30.6.16

Diário de Bordos - Lisboa, 30-06-2016

Ontem fui à inauguração do MAAT. A julgar pelos fotógrafos, cameramen e semelhante a fauna presente era do topo da pirâmide. Reconheci um antigo político, um senhor cujo grande mérito foi ter instituído uma taxa sobre o equipamento electrónico.

Havia quatro exposições, todas elas bastante boas - sei que uma mostra é boa quando está cheia de peças de que não gosto e mesmo assim lhes reconheço o valor -; mas a minha favorita foi Lightopia, cujo tema é a iluminação. Vasta, pedagógica, com um leque bastante alargado de subtemas. As outras têm aquela estranha característica da arte moderna: fazem coabitar lado lado a lado coisas totalmente desinteressantes com peças bonitas ou estimulantes ou os dois. Li recentemente uma entrevista do senhor que vai dirigir o museu e esta visita confirma o que então pensei: o homem sabe do que faz.

Tal como se confirma a minha indiferença face ao "topo da pirâmide". Um gajo vale pelo que sabe, não pelo nome que tem, o cargo que ocupa, a massa que tem no banco ou qualquer outro critério. A hierarquia do saber é a única que respeito. As outras são ar quente.

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Porcaria do Ménière não me larga. A continuar assim logo não poderei sair de casa. A doença mete nojo, é desprezível, uma traição. Ontem acordei assim e fui melhorando ao longo do dia. Espero que hoje aconteça o mesmo.

De momento faço como se tudo não passasse de uma ilusão. Ou melhor: tento fazer.

29.6.16

Receita - Chilli con Carne

Hoje fiz um chilli con carne. Acabo de o provar e parece que ficou mais ou menos.

Foi assim, mais coisa menos coisa:

Refogar cebola, pimentos e algumas malaguetas (se alguém souber onde comprar jalapeños em Lisboa agradeço a dica);
Numa frigideira à parte fritar a carne;
Ao refogado acrescentar tomate e deixar cozer um bocado;
Findo o qual se lhe junta a carne e as especiarias:
- Paprika;
- Cominhos;
- Coentros em pó;
- Orégãos;
- Pimenta (e sal, claro);

Pôr bastante água e deixar cozer cerca de quatro horas, a lume baixo.
Quase no fim juntar uma cerveja e um pouco de feijão encarnado.

Idealmente servir no dia seguinte, se lá chegar.

Que grande maçada!

O problema disto tudo é que o mundo não pára. Lamentavelmente continua a girar e o tempo com ele. Pode um gajo estar cansado, descobrir como descobri ontem que afinal as consequências da queda foram piores do que me haviam dito no hospital quando fui operado, ter vontade de reembobinar a cassette e pôr outra a tocar.

Não tenho férias agora. Deve ser isto que se designa por "uma grande maçada".

Diário de Bordos - Lisboa, 29-06-2016

Isto começa a ficar difícil. Passa das duas e meia da manhã e faz mais de hora e meia que espero a "análise do TAC". Talvez o termo não seja análise. Não me lembro. Estou morto de sono e de frio, cansado e os múltiplos furos resultantes das tentativas de extracção de sangue ainda doem. Tenho um cateter enfiado na veia.

Sentei-me na zona mais afastada da sala de espera, agora muito mais vazia e espero. Um grupo de ciganos discute futebol, duas jovens mulatas falam e sorriem sem parar desde que chegaram há mais de duas horas e um senhor branco faz uma cara de esfinge.

As urgências acalmaram bastante, mas apesar disso continuamos a esperar. Os nomes são agora chamados a um ritmo muito mais lento. Eu tento não abrir demasiado a boca quando bocejo por causa da dor.

Parece-me que o que me trouxe aqui melhorou mas não tenho a certeza. Não tarda meto-me num táxi e vou para casa. Venho buscar as análises do TAC amanhã, daqui a um ano ou antes de ir a enterrar. São-me completamente indiferentes.

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Foi exactamente o que fiz. Vim-me embora. Expliquei cordatamente (pelo menos a mim pareceu) à médica que ia para casa porque estava cansado, cheio de frio, farto até aos cabelos.

Seguiu-se uma pequena discussão a cujo teor poupo os leitores, coitados. Os resultados do TAC apareceram como por milagre - afinal não era deles que estava à espera mas sim da médica que me recebera e fizera todos aqueles exames -. A colega desta, com quem discutira os fundamentos da minha decisão estendeu-mos como se me estivesse a dar uma brasa.

É em casa que acabo este post. O TAC está em mediquês profundo mas parece-me que não tenho nada que não tivesse já.  A enfermeira tirou-me o cateter e o último penso.

Amanhã é outro dia e eu outro homem.

Diário de Bordos - Lisboa, 28-06-2016

Regresso ao ponto de partida: Hospital S. Francisco Xavier. A sala de espera das urgências tem Wifi e este é potente. Já telefonar é outra história; falar com um médico outra ainda. Em 2006 aconteceu-me a mesma coisa, mas estava no Brasil. Queria falar com um médico do Egas, que era então o meu hospital. Levou uma semana e duas fortunas - quem conhece o Brasil sabe o preço das telecomunicações, ainda para mais em roaming -. A história dos telefones é gira, mas pouco interessante. Acontece em todas as áreas de todos os departamentos de todas as instituições: importa mais o que parece do que o que é. Um gajo leva para casa um papel com quatro números de telefone e dois de fax, mas passa mais de dez minutos até ter alguém do outro lado da linha; e quando fala é para ouvir que o melhor é ir ao hospital.

Um gajo vai, claro. Por muito que deteste hospitais e estar doente e pense que um telefonema de dois minutos com um médico talvez resolva o assunto.

Enfim, ¡qué vaya! Estou de novo neste magnífico observatório de antropologia, sociologia e psicologia que é a sala de espera das urgências de um hospital, relativamente convencido que não tenho nada de grave excepto o facto de o telefone estar quase sem bateria.

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Verdade que os últimos dias foram de disrupção. Uma avaria na carcaça e o mundo pára, hesita, gira para um lado, gira para outro... A culpa está na transição, claro. Na mudança. Hoje pus os relógios todos à hora: fiz uma lista dos comboios todos que andam por aí perdidos, não fossem eles perder-se de vez.

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Tirando este pequeno incidente tudo bem: o país continua igual a si próprio. Um gajo telefona para quaquer sítio e dizem-lhe para mandar um mail. Manda o mail; não respondem; volta a telefonar; dizem para reenviar o mail; reenvia o mail e acaba a explicar tudo ao telefone. Dizem que estão muito ocupados. Pudera. Uma coisa que se pode resolver em cinco minutos leva três semanas só para voltar ao estádio em que pode ser resolvida em cinco minutos.

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Um autor de ficção que procure nomes para as suas personagens não perde nada em passar umas horas numa sala de espera de um hospital.

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Mais um atentado terrorista na Turquia. Não sei se foram os curdos se os islamistas. Tinha uma enorme simpatia por aqueles, mas ser forçado a fazer este género de associações dissipa-a por completo.

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O debate político português é uma espécie de concurso para saber quem é pior: se os nossos filhos da puta se os do outro lado da barreira. Um gajo recebe um subsídio indevido. Em vez de se discutir os subsídios e o governo que queremos contrapõem-se os gajos do outro governo que fizeram a mesma coisa, ou semelhante. Encolhem-se os ombros, diz-se "São todos o mesmo" e continua a votar-se no clube de sempre.

Entretanto "os mesmos" vão continuando a servir-se tranquilamente, certos de que os sócios do seu clube estão mais preocupados em encontrar culpados no clube oposto do que em punir os do deles.

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"Encontrei o amor da minha vida", diz um senhor no Facebook. Ainda estou à espera de ler "Encontrei o amor da minha morte", que é o que deviam dizer. "Encontrei uma pessoa que me fará morrer se não me amar".

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Exames e mais exames. A noite continua e a mágica é igual: dois mundos paralelos, o exterior e o interior de um hospital público.

Com a notória excepção das senhoras que tentaram tirar-me sangue. Conseguiram, mas fizeram aqueles gajos que abrem buracos nas ruas com martelos pneumáticos passar por estátuas de sal.

28.6.16

Descoberta do dia

Tisana de gengibre e menta.

27.6.16

Comparações

Ler quem sabe escrever é um prazer apenas comparável a escrever para quem sabe ler.

Multi-resistências

Não sei se deva temer mais as bactérias multi-resistentes do hospital se o meu optimismo, muito mais resistente do que elas.

Uma lauda ao SNS

A história é longa e vou cortá-la em pedacinhos pequenos. No tempo em que eu tentava viver no planeta Terra vivia em Genebra, uma cidade que está muito longe de ser o cemitério que parece ser. (Estava. Parecia. Hoje não parece e continua a não ser).

Tinha um seguro de saúde que me dava acesso aos hospitais privados, quartos individuais e outras coisas do género. Um dia resolvi fazer uma operação ao septo nasal, que sempre tive torto e me impedia de respirar normalmente. Perguntei a quem sabia o nome de dois ou três otorrinos de confiança, mas estavam cheios até às calendas; os dois ou três seguintes idem. Quando me aborreci de telefonar aos nomes que me recomendavam - a resposta era sempre a mesma - mudei de estratégia. Peguei na lista telefónica e comecei a chamar todos os otorrinos da cidade por ordem alfabética.

A primeira que tinha vaga imediatamente estava na letra H, creio.

Se não era devia ser. H de horror. Passei por vários episódios giros e cheios de piada com a senhora - um dos quais foi ela ter provocado uma hemorragia durante a operação que se viu aflita para controlar e acabou por não fazer nada no septo, que ficou tal e qual -; os outros foram variados. Sei que quando chegou a vez do Ménière eu já não estava muito interessado. Ela receitou-me uns comprimidos que não serviram para nada e deixei de tomar relativamente depressa, a primeira fase da doença passou - é a pior - e pronto. Tudo seguiu o seu curso. De vez em quando lá tenho uma crise, mas nem a frequência nem a intensidade são suficientes para me aborrecer muito ou fazer tomar atitudes drásticas.

Hoje a jovem, bonita, desempoeirada (é tão bom ouvir alguém tratar-nos pelo primeiro nome) e competente senhora que me recebeu mudou completamente o rumo da coisa. Em Setembro vou, imagine-se, fazer uma bateria de testes para tentar perceber um pouco mais desta porcaria.

O Serviço Nacional de Saúde é uma maravilha. Só é pena é a saúde privada não ser mais acessível para que a espera no SNS seja mais curta. Devia democratizar-se o sector privado ainda mais do que já está. Afinal de contas, tesos como eu somos cada vez menos.

E cada vez mais velhos, verdade seja dita. Daqui a dez anos a espera será muito mais curta do que é hoje. E as médicas continuarão - aposto - jovens, bonitas, desempoeiradas e competentes. De dar vontade não de se estar doente mas de nos curarmos.

Isto sim é patriotismo

Tenho ouvido falar da fuga de médicos para o estrangeiro. Espero que a otorrino que esta tarde me atendeu não fuja se não para um par de braços nacionais, ainda que não seja eu o sortudo dono desses braços.

Ver Lisboa

Lisboa não se dá a ver. Des-cobre-se - em todos os sentidos. Ela descobre-se e dá-se a quem a sabe querer; e é preciso descobri-la: despi-la, percorrer-lhe as ruas como se despe uma senhora pela primeira vez, com olhos de ver e mãos de sentir.

Porque em Lisboa tudo é sempre a primeira vez. Anda-se uma rua mil vezes e é como se fizéssemos mil ruas.

25.6.16

Esparta também perdeu

Esta coisa frágil e falível que sou eu dentro de mim e para quem tão pouca paciência tenho.

Dou-lhe mais mimos do que os que de mim levo; oiço-a atento como se a amasse e faço-lhe quase todas as vontades.

Quase todas: a doença é uma ditadura e como a todas as ditaduras há que desobedecer-lhe. A fragilidade não deve vencer.

Dá volta, devagar

Vamos aproximar-nos devagar, queres? Como um navio que lentamente se aproxima do cais. Lança os cabos para terra mas não os tesa. Deixa-os brandos e continua a manobra.

Devagar. Um arco de círculo perfeito. Quando está suficientemente próximo começa a virar os cabos. De repente está em posição. Da ponte alguém diz "faz fixe". E depois, "dá volta à manobra".

Devagar. Faz fixe. Dá volta. Estamos no lugar.

Imagina que os cabos são palavras. Deixa-as brandas. Lentamente começa  a virá-las. Primeiro os lançantes,  depois os traveses. Os springs são os últimos. Vira o lançante de ré. Tesa o través de proa. Faz fixe. Dá volta à manobra.

Devagar. São as palavras que nos levarão ao lugar. São elas que nos comandam. Um navio atraca sempre contra a corrente.

Passa os cabos. Ouve. Vou dizer-te devagar. Vou amar-te devagar. Contra a corrente.

Deixa-as tesas mas não muito por causa das marés. As palavras precisam de alguma folga, como os cabos. Se as tesas demais, se lhes tiras a folga rebentam. Dois corpos, duas vidas precisam de espaço. Lentamente, como as marés, como um navio atraca, como tu sorris.

Deixa as palavras levarem-nos ao lugar. Elas sabem de onde somos, para onde vamos.

Devagar.

Teimosia, estilo

Levanto-me regularmente. A duração das vertigens reduz-se de hora para hora. Tenho uma relação infantil, birrenta com a doença. Não vencerá.

Como se bastasse dizê-lo, não é? Talvez não seja suficiente, mas necessário é. Ter a teimosia como aliada dá uma vantagem não negligenciável.

E ainda há quem a veja como um defeito.

Pode, acontece frequentemente, perder-se por teimosia, é certo. Chama-se "perder com estilo".

Carcaça

Não deixar que descanso seja tomado por abandonar a luta. A doença, essa puta oportunista tem de sentir que há uma resistência do outro lado, que o terreno não é todo dela. Por muito infantil que pareça, acreditar na vontade. Não se deixar ir.

A carcaça agradece.

24.6.16

Diário de Bordos - Lisboa, 24-06-2016

Foi no hospital que recebi a notícia da saída do Reino Unido da UE. Não é o melhor sítio mas é a melhor forma: filtrada pela dor, pelo desconforto e pela noção (perpétua surpresa) da nossa fragilidade a saída ou permanência adquire aquela que talvez seja a sua verdadeira relevância: pouca. Que me interessam os ingleses se tenho a cara meio desfeita (é um exagero. Já não está) e a braços com uma crise de Ménière ( é um understatement. Foi - ainda é - dura)?

Mas passando este pequeno limiar egocêntrico e saindo para o lado de lá: tinha a secreta esperança de que o Cameron ganhasse. Acho que ao submeter-se a um referendo tomou a decisão certa e honorável. Democracia é dar às pessoas a possiblidade de se enganarem. Só nas ditaduras alguém sabe o que é bom para todos - e todos acabam pior, com a notória excepção de quem decide, claro -.

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Fui parar ao hospital por causa de uma queda da bicicleta mas não sei o que a provocou. Ou a Ménière ou um buraco (e neste caso a crise foi uma consequência). Não houve interferências externas, sejam elas líquidas ou sólidas.

Os hospitais portugueses  (estive em dois desta vez e em três ao todo, o que não é representativo) mostraram uma vez mais que são excelentes. Falham num ponto: por vezes é preciso um pequeno empurrão para os pacientes serem ouvidos.

Desta vez essa tchova foi dada pelo meu amigo Henrique V. D., a quem deixo aqui expressa e pública a minha gratidão e - como se fosse preciso! - a minha amizade.

Amizade e gratidão essas que se estendem à Ana Isabel e filhos, que me acolhem em sua casa com uma paciência e uma generosidade que me fariam chorar se eu fosse dado a choros. Sou e fazem.

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Agora resta esperar que o senhor Ménière vá dar uma volta ao bilhar grande e por lá fique muitos anos.

(Já está a afastar-se. Nada de aflições).

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Sou um homem cheio de fragilidades. Uma delas é pensar que venho do planeta Kripton. Não venho, sei-o há muito tempo. Dispenso memoranda.

Erratum: Ménière e não  Meunières. Há muito tempo que não me preocupava com isto.

23.6.16

Oiça um bom conselho

Continuo a não seguir a sábia injunção do Ricardo A.: falar apenas dos maus restaurantes. Tenho atenuantes: em primeiro lugar ninguém com juízo lê o que escrevo; em segundo, o sítio já está sempre cheio, dispensa-me bem.

Chama-se Menina do Rio, fica em Alvalade (à frente do mercado, do outro lado da rua), é minusculo em tamanho e nos preços e maiúsculo em qualidade, quantidade e simpatia. Hoje comi lá um pernil no forno que "mais [parecia] um presunto", como disse a minha vizinha de mesa. Delicioso, acrescento eu já que disso não podia a senhora falar, coitada. Não o provou.

Eu provei e mais: devorei-o todo, deliciei-me inteiro.

Que viva a Menina do Rio e não se metamorfoseie nunca em senhora.

Um amor de gramática

És uma aliteração, um gerúndio, imperativo, futuro anterior e indicativo do presente, verbo de dizer e tocar, verbo de percorrer e conjugar em todos os tempos, todos os modos. És um amor de gramática e a gramática do amor. Artigo definido, indefinido, complemento directo e indirecto, sujeito e predicado, advérbio e preposição. És as palavras todas feitas uma, léxico novo da língua mais bela do mundo.

Diário de Bordos - Lisboa, 23-06-2016

Foi um daqueles dias de sorte: tudo estava bom ou quase; a companhia era excelente; os vinhos idem; não estava calor nem frio antes pelo contrário.

Devido a um esquecimento meu - coisa que raramente acontece mais de dez vezes por dia - o frango com molho de tahini foi substituído por frango com gengibre em leite de coco. O resto ficou igual. A beringela, uma receita sugerida pela Tatiana, italiana de gema, beleza e gosto ouviu muitos elogios. O resto também, mas esses foram mais devidos à simpatia das adoráveis pessoas que compunham o grupo, suponho. Ou não suponho. Sou péssimo crítico e pior ainda auto-crítico. A verdade é que gostei muito desta maratona e fiquei com vontade de fazer mais. O resto é conversa para encher chouriços.

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Entretanto lá vou aterrando, meio aterrado meio espantado meio resignado. A lentidão e a falta de profissionalismo mudaram tão pouco como a beleza da cidade ou a luz: nada. Os portugueses continuam a tratar o tempo como se fossem donos dele; seria belo e poético se não tivesse as consequências que tem.

É como tudo: basta estar do bom lado da barreira e as vantagens aparecer-me-ão, claras e irrefutáveis como a erupção de um vulcão.

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Não sei esperar, excepto quando cozinho. Ou passeio pelas margens do Tejo.

Ou penso na morte.

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A filha jovem de uma amiga brasileira morreu. Não imagino dor maior para uma mãe ou um pai do que perder um filho. Pensei nisso muitas vezes, quando os meus eram mais novos.

22.6.16

Lisboa

Como explicar a pessoas que vivem  isto todos os dias quão bom isto é?

Não é preciso. Elas sabem.

Alegria

Arrotear é uma palavra bonita. Imaginas um campo, um corpo. Imaginas outro corpo nesse campo, nesse corpo. Laborar lentamente, como os campos e os corpos devem ser

Tu és o campo e o arado eu. Tu és o que será e eu o que foi. Tu és e eu também: a meio da noite nos encontramos, surpresos como um tatu no meio da estrada: paralisados ambos na alegria da descoberta.

21.6.16

Capelinhas

Tenho com as capelinhas a relação que tenho com as igrejas: nenhuma.

Não é arrogância. É inabilidade.

Desescrever - II

Polir palavras é tão chato como polir aço inox.

Verão

Chega o verão e entranha-se-me pela pele como o delta de um rio em terreno árido.

Desescrever

Por razões que ainda não vêm ao caso tenho estado a editar o Don Vivo. A cada dia que passa as perplexidades empilham-se como livros nas estantes dos "não lidos".

Em primeiro lugar as correcções são tantas que um gajo é obrigado a perguntar-se como é que alguém pôde achar aquilo bom; depois, mais ou menos relacionada, são tantas as correcções que sou obrigado a perguntar-me como tive coragem de pôr aquilo em linha; e assim por diante. Não sabia que um texto podia ter tantos erros, tantos como os amigos nas esquinas de Grândola.

Hoje dizia que editar os textos que escrevemos é como tentar transformar em círculos elipses imperfeitas. Puxa-se de um lado estraga do outro. Cada vez admiro e invejo mais os escritores produtivos, fecundos, prolixos: eu por cada palavra que escrevo tenho de apagar duas. Isto para não falar das vírgulas, claro. Mais do que servir o texto serviram - parece-me - para me relentar quando escrevia.

20.6.16

Escolhas

Magra e vivida, como se fossem coisas que podes escolher.

Não podes.

Ruas, peles

Também me perco nas ruas do teu corpo, do teu olhar.

As ruas da pele são as melhores. 

19.6.16

Proporções

A alegria está para a felicidade como a percussão para a bateria.

Em favor da pena de morte

Aonde devo dirigir-me para solicitar a proibição absoluta e sem excepções do termo parabenizar, quando escrito em suportes portugueses por portugueses ou assimilados?

Beleza, ingratidão

Só,  divago nas ruas da beleza. Nas ruas, travessas, praças, largos e becos, avenidas e boulevards. Perco-me nas ruas da beleza. Como um adolescente espantado descobre o primeiro seio, como um homem descobre que é frágil.

A beleza é isso: um espanto e uma fragilidade. Uma cidade na qual me perco, na qual me dissolvo. A beleza é isso: uma solidão que se ignora. Descubro-a num poema, num rosto, numa amizade, no corpo esguio da mulher que ao meu lado joga xadrez com bocados de papel a fazer de peças, na memória de um corpo que amei ou amarei.

A beleza é esta constância, esta permanência, esta ausência: perdido e preso, livre e surpreso.

Sou pobre e sou rico à vez. Depende da hora do dia. Sou tudo e o seu contrário: alto e baixo, gordo e magro, feio e bonito. A única coisa que fica - é pouco, bem sei - é isto: perder-me sozinho nas ruas da beleza. Todas.

E ser feliz com isso.

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Não é pouco. Sou ingrato, sei. Não acredito em deuses e de anjos só sei o que leio ou vejo no cinema. Acredito na beleza, no prazer solitário de ouvir o Gonçalo no café Tati, na sorte que tenho: poder perder-me nas ruas da beleza e não precisar sequer de me encontrar.

Pouco importa

É como ter-te amado: o problema foi começar.  Agora não sei desamar-te e mesmo que soubesse pouco provável seria que o quisesse. Talvez. Pouco importa: o problema não se põe.

Imagina um comboio nos carris, os boogies a fazerem aquele barulho ritmado, condutor atento ao caminho. Ba-dam ba-dam; ba-dam ba-dam.

Não é isto. Pouco importa. O comboio não vai parar tão cedo. Concentra-te no essencial: respirar. Ver com olhos de ver. Ouvir.

Tudo começou com a história de um bêbedo que morreu duas vezes e acabou com outro que nunca viveu. Importa pouco. Ver, respirar e ouvir não têm passado. Não podes respirar ontem, ouvir-te antes de ontem, ver-me. Mesmo que o quisesses.

É difícil desamar alguém. Requer treino e persistência. E tempo, claro. Vontade. Um sem fim de coisas para te desamar simplesmente e te desamar, simplesmente.

Arar-te o corpo fértil e feliz. Desamar-te. Pouco importa. Ponto final.

Palavras, pessoas

Falo tanto de palavras, não é?, e tão pouco de pessoas. Hoje descobri uma pessoa. Isto é: uma soma aleatória de passado, futuro, qualidades e defeitos, risos e coisas que se intuem ou se dão a ver - uma vida que não se vê é uma palavra que não se ouve -.

Descubro uma pessoa e descubro-me nela. Talvez seja essa a definição de pessoa: alguém que nos ensina algo sobre nós próprios. Talvez. Há livros, palavras coisas momentos que nos ensinam montanhas sobre nós próprios e não são pessoas.

Pessoa é quem nos arranca palavras em troca de um olhar ou nos cede mistérios como quem distribui confetti num desfile de Carnaval.

Uma palavra é um hiato entre dois silêncios;  uma pessoa um silêncio entre dois olhares.

Tenho sorte. Vivo num país onde não sou obrigado a escolher entre as palavras e as pessoas.

18.6.16

Táxis, Uber e eu

Na guerra dos taxis contra a Uber há um aspecto que tem sido injustamente pouco mencionado: as respectivas relações com os ciclistas. Acho profundamente injusto não ouvir um único piropo vindo de um chauffeur da Uber - não se distinguem dos outros condutores, a menos que a Uber também utilize carrinhas (vulgo vans) - e não passar uma hora sem receber as diversas provas de carinho dos taxistas.

Enfim, não tão diversas. "Sai da frente, caralho"; "levanta o cu, caralho"; "lá me saiu mais um destes caralhos": os senhores dos táxis têm uma fixação num determinado órgão.

Há poucos prazeres no ciclismo urbano que se comparem a estas manifestações  de ternura, boa educação e civismo. A Uber devia ensinar os seus condutores a seguir o exemplo dos taxistas sob pena de descrédito total.

17.6.16

Batalhas, vírgulas

Releio o post anterior e penso que escrever, mais do que "uma faxina, um vómito" e por aí adiante é uma batalha perdida contra as vírgulas. São como loiça suja: nunca acabam, por mais que as limpemos.

Reedição editada bis - Escrever

      Já não sei a que língua pertenço, a que país. Escrever é como procurar o melhor itinerário nas ruas de Genebra, actividade à qual me dedico todos os dias, montado numa scooter velha. Cá estou: outra vez entre duas vidas, dois países, duas ou três línguas e uma incalculável quantidade de paisagens, geográficas ou emocionais, pelas quais fui desde sempre atraído e das quais fui sempre fugindo, umas vezes voluntariamente, outras não.
       Escrever é como percorrer as ruas frias, feias e pouco convivais de Genebra sem um mapa; a cada esquina um precipício e indescritíveis monstros, disfarçados de polícias. Mas os caminhos da escrita são mais bonitos e há mais palavras do que ruas, o que torna o exercício cativante, se bem as punições sejam piores: não há multa que pague uma frase mal escrita, uma palavra mal escolhida, uma analogia deselegante, uma vírgula fora do lugar.
       Do francês, Cioran dizia: “esta língua de empréstimo, com todas as suas palavras pensadas e repensadas, afinadas, subtis até à inexistência, dobradas sob as exacções da nuance, inexpressivas porque já exprimiram tudo, assustadoras de precisão, discretas até na vulgaridade... Uma sintaxe duma rigidez, duma dignidade cadavérica encerra-as e atribui-lhes um lugar do qual nem Deus as poderia desalojar”.
       E depois desta descrição da língua francesa, a melhor que alguma vez li vem: “A pátria não passa de um acampamento no deserto, diz um texto tibetano. Não vou tão longe: trocaria todas as paisagens do mundo pela da minha infância”.
      A verdade é que eu não sei a que chamar, realmente, “a paisagem da minha infância”: será a Linha de Cascais e a Marginal, esse cordão umbilical que sempre me ligou a Lisboa e onde, ainda hoje, me acontece chorar quando vejo o sol pôr-se atrás do farol da Guia e a luz tornar-se espessa e dengosa e cor-de-laranja como uma mulher das ilhas? Ou será Quelimane, em Moçambique, com aquelas intermináveis filas de coqueiros, onde sonhei as minhas primeiras aventuras sentado na mangueira ao lado de casa, a encher-me de mangas verdes com sal porque era o título de um livro de poesia (de um poeta que só muito mais tarde vim a conhecer e apreciar)? Ou ainda, esticando um pouco os limites da infância, Lourenço Marques, cuja baía conheço como as minhas mãos, onde a adolescência me apanhou e com ela as primeiras dores de amor, imediatamente diluídas em Nietzsche e em whisky? Onde é o país da minha infância?
      Percorro as ruas de Genebra montado na minha scooter e tacteio o meu caminho através da escrita, tarefa nobre mas fastidiosa. Penso em todas as coisas que escrevi e deitei fora, porque não sabia, só hoje sei, que escrever é um castigo, uma faxina, um embaraço. Pensava nessa altura que cada frase devia ser sublime imediatamente porque no fundo sou preguiçoso e não há nada que mais tema do que a lassidão. Hoje sei que não é verdade, as palavras vêm como vómito e depois é preciso limpar tudo, cada sílaba, cada gaveta, cada prateleira, cada canto do espelho - porque escrevemos e vomitamos sempre à frente de um espelho, numa tentativa - falhada - de nos desgostarmos de nós e da escrita para sempre.
      Hoje, montado na scooter, não são as ruas de Genebra que eu vejo: são as inúmeras avenidas, ruas, becos, auto-estradas, por onde andei ao longo dos anos, labirinto sem fim cujo ponto de chegada é, inevitavelmente, o ponto de partida; e onde não há polícias para nos castigar – só as palavras e a morte, porque uma vida perdida é uma morte antecipada. E é dessas ruas, avenidas, becos sem saída, carreiros e caminhos de cabra que quero falar, um pouco como um arquitecto que fizesse os planos da casa depois dela construída.

Reedição editada - Um homem

Um homem procura, perde, ganha, empata, bate com a cabeça nas paredes, parte paredes e parte a cabeça, encontra saídas e mete-se em becos sem elas, encontra quem o ama e perde quem ama, bebe de mais ou de menos e come idem, tem dias lindos de morrer e morre por dias feios, é feliz, infeliz, triste, alegre, melancólico, empatiza, antipatiza e simpatiza, descobre saídas dos becos e portas onde antes só via paredes.

Um homem é um homem, não é um gato.

Um homem sofre, des-sofre, maravilha-se com uma paisagem, um seio, um sorriso, um livro ou um poema, sabe que vai morrer e sabe que tanta tristeza e tanta felicidade não morrem, que um dia de sol vale dez de chuva e um de chuva dez vidas, duvida de si, dos outros, do sol e dos planetas e sabe que um bom picante num guisado trata todas as dúvidas, tal como um dia de vento trata azias, reumatismo, dores nos ouvidos, problemas de articulações, unhas encravadas, vinho estragado ou intoxicações alimentares.

Um homem não é um gato. É um homem.

Um homem sabe que não há melhor mistura de cores do que o azul marinho e o azul celeste, mas por vezes cede e aceita um bocadinho de verde entre os dois. Um homem gosta de mulheres, de uma mulher e de tudo o que fica entre elas.

Um homem é frágil, porque nada é mais resistente do que a fragilidade de um homem.

Um homem acerta, falha, falha bem e acerta mal, é deus, diabo, anjo, anjinho e tudo o que há no meio, é bom, mau, mediano, tem sorte, azar e azar e sorte ao mesmo tempo, aprecia o silêncio e gosta do barulho, sabe que hoje ontem e amanhã são tão diferentes entre si como ele é do que era ontem e será amanhã, sabe que hoje o mar está calmo e amanhã não, que o sorriso daquela mulher vale as horas todas do mundo ou não vale um segundo, que tudo é, não é e é outra vez como num carrossel. Um homem sabe que o bem e o mal são as duas faces da moeda desequilibrada que lhe saiu na rifa e que querer mudar essa moeda ou mudar-lhe a face é como querer escolher o tempo que vai fazer amanhã.

Um homem é um homem. E é tudo o que um homem é.

(Com um obrigado grande ao R. A., que por vezes me faz acreditar em sonhos).

As moradas de Deus

Recentemente misturei num post Deus, Mallorca e sobreasada. A mistura não estava errada; meramente incompleta. Ora venham à Merendinha do Arco e digam-me se Deus não mora aqui também. Mora, claro. Deus mora onde se come bem, onde se ama (bem ou mal, pouco importa), onde se é feliz (muito ou pouco), onde se espera e alcança.

Já o desespero e o mau vinho são obra do diabo, mas isso fica para depois.

16.6.16

Diário de Bordos - Lisboa,16-06-2016

(Chuva, balanças)

Chove e sais de ti. Vais buscar a bicicleta, comprar um computador portátil, pagar os óculos que encomendaste anteontem, por causa dos quais passaste uma hora com um gajo a escarafunchar-te os olhos como se fosses um nariz e ele um dedo, o teu dedo. Acaba-se-te a intimidade, as desculpas para não fazeres o que devias ter feito há dias. Como se um degrau mais tivesse saído da terra e o tivesses subido empurrado pela água.

Não deixas de pensar na nuvem de onde caiu a chuva, na maré baixa que em breve te baterá à porta, mas isso pouco interessa: não foi ontem que aprendeste a viver um dia de cada vez, ou a conciliar os dois pratos da balança.

Das balanças. São muitas.

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Os olhos estão bons, mas o jovem que mos inspecciona tão profundamente diz-me que devia começar a tomar comprimidos para que não piorem. "Sim; talvez", respondo. Nem para reparar o que está avariado os tomo facilmente...

Daqui salto para a conversa que tive com um médico espanhol em Moçambique sobre a profilaxia versus terapia da malária. Era um especialista e arrasou-me em aproximadamente dois segundos:

- Tudo o que dizes sobre a profilaxia é verdade. Mas se pegares em dois grupos de mil pessoas cada e a um fizeres profilaxia e ao outro fizeres apenas terapia terás mais mortos neste do que no primeiro.

Quase morri no hospital de Genève: não fiz nem um nem outro. Lidar com o corpo é uma complicação, uma ambivalência e eu sou um tipo simples, no limite do simplório.

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Dizia-me R. A. recentemente que não se deve falar dos restaurantes de que gostamos, sob pena de os perder. Está podre de razão, claro. Mas seria estultícia pretender que uma menção no coitado deste blogue tenha um impacto qualquer no que quer que seja; e estultícia ainda maior não o fixar para futuras referências (já o mencionei, creio, uma vez. Repetir a menção não é de mais). Chama-se Delícia de Arroios. Hoje comemos lá um polvo panado com açorda de coentros e um bacalhau à Minhota que me fizeram esquecer os olhos, os comprimidos e as ambivalências. Ou seja: devolveram à vida a sua simplicidade essencial.

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O humor português é mau. São poucos os humoristas que têm piada e menos ainda os que a mantém ao longo do tempo. Não é preciso pô-los na fogueira: eles imolam-se a si próprios.

Alguns em fogo mais lento, é certo. A bananeira dá mais sombra para um lado do que para outro.

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Não se deve perder muito tempo com o insignificante, o medíocre, o que não interessa. Cheira mal, é feio e rapidamente provoca urticária.

Nietzsche tem uma ou duas frases sobre isso (enfim, tem muitas sobre tudo). "Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se transforma ele próprio num monstro".

Devemos pesar as palavras: entre um monstro e um medíocre há um abismo. Ou uma montanha, se preferirem.

15.6.16

Diário de Bordos - Lisboa, 15-06-2016

Hoje choveu um bocadinho. Ia buscar a bicicleta mas a loja estava fechada e acabei - sem querer, claro - no El Corte Inglés.

Aquilo é uma desgraça. Tem produtos óptimos e baratos: sobreasada, por exemplo. Já por aqui lhe cantei laudas, uma das provas de que se Deus existisse moraria em Mallorca. E vinho e pâtés e chouriço de bolota e trinta por uma linha.

Lamento imenso o meu médico ser do SNS. Se fosse do sector privado poderia rapidamente ajudá-lo a acrescentar um quarto ou dois à casa de praia que provavelmente teria na praia de Moledo (é chic de mais para ir para a Comporta). Assim vou apenas contribuir para o buraco da Segurança Social.

Enfim, talvez não. Poupo no psiquiatra e nos anti-depressivos, muito mais caros do que sobreasada a treze euros o quilo ou vinho Portada a quatro a garrafa. A preços destes não há depressão que apareça. (O vinho é daqueles que se parecem com uma mulher bonita, tão bonita que não tem ponta por onde se lhe pegue. Mas que diabo, quem não gosta de dar uma volta de vez em quando com uma miúda linda e muda? Além de que acompanha bem os pâtés, estrangeirados eles também).

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Tudo acontece porém em câmara lenta, mortalmente lenta, como se alguém se tivesse esquecido do travão de mão, como se me tivesse esquecido de que estou em Portugal. Não esqueci. Não o conseguiria, mesmo que o quisesse: Lisboa corre-me nas veias e eu nas dela, feitos que fomos um para a outra. Todos os dias nos injectamos mutuamente.

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Daqui a um ano parecer-me-á que foi rápido, mas quanto tempo falta para daqui a um ano?

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Vou dizer poesia no Festival Silêncio. Recebi hoje a confirmação. Ninguém sabe a luta demente que travei com a timidez, com a dificuldade de falar em público.

Devo o prazer que agora tenho em dizer poemas para outros ouvirem ao meu amigo Celso Borges, um amigo de coração, de vinho e de poesia.

Não sou grande fã do Brasil, mas sou-o dos meus amigos brasileiros; de todos e do Celso em especial. Um dia ele virá a Lisboa e eu direi "Eis Celso Borges: poeta, músico e homem capaz de tudo, até de me pôr a falar nas ruas".

(E do Riba. Um homem que tem uma livraria chamada Poeme-se deve ser objecto da admiração toda de toda a gente. Aqui fica o meu abraço aos dois. Um dia far-vos-ei conhecer Lisboa como se cá tivessem nascido, meus irmãos).

14.6.16

Regras básicas

Apresentação de um livro num dos sítios mais bonitos que conheço em Lisboa. Quem me critica por hesitar tanto em publicar o que escrevo esquece um preceito básico da vida em sociedade: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.

Perenidade

Há um aspecto chato na felicidade: um gajo feliz está sempre à espera de que aquilo acabe; ou de ter de o pagar muito caro, um dia.

Um gajo infeliz sabe que nunca deixará de o ser.

Regresso, verbo

No princípio não era o Verbo, pá. Enganas-te redondamente. Zero. No princípio era o silêncio.

E a ele o Verbo deve regressar.

Horas

"Que devagar passem as horas
Como passa um enterro.

Chorarás a hora que choras
Passará demasiado depressa
Como passam todas as horas"

Guillaume Apollinaire, in Alcools

(A tradução é minha, com tudo o que isso implica).

12.6.16

Lisboa, à espera

É domingo de Santos Populares e eu, pouco dado tanto a uns como aos outros refugio-me no Tati enquanto o Tabernáculo não abre. Vou assar sardinhas, febras, entremeada e coiratos. Até lá bebo vinho branco, leio Nuno Júdice e olho para o calor que invade a rua, para a luz que o provoca - o céu está azul claro, as telhas do mercado encarnadas como se estivessem em chamas, o alcatrão das ruas amarelo e as pessoas movem-se como se estivessem no fundo de uma piscina -.

A música do Tati é excelente, como sempre. Das mesas chegam-me pedaços de frases em inglês, português, francês ou espanhol. Não as oiço. Poisei o livro de Júdice para escrever e pensar - não sei se por esta ordem ou pela inversa - e olhar para a rua. Já uma vez comparei a luz de Lisboa à água de uma piscina (por causa da densidade, da espessura) e a analogia não é completamente tola. Vejo a luz e o calor como oiço as pessoas, peço outro copo de vinho, falo com a jovem que mo serve ou penso nos poemas que acabei de ler.

"Vou dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me. ..."

Ou:
"Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio
Suspenso dos gestos com que elas desenham
Cada objecto, cada pessoa, ou as próprias ideias
Que delas dependem. Por vezes, porém, as
Palavras são o seu próprio silêncio. Nascem
De uma espera, de um instante de atenção..."

Nuno Júdice é um dos meus poetas favoritos. Ainda bem que não sei escrever: se soubesse escreveria como ele e não teria graça nenhuma.

Os romances de Böll também falam nesta suspensão do tempo, neste aquário que a tarde parece, nesta solidão fundamental e impossível de resolver porque nasce do silêncio, esse silêncio ontológico, visceral, concreto que é o meu.


Não tenho dinheiro mas tenho sorte. Já me aconteceu o contrário: ter azar e massa ao mesmo tempo. Na verdade já me aconteceu quase tudo: ter azar e não dinheiro, sorte e tê-lo, amar e ser amado, amar e não o ser, ser e não amar.

Por isso acredito na lentidão. Por isso gosto da lentidão, do calor,  desta piscina na qual, perante os meus olhos perpetuamente surpresos, a vida se deixa viver, puta lassa à espera sem pressa de que o último cliente se venha.

Uma coisa simples...

Ausência

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a
Realidade aproxima-me de ti, agora que
Os dias correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice, in Pedro, lembrando Inês.

Lisboa é uma sorte, uma vida e uma festa

Se alguém tivesse dúvidas sobre a bondade da minha decisão de viver em Lisboa devia ter-me acompanhado ontem.

Lisboa é uma festa e eu todo sou gratidão: ao H. e à sua maravilhosa família, ao Tejo e ao vento e - porque não dizê-lo? - à vida, da qual não me canso, não há maneira, por mais tropelias que ela me faça e rasteiras me pregue.

Por muito teso que esteja - e estou - tenho sorte. Não há maior antídoto para a pobreza do que a sorte. Ou a amizade,  uma das suas consequências.

(Para o H. et al. com um abraço).

11.6.16

Diário de Bordos - Lisboa, 11-06-2016

Ontem tentei ver televisão mas fiquei desiludido. Pensava que com a mudança para o cabo e as caixas e o diabo a sete se teria, finalmente, acesso a uma quantidade ilimitada  (ou lá perto) de bons filmes e que o único embaraço seria a escolha.

Não é assim. Há mais embaraços do que filmes decentes. Começa por ligar o aparelho - tenho de perguntar à dona da casa como se faz - e acaba como as minhas tentativas de ver televisão sempre acabaram: perco mais tempo a aprender a navegar naquilo do que tenho paciência para o fazer.

Finalmente a tal escolha "ilimitada": um filme russo sem legendas e sem movimento (ao princípio pensei que fosse Manoel de Oliveira dobrado, mas depois vi que não: falavam muito. Uma frase - curta - por minuto, aproximadamente. Isto quando havia "diálogos") e uma americanada sem interesse de que infelizmente percebia o que diziam (e estava legendada).

Desligo a coisa, único momento agradável de toda a experiência. Para a próxima vou tentar ver séries.  Se ainda existir televisão, se não tiver sido substituída por outra tecnologia qualquer.

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Pouco a pouco o puzzle compõe-se. As bordas, como lhes chamava o meu Pai estão quase fechadas.

Enfim; não sei. A vida será um puzzle só com muitas áreas distintas ou vários com cores uniformes cada um? Talvez viver seja fazer paciências como quem toca bateria ou percussão: ao fim de muita pancada aparece a melodia.

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Pequeno passeio no Tejo, a bordo do FURANAI GE HUVAFEN (cito o nome porque o barco faz passeios no Tejo e é esplêndido), quinta ao fim da tarde.

A luz estava tão bonita que quase não via mais nada.

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Não gosto nada de escrever no telefone mas pelo menos reconheço-lhe as vantagens. É um método churchilliano: de duas frases a mais simples, de duas palavras a mais curta.

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Não tarda estou outra vez no Tejo. Ou ele em mim? Nunca saiu...

Tenho o Tejo em mim desde que em 1974 nele pus o meu Vaurien (chamava-se ADN), directamente do navio no qual viera de Lourenço Marques.

Oportunidades do zeitgeist

A ideia original era "abrir um albergue num sítio onde pudesse estar rodeada por animais" (a piada fácil seria perguntar-lhe porque os quer albergar também. Mas tendo passado tantas noites em albergues deixa de ser piada, passa a primeiro grau). Depois viu como é que os locais [o cenário é Belize] tratam os animais ("são coisas que se compram e vendem, não são parte da família") e a "Mãe Natureza" e o projecto mudou "lijeiramente" (o original inglês está cheio de erros). Agora vai ensinar os nativos a tratar de animais domésticos, construir casas com materiais  reciclados e por aí adiante. Como infelizmente os nativos tem de trabalhar para o "grande homem branco" uma parte dos lucros do albergue será para pagar um "salário" (entre aspas porque salário refere-se a trabalho e não a servir de suporte a fantasias) aos que se inscreverem no projecto.

Leio isto e parece-me ler um catálogo da ideologia colonialista do séc.  XXI. Está lá tudo: em vez de Cristo a Mãe Natureza, em vez dos infiéis os animais e em vez de roupa para cobrir as partes um salário. No papel de demónio o homem branco, naturalmente. A previsibilidade destes filmes faz parte do programa. O seu público não gosta de surpresas.

Depois desço à terra: afinal o oportunismo sempre se vestiu com as cores do zeitgeist. Se a miúda quisesse viver de difundir a fé cristã - ou, pior ainda - de pura e simplesmente explorar o potencial económico do Belize em seu proveito não encontraria quem a financiasse. Ou então teria de trabalhar, uma maçada.

9.6.16

À séria

Chega inevitavelmente o dia em que a realidade ganha. Trata-se apenas de não a deixar ganhar à séria, para sempre; e de nos lembrarmos de quando ela não tinha ainda pousado.

De quando podia oferecer-te flores. Não digo um ramo de flores tão grande tão grande que tu precisasses de um escadote para me ver por detrás delas e de uma grua para o pôr na jarra. Não, nada disso. Trata-se apenas de uma flor, uma só. Oferecer-te uma flor que resumisse na sua essência todas as flores que quero oferecer-te (e te oferecerei um dia), uma flor tão bonita, tão simples e essencial que bastaria tu olhares para ela um segundo e perceberias quanto, oh quanto, eu quero oferecer-te uma flor.

Chega inevitavelmente o dia em que a realidade ganha e as flores perdem. Não faz mal: não a deixarei ganhar à séria.

A puta generosa

Lisboa é puta; cara, daquelas de que hoje me falava F. C.: "os putos não sabem sequer o que uma puta é. Pensam que todas têm barbas até ao joelho". Ou que é barata porque olham para os preços que vêem e não para os que na realidade pagam, porque não percebem nada de putas. Lisboa é puta fina, daquelas que nos ensinam como é a vida e nos ensinam - ou ensinavam - a ser homenzinhos primeiro e homens depois, logo a seguir, sem tardar muito. (É por isso que os putos hoje são putos até tão tarde: não percebem nada de putas. Mas isso são contas de outro rosário).

Lisboa é puta fina. Ensina-nos o que é a vida até morrermos de exaustão. Pagamos-lhe caro, apesar de ela fingir que é barata. Sei do que falo: tenho cinquenta e oito anos, vivi em todo o lado e ainda hoje aprendo mais em Lisboa num dia do que em trinta noutro sítio qualquer.

Não me compete, claro, explicar tudo o que cada dia aprendo em Lisboa: não sou professor, sou aluno. Saí vós outros e aprendei também. Não perdereis nada: nem tempo nem dinheiro, quer os tenhais quer não. Porque Lisboa é puta fina, cara - e generosa (por isso parece barata) -.

8.6.16

Muro

Mãos como tijolos: palmo a palmo este muro que nos une levanta-se.

(Para a P., com um beijo.)

Este povo que é meu

A sedentarização é um processo lento e complexo.

"Lentamente, lentamente
caracol
sobe o Fuji".
(Issa)

Escorrega e derrapa e anda para trás para o lado volta a subir. Esta é a minha gente, o meu povo. Eu não sou dele. Não sou de ninguém, de lado nenhum.

Mentira.

Benditas palavras

Poucas coisas me encantam mais do que palavras bem ditas.

(A propósito de André Gago a dizer Ruy Belo no Belas)

7.6.16

Sorrisos doces

Agora é a vez da Caixa Geral de Depósitos. Uma coisa que me faz docemente sorrir é que quando cheguei a Portugal cheio de ideias e fui bater às portas de tudo quanto era banco, business angel, capitais de risco e quejandos fartei-me de levar tampas. Ele era "gestão de risco" para aqui, "demasiado arriscado" para ali, uma fartança de negas tal que durante muitos anos fiquei convencido de que na língua portuguesa não havia a palavra "sim".

Tá-se mesmo a ver, não tá-se? Pois tá-se.

Sim, Harry.

Novo post: Jamaica Farewell. Entristece-me ter de o dizer: estou a caminho, não regressarei tão cedo, o meu coração está em fanicos e a cabeça às voltas, deixei uma pequena em Kingston Town...

https://www.youtube.com/watch?v=xFomM7ug0B8

Calar e estar calado

Isto da escrita tem um problema de base: a palavra é para ser ouvida. Ou seja: antes de saberem ler as pessoas sabiam ouvir. Tu escreves e ninguém te lê (não são estúpidos, claro). Talvez fosse melhor falares (para ti).

No fundo hesitar não é uma má opção: ora ouves e não falas ora te calas e nada dizes.

Tarde, cedo

Poderíamos talvez imaginar que é tarde. Ou cedo: a esta hora as horas confundem-se e confundem-nos.

A melhor verdade

Vamos sim, querida. Vamos pensar no que teríamos sido. Vamos imaginar que tudo aquilo teria servido para... Sei lá - continuarmos juntos; separar-nos como se fôssemos civilizados; separa-nos como se fôssemos selvagens -.

Não sei qual das alternativas é melhor. Isto é, mais perto da verdade.

Milagre

Podíamos continuar: o que foi pode, por milagre, transformar-se no que é. Por milagre, convém lembrar.

(Outra vez para o meu irmão Vasco, porque um milagre que parece é).

O que mudou

Começo pelos teus pés. Por cada um dos dedos dos teus pés. Vejo-te deitada, claro: ver-te os pés de pé é difícil, quase impossível. Vejo-te deitada, não nos prolonguemos. Ou seja. Estás deitada e eu também. Não entro em pormenores; pouco interessam. Vamos imaginar que a noite foi boa, que nos deitámos como se realmente quiséssemos deitarmo-nos juntos, como se nos amássemos. Continuo sem saber o que é amar.

O que mudou foi: não quero saber. O que mudou foi: sim, tenho uma família, ou qualquer coisa que vista de perto parece uma família. O que mudou foi.

(Para o meu irmão Vasco)


6.6.16

Paris de ti

É de Paris que quero lembrar-me. Do Cana'bar, Vin des Rues, Maison Péret, a rue Daguerre toda. Tu mostravas-me Paris, alta, loira e linda que eras e eu absorvia tudo. Tudo. Não deixava escapar uma rua, um canto de jardim, uma perspectiva, uma explicação que me desses porque não era de Paris que me falavas; era de ti.

Amávamo-nos como nos amámos em Paris: minuciosa, atentamente, passo a passo. Quase. Paris ainda lá está, o nosso amor não.

"Na boca um cadáver"

Andam crocodilos pelos esgotos. Verdade, escaparam-se do jardim zoológico com as cheias e andam pelos esgotos e pelas ruas e também pelas cabeças de quem os viu. Mas não são apenas crocodilos. São crocodilos mágicos, resplandecentes, incendeiam as ruas e os futuros das futuras vítimas. É preciso estar atento: um futuro queimado por um desses crocodilos nunca mais volta.

Os crocodilos atacam depressa, mal se vêem, arrastam as vítimas para debaixo de água e deixam-nas lá a apodrecer. Por isso gostam tanto de futuros. Incendeiam-nos para que durem mais tempo. No Burundi as discotecas eram perto da praia e tinham avisos: "Atenção aos crocodilos", diziam. Mas mesmo assim todos os anos havia uma ou duas pessoas que se deixavam levar. Enfim, deixar não é bem o verbo. Uma vez na boca de um bicho daqueles as alternativas são poucas.

Por isso presto muita atenção aos crocodilos que se escaparam do Zoo de Vincennes. Foi lá que tudo começou, em 68. Talvez recomece agora com crocodilos fugitivos em vez de estudantes universitários. Infelizmente já não haveria Raymond Aron para escrever sobre a revolta dos bichos, ele que tão bem escreveu sobre a dos outros. Nem Zappa. Nem Debord. Morreram todos. Nem todos: o Vaneigem ainda está vivo. "Traité de savoir vivre à l'usage des jeunes crocodiles". Hoje venderia pouco. "Désormais, les analystes sont dans la rue. La lucidité n'est pas la seule arme. Leur pensée ne risque plus de s'emprisonner ni dans la fausse réalité des dieux, ni dans la fausse réalité des technocrates !" Hoje quem manda são os moralistas, meu caro Raoul; e não têm sequer a cultura dos outros, que eram moralistas mas pelo menos sabiam ler e escrever. Os velhos retiraram-se e deixaram a rua aos crocodilos. "Ceux qui parlent de révolution et de lutte de classes sans se référer explicitement à la vie quotidienne, sans comprendre ce qu'il y a de subversif dans l'amour et de positif dans le refus des contraintes, ceux-là ont dans la bouche un cadavre.

Ou um crocodilo.

"Le WELFARE STATE nous impose aujourd’hui, sous la forme de techniques de confort (mixer, conserves, Sarcelles et Mozart pour tous), les éléments d’une SURVIE au maintien de laquelle le plus grand nombre des hommes n’a cessé et ne cesse de consacrer toute son énergie, s’interdisant du même coup de VIVRE."


(As citações vêm de Traité de savoir vivre à l'usage des nouvelles générations e de Banalités de Base, livros que frequentei fugaz e levemente vai para alguns anos).

Receita - Frango frito com gengibre

Frango frito

Fazer uma marinada com bastante gengibre, alho, cerveja, cominhos e coentros moídos. Deixar o frango, cortado em bocados pequenos, pelo menos duas horas (ficou de um dia para o outro).

Polme 1 (seco): farinha, pimenta, sal;
Polme 2 (molhado): farinha, pimenta, paprika, cominhos, gemas de dois ovos e cerveja.

Passar os bocados de frango pelos polmes seco, molhado e seco de novo e fritar em óleo bem quente. (Usei uma mistura de óleo de palma e óleo de girassol).

Mais cedo?

Um gajo decide mudar de vida. "Decidir" é um facilitismo, uma preguiça; o processo é longo, telúrico, vulcânico de lava lenta. Arrasta-se até que um dia um gajo dá por si numa vida nova, como se tivesse sido esta e não ele a mudar. Até que um dia um gajo se pergunta "porque não o fiz mais cedo?"

4.6.16

Rachmaninov

O único problema das Vésperas é magoarem tanto. A beleza não devia ser tão agressiva, tão dolorosa.

[Adenda: poderia ser uma crítica ao rock: não é doloroso].

Definição - escrever

Escrever é lutar contra as vírgulas e as palavras inúteis: quase todas.

Noite, livro

Que noite escolher, que livro?

Blanc cassé

"Linhas em branco", leio num artigo sobre o congresso do PS. Parece-me muito mais um plano de vida, coisa que transcende o PS, os congressos e - sejamos honestos - qualquer partido.

Corta-palavras

Quanto mais curto um texto mais tempo leva a ser escrito. Pagar um escritor à palavra é uma injustiça e uma incompreensão. Quando muito deviam pagá-los à palavra cortada.

Memórias prévias

Como se fosse ontem: não sei. Só me lembro do que vai acontecer amanhã.

Merdas básicas

Escrever é uma necessidade básica. Por isso sai tanta merda.

Como o dia e a noite

De repente o ar torna-se ligeiro.

"Já quase no fim: uma mulher envolta em panos
e véus escuros veio e prometeu o vento.
E fez - plantou
na areia duas grandes ventoinhas, ..."

(Manuel Gusmão, in  Pequeno Tratado das Figuras, "Filmar o Vento")

Temos aqui a base de um diálogo "profícuo", como dizem as televisões.

"He desplegado mi orfandad
sobre la mesa, como un mapa.
Dibujé el itinerario
hacia mi lugar al vento.
Los que llegan no me encuentran.
Los que espero no existen.

Y he bebido licores furiosos
para trasmutar los rostros
en un ángel, en vasos vacios".

Alejandra Pizarnik, in Antologia Poética, ed. Correio dos Navios, "Fiesta"

Deixemo-nos de diálogos profícuos. Se fosse um céptico ou um nihilista diria que "diálogo profícuo" é um oxímoro. Não sou. É.

"Mon verre s'est brisé comme un éclat de rire"


"Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant.
La vie est variable aussi bien que l'Euripe"

Apollinaire,  in Alcools

Voltemos a esta noite que me espera, impaciente. Está quase a acabar. O sol nasce e eu deito-me, como se fosse um vampiro. Mas antes disso bebo música e Mount Gay alternadamente. É preciso que a luz chegue, que o escuro parta como por um beijo teu. Os teus beijos partem a escuridão, estilhaçam-na. Pelo menos é assim que me lembro deles: luminosos. Todos os beijos deviam ser assim, mas não são. Alguns músicos sabem-no, outros ensinam-no. Não os cito: demasiados ficariam de fora. Mas é assim: a música e o amor são uma luta contra a escuridão.

Que perdemos, claro. Mas isso é outra história, outra escuridão.

........
Durante muitos anos para mim "noite" era "ausência de luz". Redescubro hoje esta noite com luz, música, rum e ausência de horas. De séculos: oiço Hildegarde von Bingen e descubro porque gosto tanto dela: a música foi composta ontem, não foi?

.........
Deixemo-nos de histórias. Passemos às coisas sérias. Só há duas: corpos e solidões. Tudo o resto - corpos ausentes ou meio presentes, meias solidões ou solidões fingidas - são simulacros; ersatz, como se dizia quando eu era criança e me escondia nas livrarias para ler bandas desenhadas, proibidas em casa. Ersatz era palavra de casa, não de banda desenhada. Percebes o que eu quero dizer? Eu não. Tens sorte e eu não tenho. Por exemplo: não sou religioso. Sou ateu como meço um metro e setenta e seis, sou míope e gosto de música sacra: fatalidade e escolha, alternadamente. Por vezes percebo o que digo; outras não. Alternadamente, claro.

Como o dia e a noite.

Dores e amores

"Amo-te porque quero amar-te. O amor é voluntário ou não é". Quem não tiver compreendido isto não percebeu nada e vai sofrer até perceber.

A ordem correcta

Devíamos começar por nos amarmos e só depois nos conhecermos: a ordem inversa produz geralmente maus resultados.

Reedição - Marie-Thérèse

Reedição de um texto publicado no blogue Les Ombres du Temps.


“Tu sabes como eu era, já te contei: um bocadinho radical; ou totalmente idiota. É a mesma coisa. O mundo era a preto e branco. Ou sim ou não; ou estás dentro ou estás fora; ou é dos nossos ou és contra nós. À medida que fui crescendo fui percebendo que as coisas não eram assim tão simples, que o mundo, como ele dizia não é digital, é analógico. Quando o conheci já tinha as miúdas, uma excelente forma de aprender que nem as coisas nem as pessoas são simples. Sim, amava Pierre, muito. Estávamos casados havia doze ou treze anos e nunca o tinha enganado.

Conheci-o quando estava a fazer uma reportagem sobre as micro-empresas estrangeiras em Paris. Fiquei com as portuguesas e as brasileiras, naturalmente. A ideia era seleccionar duas ou três de cada país, de diferentes sectores e fazer um trabalho de fundo sobre elas. «Y en a marre des grosses boîtes, c’est des petites que je veux », disse-nos Stéphane, o editor. Não conseguia dizer uma frase que não tivesse pelo menos dois sentidos. Fiz o percurso habitual: consulado, anuários económicos, sites, amigos e conhecidos. Tudo. Sabes como sou, quando tenho de procurar alguma coisa. Não há porta que fique por abrir. Acabei com uma selecção gira, quatro empresas portuguesas e quatro brasileiras. É sempre melhor ficar com uma de reserva.

A dele importava produtos exóticos biológicos. Começara por ter uma série de fornecedores em Marselha, mas depois fartara-se de negociar com aquela gente e arranjou fornecedores em Paris. Não ganhava dinheiro, muito antes pelo contrário. Mas era teimoso como um caracol. Acompanhei-o duas ou três vezes nas suas expedições a Rungis; falei muito com ele, mas só de coisas relacionadas com o trabalho. Nunca me falou na família (tinha dois filhos) nem na mulher (uma russa linda de morrer, a julgar pelas fotografias que vi depois, quando já nos encontrávamos regularmente).

Um dia convidou-me para jantar. Vinha a Paris uma vez por mês; ficava três dias. Ligou-me ainda de Lisboa. Disse-me que chegava essa noite e se eu quisesse teria muito gosto em convidar-me para jantar. Achei graça, nessa altura já ganhava bastante bem a minha vida. Ele andava sempre aflito, mas mesmo assim convidou-me. Disse-lhe que sim. De qualquer forma Pierre estava habituado aos meus horários e as miúdas também.

Fomos jantar a um restaurantezito – em Portugal seria uma tasca – perto da rue Daguerre. Ele ficava sempre pelo XIVème ou XVème porque o avião aterrava em Orly. Chamava-se Au Vin des Rues, comia-se bem, tinha uma boa selecção de vinhos e não era muito caro. Lembro-me perfeitamente dessa noite. Foi a primeira vez que o vi com uma aliança. Estava apreensivo: no dia seguinte teria um encontro com um produtor marroquino de especiarias e não confiava nos marroquinos; mas achava que valia a pena encontrá-lo. «Deve haver pelo menos um marroquino honesto neste negócio. Só preciso de um, e pode ser este. Porque não correr o risco? O não já o tenho». Essa era outra das suas expressões favoritas, «o não já o tenho; agora há que procurar o sim».

Disse-lhe que não me apetecia falar do trabalho dele. Estava intrigada pela aliança e perguntei-lhe porque a pusera, nessa noite. «Porque queria que tu soubesses que sou casado», respondeu-me. Falava muito devagar, pronunciando claramente todas as sílabas, todas as letras. Já nos tratávamos por tu. Os pais dele tinham sido emigrantes em França como os meus, mas voltaram para Portugal quando ele tinha quinze ou dezasseis anos. Não partilhava essa mania portuguesa de tratar toda a gente por você durante anos e anos. Simpatizei muito depressa com ele e muito depressa estava a falar-lhe de mim, da minha vida, das crianças, do casamento. Ele ouvia devagar, como falava. Parece tolo, eu sei, mas quando falava com ele ficava com a impressão de que gravava tudo o que lhe dizia, revirava cada palavra, a observava de todos os lados e depois a arrumava num canto da memória. Meia hora, um mês, um ano depois essa palavra saía do armário onde estava guardada e ele dizia uma coisa qualquer relacionada com o tema que me deixava perplexa.

Não me perguntes porque fui para a cama com ele a primeira vez. Não sei. Como te disse nunca tinha enganado Pierre e para mim as coisas não tinham muitas nuances, se bem já tivessem algumas. Porque enganamos a pessoa com quem vivemos, que amamos, com quem passámos os piores e os melhores dias da nossa vida? Foi no dia seguinte a esse jantar; ele acompanhou-me a casa de carro. À porta disse-me «gostava de te ver outra vez», eu respondi «telefona-me amanhã à tarde», ele ligou-me e nessa noite fizemos amor pela primeira vez.

Estava outra vez com a aliança. «Não gosto de enganar as pessoas. Sou casado e gosto da minha mulher». «Então porque estás na cama comigo?»

Talvez não acredites, mas isto durou quase dois anos. Uma vez fui ter com ele a Lisboa. Nunca me escondeu; era como se o que fazíamos não fosse ilícito, imoral. Se nos encontrávamos com alguém que conhecia apresentava-me como “uma amiga de Paris”. «O que disseste à tua mulher?» «Que estava com uma pessoa de Paris e provavelmente não viria a casa muitas vezes». «E ela não se importa?»

Respondia a todas as perguntas que eu lhe fazia, nota; mas por vezes não respondia logo. Raramente falávamos das nossas famílias. Vi a fotografia da mulher porque um dia deixou a mala no quarto do hotel. Telefonou-me pouco depois de ter saído para me pedir uma morada num cartão de visita que estava num dos compartimentos. Quando chegou nessa noite disse-lhe que tinha visto a fotografia. «É bonita, a tua mulher». «Obrigado». «Parece russa». «É». «como se chama?» «Ludmila». «Ela sabe que nos encontramos?» «Não». «E sabe que a enganas? Tens outras mulheres, para além de mim?» «Não engano ninguém; não gosto de ser enganado e não faço aos outros o que não quero que me façam a mim». «E se a tua mulher tivesse amantes?» «Tudo o que lhe peço é que não mo diga, e eu não saiba por outras vias. De resto, pode fazer o que quiser. Ela sabe que a amo». «E tu sabes se ela te ama?» «Não. Nem me interessa. O amor é apenas uma entre muitas razões que mantêm um casal junto. O que é amar alguém? Tu amas o teu marido?» «Amo» «E amas-me?» Dessa vez fui eu que não respondi.

A verdade é que começava a amá-lo, muito. E cada vez menos amava o Pierre. Eram vasos comunicantes: o amor de um enchia o outro. Ele era atento, educado – não me lembro de uma vez, uma só que não me tivesse aberto a porta do táxi, por exemplo – correcto. Sabia que eu tinha muito mais dinheiro do que ele mas raramente me deixava pagar um jantar ou um táxi; nunca o vi zangado, por muito mal que lhe tivesse corrido o dia. Cada vez que eu tentava falar-lhe de nós dizia-me «Marie-Thérèse, nós temos uma relação. Não a transformemos em meta-relação, está bem?»

Nunca se deu verdadeiramente, mas também nunca fugiu; percebes o que quero dizer?
«Todos gostamos de determinadas coisas em cada pessoa; ninguém é suficientemente grande para encher uma vida. O que é feio é enganar, é o adultério, trair uma confiança. A infidelidade é normal; é quase uma inevitabilidade. Que me interessa saber se a Ludmila me ama, se tem amantes, se não tem? É a vida dela. O que amo nela é a parte desse vida que toca na minha, o seu gosto por música clássica, a maneira como educa os nossos filhos ou me sorri quando chego a casa cansado ou me recita um poema em russo, de que não percebo nem as vírgulas. Mas não tenho com ela aquilo que encontro em ti». «E que encontras em mim?»

Costumávamos ver-nos neste mesmo hotel. Foi por causa dele que o conheci. Vivo no XVIème, o XVème era-me estranho apesar de estar mesmo ao lado. Gosto deste aspecto familiar, paisible, pouco teatral do arrondissement. As coisas aqui são o que são. Venho cá muitas vezes. Compro um livro na Arbre à Lettres, vou lê-lo para o Rallye Perret, janto no Vin des Rues. De vez em quando tenho um amante que trago para este hotel, como tu. Pouco me interessa o que o pessoal pensa. Foi outra coisa que aprendi com ele: ignorar o olhar dos outros. É difícil, ao princípio; depois é terrível, um pouco assustador. E finalmente é a coisa mais apaziguadora e relaxante do mundo. «O que os outros pensam de mim interessa-me pouco, porque o que eu penso deles também», dizia-me. «Os outros interessam-te pouco», corrigi. «Não, os outros interessam-me. Mas não tudo nos outros». Era verdade: nunca vi ninguém que se interessasse tanto pelas pessoas; interessava-se pelo que faziam, pensavam, como viviam. Só não lhe interessava o que pensavam dele.

Ao fim de dois anos estava confusa. Cada vez o amava mais e a distância me era mais difícil de suportar. Ele escrevia-me de vez em quando: uma carta, um postal, um SMS. Eu respondia-lhe com longos mails que, sei agora, não lia. E cada vez se tornava mais claro que a nossa relação nunca seria mais do que era: duas bolas de bilhar juntas numa mesa até que um taco as separe. «O amor é o encontro de duas liberdades, não de duas prisões», escreveu-me um dia. Foi a primeira vez que utilizou o termo amor comigo.

Um dia descobri que Pierre tinha uma amante. Fiz-lhe uma cena, mas na verdade não estava magoada. Era-me totalmente indiferente que ele visse alguém para além de mim. Fiquei incomodada com as suas desculpas esfarrapadas, as suas promessas que eu sabia não cumpriria – não via razão para elas, nem muito menos para que as cumprisse – a sua incapacidade de assumir. Estupidamente, foi também nesse dia que decidi que não o queria deixar. O amor tinha definitivamente saído do nosso casamento, e o que nos manteria juntos dali para a frente seria outra coisa. Não as miúdas, ou o dinheiro, ou a dor, se dor houvesse. Uma relação é uma escolha; pode ser interessante tentar definir o que nos fez escolher A ou B, mas não é de forma alguma essencial. A vida não se esgota numa pessoa, tal como o amor, o desejo, o prazer de uma conversa sobre um livro, o cinema ou a economia.

Não há um aquilo que nos une uns aos outros; há um número infinito de aquilos que nos unem uns aos outros; não se excluem: adicionam-se. O meu amor por Pierre acabara, e fora substituído por outra coisa qualquer – amizade, ternura, passado, futuro? Que interessa -?

Não vou ao ponto de te dizer que o amor não existe. É óbvio que existe; para muita gente até tem essa função exclusiva, de fronteira, território, prisão, o que quiseres. Pouco me importa. Pensem o que quiserem, vivam como queiram. «Liberdade é poder escolher as suas prisões», disse-me ele um dia (era uma das suas citações favoritas, de resto). Para mim o amor, a sua ausência, a coabitação de vários amores ou a coabitação de várias ausências de amor é um dos dados do problema, não é o problema todo. A vida é um quadro no qual várias cores, várias formas, várias personagens coabitam; tira-lhe uma dessas cores, uma dessas personagens e o quadro fica incompleto. Pode também ser que para alguém esse quadro seja pintado com um amor, e que contenha uma personagem; muito bem. Não é menos verdadeiro do que o meu quadro, nem mais.

Sim, sou feliz. O meu casamento com Pierre nunca foi tão bom como é hoje. Ele não sabe de nada. Pensa que sou fiel; por vezes surpreendo-o num jogo de sedução com outra mulher qualquer, uma empregada, a mulher de um amigo. Não sei se os leva até ao fim ou não e não quero saber. Sou feliz quando estou com ele, como sou quando estou com outro homem, como sou quando estou sozinha. O mundo não é digital; é analógico. Entre zero e um há um número infinito de possibilidades, de escolhas, opções, vidas. Tudo tem um princípio, um meio e um fim e cada uma dessas etapas é escolhida por nós. O taco que ele mencionava na sua analogia somos nós que o seguramos, sei-o agora graças a ele. Por vezes apaixono-me; é bom estar apaixonada. Mas uma paixão não é a vida; é parte dela, só. Não me dou toda a ninguém, mas também não quero ninguém todo só para mim.

Como é que acabámos? Um dia cheguei ao hotel e deitei-me. Estava cansada, inquieta, tensa. Levantei-me, sentei-me à secretária, peguei numa folha de papel e escrevi “sou infiel; não sou adúltera”. Não sabia como continuar. O texto não era para ele, não tinha qualquer intenção de lhe escrever, ele chegaria daí a uma hora ou pouco mais. Foi pouco tempo depois de ter descoberto o affaire do Pierre.

Peguei no meu saco, pus a folha de papel em cima da cama desfeita e fui-me embora. Mandei-lhe um SMS a dizer «Obrigada» ao qual ele respondeu «Obrigado eu. Beijo». Nunca mais o vi. Por vezes manda-me um SMS ou um mail. Não respondo, mas sei que ele não espera uma resposta. As palavras são um mundo à parte, não é? Os actos são concretos, vêem-se, é como se se pudessem tocar, não se podem ignorar. As palavras não. São o que nós queremos que sejam. Esta mesa é azul. O que é azul? Que importa o azul? Porque é azul? Amo-te. O que é amar-te? Porquê? Para que serve o amor?

II
Marie-Thérèse é uma mulher grande, com um ligeiro excesso de peso; quase não se nota. Há pessoas assim, de tão magras por dentro não se vê que são gordas por fora. Ruiva, sardenta, com um nariz demasiado grande num rosto demasiado redondo não é muito bonita; começa-se por olhar para ela como para um puzzle com peças fora do lugar; depois qualquer coisa prende o olhar, que por ali fica a tentar perceber porquê. Ela está habituada. “Ainda bem que não sou bonita”, dizia por vezes. “Faria se fosse”.

É jornalista num jornal económico. Conheci-a há pouco tempo numa festa. Tivemos esta conversa no dia em que, por inabilidade minha, ela me deixou. Disse-lhe «Pois eu amo-te e sei o que é amar-te» e ela respondeu «Tens sorte. Vou-me embora. Adeus».

(Como sempre ligeiramente editado).

Expressões proverbiais

É melhor amar um troglodita do que um post-moderno, se bem menos fácil.

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Mais vale um novo pobre à vista do que um novo rico escondido (passe o oxímoro).

Reedição - O metro do sítio

(Um post mais actual hoje do que há sete anos).

"Pus o Sitemeter: tenho o dobro dos leitores do que tinha na última vez que o coloquei, há muitos anos. Pensava que teria metade. Merecia ter metade."

Fácil

Olha, vamos fazer assim: tu finges que me amas e eu que não te amo. Fingir é fácil, não é? Basta dizer uma coisa e olhar para outra. Por exemplo: eu olho para as tuas mamas, tão bonitas e redondas, do tamanho da mão de um homem honesto, o tamanho correcto para as mamas de uma senhora e digo-te: "não nos amamos". Tu em contrapartida olhas para mim, todo tosco e troglodita e dizes "Não".

Fácil, não é?

Diário de Bordos - Lisboa, sempre. 04-06-2016

Provavelmente esta mistura de rum Mount Gay e Keith Jarrett (e Gismonti et al.) não é específica a Lisboa. ("Provavelmente" é retórica. Sei perfeitamente que não é).

Que fará então desta noite a especificidade? Cheguei fará hoje mais logo uma semana. Fui à Feira do Livro, da qual só gosto quando tenho dinheiro para comprar livros; ao Tati ouvir o Gonçalo Marques e companhia, aos Poetas do Povo onde descobri um poeta que não conhecia (chama-se Rui Costa e é de ler); provei excelentes vinhos portugueses (provei é um understatement, seja Deus louvado e agraciado); apanhei (hoje) uma seca com uma senhora fotógrafa que falou muito, sem parar (uma das características e sinais distintivos de um bom fotógrafo é não gostar de falar). Falava para si própria e tinha uma tão infinita quanto massacrável capacidade de se ouvir; assisti a um espectáculo de poesia e música (esta a cargo de Carlos Barretto, que é um bom contrabaixo em qualquer parte do mundo e em Lisboa é melhor ainda porque Lisboa tem esta característica: magnifica o que é bom e apaga o que não interessa). A poesia lida por André Gago, António Caeiro e José Anjos, que por vezes também percussiona tão bem como escreve e diz. E tudo isto acaba com rum Mount Gay e (agora) Albert Ayler, ou Eric Dolphy, ou o que vier.

Não ter dinheiro é muito chato, claro. Hoje um vendedor da Cais abordou-me na Baixa. Disse-lhe que não e ele perguntou-me "mas pode pelo menos falar comigo?" "Não". Não, meu caro, não posso nem quero porque não quero ter de explicar-te que provavelmente tenho menos dinheiro no bolso do que tu e não quero dizer isso a um gajo qualquer na rua e sei que se calhar no fundo tenho mais sorte do que tu - e isso tão pouco é assunto de conversa, pelo menos agora -. Mas não ter dinheiro é passageiro, é como uma frente fria, um squall, um aguaceiro, uma depressão mais ou menos cavada, uma foda má. Não é como ouvir Dolphy ou Ayler ou Gismonti ou Jarrett que estão sempre lá; basta querer.

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Para não falar em Hildegarde von Bingen, claro.

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Pela primeira vez na vida tenho a impressão de que não vou ter de pagar o quão bem tudo isto se anuncia. Assustador, não é? Prefiro pagar, ainda que com atraso.

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O rum Mount Gay é bom; honesto, frontal, não engana ninguém. Mas basta uma tarde ou duas na Wine Up para me lembrar de que o que me corre nas veias é vinho. Rum é paisagem.

3.6.16

Auto-quase-retratos

Sou fundamentalmente céptico. Não acredito nem no que já aconteceu, quanto mais no que está para vir.

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- Vais escrever?
- Não. Vou escrever-me.

Reedição - Haiku eróticos

Enquanto "Agosto" entra e não sai, ou não sabe se sai se entra, ou se não entra mas sai, ficam algumas pequenas pérolas do livro "Haiku Érotiques", Traduzidos do japonês e apresentados por Jean Cholley, ed. Picquier Poche, 2000:

"Quand il dresse son mât,
l'épouse s'empresse alors
de prendre la barre"

"Sa belle-mère défunte,
sans plus de retenue l'épouse
éclate en sanglots"

"Quand à sa femme il fait
tourner le mortier à thé*
elle désaxe tout"

Reedição - Ah, Rita, ou Time is a fake healer, ou Inhabileté fatale

laisse-moi t'aimer, again, t'aider à redevenir toi-même, Rita, que boa eras, a cavalo em cima de mim, que grande, essas mamas a dar a dar e o sorriso cheio, de lua cheia, de mulher cheia. Nunca mais terás um sorriso assim, Rita, ficaste amarga e a culpa é minha, se calhar, não? Pelo menos é o que tu dizes, mas eu não acho. Se calhar já eras amarga antes de mim. Não é porque uma história de amor acaba mal que a culpa é minha - as que acabam bem são devido a ti?, à tua classe, à tua exigência? Ri-te, Rita, ri-te as once you did, remember us on the beach, numa dessas moto quatro, ce que tu rigolais alors, ou no farol a ver os livros "de bordo" velhos e roidos pela vida, pelo tempo. Et tu dis que si tu ne ris plus, aujourd'hui, a culpa é minha. Minha, Rita, a culpa de não rires mais? E quantas vezes te propus, once again, não deixes o passado vencer, o passado não passa daquilo que nós queremos fazer dele, mas tu não, tu preferes viver no passado, não é Rita? Ah Rita, há passados e passados, e o teu, o nosso, é o pior dos meus passados, e tu não me dás uma chance, pas une, de le corriger, Rita, como se o passado não fosse senão uma parte do futuro, a fucking, irrelevant, bit of future. O passado, Rita, a culpa: eu caí no caldeirão da culpa quando era pequenino, e hoje não sei viver sem ela, sem ele. Escrevo à luz de velas, era isso que sonhavas, não era?, uma cabana à beira-mar, amor e água fresca, e um bébé. O que eu quis esse bebé, Rita, o que eu o quis, mas tu decidiste que não, ou deixaste o corpo decidir por ti. Diz a verdade, Rita, essa sensualidade toda era fingida, não era? As mamas a dar a dar, as mãos partout - só não gostavas de felar, acho eu, mas gostavas do irmão, não era? - mas nem disso tenho a certeza, já lá vai tanto tempo. Para ti não vai, Rita, é como se tivesse sido ontem, é como se nada mudasse no esquema imutável das coisas: o que foi é, o que foi será, o que foi foi e foi e será e é. Os teus verbos só têm um tempo, Rita, e por isso vês a vida passar por ti e por isso te parece que não és parte dela. Ah, Rita, que duro é ver-te assim ao lado da vida, da minha vida, e não conseguir fazer-te rir de novo, um sorriso cheio como a maré cheia... Diz, aquele passeio às Azenhas do Mar, lembras-te?, quando fomos dois e viemos um, não te diz nada, hoje? Nada te diz nada, hoje, nada: só o que se passou ontem te fala ainda. O tempo para ti é uma múmia, Rita, e o tempo não é isso. O passado não é isso. O futuro não é isso. És tu que és uma múmia, não? e mumificas tudo à tua volta, como o calor do deserto, a secura. Eras uma mulherzinha, não eras, Rita? Uma mulherzinha, saída dos livros da Louisa May Alcott, ou coisa que o valha. Não eras uma mulher, saída da vida, ou metida na vida até ao pescoço, até ao topo do mastro que eu enterrava em ti com tanto amor, com tanta vontade, pois não? A vida sempre te passou ao lado, diz a verdade - e acusas-me a mim de não quereres rir de novo, Rita? Escreveste-me, Rita, cartas lindas, mas alguma vez me dançaste? Alguma vez me viveste "para lá do medo", desculpa a porra da fórmula feia como um nojo? Escrevias bem, então, e muito, torrentes de letras, linha após linha - e hoje já só tens frases feitas, frases mortas, frases pré-fabricadas, e dizes que a culpa é minha, Rita? Escrevias bem, mas já então, como hoje, detestavas as palavras. Detestavas "fornicar", por exemplo, e "foder" e "desculpa", "desculpa", "desculpa". Estás enganada, e se calhar eu também, mas a culpa não é minha, não é só minha, e eu tenho que aprender a viver com isto, Rita, quer tu queiras quer não eu vou aprender a viver com isto, contigo, com o que foste, com o que és, com o bebé que não foi, com a praia e as Azenhas do Mar e o farol e o teu corpo, tão bonito, tão sensual, tão corpo.

2.6.16

Diário de Bordos - Lisboa outra vez. 02-06-2016

Aqui estamos, Lisboa, tu e eu de novo tão iguais e tão diferentes. Tu mudas de vida, és uma cidade aberta, cheia de turistas e de poesia, de gosto e de beleza. E de buracos que aí vêm eleições, mecanismo infalível para despertar os imbecis e medíocres que de ti se aproveitam e sem ti nem um galinheiro mereciam. Verdade seja dita: tu recebe-los, resistes, deixa-los passar e sorris quando finalmente desaparecem.

E eu como sempre teso e optimista, a sair de uma vida para entrar noutra, a calcorrear-te como se nunca daqui tivesse saído, árvore andante como aquelas árvores dos mangais  que usam as raízes para se deslocar.

Somos um velho casal, Lisboa: já não nos enganamos um ao outro. Conhecemo-nos os truques e as manias, as ruas, vielas e atalhos, os terrenos baldios e os outros. Somos um do outro apesar das separações e resistimos a todas as chegadas, sejam elas de passagem ou de sonhos.

Agora nós, Lisboa. Outra vez.

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Lisboa recebe-me sumptuosa e generosamente, como se quisesse agradecer-me a decisão de por aqui ficar e se estivesse nas tintas para a falta de dinheiro.

Está ela e eu também: amanhã há mais. Mais dias, mais dinheiro e mais dias sem ele. Mais ideias e projectos. Outra vida e outras vidas.

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Jazz no Tati, poesia no Povo: como duvidar de um futuro assente nestas fundações?