e não ter enviado.
Adenda: - Ligeira e insuficientemente editada
Algumas pessoas gostam de dizer aos outros aquilo a que elas chamam pomposamente “as verdades”. Geralmente, aqueles a quem elas são destinadas não gostam de as ouvir. A razão é que, a maioria das vezes, “as verdades” a que os primeiros se referem não o são: são opiniões. É da diferença entre “verdades” e “opiniões” que te quero falar hoje. Dir-me-ás que és demasiado novo para isso. Talvez, mas não precisas de perceber tudo já: basta ir pensando nisto ao longo do tempo, e um tempo chegará em que eu estarei todos os dias (ou muitos dias) ao teu lado para te ajudar.
Há muitas diferenças entre uma verdade e uma opinião. Apesar disso, é por vezes difícil perceber onde acaba uma e começa a outra. Há alguns métodos mas nenhum deles é simples, ou eficaz, ou absoluto:
- Frequentemente, as verdades dispensam adjectivos (“isto é uma mesa”); as opiniões exigem-nos (“esta mesa é bonita”);
- As verdades unem, as opiniões dividem (ninguém discorda da gravidade);
- Muitos estão prontos a morrer por uma opinião, mas poucos dariam a vida por uma verdade;
- As verdades demonstram-se, as opiniões defendem-se;
- As verdades partilham-se, as opiniões confrontam-se.
Há pessoas como a tua mãe cujo trabalho consiste em destrinçar as verdades das opiniões. Elas elaboram aquilo a que chamam uma hipótese (outro nome para “opinião”) e depois tentam verificar se essa “hipótese” é verdade ou não. Isto só é possível em algumas áreas do conhecimento, da vida. Outras pessoas partem das verdades (“as maçãs caiem”) e elaboram depois opiniões que talvez se venham a revelar, por sua vez, verdades: a "a maçã cai por causa da gravidade", por exemplo.
O que há de comum nestas duas démarches é que estas verdades são transitórias, e as pessoas que as descobrem sabem-no: um dia alguém, baseado numa verdade descobre outra verdade. Isto não acontece com as opiniões: é por isso que nós podemos ler as opiniões de um filósofo grego, mas as suas “verdades” só interessam aos historiadores da ciência. Isto significa que as verdades são dinâmicas e as opiniões são estáticas.
Porque é que é importante saber diferenciar uma verdade de uma opinião? Afinal de contas há milhares de pessoas que confundem as duas e não são menos felizes por isso. É preciso, primeiro porque sofremos - e fazemos sofrer - mais quando ouvimos -ou emitimos- opiniões do que quando descobrimos ou partilhamos verdades. Além disso, como tão bem o diz Cioran, é díficil viver com as verdades - mas é melhor pela simples razão que sem as verdades não se vive, morre-se: “Les "vérités", nous ne voulons plus en supporter le poids, ni en être dupes ou complices. Je rêve d'un monde où l'on mourrait pour une virgule.”
Podes construir as tuas verdades (a verdade é uma palavra esquisita que não tem singular...) como se fosse um Lego do qual as peças são as opiniões: algumas encaixam nelas, outras não - e com as mesmas peças constróiem-se verdades diferentes. Não obrigues nunca aqueles que te rodeiam a utilizar as tuas peças para construir as verdades deles - e não aceites as opiniões deles para construir as tuas verdades. Aceita-as, isso sim, para as comparares com as tuas. E sobretudo lembra-te de que se as tuas verdades são melhores - é por isso que as tornaste tuas - não são mais "verdadeiras": as dos outros têm tanto direito de existir como as tuas. Porque para eles elas são melhores do que as tuas.
Daqui poderíamos passar para as opiniões: fica para outro dia.
... Não ficou. Descubro a carta agora, oito anos depois de a ter escrito e não ter enviado.
Adenda: - Ligeira e insuficientemente editada
O Mar, o Mar
Falo muitas vezes no The Sea, The Sea de Iris Murdoch que estou a ler, mas não fui para além de dizer que é bom, ou que é uma maravilha, ou coisa que o valha.
É bom, é uma maravilha e não tenho transcrito aqui excertos por pura preguiça. Tal como não conto a história, é boa de mais para ser conhecida antecipadamente.
Mas desta fracção de diálogo não consegui escapar:
"The trouble with you, Charles, is that basically you despise women, whereas I, in spite of some appearances to the contrary, do not."
"I don't despise women. I was in love with all of Shakespeare's heroines before I was twelve."
Na página anterior, no mesmo diálogo:
"That leads to mutual terrorism. And oh, when we still used to sleep together, lying awake at night and finding one's only consolation in imagining in detail how one would go downstairs and find a hatchet and smash one's partner's head in and mash it into a bloody pudding on the pillow! Ah, Charles, Charles, you know nothing of these marital joys. Have some more whisky."
E poderia continuar assim, mas vou na página cento e sessenta e dois e teria de fazer pelo menos trezentas citações...
Se um dia tiver de fazer traduções só as farei de bons livros.
É bom, é uma maravilha e não tenho transcrito aqui excertos por pura preguiça. Tal como não conto a história, é boa de mais para ser conhecida antecipadamente.
Mas desta fracção de diálogo não consegui escapar:
"The trouble with you, Charles, is that basically you despise women, whereas I, in spite of some appearances to the contrary, do not."
"I don't despise women. I was in love with all of Shakespeare's heroines before I was twelve."
Na página anterior, no mesmo diálogo:
"That leads to mutual terrorism. And oh, when we still used to sleep together, lying awake at night and finding one's only consolation in imagining in detail how one would go downstairs and find a hatchet and smash one's partner's head in and mash it into a bloody pudding on the pillow! Ah, Charles, Charles, you know nothing of these marital joys. Have some more whisky."
E poderia continuar assim, mas vou na página cento e sessenta e dois e teria de fazer pelo menos trezentas citações...
Se um dia tiver de fazer traduções só as farei de bons livros.
14.9.14
Do desejo o sobressalto
Um corpo deitado na cama, de barriga para baixo, nu; nesse corpo escrevo. Mas não sei o que uso como caneta: se os dedos, se o membro erecto e duro que a vista dessse corpo provocou, os lábios com que o beijo, milímetro a milímetro, os lábios com os quais murmuro as palavras que invocou?
Tento reconhecer o corpo. Não sei quem é. Está de barriga para baixo, não lhe vejo o rosto. Há as nádegas, claro; a curvatura da espinha antes delas, a cor dos cabelos, as pernas. Procuro-lhe o cheiro e reconheço-o: cheira a desejo.
Vejo os cabelos, oiço as breves e sincopadas exclamações com que se exprime. Sinto-lhe os sobressaltos. São iguais aos meus.
Um corpo que não conheço e a hesitação abandonou abandona-se numa cama na qual me reconheço.
Tento reconhecer o corpo. Não sei quem é. Está de barriga para baixo, não lhe vejo o rosto. Há as nádegas, claro; a curvatura da espinha antes delas, a cor dos cabelos, as pernas. Procuro-lhe o cheiro e reconheço-o: cheira a desejo.
Vejo os cabelos, oiço as breves e sincopadas exclamações com que se exprime. Sinto-lhe os sobressaltos. São iguais aos meus.
Um corpo que não conheço e a hesitação abandonou abandona-se numa cama na qual me reconheço.
Quase reedição
Por razões que agora não vêm ao caso ando a vasculhar o coitado do DV, e outras coisas.
Às vezes encontro coisas nessas coisas. Hoje encontrei isto:
"Em vão te esperei durante anos. Bastou abrir a porta que sempre me seguiu para onde quer que fosse e vi-te, ora ciclone, ora luminosa brisa. Nasceste vento: por ti lhe abri as portas e me fiz ao mundo. Deste-me a vida, e fechaste a porta. Quem não abre a porta do vento morre na calma podre da tua ausência."
Há dia em que escrevo como se não fosse eu a escrever.
Às vezes encontro coisas nessas coisas. Hoje encontrei isto:
"Em vão te esperei durante anos. Bastou abrir a porta que sempre me seguiu para onde quer que fosse e vi-te, ora ciclone, ora luminosa brisa. Nasceste vento: por ti lhe abri as portas e me fiz ao mundo. Deste-me a vida, e fechaste a porta. Quem não abre a porta do vento morre na calma podre da tua ausência."
Há dia em que escrevo como se não fosse eu a escrever.
Barragem
Il faut un barrage contre les mots, une digue, pedias antigamente, lembras-te? Il faut les retenir, les faire attendre jusqu'à ce que plus rien ne puisse les retenir.
As palavras amam a distância e respeitar-te-ão muito mais se tu nela as mantiveres. Dá-lhes esse prazer: deixa-as longe de ti até que elas por ti irrompam como serpentes, Medusa feliz, Shiva abúlico e desiludido.
Não te arrependas de ter sido maldoso: arrepende-te apenas das palavras erradas que disseste, das palavras que não soubeste manter à distância, daquelas a quem abriste os digues antes da hora. Não te arrependas de ter amado: arrepende-te de não teres encontrado as palavras de cada um dos amores. Não te arrependas de ter vivido, ou morrido: arrepende-te do tempo que passaste entre um e outro, do tempo que passaste entre as palavras, como se andasses à chuva e não te molhasses.
Podes fazer a barragem com vinho, se quiseres; desde que seja bom. Ou com mar. Podes até fazê-la com outro corpo. Esconde-te nele, e nele as palavras, a vida, a morte. Tudo. Porque fora das palavras nada existe, nem o silêncio.
(Para a Dina, que não sei onde anda, mas que espero tenha encontrado a sua barragem).
As palavras amam a distância e respeitar-te-ão muito mais se tu nela as mantiveres. Dá-lhes esse prazer: deixa-as longe de ti até que elas por ti irrompam como serpentes, Medusa feliz, Shiva abúlico e desiludido.
Não te arrependas de ter sido maldoso: arrepende-te apenas das palavras erradas que disseste, das palavras que não soubeste manter à distância, daquelas a quem abriste os digues antes da hora. Não te arrependas de ter amado: arrepende-te de não teres encontrado as palavras de cada um dos amores. Não te arrependas de ter vivido, ou morrido: arrepende-te do tempo que passaste entre um e outro, do tempo que passaste entre as palavras, como se andasses à chuva e não te molhasses.
Podes fazer a barragem com vinho, se quiseres; desde que seja bom. Ou com mar. Podes até fazê-la com outro corpo. Esconde-te nele, e nele as palavras, a vida, a morte. Tudo. Porque fora das palavras nada existe, nem o silêncio.
(Para a Dina, que não sei onde anda, mas que espero tenha encontrado a sua barragem).
13.9.14
Cidade Ocupada, 13-09-2014
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Às vezes as coisas dentro de nós
O que nos
chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga
de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer
coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna
piedosos, como quem já tem fé.
Nós que
tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo
movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao
zero irradiante, ao ver
o que foi
grande, o que foi pequeno, aliás
o que não
tem tamanho, mas está agora
engrandecido
dentro do novo olhar.
Estrada de Fogo
Pedra a
pedra a estrada antiga
sobe a
colina, passa diante
de musgosos
muros e desce
para nenhum
sopé;
encurva, na
abstracta encruzilhada;
apaga-se, na
realidade. Morre
como o
rastilho do fogo,
que de campo
em campo aberto
seguia, e ao
bater na mágica cancela
dobrava a
chama, para uma respiração,
e deixava o
caminho do portal
incólume e
iniciado.
AL BERTO
Notas para o diário
deus tem que
ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas
sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e
limpos.
a dor de
todas as ruas vazias.
sinto-me
capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e
na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me
capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo
mesmo.
a dor de
todas as ruas vazias.
mas gosto da
noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e
do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos
encontros inesperados.
pernoito
quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde
o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de
todas as ruas vazias.
pois bem,
mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na
fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do
mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é
preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.
a dor de
todas as ruas vazias.
sujo os
olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme
acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas
as ruas vazias.
os poemas
adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na
perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e,
por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens,
rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada
escrevo.
o regresso à
escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma
esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de
todas as ruas vazias.
DAVID MOURÃO-FERREIRA
Ternura
Desvio dos
teus ombros o lençol
que é feito
de ternura amarrotada,
da frescura
que vem depois do Sol,
quando
depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa
no chão: que tempestade!
há restos de
ternura pelo meio,
como vultos
perdidos na cidade
em que uma
tempestade sobreveio...
Começas a
vestir-te, lentamente,
e é ternura
também que vou vestindo,
para
enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa
ternura anda sorrindo...
Mas ninguém
sonha a pressa com que nós
a despimos
assim que estamos sós!
PELE
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que
tua pele ser a pele da minha pele?
Cintilação
de luas
assim que te desnudas
às escuras
Diante do
teu ventre
como não
dizer “sempre”
novamente.
Ó lâmina e
bainha
de outra
espada ainda
Tua língua
Ruge.
Reprende. Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas
Vem dos arcanos
de outro tempo
ou dos anéis de outra galáxia
esta
espessura transparente
que só na
cama as almas ganham
POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes
os meses oceanos
E por vezes
os braços que apertamos
nunca mais
são os mesmos. E por vezes
encontramos
de nós em poucos meses
o que a
noite nos fez em muitos anos
E por vezes
fingimos que lembramos
E por vezes
lembramos que por vezes
ao tomarmos
o gosto aos oceanos
só o sarro
das noites não dos meses
lá no fundo
dos copos encontramos
E por vezes
sorrimos ou choramos
E por vezes
por vezes ah por vezes
num segundo
se evolam tantos anos.
INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS
Mal fora
iniciada a secreta viagem
um deus me
segredou que eu não iria só.
Por isso a
cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser
a luz que deus me segredou.
Praia do Esquecimento
Fujo da
sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida
nem consente
rumor de
gente
na praia
desolada.
Apenas
decisão de esquecimento:
mas só neste
momento eu a descubro
como a um
fruto rubro
de que, sem
já sabê-lo, me sustento.
E do Sol
amarelo que há no céu
somente sei
que me queimou a pele.
Juro: nem
dei por ele
quando
nasceu.
EUGÉNIO DE ANDRADE
À Beira de Água
Estive
sempre sentado nesta pedra
escutando,
por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago
cair um fiozinho de água.
O lago é o
tanque daquela idade
em que não
tinha o coração
magoado.
(Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto!
Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de
privação.) Estou onde
sempre
estive: à beira de ser água.
Envelhecendo
no rumor da bica
por onde
corre apenas o silêncio.
Devias estar aqui rente aos meus lábios
Devias estar
aqui rente aos meus lábios
para dividir
contigo esta amargura
dos meus
dias partidos um a um
- Eu vi a
terra limpa no teu rosto,
Só no teu
rosto e nunca em mais nenhum
Lauda e louvor da procrastinação
São nove e meia da manhã de sábado e ainda estou na cama a pensar no que já fiz - tomei o pequeno almoço e pus a roupa na máquina - e no que falta fazer: duche, lavar a loiça e limpar o fogão do chilli de ontem (deixei-o queimar, malditas panelas sem qualidade), ir andar de bicicleta (não meço a glicemia há vários dias, não quero estragar a excelente média que o aparelho deve ter na memória), escolher os poemas que logo vou ler na Cidade Ocupada, ensaiá-los, tirar a roupa da máquina e pendurá-la...
Não faço nada disso. Fico na cama com uma ressaca média (cinco em dez, quase não dou por ela) a ouvir os madrigais de Gesualdo, os quais me levam a Caravaggio e a pensar no enorme potencial inspirador da má consciência.
Escrevo no telefone; lembro-me da alegria de não cumprir um dever, tão boa como estar no campo; comparo o rum e a cachaça - são incomparáveis -. Daqui a uma semana terei vinho bom e barato e reencontrarei a minha Rolex, as ruas amadas (e cada vez mais sujas) de Lisboa, irei a Évora e a Mértola.
Não progredi muito no The Sea, esta semana foi em forma de não.
Porque é que a música de Gesualdo é tao parecida com os quadros de Caravaggio? Ambos eram assassinos, mas só superficialmente se podem confundir. Gesualdo matou a mulher e o amante (com uma crueldade arrepiante, é verdade) por ciúmes; Caravaggio era um arruaceiro.
Os dois vão ao fundo do ser, tocam naquela zona de nós em que não se distinguem os sentimentos das emoções da razão da carne do sangue do ser.
A loiça pode esperar? Não. Reclamo frequentemente contra as pessoas que deixam a cozinha suja. Enfim, pelo menos não está desarrumada, empilhei as panelas que usei num canto e limpei a mesa. E pus água no fogão, não vai ser difícil de limpar.
Estou furioso comigo (enfim, estaria, se tivesse vontade) por ter deixado queimar o chilli. Estava tão bom.
Vou levantar-me. Abençoado telefone que me permite escrever na cama. Esperam-me a casa e a cidade. A Casa e o Mundo. Queria tanto reler esse livro. E a poesia dele "onde as estradas estão traçadas perco-me..." "o viajante tem de bater a todas as portas estrangeiras até encontrar a sua..." Será assim? Vou confirmar e volto a deitar-me.
O duche. A loiça. Daqui a pouco a roupa está pronta. Seleccionar os poemas. Todo o cais é uma saudade de pedra. Saudade. Quantas vezes escrevi e disse essa palavra? Quantas mais terei ainda de a dizer a alguém, de a pensar ou sofrer?
Gesualdo, vou tomar banho.
Não faço nada disso. Fico na cama com uma ressaca média (cinco em dez, quase não dou por ela) a ouvir os madrigais de Gesualdo, os quais me levam a Caravaggio e a pensar no enorme potencial inspirador da má consciência.
Escrevo no telefone; lembro-me da alegria de não cumprir um dever, tão boa como estar no campo; comparo o rum e a cachaça - são incomparáveis -. Daqui a uma semana terei vinho bom e barato e reencontrarei a minha Rolex, as ruas amadas (e cada vez mais sujas) de Lisboa, irei a Évora e a Mértola.
Não progredi muito no The Sea, esta semana foi em forma de não.
Porque é que a música de Gesualdo é tao parecida com os quadros de Caravaggio? Ambos eram assassinos, mas só superficialmente se podem confundir. Gesualdo matou a mulher e o amante (com uma crueldade arrepiante, é verdade) por ciúmes; Caravaggio era um arruaceiro.
Os dois vão ao fundo do ser, tocam naquela zona de nós em que não se distinguem os sentimentos das emoções da razão da carne do sangue do ser.
A loiça pode esperar? Não. Reclamo frequentemente contra as pessoas que deixam a cozinha suja. Enfim, pelo menos não está desarrumada, empilhei as panelas que usei num canto e limpei a mesa. E pus água no fogão, não vai ser difícil de limpar.
Estou furioso comigo (enfim, estaria, se tivesse vontade) por ter deixado queimar o chilli. Estava tão bom.
Vou levantar-me. Abençoado telefone que me permite escrever na cama. Esperam-me a casa e a cidade. A Casa e o Mundo. Queria tanto reler esse livro. E a poesia dele "onde as estradas estão traçadas perco-me..." "o viajante tem de bater a todas as portas estrangeiras até encontrar a sua..." Será assim? Vou confirmar e volto a deitar-me.
O duche. A loiça. Daqui a pouco a roupa está pronta. Seleccionar os poemas. Todo o cais é uma saudade de pedra. Saudade. Quantas vezes escrevi e disse essa palavra? Quantas mais terei ainda de a dizer a alguém, de a pensar ou sofrer?
Gesualdo, vou tomar banho.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 12-09-2014
Que esta semana andei pouco de bicicleta confirma-se - como se fosse preciso confirmar - pela roupa lavada: chego ao fim da semana com roupa para mais dois dias.
E que chego ao fim de um ciclo confirma-se pelo ensurdecedor clamor dos meus livros, fechados em caixas há dez anos. Querem uma estante, querem ser abertos, folheados, redescobertos (a maioria) ou simplesmente lidos, os outros. Tão alto que o oiço daqui.
E que nada disto é linear confirma-se pela quantidade de cigarros que fumei esta semana. Deixei de os comprar avulsos e compro maços, que fumo até ao enjôo. E pelas caipirinhas, que consumo menos do que há uns tempos e mais do que seria desejável (quelquer número acima de zero é indesejável).
Tenho a impressão de que vou fazer uma visita ao meu amigo Raimundo. (A julgar pelas suas frequentes ausências do Senzala Bar deve estar a passar por momentos iguais, ou semelhantes).
........
Gosto desta praça. É a mais bonita da Praia Grande: fica junto ao mar, do qual está separada por uma rua apenas; tem vento, poucos prédios em ruínas - a maioria está recuperada -; poucos bêbedos, crackómanos, pedintes e restante fauna do ecosistema; e tem o melhor bar do bairro.
Chama-se Bar do Porto e já aqui falei nele. Inútil insitir. Ao lado há uma discoteca e logo a seguir outro bar chamado Contraponto. Venho ao Porto ouvir blues, mas levo com a "música" do Contraponto em cheio. A noção de vizinhança é Putinesca; quem tem mais força ganha.
E eu fujo. Blues misturados com barulho não funcionam, por muito bem que sejam tocados e cantados.
........
Os meus queridos amigos brasileiros perdoar-me-ão, espero, peço; mas o Brasil por vezes faz-me pensar no Ubu-Roi, um gigantesco e ubíquo Ubu-Roi.
Perto da pousada que gentil e lindamente me acolhe há uma cachaceria - a qual de resto será objecto de um post um dia -; pertence a um senhor chamado Baptista e de vez em quando vou lá beber um "conhaque" (entre aspas porque de cognac não tem rigorosamente nada) ou uma cachaça de Mastruz, erva misteriosa que aparentemente cura todas as maleitas do corpo e em mim cura todas as outras também.
Ontem alguém perguntou ao Baptista porque é que ele tem dois expositores de baldes à porta. Resumindo muito, a resposta foi: porque na Zona Histórica não podemos pôr tabuletas comerciais. Eu gostava de ter o talento de um Zola ou de um Dickens para descrever as ruas pelas quais passo para ir beber o meu Mastruz: imundas, mal-cheirosas, com os prédios em ruínas, pessoas a fumar crack em tudo quanto é canto, calçadas pelo que tudo indica terem sido calceteiros com excesso de LSD no sangue.
Mas a preocupação são as tabuletas comerciais, claro. (Acessoriamente, o Baptista vende os baldes. Suponho que se não os vendesse não poderia tê-los à porta para sinalizar o seu estabelecimento).
E que chego ao fim de um ciclo confirma-se pelo ensurdecedor clamor dos meus livros, fechados em caixas há dez anos. Querem uma estante, querem ser abertos, folheados, redescobertos (a maioria) ou simplesmente lidos, os outros. Tão alto que o oiço daqui.
E que nada disto é linear confirma-se pela quantidade de cigarros que fumei esta semana. Deixei de os comprar avulsos e compro maços, que fumo até ao enjôo. E pelas caipirinhas, que consumo menos do que há uns tempos e mais do que seria desejável (quelquer número acima de zero é indesejável).
Tenho a impressão de que vou fazer uma visita ao meu amigo Raimundo. (A julgar pelas suas frequentes ausências do Senzala Bar deve estar a passar por momentos iguais, ou semelhantes).
........
Gosto desta praça. É a mais bonita da Praia Grande: fica junto ao mar, do qual está separada por uma rua apenas; tem vento, poucos prédios em ruínas - a maioria está recuperada -; poucos bêbedos, crackómanos, pedintes e restante fauna do ecosistema; e tem o melhor bar do bairro.
Chama-se Bar do Porto e já aqui falei nele. Inútil insitir. Ao lado há uma discoteca e logo a seguir outro bar chamado Contraponto. Venho ao Porto ouvir blues, mas levo com a "música" do Contraponto em cheio. A noção de vizinhança é Putinesca; quem tem mais força ganha.
E eu fujo. Blues misturados com barulho não funcionam, por muito bem que sejam tocados e cantados.
........
Os meus queridos amigos brasileiros perdoar-me-ão, espero, peço; mas o Brasil por vezes faz-me pensar no Ubu-Roi, um gigantesco e ubíquo Ubu-Roi.
Perto da pousada que gentil e lindamente me acolhe há uma cachaceria - a qual de resto será objecto de um post um dia -; pertence a um senhor chamado Baptista e de vez em quando vou lá beber um "conhaque" (entre aspas porque de cognac não tem rigorosamente nada) ou uma cachaça de Mastruz, erva misteriosa que aparentemente cura todas as maleitas do corpo e em mim cura todas as outras também.
Ontem alguém perguntou ao Baptista porque é que ele tem dois expositores de baldes à porta. Resumindo muito, a resposta foi: porque na Zona Histórica não podemos pôr tabuletas comerciais. Eu gostava de ter o talento de um Zola ou de um Dickens para descrever as ruas pelas quais passo para ir beber o meu Mastruz: imundas, mal-cheirosas, com os prédios em ruínas, pessoas a fumar crack em tudo quanto é canto, calçadas pelo que tudo indica terem sido calceteiros com excesso de LSD no sangue.
Mas a preocupação são as tabuletas comerciais, claro. (Acessoriamente, o Baptista vende os baldes. Suponho que se não os vendesse não poderia tê-los à porta para sinalizar o seu estabelecimento).
12.9.14
Dever
Hoje dei um jantar: não devo falar do que senti porque fui eu que o dei. Mas posso falar do que falei - como sempre falei muito -: e uma das coisas de que falei foi do Jim do post ali em baixo.
Por causa do Jim e do Mull of Kintyre lembrei-me da Sandy Denny. Houve um tempo no mundo em que esta senhora cantava. Sem ela o mundo não é o mesmo - algumas pessoas têm essa capacidade: mudar o mundo quando aparecem ou desaparecem -. Mas felizmente podemos ouvi-la.
Devemos.
Por causa do Jim e do Mull of Kintyre lembrei-me da Sandy Denny. Houve um tempo no mundo em que esta senhora cantava. Sem ela o mundo não é o mesmo - algumas pessoas têm essa capacidade: mudar o mundo quando aparecem ou desaparecem -. Mas felizmente podemos ouvi-la.
Devemos.
Reedição - Lord Gin
Lord Gin
Ontem saí, afogar diabos e diluir tristezas. Cheguei a casa eram 3 da manhã. Hoje estou, como de costume, com o Menière aos gritos. Já não basta ter que ouvir o L. dizer-me que bebo muito, tenho agora também um polícia interno.
E a verdade é que não bebo muito, ou pelo menos não bebo demais: de vez em quando lá vou para a ginástica de balcão, mas está longe de ser frequente ou exagerado. E não chateio ninguém: bebo metodicamente e vou para casa dormir.
Em Lüderitz havia um piloto da barra chamado Jim. Era um viking enorme, parecia um arranha-céus. Tinha uma espessa cabeleira loira e uma barba meio arruivada. Era escocês, de Kintyre, e falava com o impenetrável sotaque daquelas bandas.
Quando chegávamos à bóia de espera o Jim entrava a bordo e nós mandávamos vir uma garrafa de whisky para a ponte. Sentava-se num dos armários e começava a beber. Quando chegava a meio da garrafa desatava a cantar o Mull of Kintyre, com uma voz bonita, de barítono - uma vez explicou-me o que é um Mull, mas ou me esqueci ou não percebi nada, o inglês dele era incompreensível mesmo quando sóbrio.
O trajecto entre a barra e o porto demorava quase uma hora. Quando chegávamos o Jim tinha acabado a garrafa, estava totalmente grosso e tínhamos que ser nós a fazer a manobra. Uma vez atracados, ele voltava-se para mim ou para o capitão e dizia: "agora que já acabou o trabalho, que tal se fôssemos beber um copo?"
Lüderitz era uma cidadezinha fascinante no sul da Namíbia: estava rodeada de deserto, mas a primeira coisa que se via à chegada era uma igreja gótica, coisa que não dava de todo com o resto. As pessoas gostavam muito do nosso navio porque dávamos muitas festas. O capitão tinha uma amante cujo marido gostava muito de nós, também, e nunca percebeu que uma das minha tarefas era entretê-lo enquanto o capitão e a mulher pecavam no camarote ao lado.
De resto o navio era querido por todos na África do Sul, excepto pelos colegas, invejosos: quando chegávamos a Cape Town todas as prostitutas flutuantes vinham esperar-nos ao cais e mudavam-se em peso para bordo do Altair. Na primeira saída ficámos muito tempo no mar, quase dois meses porque estávamos a pescar mal. Quando voltámos tínhamos as raparigas todas no cais a gritar "Alter, Alter" em coro, para raiva e frustração das outras tripulações, que achavam injusto. A maioria era muito feia, mas os marinheiros gostavam de as ter a bordo, e tratavam-nas bem.
Era um grupo grande de prostitutas que vivia nos navios, não tinham casa. Por vezes havia problemas: um dia houve uma zaragata entre duas delas e tive que ir acalmar a coisa. Uma estava furiosa, tinha na mão um facalhão que roubara da cozinha e não deixava ninguém aproximar-se. Fartei-me de falar com ela, a tentar pô-la numa posição que permitisse a alguém ir por trás e tirar-lhe a faca. Foi o cozinheiro, finalmente que o conseguiu. Era um homem porreiro, chamava-se M. e fazia o melhor bacalhau à Brás que jamais comi. Todos os dias vinha à rede comigo escolher um peixe para mim, que deixavámos depois no sal até ao dia seguinte. É um erro comer peixe no dia em que sai do mar, é muito melhor pô-lo no sal uma noite, enrijece as carnes e apura o gosto.
O Bacalhau à Brás do M. era conhecidíssimo em Cape Town. Cada vez que lá íamos tínhamos que convidar um dos diplomatas de Portugal. O homem arrefinfava no gargalo - ainda por cima acabávamos o almoço com uma queimada divina, tradição do navio - e eu tinha que o acompanhar para ele não cair ao mar, agarrava-lhe delicadamente num braço e ia até ao carro assim, diplomaticamente.
Cape Town foi uma grande escola para mim, em muitas coisas. Como toda a gente nós pescávamos com redes de malha inferior à permitida. O capitão tinha-me avisado que os inspectores de redes eram gajos porreiros, mas que detestavam que os tomassem por estúpidos. Quando vieram inspeccionar as nossas redes mostrei-lhes a rede legal ainda na embalagem de fábrica - nunca tinha sido usada. Eles fizeram um buraco no plástico, mediram a malha, apertaram-me a mão muito sérios e fizeram o certificado. Nem o olho piscaram.
Mas o país onde vi beber mais - e onde eu próprio mais bebi - foi na Rússia, em Nakhodka. Quando se pedia um vodka orange vinha um copo grande, de água, cheio de vodka e um cálicezinho pequeno de sumo de laranja. A vodka vendia-se aos gramas, por unidades de cem gramas. Um duplo eram duzentas gramas. Mas o pedido mais frequente era trezentas gramas. E era preciso estar sempre a beber, porque volta e meia alguém dizia "Nazdharovia" e tínhamos que beber o conteúdo do copo de uma vez só. O truque consistia, naturalmente, em ter o copo o mais vazio possível, e cada vez que ele era cheio dar uma grande golada para ficar a meio. Uma vez saí de um restaurante que ficava no primeiro andar e quando cheguei às escadas apercebi-me que nunca iria conseguir descer aquilo. Deitei-me no chão e fui a rebolar até lá abaixo. Depois levantei-me, ainda um pouco tonto, mas digno, e fui para o navio.
Noutra noite fiquei a bordo e dei uma festa no meu camarote. Essas festas eram uma tradição, mas a maior parte da malta chateava-se porque eu e o imediato tínhamos o hábito de recitar Fernando Pessoa. Eles gostavam mais dos Cantos de Maldoror, que o imediato detestava. Mas enfim, a verdade é que a malta ia aparecendo e apesar dos protestos havia sempre uma récitazinha de poesia. À medida que as garrafas se iam esvaziando eu ia deitando-as fora pela vigia, atirando-as com muita força para ver se se partiam. No dia seguinte quando desci o portaló esperava-me um guarda (cada navio tinha 3, um à proa, outro ao portaló e o último à popa) totalmente enraivecido: a vigia dava para o portaló, para o sítio exacto onde ele estava, e ia apanhando com cada uma das garrafas que foram despachadas via aérea. O navio tinha mudado de lado e eu pensava que as estava a atirar para o gelo.
Em Nakhodka tinha uma namorada chamada Vicky, que era linda como um dia de sol. Era do Konsomol e desaprovava vigorosamente os meus excessos vodkistas. O primeiro presente que lhe dei foi uma escova de dentes - a rapariga não lavava os dentes havia anos, estavam verdes como os dólares que tanta falta me fazem. Mas era bonita, e ainda mais bonita ficou com os dentes lavadinhos.
Se houvesse um pouco de justiça no mundo o fígado seria um músculo, e fortalecer-se-ia cada vez que se bebesse um copo. Mas não é, nesse aspecto a evolução tomou o caminho errado.
Um nome giro para um bar seria "Lord Gin", não?
E a verdade é que não bebo muito, ou pelo menos não bebo demais: de vez em quando lá vou para a ginástica de balcão, mas está longe de ser frequente ou exagerado. E não chateio ninguém: bebo metodicamente e vou para casa dormir.
Em Lüderitz havia um piloto da barra chamado Jim. Era um viking enorme, parecia um arranha-céus. Tinha uma espessa cabeleira loira e uma barba meio arruivada. Era escocês, de Kintyre, e falava com o impenetrável sotaque daquelas bandas.
Quando chegávamos à bóia de espera o Jim entrava a bordo e nós mandávamos vir uma garrafa de whisky para a ponte. Sentava-se num dos armários e começava a beber. Quando chegava a meio da garrafa desatava a cantar o Mull of Kintyre, com uma voz bonita, de barítono - uma vez explicou-me o que é um Mull, mas ou me esqueci ou não percebi nada, o inglês dele era incompreensível mesmo quando sóbrio.
O trajecto entre a barra e o porto demorava quase uma hora. Quando chegávamos o Jim tinha acabado a garrafa, estava totalmente grosso e tínhamos que ser nós a fazer a manobra. Uma vez atracados, ele voltava-se para mim ou para o capitão e dizia: "agora que já acabou o trabalho, que tal se fôssemos beber um copo?"
Lüderitz era uma cidadezinha fascinante no sul da Namíbia: estava rodeada de deserto, mas a primeira coisa que se via à chegada era uma igreja gótica, coisa que não dava de todo com o resto. As pessoas gostavam muito do nosso navio porque dávamos muitas festas. O capitão tinha uma amante cujo marido gostava muito de nós, também, e nunca percebeu que uma das minha tarefas era entretê-lo enquanto o capitão e a mulher pecavam no camarote ao lado.
De resto o navio era querido por todos na África do Sul, excepto pelos colegas, invejosos: quando chegávamos a Cape Town todas as prostitutas flutuantes vinham esperar-nos ao cais e mudavam-se em peso para bordo do Altair. Na primeira saída ficámos muito tempo no mar, quase dois meses porque estávamos a pescar mal. Quando voltámos tínhamos as raparigas todas no cais a gritar "Alter, Alter" em coro, para raiva e frustração das outras tripulações, que achavam injusto. A maioria era muito feia, mas os marinheiros gostavam de as ter a bordo, e tratavam-nas bem.
Era um grupo grande de prostitutas que vivia nos navios, não tinham casa. Por vezes havia problemas: um dia houve uma zaragata entre duas delas e tive que ir acalmar a coisa. Uma estava furiosa, tinha na mão um facalhão que roubara da cozinha e não deixava ninguém aproximar-se. Fartei-me de falar com ela, a tentar pô-la numa posição que permitisse a alguém ir por trás e tirar-lhe a faca. Foi o cozinheiro, finalmente que o conseguiu. Era um homem porreiro, chamava-se M. e fazia o melhor bacalhau à Brás que jamais comi. Todos os dias vinha à rede comigo escolher um peixe para mim, que deixavámos depois no sal até ao dia seguinte. É um erro comer peixe no dia em que sai do mar, é muito melhor pô-lo no sal uma noite, enrijece as carnes e apura o gosto.
O Bacalhau à Brás do M. era conhecidíssimo em Cape Town. Cada vez que lá íamos tínhamos que convidar um dos diplomatas de Portugal. O homem arrefinfava no gargalo - ainda por cima acabávamos o almoço com uma queimada divina, tradição do navio - e eu tinha que o acompanhar para ele não cair ao mar, agarrava-lhe delicadamente num braço e ia até ao carro assim, diplomaticamente.
Cape Town foi uma grande escola para mim, em muitas coisas. Como toda a gente nós pescávamos com redes de malha inferior à permitida. O capitão tinha-me avisado que os inspectores de redes eram gajos porreiros, mas que detestavam que os tomassem por estúpidos. Quando vieram inspeccionar as nossas redes mostrei-lhes a rede legal ainda na embalagem de fábrica - nunca tinha sido usada. Eles fizeram um buraco no plástico, mediram a malha, apertaram-me a mão muito sérios e fizeram o certificado. Nem o olho piscaram.
Mas o país onde vi beber mais - e onde eu próprio mais bebi - foi na Rússia, em Nakhodka. Quando se pedia um vodka orange vinha um copo grande, de água, cheio de vodka e um cálicezinho pequeno de sumo de laranja. A vodka vendia-se aos gramas, por unidades de cem gramas. Um duplo eram duzentas gramas. Mas o pedido mais frequente era trezentas gramas. E era preciso estar sempre a beber, porque volta e meia alguém dizia "Nazdharovia" e tínhamos que beber o conteúdo do copo de uma vez só. O truque consistia, naturalmente, em ter o copo o mais vazio possível, e cada vez que ele era cheio dar uma grande golada para ficar a meio. Uma vez saí de um restaurante que ficava no primeiro andar e quando cheguei às escadas apercebi-me que nunca iria conseguir descer aquilo. Deitei-me no chão e fui a rebolar até lá abaixo. Depois levantei-me, ainda um pouco tonto, mas digno, e fui para o navio.
Noutra noite fiquei a bordo e dei uma festa no meu camarote. Essas festas eram uma tradição, mas a maior parte da malta chateava-se porque eu e o imediato tínhamos o hábito de recitar Fernando Pessoa. Eles gostavam mais dos Cantos de Maldoror, que o imediato detestava. Mas enfim, a verdade é que a malta ia aparecendo e apesar dos protestos havia sempre uma récitazinha de poesia. À medida que as garrafas se iam esvaziando eu ia deitando-as fora pela vigia, atirando-as com muita força para ver se se partiam. No dia seguinte quando desci o portaló esperava-me um guarda (cada navio tinha 3, um à proa, outro ao portaló e o último à popa) totalmente enraivecido: a vigia dava para o portaló, para o sítio exacto onde ele estava, e ia apanhando com cada uma das garrafas que foram despachadas via aérea. O navio tinha mudado de lado e eu pensava que as estava a atirar para o gelo.
Em Nakhodka tinha uma namorada chamada Vicky, que era linda como um dia de sol. Era do Konsomol e desaprovava vigorosamente os meus excessos vodkistas. O primeiro presente que lhe dei foi uma escova de dentes - a rapariga não lavava os dentes havia anos, estavam verdes como os dólares que tanta falta me fazem. Mas era bonita, e ainda mais bonita ficou com os dentes lavadinhos.
Se houvesse um pouco de justiça no mundo o fígado seria um músculo, e fortalecer-se-ia cada vez que se bebesse um copo. Mas não é, nesse aspecto a evolução tomou o caminho errado.
Um nome giro para um bar seria "Lord Gin", não?
11.9.14
Ambientes
Os ambientalistas histéricos que querem impor custos absurdos às empresas deviam de vez em quando reflectir. Talvez seja melhor curar do que prevenir, em muitos casos.
(Claro que para a maioria desses ambientalistas a agenda não é o ambiente. Mas isso é outra história).
(Claro que para a maioria desses ambientalistas a agenda não é o ambiente. Mas isso é outra história).
Descobertas
O Xicodiscos oferece vários tipos de actividades culturais. À degustação de cachaças, conversas, sonhos diversos e outras junta-se agora a descoberta de música (coisa inesperada num bar com aquele nome).
Vejam esta, por exemplo:
Vejam esta, por exemplo:
10.9.14
Coisas realmente importantes
Aqui há uns tempos, Maria João Marques - uma das minhas cronistas favoritas (e não deixou de o ser por causa disto) - falava de latitude Oeste, ou longitude Norte.
Hoje David Dinis fala de marés no Mediterrâneo, mar que sem delas ser completamente desprovido as tem muito fracas, quase nada.
Não precisarão de um revisor, lá para aquelas bandas?
Hoje David Dinis fala de marés no Mediterrâneo, mar que sem delas ser completamente desprovido as tem muito fracas, quase nada.
Não precisarão de um revisor, lá para aquelas bandas?
7.9.14
Um momento fugaz de optimismo
"Posso ser um bocadinho optimista? Muito obrigado. É verdade que o desfecho do caso Face Oculta se fez tipicamente esperar. É verdade que ainda estará sujeito aos recursos da praxe (e, talvez, aos beneplácitos da praxe). É verdade que a decisão do tribunal não apaga o papel de altos magistrados na sabotagem do processo. É verdade que a figura maior desta história passou entre os pingos da chuva. E é verdade que castigar a trapaça do sucateiro socialista não castiga outras trapaças que envolvem outros partidos ou "personalidades".
Mesmo assim, o que aconteceu em Aveiro, da sentença aos rostos perplexos dos condenados, é um sinal de que nem tudo é permitido nem a impunidade é inevitável. Por uma vez, se calhar sem exemplo ou repetição, ganhei confiança na justiça. Enquanto não voltar a perdê-la, permitam-me festejar durante uns dias o célebre Estado de direito. E quem diz uns dias diz uns minutos, ou o tempo em que Portugal se assemelhou à civilização."
O optimismo vai ser curto, merece ser partilhado e guardado.
Daqui, claro.
Mesmo assim, o que aconteceu em Aveiro, da sentença aos rostos perplexos dos condenados, é um sinal de que nem tudo é permitido nem a impunidade é inevitável. Por uma vez, se calhar sem exemplo ou repetição, ganhei confiança na justiça. Enquanto não voltar a perdê-la, permitam-me festejar durante uns dias o célebre Estado de direito. E quem diz uns dias diz uns minutos, ou o tempo em que Portugal se assemelhou à civilização."
O optimismo vai ser curto, merece ser partilhado e guardado.
Daqui, claro.
5.9.14
Exotismo e tolerância
"Sou tolerante, não sou relativista". Há muitos anos, mais do que aqueles que sei contar.
O problema é onde pôr a fronteira da tolerância? Por onde passa a linha entre o exótico e o inaceitável? Para algumas coisas a decisão é fácil: a mutilação genital feminina, por exemplo. Outras são mais complicadas.
Depois de muitos anos de viagens e de contactos com variadíssimas culturas continuo sem certezas. Porém um critério que me parece válido é não defender para os outros aquilo que não se quer para nós. Queremos a democracia, a liberdade, governantes honestos, respeito pelo espaço público? Porque toleramos a corrupção, a ditadura, a insegurança nos outros?
À frente da pousada mora um senhor que suponho seja atrasado mental, idiota, débil, imbecil ou coisa semelhante. De tempos a tempos sente necessidade de pôr a música aos berros. Não suporto mais este barulho permanente. Não se dá um passo que não se seja agredido ou por um carro de som com anúncios a não sei quê ou a quem quer ser eleito, ou por - como neste caso - um gajo qualquer que decide simplesmente que toda a gente deve ouvir a música de que ele gosta.
Hoje fui pedir-lhe para baixar o volume. Começou por perguntar-me se eu já estava a dormir (são sete e meia da noite). Disse-lhe que não. Sorriu, Olhou para mim e perguntou-me "Então"? Disse-lhe que não gosto daquela música, por um lado; e que ela me impede de ouvir a de que eu gosto, por outro. "Se o senhor baixar o volume da sua música pode ouvi-la na mesma, eu posso ouvir a minha e ficamos os dois contentes". Sorriu de novo, apertou-me a mão, baixou o volume - e cinco minutos depois voltou a subi-lo.
Não vale a pena. É como se eu lhe fosse pedir para se despir e andar nu na rua.
Ignoro o que leva o homem a precisar de ouvir a música assim, mas sei que para mim é intolerável. Não é exótico.
O problema é onde pôr a fronteira da tolerância? Por onde passa a linha entre o exótico e o inaceitável? Para algumas coisas a decisão é fácil: a mutilação genital feminina, por exemplo. Outras são mais complicadas.
Depois de muitos anos de viagens e de contactos com variadíssimas culturas continuo sem certezas. Porém um critério que me parece válido é não defender para os outros aquilo que não se quer para nós. Queremos a democracia, a liberdade, governantes honestos, respeito pelo espaço público? Porque toleramos a corrupção, a ditadura, a insegurança nos outros?
À frente da pousada mora um senhor que suponho seja atrasado mental, idiota, débil, imbecil ou coisa semelhante. De tempos a tempos sente necessidade de pôr a música aos berros. Não suporto mais este barulho permanente. Não se dá um passo que não se seja agredido ou por um carro de som com anúncios a não sei quê ou a quem quer ser eleito, ou por - como neste caso - um gajo qualquer que decide simplesmente que toda a gente deve ouvir a música de que ele gosta.
Hoje fui pedir-lhe para baixar o volume. Começou por perguntar-me se eu já estava a dormir (são sete e meia da noite). Disse-lhe que não. Sorriu, Olhou para mim e perguntou-me "Então"? Disse-lhe que não gosto daquela música, por um lado; e que ela me impede de ouvir a de que eu gosto, por outro. "Se o senhor baixar o volume da sua música pode ouvi-la na mesma, eu posso ouvir a minha e ficamos os dois contentes". Sorriu de novo, apertou-me a mão, baixou o volume - e cinco minutos depois voltou a subi-lo.
Não vale a pena. É como se eu lhe fosse pedir para se despir e andar nu na rua.
Ignoro o que leva o homem a precisar de ouvir a música assim, mas sei que para mim é intolerável. Não é exótico.
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 04-09-2014
Penso "Gosto de todos os sítios onde estive e não gosto de nenhum onde estou" e imediatamente procuro as excepções. Lisboa, le Marin, Marseille, Londres, Paris, Palma, Dunkerque, Lubumbashi, Bujumbura, Mértola, Brighton, Antigua, Aber Wrac'h (e toda a Bretanha), S. Francisco, Miami. São tantas.
São mais as excepções do que as regras. Lugares de que só gostei a posteriori: Genève, Panamá, Salvador... Ia acrescentar "S. Luís será decerto assim" mas apercebo-me de que já não é verdade. Começo a conhecer esta cidade, a amar-lhe os defeitos. Irrevogável sinal de amor.
K. diz-me que os filmes começam às sete e ela virá por volta das oito. Chega às oito e meia; dos filmes só umas sombras: devem estar com problemas na projecção. E não me importo nada com o duplo atraso, com a inexistência de vinho ou caipirinha no bar da Saudade de qualquer coisa que não percebi, com o facto simples e inegável de que não gosto de samba.
Está vento e uma noite linda, sei que se for para casa tenho um bom frango à espera, as coisas fluem - eu próprio cheguei mais tarde do que pensava porque o gás acabou e frango e canja atrasaram três quartos de hora - e reencontram o seu caminho como água na montanha.
As mulheres são bonitas, os alísios levantam-lhes os cabelos, a Fonte do Ribeirão é mágica - um buraco de beleza azul desligado de tudo o que o rodeia (como eu, de resto), inundado de música e rodeado de prédios recuperados, prédios a cair, mesas de plástico, pessoas bonitas sentadas em todo o lado e K. que chega radiante e radiosa e me deixa imediatamente para ir "cumprimentar a galera". É a liberdade do ribeiro na encosta: vai pela gravidade mas por onde quer, a liberdade simples das coisas que o são e fluem como são.
Não há traço da população da Paia Grande. Na hora que ali passo ninguém me vem pedir dinheiro, nenhum crackómano inicia uma cena de pancada com outro, ninguém tenta roubar-me a bebida, a rua não cheira mal. Estou a cinco minutos de bicicleta e já acidde é outra.
.........
Não fiquei: a música estava demasiado alta, K. levou-me para um lugar onde não havia vento, era difícil conversar. Voltei para a pousada e para o frango que cozinhei à tarde.
........
Comecei por marinar o bicho em limão, alho, louro, paprika e alecrim. Uma hora no frigorífico.
Depois refoguei uma bela quantidade de toucinho, Retirei e para essa gordura foram cebola e pimentos. Numa frigideira fritei o frango - não tanto quanto queria, o tempo apertava apesar de saber que K. chegaria atrasada -. Depois juntei tudo na panela (tudo incluindo a marinada) uma boa giclée de tinto, acertei as especiarias e ala que se faz tarde.
Não fui eu quem acabou a cozedura. Só provei o resultado e ouvi os comentários dos convivas. Cada vez gosto mais de cozinhar.
........
B. avança. A cada dia nota-se a diferença. Temos quatro pessoas a trabalhar nele a tempo inteiro e muito provavelmente em breve uma quinta. Vou sair de S. Luis em finais de Novembro e já estou com saudades.
São mais as excepções do que as regras. Lugares de que só gostei a posteriori: Genève, Panamá, Salvador... Ia acrescentar "S. Luís será decerto assim" mas apercebo-me de que já não é verdade. Começo a conhecer esta cidade, a amar-lhe os defeitos. Irrevogável sinal de amor.
K. diz-me que os filmes começam às sete e ela virá por volta das oito. Chega às oito e meia; dos filmes só umas sombras: devem estar com problemas na projecção. E não me importo nada com o duplo atraso, com a inexistência de vinho ou caipirinha no bar da Saudade de qualquer coisa que não percebi, com o facto simples e inegável de que não gosto de samba.
Está vento e uma noite linda, sei que se for para casa tenho um bom frango à espera, as coisas fluem - eu próprio cheguei mais tarde do que pensava porque o gás acabou e frango e canja atrasaram três quartos de hora - e reencontram o seu caminho como água na montanha.
As mulheres são bonitas, os alísios levantam-lhes os cabelos, a Fonte do Ribeirão é mágica - um buraco de beleza azul desligado de tudo o que o rodeia (como eu, de resto), inundado de música e rodeado de prédios recuperados, prédios a cair, mesas de plástico, pessoas bonitas sentadas em todo o lado e K. que chega radiante e radiosa e me deixa imediatamente para ir "cumprimentar a galera". É a liberdade do ribeiro na encosta: vai pela gravidade mas por onde quer, a liberdade simples das coisas que o são e fluem como são.
Não há traço da população da Paia Grande. Na hora que ali passo ninguém me vem pedir dinheiro, nenhum crackómano inicia uma cena de pancada com outro, ninguém tenta roubar-me a bebida, a rua não cheira mal. Estou a cinco minutos de bicicleta e já acidde é outra.
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Não fiquei: a música estava demasiado alta, K. levou-me para um lugar onde não havia vento, era difícil conversar. Voltei para a pousada e para o frango que cozinhei à tarde.
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Comecei por marinar o bicho em limão, alho, louro, paprika e alecrim. Uma hora no frigorífico.
Depois refoguei uma bela quantidade de toucinho, Retirei e para essa gordura foram cebola e pimentos. Numa frigideira fritei o frango - não tanto quanto queria, o tempo apertava apesar de saber que K. chegaria atrasada -. Depois juntei tudo na panela (tudo incluindo a marinada) uma boa giclée de tinto, acertei as especiarias e ala que se faz tarde.
Não fui eu quem acabou a cozedura. Só provei o resultado e ouvi os comentários dos convivas. Cada vez gosto mais de cozinhar.
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B. avança. A cada dia nota-se a diferença. Temos quatro pessoas a trabalhar nele a tempo inteiro e muito provavelmente em breve uma quinta. Vou sair de S. Luis em finais de Novembro e já estou com saudades.
4.9.14
Glenn Gould, vida
Gould está para a música como o silêncio para a vida: é o que se passa nos intervalos de um e outra que realmente interessa.
(Já em Hildegarde só há silêncios, mas isso é outra história).
(Já em Hildegarde só há silêncios, mas isso é outra história).
Sizígias
Vamos então começar. Um rio começa pela nascente. E que é agora a nascente? A noite, a vela de citronelle com a qual tento enganar os mosquitos, a música de Gould com a qual tento enganar a noite?
Não sei. Penso numa cidade com as ruas vazias e a lua apagada. A lua nova sempre se prestou a estes exercícios, e basta pensar nela - mesmo estando nós em pleno crescente - para imaginar esta cidade sem luz.
Estamos em crescente. Daqui a quatro dias vem uma lua cheia. Há sempre uma lua cheia depois de uma nova.
O ideal, claro, seria que houvesse uma nova depois de cada cheia. Mas não há. Sizígia é a palavra chave: oposição ou conjunção são descritas pelo mesmo termo.
Nada há de novo, nada do que tenha sido desaparece ou aparece se não tiver existido antes.
Não sei. Penso numa cidade com as ruas vazias e a lua apagada. A lua nova sempre se prestou a estes exercícios, e basta pensar nela - mesmo estando nós em pleno crescente - para imaginar esta cidade sem luz.
Estamos em crescente. Daqui a quatro dias vem uma lua cheia. Há sempre uma lua cheia depois de uma nova.
O ideal, claro, seria que houvesse uma nova depois de cada cheia. Mas não há. Sizígia é a palavra chave: oposição ou conjunção são descritas pelo mesmo termo.
Nada há de novo, nada do que tenha sido desaparece ou aparece se não tiver existido antes.
Auto-retratos
Durante muito tempo não gostei da fotografia do elefante que agora está em epígrafe no DV. Era demasiado evidente. Quanto mais a vejo mais gosto dela. O auto-retrato é uma arte difícil de apreender.
Notas e corpos
Quem dizia "A música é o que está no intervalo das notas"? Não sei.
O que está no intervalo dos corpos: vida ou morte?
O que está no intervalo dos corpos: vida ou morte?
Sem ti
É preciso reconhecê-lo. Sem ti pouco tenho a dizer. O mundo acaba. Ou melhor: não acaba porque nem sequer começa. Não sabia, até te conhecer, que as palavras vêm com os corpos ou com o desejo.
Sem ti sou mudo, sem ti mudo, sentido no mundo sem ti não há.
Sem ti sou mudo, sem ti mudo, sentido no mundo sem ti não há.
Qui si j'arrête
Gosto de ouvir Keith Jarrett, mas não gosto de o ver: uma música que ouvida vem das profundezas vista parece obra de um desvairado.
Assincronia
Gould toca Bach é uma frase que podia ser verdadeira se quiséssemos. Mas não é. Gould inventa Bach; ou Gould reescreve Bach; ou Gould faz-nos descobrir Bach.
Talvez esta: Gould faz-nos descobrir Bach. A assincronia está para a vida como o fermento para o pão.
Talvez esta: Gould faz-nos descobrir Bach. A assincronia está para a vida como o fermento para o pão.
3.9.14
"Brasil, meu Brasil brasileiro"
Vista de fora C. parece francesa: pequena, magra, fina de traços, simpática mas não muito expansiva. A primeira vez que falámos ela fez-me uma pergunta qualquer em inglês. Respondi-lhe em francês e por aí continuámos até lhe perguntar de onde era. Brésilienne, respondeu.
Agora falamos frequentemente. Encontramo-nos ao pequeno-almoço - temos os mesmos horários - e ao jantar. Comemos juntos e conversamos bastante (eu mais do que ela; maldita verborreia).
C. não é francesa mas podia ser. Não foi decerto por acaso que casou com um (por sinal velejador e dono de uma escola de vela). Ontem fomos às compras a pé. Na conversa falamos de liberalismo. Digo-lhe que sou um simples-liberal. Nem neo, nem ultra, nem coisa nenhuma. Simples, clássico, sem prefixos.
"Ah, então você é a favor dos ricos". O liberalismo perdeu a batalha da comunicação e eu confesso que não sei porquê. Gostava de saber. "Não, C. Sou liberal porque acho que é a melhor maneira de os pobres deixarem de ser pobres. Achas que o socialismo ajudou a acabar com os pobres no Brasil?"
A conversa continua neste tema, mas não me atrai. Gostava de perceber porque é que na cabeça de uma arquitecta relativamente culta, viajada, de trinta e poucos anos ser liberal é ser "a favor dos ricos" (obviamente o problema não está nela, está no facto de o liberalismo ter de insistir tanto na necessidade e importância da liberdade que deixa de lado as suas consequências. Uma das quais seria, claro, mais igualdade social).
O Brasil é um caso de estudo magnífico: um país mercantilista, proteccionista, com tudo quanto é mercado protegido, regulado, amarrado por uma burocracia que parece um livro de Kafka reescrito por Drácula, com um índice de Gini elevadísimo (o Governo diz que está a diminuir e é verdade. Mas não vai diminuir muito mais, porque esta diminuição tem sido feita à custa de subvenções e ajudas e não é sustentável. O próximo ciclo depressivo está à porta e o helicóptero vai ficar sem combustível). Os resultados estão à vista: desigualdade social, crack, miséria, criminalidade, produtos maus e comparativamente caros (com a notória excepção dos aviões e da música, dois produtos aos quais não há proteccionismo que valha), fiscalidade absurda.
Mas as pessoas acham que é preciso mais do mesmo. Os únicos beneficiários do proteccionismo são os donos das grandes empresas. Mas se alguém falar em reduzir tarifas, desbloquear o mercado de trabalho e de produtos, desmontar corporativismos - está a "favorecer os ricos"...
Não está, C. Está a favorecer os pobres. Mas vai levar muito, muito tempo até isto ser compreendido pela maioria das pessoas. O que é pena, porque este país é magnífico.
Agora falamos frequentemente. Encontramo-nos ao pequeno-almoço - temos os mesmos horários - e ao jantar. Comemos juntos e conversamos bastante (eu mais do que ela; maldita verborreia).
C. não é francesa mas podia ser. Não foi decerto por acaso que casou com um (por sinal velejador e dono de uma escola de vela). Ontem fomos às compras a pé. Na conversa falamos de liberalismo. Digo-lhe que sou um simples-liberal. Nem neo, nem ultra, nem coisa nenhuma. Simples, clássico, sem prefixos.
"Ah, então você é a favor dos ricos". O liberalismo perdeu a batalha da comunicação e eu confesso que não sei porquê. Gostava de saber. "Não, C. Sou liberal porque acho que é a melhor maneira de os pobres deixarem de ser pobres. Achas que o socialismo ajudou a acabar com os pobres no Brasil?"
A conversa continua neste tema, mas não me atrai. Gostava de perceber porque é que na cabeça de uma arquitecta relativamente culta, viajada, de trinta e poucos anos ser liberal é ser "a favor dos ricos" (obviamente o problema não está nela, está no facto de o liberalismo ter de insistir tanto na necessidade e importância da liberdade que deixa de lado as suas consequências. Uma das quais seria, claro, mais igualdade social).
O Brasil é um caso de estudo magnífico: um país mercantilista, proteccionista, com tudo quanto é mercado protegido, regulado, amarrado por uma burocracia que parece um livro de Kafka reescrito por Drácula, com um índice de Gini elevadísimo (o Governo diz que está a diminuir e é verdade. Mas não vai diminuir muito mais, porque esta diminuição tem sido feita à custa de subvenções e ajudas e não é sustentável. O próximo ciclo depressivo está à porta e o helicóptero vai ficar sem combustível). Os resultados estão à vista: desigualdade social, crack, miséria, criminalidade, produtos maus e comparativamente caros (com a notória excepção dos aviões e da música, dois produtos aos quais não há proteccionismo que valha), fiscalidade absurda.
Mas as pessoas acham que é preciso mais do mesmo. Os únicos beneficiários do proteccionismo são os donos das grandes empresas. Mas se alguém falar em reduzir tarifas, desbloquear o mercado de trabalho e de produtos, desmontar corporativismos - está a "favorecer os ricos"...
Não está, C. Está a favorecer os pobres. Mas vai levar muito, muito tempo até isto ser compreendido pela maioria das pessoas. O que é pena, porque este país é magnífico.
2.9.14
Vista
Olho-a por vezes e não vejo mais do que um par de pernas escanqueiradas. Uma cona sem vista para a cabeça.
Uma noite sem vista para o dia.
Uma noite sem vista para o dia.
Ignorância, acção
As coisas são o que são e não sabemos se seriam melhores ou piores se fossem diferentes.
Mas a ignorância nunca impediu ninguém de agir. Muito antes pelo contrário.
Mas a ignorância nunca impediu ninguém de agir. Muito antes pelo contrário.
Desejo, tempo
Talvez tenha chegado a altura de falar do desejo. Não sei. Descobres espantado que o desejo te é indiferente. Eugénio de Andrade chamava-lhe Esse cão. Não merece tanto. Desejo é o nome que se dá aos efeitos de um conjunto formado por uma cabeça duas mamas e um ventre. Não há cães metafísicos, cães ideais, cães gnósticos. Há cães e ausência de cães.
No meio há nada.
Enfim, há. Um corpo, um sorriso, um ventre ou duas mamas, uma frase. Mas a isso não se chama desejo, e muito menos cão. Chama-se noite, solidão, o que quiseres. Mas não desejo.
Há quem lhe chame tempo, por exemplo.
No meio há nada.
Enfim, há. Um corpo, um sorriso, um ventre ou duas mamas, uma frase. Mas a isso não se chama desejo, e muito menos cão. Chama-se noite, solidão, o que quiseres. Mas não desejo.
Há quem lhe chame tempo, por exemplo.
1.9.14
Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 01-09-2014
Hoje fui ao médico tirar os pontos. Espero não ter de voltar tão cedo Superclínica, o meu fornecedor de cuidados de saúde em S. Luís - e em qualquer parte do mundo onde estejam. Vi dois especialistas e qualquer deles foi eficaz, rápido, caloroso -. Mas por agora chega.
A Superclínica é barata ("popular"), já por aqui o disse; e a minha aposta na qualidade dos médicos - para quem se lembra, que não deve ser muito diferente de uma clínica cara para esta - parece ganha. Ainda bem: se tivesse de ir a uma das clínicas menos populares a cavalariça teria sofrido um bocadinho mais, ou mais tempo.
A qual cavalariça no fundo tem feito o seu dever: retribuir as atenções todas que recebeu. Os índices da coisa têm estado dentro dos parâmetros normais (ou seja, nem pré-diabético sou, que chatice. Que será o meu futuro?) perco peso mas devagar, muito devagar, e lá vou bebendo um copinho de vinho de vez em quando.
Basta pôr o cavalo na ordem para que tudo entre na linha.
........
A Cidade Ocupada enriqueceu-se com uma exposição de fotografia. Quem quer traz as suas obras e expõe-as num varal.
É bonito e uma vez mais surpreendente, antinómico. Enfim, uma antinomia mais, numa cidade rica delas. Entre a beleza da cidade e o seu estado de degradação, entre a qualidade dos seus artistas e a dos políticos que a governam ou para isso concorrem, entre a beleza do que se vê e o cheiro, entre a simpatia das pessoas e a maneira como a cidade se esconde - nisso parece-se com Lisboa, uma espécie de matrioska urbana, uma cidade dentro de outra que esconde outra que acolhe outra e assim por diante -.
Na verdade parece-se com Lisboa em muitas coisas - tanto nas boas como nas más.
........
Por falar em qualidade dos artistas: ontem fui ao Espigão (um quebra-mar atrás do qua pretendem fazer uma marina e que eu penso continuará um quebra-mar sem marina por muitos anos, porque esta baía se não for dragada - e já agora se não fizerem qualquer coisa naquilo que está a provocar o seu assoreamento, o dique do Bakanga - qualquer dia nem na maré cheia se nela navega).
Sessão de música ao vivo. Vai haver em breve um festival de música algures o Brasil e seis bandas do Maranhão foram seleccionadas "entre mais de mil", diz com justificado orgulho o jovem e talentoso trompetista, para ir lá tocar. Acontece que o Estado não deu ou ainda não deu "apoios" (entre aspas porque começo a ficar com arrepios cada vez que oiço esta expressão, e aqui oiço-a como se fosse um relógio a marcar segundos) pelo que resolveram - aqui interrompo: "trabalhar", diz uma voz feminina da assistência quando o jovem trompetista diz - "se virar".
Não ouvi todas as bandas - depois chegaram pessoas que conheço da Cidade Ocupada e fiquei na conversa - mas o que ouvi explica com facilidade porque foram seleccionadas aquelas.
Música soberba - rock, para variar um pouco - escorreito, bem feito e bem tocado, num ambiente lindo e cheio de vento.
Alísios (não sei de onde vem a grafia com i, penso sempre em alíseos. Porque será?). Portugal tem os alísios portugueses (a nortada) mas eu gosto mais destes, os verdadeiros, que vêm de longe e tanto fizeram pelo mundo (os nossos também, verdade seja dita. Mas estes são ... sei lá, são os verdadeiros, os alísios sem qualificativos, sem mais nada alísios. Até a palavra é bonita).
........
Conheci uma jovem arquitecta portuguesa - não sei porque insisto tanto no jovem, neste país toda a gente o é, até os velhos, até eu - que está cá há dois anos. Está a ficar preocupada com a quantidade de prédios que se estão a construir e os poucos que se estão a vender.
A próxima crise aqui é facilmente previsível, não há que ficar preocupado. Ela vai chegar em breve. O Brasil não fez nenhuma das reformas de que desesperadamente necessita para deixar de ser o país do futuro, de modo os ciclos de boom and bust que sempre caracterizaram a sua economia vão continuar. E não será Dilma - a mais do que provável vencedora das próximas eleições - que vai mudar. Ou pelo menos mudar para melhor.
A Superclínica é barata ("popular"), já por aqui o disse; e a minha aposta na qualidade dos médicos - para quem se lembra, que não deve ser muito diferente de uma clínica cara para esta - parece ganha. Ainda bem: se tivesse de ir a uma das clínicas menos populares a cavalariça teria sofrido um bocadinho mais, ou mais tempo.
A qual cavalariça no fundo tem feito o seu dever: retribuir as atenções todas que recebeu. Os índices da coisa têm estado dentro dos parâmetros normais (ou seja, nem pré-diabético sou, que chatice. Que será o meu futuro?) perco peso mas devagar, muito devagar, e lá vou bebendo um copinho de vinho de vez em quando.
Basta pôr o cavalo na ordem para que tudo entre na linha.
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A Cidade Ocupada enriqueceu-se com uma exposição de fotografia. Quem quer traz as suas obras e expõe-as num varal.
É bonito e uma vez mais surpreendente, antinómico. Enfim, uma antinomia mais, numa cidade rica delas. Entre a beleza da cidade e o seu estado de degradação, entre a qualidade dos seus artistas e a dos políticos que a governam ou para isso concorrem, entre a beleza do que se vê e o cheiro, entre a simpatia das pessoas e a maneira como a cidade se esconde - nisso parece-se com Lisboa, uma espécie de matrioska urbana, uma cidade dentro de outra que esconde outra que acolhe outra e assim por diante -.
Na verdade parece-se com Lisboa em muitas coisas - tanto nas boas como nas más.
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Por falar em qualidade dos artistas: ontem fui ao Espigão (um quebra-mar atrás do qua pretendem fazer uma marina e que eu penso continuará um quebra-mar sem marina por muitos anos, porque esta baía se não for dragada - e já agora se não fizerem qualquer coisa naquilo que está a provocar o seu assoreamento, o dique do Bakanga - qualquer dia nem na maré cheia se nela navega).
Sessão de música ao vivo. Vai haver em breve um festival de música algures o Brasil e seis bandas do Maranhão foram seleccionadas "entre mais de mil", diz com justificado orgulho o jovem e talentoso trompetista, para ir lá tocar. Acontece que o Estado não deu ou ainda não deu "apoios" (entre aspas porque começo a ficar com arrepios cada vez que oiço esta expressão, e aqui oiço-a como se fosse um relógio a marcar segundos) pelo que resolveram - aqui interrompo: "trabalhar", diz uma voz feminina da assistência quando o jovem trompetista diz - "se virar".
Não ouvi todas as bandas - depois chegaram pessoas que conheço da Cidade Ocupada e fiquei na conversa - mas o que ouvi explica com facilidade porque foram seleccionadas aquelas.
Música soberba - rock, para variar um pouco - escorreito, bem feito e bem tocado, num ambiente lindo e cheio de vento.
Alísios (não sei de onde vem a grafia com i, penso sempre em alíseos. Porque será?). Portugal tem os alísios portugueses (a nortada) mas eu gosto mais destes, os verdadeiros, que vêm de longe e tanto fizeram pelo mundo (os nossos também, verdade seja dita. Mas estes são ... sei lá, são os verdadeiros, os alísios sem qualificativos, sem mais nada alísios. Até a palavra é bonita).
........
Conheci uma jovem arquitecta portuguesa - não sei porque insisto tanto no jovem, neste país toda a gente o é, até os velhos, até eu - que está cá há dois anos. Está a ficar preocupada com a quantidade de prédios que se estão a construir e os poucos que se estão a vender.
A próxima crise aqui é facilmente previsível, não há que ficar preocupado. Ela vai chegar em breve. O Brasil não fez nenhuma das reformas de que desesperadamente necessita para deixar de ser o país do futuro, de modo os ciclos de boom and bust que sempre caracterizaram a sua economia vão continuar. E não será Dilma - a mais do que provável vencedora das próximas eleições - que vai mudar. Ou pelo menos mudar para melhor.
Palavras, futuro, música
As palavras sentam-se nas margens do silêncio e vêem-no passar. Refugiam-se no vento, que as acaricia; e na noite, que as acolhe; no mar para o qual ao longe olham; na música intemporal e silenciosa de Béla Bartók.
O futuro espera por elas, mas o futuro não é fiável.
O futuro espera por elas, mas o futuro não é fiável.
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