31.10.23
Pêndulos, liberdade
30.10.23
Diálogos inverosímeis mas reais
Em louvor de velhas lealdades e outras simplificações
Acabo de subscrever o plano de saúde da Vodafone. Não sei se deitei setenta euros e oitenta cêntimos para o lixo e só o saberei daqui a um ano (esse é o preço da subscrição anual). O que sei é que tudo indica que a Vodafone está no caminho de voltar a ser a Vodafone que eu conheci, com um serviço de apoio ao cliente absolutamente incomparável, pelo menos no universo das empresas que conheço (são muitas). Houve uma época em que a coisa parecia tremida mas isso, a julgar por duas recentes interacções com a empresa está a ser passado. Hallelujah!
Tempos, vidas
É tão estúpido viver no passado como o é no futuro ou - pior de todos - no presente. Ninguém vive só no presente. Todos temos um passado e um futuro, uma memória e um projecto. O que está errado é viver só no passado. Ou só no futuro. Um projecto sem uma memória está votado ao fracasso, tal como uma memória sem projecto não passa de uma inutilidade. O presente é a intersecção desses dois caminhos. Um cruzamento. Ninguém constrói uma casa num cruzamento, pois não? Não. Como ninguém constrói uma casa só com porta da frente ou vive só com uma janela para as traseiras.
Patias
Não deixa de ser estranho, quase inquiente, pensar que simpatia, empatia e antipatia têm em comum um sufixo que designa doença.
Na foz do silêncio
A ternura é sempre hesitante. Incerta. Não sabe que caminho seguir. Perde-se nos incontáveis meandros do silêncio e só se encontra lá aonde esse silêncio desemboca.
Luz, paisagem, dia
29.10.23
Não ateies fogos
Diz-me acesamente - incendeia-me, se quiseres com palavras a arder - a paisagem que carrego atrás de mim* para onde quer que vá - deita achas para a fogueira - lembra-te: não ateies incêndios que não podes apagar - diz-me com palavras de fogo de que fogo sou feito. Não faço nada senão vadiar por essas planícies de que por vezes me falavas, nas noites cálidas da Primavera que passámos juntos. Sim, deita achas para essa fogueira. Não a deixes extinguir-se. Não ateies fogos que não podes alimentar.
* - a ideia, um bocadinho distorcida, vem de Rilke.
Hemodiálise alfacinha
A poética do desenraizamento e a ubiquidade do seu oposto, o enraizamento. As raízes que me seguem para onde quer que eu vá e aí nascem e se enterram cruzam-se com as raízes que se recusam a sair de Lisboa, inegavelmente Lisboa. Como se tivesse dois jogos de raízes: as que andam comigo e as que não saem daqui, desta cidade que está para mim como a máquina de hemodiálise para um doente dos rins. Sofro de cosmopolitismo tendência alfacinha, uma espécie de desenraizamento coxo.
Mais uma história do cosmopolita enraizado.
(Cont.)
Rainer, meu querido Rilke
«E há também o momento em que à tua frente uma pessoa se destaca de forma calma e clara em todo o seu esplendor. São momentos de festa raros, que nunca mais se esquecem. A partir daí passas a amar essa pessoa. E isso quer dizer que te esforçarás por reproduzir com as tuas ternas mãos os contornos da sua personalidade, tal como os reconheceste nesse momento.»
(Rainer Maria Rilke in Notas sobre a melodia das coisas, ed. Averno, 2023, trad. de João Barrento.)
Urbanidades, modernidades
Eu só espero que os meus leitores - que os há - não pensem que eu sou um atrasado mental que detesta a modernidade. Não sou. Limito-me a desconfiar da modernidade como desconfio de um mulheraço que tenta seduzir-me: ninguém sabe a estranha motivação que está por detrás daquilo.
Por exemplo: mesmo reconhecendo as inegáveis vantagens das Uber, Bolt e afins, continuo a preferir esticar um braço para apanhar um táxi na rua. Pela razão simples de que acho mais elegante, mais bonito, se preferirem, estender um braço como um afogado a lutar pela salvação a olhar feito esfinge para um telefone portátil. Ou mesmo apanhar um autocarro, gesto eminentemente urbano.
Claro que apanho Bolts, sim. Mas também apanho táxis e autocarros e prefiro estes de longe. E de perto. Apesar da diferença de preço, prefiro ser conduzido por um senhor que conhece a cidade a sê-lo por alguém que - como recentemente aconteceu - me pergunta aonde é o Saldanha. Claro está que não acredito nesses mitos urbanos das senhoras violadas e que ter alguém calado porque não fala português tem vantagens sobre ter alguém a quem tenho de explicar que não quero conversar. Mas... mas apesar de tudo continuo a preferir apanhar um táxi ou um autocarro.
28.10.23
Pequenas historietas da vida urbana
Havia um café em Lisboa chamado Fábulas. Numa das salas tinha uns sofás muito bonitos. Depois de almoçar, ao princípio da tarde - e às vezes já no meio - eu sentava-me num deles, o maior, e pedia um café. Aí a partir da terceira ou quarta vez, o empregado perguntava-me: "Quer o seu café agora, ou prefere que o traga quando acordar?"
27.10.23
Frios nocturnos
Conviver comigo é muito cansativo, uma chatice muito grande. Já levo quase cinquenta anos disto - ou mais, depende de onde se começa a contar - ainda não me habituei.
Por isso me agasalho tanto à noite, suponho.
24.10.23
Como viver seco?
Como se fossem geisers
«Bloqueio do escritor» é uma expressão enganadora. As palavras estão tudo menos bloqueadas. Antes pelo contrário: parecem água a esvair-se pelo ralo abaixo. Não é é o bom ralo. É o errado. Coisas que acontecem. Na verdade não sei como orientá-las para o lado certo. Falta de jeito, suponho. A verdade (outra) é que a amei muito mais do que agora me lembro de a ter amado e hoje vejo que tinha razão em amá-la assim, tal como tive em me vir embora e ela em mandar-me embora e tal como tenho em querê-la de novo na minha vida. Nunca sabemos bem aonde acabam estes ralos enganados e começam os certos. Que amamos, quando amamos alguém? Não sei, apesar de até agora só raramente me ter enganado. Humor, distância, olhar, mamas, o pudor, a retenção... uma mistela, é o que é e a verdade (mais uma) é que não sou capaz de lhe separar os componentes. Nenhum deles vale por si, isso sei. Trágico seria se não soubesse, de resto. Trágico seria se não fosse capaz de lho dizer e como não sou sigo o conselho do outro: «Luís, você não devia falar. Você (era dos que tratava toda a gente por você, incluindo o cachorro) escreve muito melhor do que fala. Cale-se e escreva.» O problema, claro, é que escrevo para mim. Não é bem um problema, note-se. É uma vantagem. Assim sempre posso dizer tudo o que quero. Como por exemplo revisitar o passado, feito herói de um filme que só tinha uma personagem e essa personagem era eu. Bom, podemos dizer que tinha duas personagens: ela e eu. Hoje consigo pôr-me na cabeça dela. Duas. Três, se contarmos o gajo que nos pôs de novo em contacto. Quatro, se incluirmos o tempo, o cilindro compressor do tempo, que neste caso não comprimiu nada, de resto. Antes pelo contrário: descomprimiu. Como se alguém tivesse posto um tampo no ralo e as palavras começassem a flutuar. A verdade é que só temos vontade de reatar aquilo que não acabou, não é? As palavras flutuam, os sentimentos também, parece uma sopa, temos os ingredientes todos juntos mas se os separarmos já não é a mesma sopa. Escrevo isto tudo por causa do bloqueio do escritor, está bem de ver, é uma invenção do princípio ao fim. Enfim, mais ou menos. Do princípio? Ao fim? Mas aquilo teve um princípio? Teve um fim? As respostas são: não e não. Antes de começarmos ela já cá estava e depois de acabarmos continuou. Como os rios: todos pensamos que têm uma nascente e não têm. Têm muitas. E uma foz? Tão pouco. Isto é, ter têm, mas não passa de uma ilusão. Um rio nunca acaba, como alguns amores. Desaparecem para reaparecer alhures, disfarçados de amor novo. Mas não são. São o mesmo, revisitado pelo tempo. Como um fato que vem da lavandaria: alguém se lembra da nódoa que tinha quando para lá foi? Não, claro. Mas é o mesmo fato, um bocadinho mais usado (isto é uma qualidade), um bocadinho melhor, mais ajustado, mais conforme, mais... como dizer? mais epidérmico. Raio de amor este, que se me cola à pele como um rio ao leito e me veste como se a vida vestisse fatos. Não veste, meu caro: a vida anda de farrapos e tu, escritor, transformas esses farrapos em fatos de cerimónia, nos dias em que o bloqueio te leva para os estranhos territórios dos amores que não morrem, como se fossem geisers.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-10-2023
Turbilhão emocional de origens várias, com raízes que se espalham em todas as direcções, da mais ridícula à mais pungente. Curiosamente, têm todas a mesma força e à medida que as vagas emocionais se vão esbatendo - pensem numa pedra que se atira ao lago: as vagas vão ficando cada vez mais pequenas, mais longíquas. Mas sempre concêntricas. Agora pensem em demasiadas pedras e poucos lagos. Só um, na verdade. Demasiados penicos para tão pouco xixi. Hoje comprei uma garrafa de vermute na Antónia (Es 20 de Bonaire, se por acaso). Estou a encher o frigorífico de boas relações qualidade-preço, já que as outras escasseiam.
Se um dia mudasse o nome do P., chamar-lhe-ia Pandemónio. Aqui em Palma, com um barco de menos de cinquenta metros, se precisarem de alguém para fazer um trabalho e vos disserem «fulano é o melhor ---- (substituir pelo nome do mester) de Mallorca» das duas uma: preparem-se para um rotundo «não» ou preparem-se para uma longa espera. Não há meio termo.
23.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-10-2023
O "meu" P. hoje ganhou um prémio: uma garrafa de Flor de Caña 5 Años que a treze euros e noventa e cinco cêntimos é sem dúvida alguma a melhor relação qualidade preço do mercado rum-ístico desta cidade. É preciso reconhecer que não foi só o bote. Eu também. Estou cansado de tentar emborrachar-me e não conseguir, desgraça essa que já leva meses (ou meras semanas: quando é que foi o jantar no Tambarina?). Verdade seja dita: essa do Tambarina não conta. Foi caótica. Faltou-lhe método e propósito. Além disso acabou mal, comigo a guiar num estado em que nem para pedalar serviria. Vá lá que não aconteceu nada para além do vexame que foi perder-me na Costa da Caparica para ir de Santos a Carnaxide. Isto por aqui tem sido muito pior: não consigo sequer engrossar-me. Imaginem o Casanova com "disfunção eréctil" (aspas porque estou a gozar) e vejam como me sinto. Não admira que a burra ande melancólica, eu ansioso e o P. impaciente. A ver se com a Flor de Caña o acalmo um bocadinho.
.........
O De Passagem vai ter ainda mais páginas do que o Avenida. Cinquenta por cento mais, para ser exacto. Não fosse a crítica do João R. e cobrir-me-ia de areia e vergonha em iguais proporções. Assim, resta-me esperar que a IA (ou o F. G. de C.) tenham feito o que eu não fiz: corrigir as minhas iluminações informáticas, também conhecidas por estupidez. E beber Flor de Caña, en attendant. Uma coisa compensa a outra, espero. Tal como costas que se coçam ou mãos que se lavam.
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Os cumulus da tarde estratificaram-se e agora desapareceram, substituídos por cirrus devidamente estratificados também eles. Isto deve ser um pré-aviso dos "comboios de depressões", que aqui entre nós bem podiam ter a amabilidade de escolher Portugal para estação terminal e não atravessar a Península Ibérica. Na verdade, não lhes quero mal: estava a ficar farto do Verão. É bom poder sair de manhã com uma camisa de mangas compridas e a meio da tarde não estar a precisar de assaltar uma fábrica de desodorizantes.
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Leio no FB um poema de Nuno Júdice que não conhecia. O poema é lindo, passe o pleonasmo e apetece-me gritá-lo no restaurante aonde estou, ele também lindo (é o Patrón Lunares, se por acaso). De Júdice a memória foge-me para o Celso, com quem comecei a ler poesia na rua. Foi em S. Luís do Maranhão, podia atribuir-se tudo ao sotaque português, era gente boa, acolhedora... Daqueles incuráveis sofrimentos que a morte de amigos me atribuiu, a do Celso está num dos lugares do pódio. Hei-de ler este poema, Celso. Juro-to.
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A julgar pela quantidade de água que bebi ao acordar da sesta, a mistura de vermute, vinho tinto e rum nas quantidades certas teve o efeito procurado.
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«UMA PASSAGEM IMPOSSÍVEL
A mulher que espera o verde para atravessar
a rua olha para o infinito. Talvez não haja nada
do outro lado da rua que vai atravessar, e
talvez aquilo de que precisa esteja nesse ponto
para onde olha, para lá do estranho céu
que ela interroga. O vermelho passou a verde, e
o verde voltou a ficar vermelho; e a mulher
não se move, prendendo o meu olhar
com a sua imobilidade. E os braços
parecem esperar alguma coisa que não vem, como
se estivesse numa sala de baile à espera
do convite para dançar. Juntam-se à sua volta
as pombas da rua, como se os pedaços
de sombra do seu corpo as pudessem
alimentar antes do seu voo. E acabei
por me aproximar do poste onde o verde
e o vermelho alternavam, apenas para ter
a certeza de que ela não era uma estátua e
fixar os meus olhos no ponto para
onde o seu olhar se dirigia: esse pedaço
de infinito onde ela misturava o azul
com o branco, como se o céu fosse o quadro
que pintava com as mãos da sua alma.»
Nuno Júdice
22.10.23
Definição
Adormecer é um processo natural que consiste em deixarmos cada uma das células do nosso corpo separar-se das que a rodeiam e flutuar numa espécie de sopa escura e densa. De manhã - ou ao acordar, seja a que horas for - as células voltam ao seu lugar e tudo recomeça.
Morrer é a mesma coisa, sem a última parte.
Alegoria, alegria
Uma espécie de continuação
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-10-2023
De entre as decisões firmes: comprar uma garrafa de rum para o meu P. Bem sei que não sou grande bebedor quando estou sozinho a bordo, mas as porções que os empregados dos já mencionados waterholes me servem têm a curiosa e comum característica de se medirem mais em gotas do que em goles. Tudo isto sem proporção com o que as ditas gotas pesam no porta-moedas, coitado.
Escrevi finalmente à Angel Pilot. O que é demais é demais. Se não me responderem publico a carta.
De onde sou
21.10.23
Exegetas e outras tretas
- Espero que compreenda, meu caro: nem tudo o que digo é verdade. Ou melhor, tudo o que digo só se torna verdade depois de eu o dizer. Ou escrever, o que vem a dar no mesmo.
- Ou seja, não sabe mentir. É um escravo da verdade.
-Escravo não é o termo adequado. Eu transformo o que poderia ter sido no que é. Faço uma interpretação, por assim dizer. Sou um exegeta do possível.
- Poeta?
- Não, que horror. Esses não transformam nada. Limitam-se a descrever o que vêem.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-10-2023
Palma tem muitas coisas em comum com Lisboa. Uma delas é esta atitude de stripper preguiçosa, lenta, milimétrica, a marimbar-se para quem a está a ver. «Dá tu o primeiro passo, querido», diz-nos. «E talvez eu desagrafe o primeiro agrafo do soutien.» Tudo isto cheira a despedida, eu sei. Tresanda, melhor dizendo. Hoje fui ao Pere Garau, aonde já não ia há demasiado tempo. Não sendo grande fã da burguesia de onde venho tão pouco o sou do clube «a verdade está na classe operária, nos imigrantes, nas respectivas misturas.» A verdade não está em lado nenhum e está em cada pessoa, não na classe social, país, raça, religião ou mariquice a que pertence. (É de resto é aqui que para mim monárquicos e esquerdistas se enganam, mas isso são contas de outro rosário.)
(A Martina deve fazer hierbas desde antes de ter idade para as beber e a mim ainda está por acontecer seja o que for por bebê-las. Abençoados sejam os atípicos.)
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Volto para bordo com duas qualidades de merguez: as compradas no talho que já conhecia e que não são maravilhosas e as compradas num outro talho que me aconselharam. Estão em sacos separados. Logo vou compará-las, acompanhdas por um bom tinto. Há coisas em que sou pela fusão.
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O badanal veio, o badanal foi e o «meu» P. ficou. Só tive de folgar um bocadinho um dos lançantes de ré e um dos springs (que por sinal também está a ré). O mais importante - os muertos - estão sólidos. O que eu gostava de os largar para me ir embora não tem descrição, por muitas atípicas que me apareçam.
Paradoxo, para mim
As pessoas que não querem que nada mude são as mesmas que dizem que tudo está mal.
20.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-09-2023
Hoje tentei embebedar-me e (ainda, espero) não consegui. Não sei bem de quem é a culpa: se da carcaça, se do cerebelo (aquilo que em mim faz de cérebro), se - longe vá o agoiro - desta mistura de mim e do tempo, mistura essa que às vezes funciona e outras não, sem que eu consiga perceber como, porquê ou quando. Fui almoçar ao Es 20 de Bonaire (não tinham beringelas recheadas), voltei para bordo beber hierbas secas (V., temos de ir a Colonia de San Jordi) e que fiz da minha tarde? Trabalhei, em vez de beber ou dormir. Acho isto indecente e vou apresentar uma queixa à organização.
Enfim, nua e crua não é bem verdade e além disso há que ter presente um post infra sobre Balzac - a maioria das senhoras (aqui, hoje) está a pelo menos dez anos do tal patamar, de maneira são apenas alvo da minha desenfreada aptidão estética e não de outra qualquer. Antevejo porém com um gozo não dissimulado a sua (delas) ascensão a outro patamar, tendo eu, como tenho, esta capacidade de parar o tempo. Ou no tempo, não sei. Aliás, uma das mais bonitas está grávida. Vai ter de esperar alguns vinte anos, coitada.
PS - Disse vinte? Pelo menos trinta.
Quando eu era (ainda) mais adolescente do que sou hoje perguntava-me, cada vez que via um casal, «porquê ele e não eu?» Hoje já não faço essa pergunta - sei a resposta - mas continuo a pôr-me facilmente no lugar dos machos de alguns dos casais que vejo.
Volta, Balzac.
À medida que vou envelhecendo, a minha idade favorita nas senhoras vai aumentando. Não tarda apanham-me.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-10-2023
O badanal vai entrar lá mais para o fim da tarde. Entretanto já vamos com vinte nós aqui no porto. Diz que vai andar pelos trinta. Nada que o "meu" P. não tenha visto e aguentado mas mesmo assim trouxe para bordo o que sobrou do almoço no "Mini restaurante casa Júlio", aspas porque cito. Se a previsão se enganar não precisarei de sair.
18.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-10-2023
Regresso a Palma com alguns dos objectivos atingidos, outros nem por isso e o resto nem de perto nem de longe. Resisto a fazer uma contabilidade quantitativa ou qualitativa, a adicionar uns, meios e zeros, a atribuir mais peso à aquele e menos a este. Limito-me a conformar-me com o que não posso mudar e a lutar pelo que posso. Um marinheiro é a soma algébrica de todos os opostos e o resultado dessa soma só não é zero porque por baixo está o mar. O mar não tolera mentiras mas valida todas as verdades, mesmo as mais contraditórias. Basta serem verdadeiras e não efabulações ou fingimentos. Nestes objectivos há diferentes graus de prioridades, claro. E de dificuldades, de urgências. E de adversários, sobretudo. O marinheiro sabe que o mais difícil de gerir é a sua energia e é nisso que se concentra: ele é o elo mais fraco da cadeia e é precisamente saber-se fraco que faz dele o mais forte.
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Quanto mais vou a Lisboa mais gosto daquela cidade e mais ela me exaspera. É como viver no meio de uma lixeira rodeado das mais belas obras de arte. O T. disse-me um dia que Genebra era demasiado limpa, mas que Lisboa está no outro extremo. Não lhe disse o que penso: não há demasiado limpo. Há limpeza e o resto. Só a sujidade tem graus. Lisboa está um nojo repelente. Mas depois tem um conjunto de coisas que se sobrepõem à repelência. Há uns anos fiz uma lista dessas coisas. Acho que chegou a altura de fazer outra.
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Almoço no Aurelio. O homem faz-me pensar no Road Runner mas com dezenas de coiotes em vez de um só. São os clientes, que sentados esperam a comida e a energia que ele lhes traz.
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Amanhã entra badanal. Não sei que dizer. Por um lado estou farto deste Verão que se eterniza como uma mulher bonita mas chata; por outro, não me apetece nada ver o «meu» P. a abanar como uma alma perdida antes de chegar ao Inferno.
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Almoço no Aurelio, jantar no Fidel, gelado no Claudio, rum no Jaume. Para um paisano como eu, Palma-a-calma é uma sucessão de nomes. Não o fosse, ou em vez de saloio fosse TO (é o acrónimo de Tour Operator, não a abreviatura de Totó, como à primeira vista se poderia pensar), organizaria viagens para provar o Dulce de Leche do Claudio primeiro, depois o rum do Jaume, depois os canelones de rabo de touro do Fidel e por fim o orujo do Aurelio. A ordem dos factores é mais ou menos indiferente, desde que comecem pelo Dulce de Leche. Nunca na puta da vida - peso as palavras - comi um tão bom como este. É feito na Galicia. Isto é, a base é feita na Galicia. O gelado é do Claudio. Porra, devia ser proibido. Que fazem os arautos da igualdade quando mais precisamos deles? Por que raio de carga de água não encontro gelados que nem à sombra dos calcanhares deste chegam?
É que isto é como as cerejas: orujo, canelones, gelado de dulce de leche, rum Santísima Trindade. Pode argumentar-se que há horas entre o princípio e o fim (e às vezes entre cada uma das etapas) deste percurso.
Não há. Há um fio contínuo de sorte, sorte e sorte. E do seu complemento directo: gratidão, gratidão, gratidão.
(Cont.)
16.10.23
Obscuro labirinto; ou: insaciável fragilidade
É portanto no obscuro labirinto das ideias hesitantes que respiras. Vês pouco e ao perto, apenas. A luz insuficiente, as bruscas paredes, os caminhos que mudam de direcção abruptamente impedem-te de formar ideias claras sobre o que te rodeia. Para ti, o longínquo começa imediatamente para lá da mão quando tens o braço esticado. Do mar - a tua vida anterior - trouxeste dois ou três conceitos que te servem de lanternas: amizade; amor; a insuportável beleza da dúvida. A curiosidade, sua irmã siamesa. A única certeza que tens é a da tua fragilidade. O mar tem um insaciável apetite por pessoas fortes: engole-as mal elas se aventuram parafora de pé. Nele, só os frágeis sobrevivem. É essa experiência que te permite sobreviver no labirinto para onde a curiosidade te atirou. Às vezes consegues entrever um sorriso, dois seios, um corpo que dança longe de ti, através dos muros, através dos anos. Dessa fragilidade falo. Não: é dessa fragilidade que te falarei um dia, depois de alimentado o minotauro.
15.10.23
O que me tocou
Ainda esta velha questão do labirinto. Eu fechado do lado de fora e as palavras errando por dentro. Perco-me nestes canais estreitos de que só vejo o topo, os movimentos desordenados - como não o seriam, quando não se lhes percebe as razões? - a busca desesperada por uma saída, um reencontro. Falo da assimetria, do desencontro, de electrões livres que de repente se vêem prisioneiros de palavras, muros, labirintos, amontoados de sílabas. Falo daquilo que num olhar fala e nunca entenderei porque fala tão forte um olhar. Falo do que sei, do que toquei. Falo do que me toca.
14.10.23
Falar do que se sabe
A senhora não é particularmente bonita, não é particularmente bem feita e é de longe a mulher mais magneticamente atraente que me foi dado ver em muito tempo. Uma beleza fulminante.
É um mistério, isto da atracção gravitacional, dos olhos que são o espelho da alma - os olhos ou o olhar? - das pessoas que dispensam a beleza e a trocam por outra beleza.
Não serei de certeza o único homem na sala sensível a esta estética do avesso, mas há uma coisa de que estou certo: tenho sorte. Falo do que sei.
12.10.23
Diário de Bordos - Lisboa, 12-10-2023
No restaurante, uma das coisas boas de ficar mesmo por baixo da televisão é termos uma senhora a olhar fixamente para nós. Aqueles breves instantes até percebermos que não é para nós que ela está a olhar valem ouro.
Ainda por cima, quanto mais bonita a senhora é menos breves são os instantes.
........
Venho de metro do Aeroporto. Uma cidade é feita de pessoas, já aqui o disse muitas vezes.
(Cont.)
11.10.23
Hamas, Hitler
As pessoas que defendem o Hamas fazem-no porque não podem defender Hitler abertamente. E lamentar que ele tenha deixado o trabalho a meio.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-10-2023
«Pareço um caçador de ausências», escreve-me a M. E., que não se lembra do autor da frase. São bonitas (a frase e a M.) Toca-me particularmente (a frase): passo a vida a caçar e fugir de e a lutar com ausências, de resto um tema frequente neste DV, coitado. Ausências, esperas... même combat, diria se fosse francês ou de ali perto. E se fosse dado a optimismos, como sou. Entre a espera e a ausência o muro é estreito, não chega sequer para me sentar nele. Desabaria imediatamente.
Não me sento nesse muro. O objectivo agora é construir paredes, muralhas, pilares: refazer o passado, essa mãe de todas as ausências, ordená-lo e dar-lhe sentido. Como, escrevi uma vez e é hoje mais verdade ainda do que quando o escrevi, um arquitecto que fizesse os planos da casa uma vez esta cosntruída. Verdade seja dita, é normal que hoje seja mais verdade: a casa está muito maior. O arquitecto precisa de mais tempo e de mais cuidado, de maiores e mais fortes muralhas. Talvez assim retenha as ausências.
(Para a M. E.)
10.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-09-2023
Mensagem para toda a gente que se sente atraída pelo glamour da vida de capitão de iate (incluindo iatezinhos): 1 - a tampa da retrete não só ainda não chegou mas também voltou para trás: alguém se enganou no meu e-mail e trocou o L de Luís por um I, erro dantes frequente mas agora cada vez mais raro; 2 - o R. não apareceu; 3 - o L. F. tão pouco (mas este, verdade seja dita, é quase uma benção não aparecer); 4 - o rigger não dá notícias - porque não as tem, claro -; 5 - o X. da Dinatec tão pouco - ditto. Boas notícias: 1 - O Janosh continua a trabalhar com a meticulosidade e a eficácia habituais; 2 - o comboio «registo» avançou mais um passo: chegou a tradução para polaco de um documento (reenviada illico presto - ou seja, imediatamente - para a Polónia, claro). De um ponto de vista puramente quantitativo, isto dá cinco a dois, mas como o palhaço não apareceu talvez se possa fazer quatro - três. E como no lado dos quatro há dois passivos - o Rigging Point e a Dinatec - vamos escamoteá-los da lista. Todos os subterfúgios são bons para equilibrar a balança.
No dia em que vir o «meu» P. daqui para fora e o olho esquerdo tratado deixo de comer maionese (excepto se for feita por mim, naturalmente...) O resto é amendoins, mais casca menos casca.
9.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-10-2023
Pode finalmente comer-se na Casa Julio. As filas de alemães barrigudos e alemás feias acabaram. A jovem loira que aqui trabalha desde que desembarcou da arca de Noé (reitero e sublinho a juventude da senhora) diz-me - quando lhe menciono esta sorte - que agora posso reservar mesa ao meio dia, quando houver estas filas todas (as de Verão). Detestáveis, acrescento mentalmente, estas filas de gente abominável que vem comer ao «mini-restaurante» (verbatim) porque um palerma qualquer num guia idiota lhes recomendou a «experiência», a «não perder». É evidente, ou devia ser para todos, que as minhas razões para frequentar esta casa há dez anos são muito mais válidas do que as deles. Aliás: são as únicas válidas. A saber: venho aqui porque quero comer bem por pouco dinheiro; venho aqui porque quero comer maiorquino no meio de maiorquinos, informalmente e num sítio aonde sou reconhecido. Porque quero estar num restaurante aonde as empregadas mandam uma piada e ouvem outras em troca, apesar de andarem sempre a correr. Que vale a «experiência» face a isto tudo? Que vivemos, quando turistamos? Que sabemos das casas Julio deste mundo quando para lá somos enviados por um guia du Routard, ou Baedeker, ou o raio que o parta?
A questão é muito mais complexa do que à primeira vista parece. Leva-me imediatamente a outra, completamente desescalada (no sentido de fora de escala, desproporcionada): deveria o Ocidente acabar com a ajuda «ao desenvolvimento»? Face aos resultados: Sim, claro. Mas há ou não pessoas físicas, concretas, nomeáveis, tangíveis que beneficiam dessa ajuda? Há. Serias capaz de lhes dizer que vais deixar de lhes dar comida porque o que a elas chega é uma pequena percentagem do que lhes foi enviado? Serias capaz de proibir as filas de turistas palermas (passe a redundância) que esperam à porta do Julio porque a experiência deles não passa de um ersatz? Quem és tu para decidir assim da vontade - ou do destino - das pessoas? Felizmente este decidir pode levar aspas. Não decido nada. Limito-me a pensar e a escrever, duas actividades às quais reconhecidamente não devia ter acesso mas enfim, tenho.
Ninguém. Não sou ninguém. Ou seja: volto para bordo, não sem antes comprar um maço de cigarros na Cantina (mau sinal mas pretexto para um rum Cacique, o que atenua) e aqui chegado oiço música sacra russa, porque não há nem nunca houve ninguém como eles para falar com Deus. (E com o Diabo, acrescento agora que penso nisso. Andam sempre juntos.)
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Questão subsidiária: os homens que pedem ao patrão um aumento de salário porque não ganham o suficiente para fazer face às despesas são os mesmos que tentam seduzir uma mulher porque estão sozinhos? (É para um amigo, claro.)
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E assim se esvai um dia do qual a única coisa que extraí foi ter o P. a brilhar (e ainda não acabou). O Janosh limpa-me esta merda melhor do que muitas mulheres e Deus sabe se estou precisado de um exército delas (para as limpezas). Amanhã vem o Ricardo (se vier. Esse é daqueles que só conta quando lhe tenho os olhos em cima). Lembram-se de quando escolhíamos as equipes pondo cuidadosamente um pé à frente do outro? Pois é mais ou menos assim.
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Pronto. Tal como os rios desaguam no mar eu desaguo nas Vésperas de Rachmaninoff, nas hierbas secas e no gozo com as palavras. Falta uma coisa, eu sei. Mas não se pode ter tudo. O que de certa forma é injusto: se pode ter-se nada, porque não ter tudo? A simetria deve ser seriamente reavaliada.
Espera, tortura
Será que os torturadores todos de todo o mundo já pensaram na tortura da espera? Ou essa ficou limitada aos escritores solitários e aos marinheiros apaixonados pelas suas embarcações?
8.10.23
Exíguo, uma paráfrase
A paráfrase perfeita seria deito-me "nos braços da exígua noite", límpida e linear. Contudo hesito: deito-me "nos exíguos braços da noite"? Deitamo-nos? A noite é exígua para nos acolher aos dois. Tem os braços demasiado curtos para nos abraçar. Os exíguos braços desta luz que acendeste e agora não sei apagar. Procuro-te nesta exígua noite, neste pequeno beliche cuja forma de V me faz pensar em ti, no nosso exíguo amor, tão breve, tão eterno. Como se o V estivesse deitado, pássaros em formação de voo migratório no exíguo espaço que nos coube em sorte. Ou que construímos os dois, pedra a pedra, olhar a olhar. Nos exíguos braços do imenso amor que nos acolheu.
Mercados, Papa e outras coisas
Tal como não acredito na infalibilidade papal, duvido muito da dos mercados e pelos mesmos motivos: o homem é falível e os mercados não passam de conjuntos de homens. Isto é, de seres faliveis. É verdade que o são menos do que o Papa, pela simples razão de que há mais pessoas nos mercados do que no Sumo Pontífice, por muito esquizo que este seja. Os erros de muita gente tendem a anular-se, se bem isso nem sempre aconteça. Ou seja: sendo falíveis, os mercados são-no menos do que meia dúzia de iluminárias num ministério.
7.10.23
Sarau de poesia
Venho deitar-me com tudo o que tenho de poesia na biblioteca de bordo. Não é muito, porque levo regularmente - ou levava, quando tinha casa - os livros para Lisboa.
"Despedida en la orilla del sur
Triste despedida en la orilla del sur
ondeante otoño al viento del oeste.
Mirarnos nos desgarra las entrañas.
Cuídate y no vuelvas la vista atrás."
111 Cuartetos de Bai Juyi, Editorial Pre-textos, col. La cruz del sur.
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"Sendo criadora de férias e guardadora
de expressões vulcânicas tenho
sempre a palavra errada para soltar
no momento certo.
..."
Rita Tormenta, Centrifugar angústias a 1600 RPM, ed. Safe Space Portugal [porquê o inglês? Espaço seguro não serve?]
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"É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem
..."
Ruy Belo, Soneto superdesenvolvido, in Homem de Palavra(s), cadernos de poesia n° 9, Publicações D. Quixote
A chave para o universo
"Vi coisas extraordinárias
Um leão que tomava conta
das vacas que pastavam
Uma mãe que nasceu
depois do próprio filho
Um mestre prostrado
perante o seu discípulo
Peixes desovando
na copa das árvores
Um gato dando a mão
a um cão Um saco de juta
puxando um carro de bois
Um búfalo que saía para
pastar a cavalo
Uma árvore com os ramos
na terra e as raízes no céu
É esta
a tua chave para o universo "
Kabir in O nome daquele que não tem nome, Versões de Jorge Sousa Braga, ed. Assírio & Alvim, Março de 2016
O burguês marxista
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-10-2023
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Um «prego» no Joan, um gelado no Claudio e um rum na Cantina. Ainda há quem seja contra o aquecimento global? Por mim, venha ele, muito e forte.
Um prego aqui chama-se «serranito» ou llonguet serranito, de seu nome completo. Llonguet é o nome genérico das sanduíches feitas com um pão igual ao nosso papo-seco. O Joan tem duas versões - a normal e a picante. Com os croquetes de chipirones são o meu prato favorito do bar Rita, aonde ontem fui com a U. e aonde já não ia há muito tempo. Tempo demais, aliás: aquele lugar é uma pequena injecção de pertença.
Périplo do dia, que à tarde intitulei «Bem vindos ao mundo encantado do Luisinho Serpa» e agora só alteraria para Luís Serpa, porque o tempo fez das suas e amaciou os ângulos. Acontece que ao lado do mercado biológico há um restaurante chamado Celler de Sa Premsa que é um clássico de Palma. É o único restaurante do mundo aonde um empregado me desaconselhou o vinho da casa - podre de razão, como vim a comprovar por o ter pedido na mesma. É imbebível. Acontece que no menu têm beringelas recheadas, um prato que a minha Mãe fazia amiúde e do qual sou apreciador impenitente. Meteu-se-me na cabeça que hoje o almoço seria isso. Vim a bordo deixar a fruta do mercado e avisar a senhora do Corb Marí de que teríamos de deixar o schweinshaxe para segunda-feira e ala para o Celler. O qual estava cheio, só com reserva, filas à porta. Até as reservas tinham de esperar. «Pouco importa», penso. «Vou ao Don Caracol», outro clássico, «lá terão as beringelas». Não têm, Vou ao Puente. Idem. Espreito na Cantina Patrón Lunares, um restaurante de resto lindo aonde fui uma vez com a T. e nunca mais voltei, injustamente.A dona foi de uma simpatia indescrítivel, a coisa menos maiorquina que me foi dado ver desde que aqui cheguei pela primeira vez. Enquanto eu bebia um sublime vermute «caseiro» (aspas porque cito, não porque duvide da origem caseira da coisa) telefonou para tudo quanto lhe ocorria que poderia ter as beringelas. Neste ponto começo a lembrar-me de um conto de O'Henry em que a mulher da personagem principal, grávida, quer comer creio que morangos mas é Natal e o desgraçado do marido dá três voltas à cidade até encontrar os morangos (?), só para chegar a casa triunfante e ouvir a mulher dizer-lhe que afinal o que ela quer é laranjas - o homem tinha ouvido, durante todo o périplo, «não temos morangos, mas se quiser laranjas...» Não é o melhor conto de O'Henry, o desfecho é demasiado previsível, mas é um conto do qual me lembro frequentemente. Hoje tendo sido uma dessas frequências. Saio do Lunares rumo à casa Maruka, que não conheço mas que aparentemente tem o raio das coisas. Há fila à porta e lembro-me de telefonar ao Sa Premsa - agora, uma hora e quase meia depois talvez haja mesa.
Há. Resultado: fiquei a saber que o El Puente está transformado num buraco para turistas, que o Can Frau, no mercado de Santa Catalina - propriedade ou gerido ou assim de um português que está em Mallorca há tanto tempo que já nem sabe bem de onde é - costuma ter beringelas recheadas, que a casa Maruka talvez não seja má mas parece cara e - sobretudo - que tenho de ir mais vezes ao Sa Premsa e tenho absolutamente de ir ao Lunares. Confirmei ainda que a bicicleta BH Glasgow foi feita para circular pelas ruas desta - ou de outra - cidade (e eu para ela), que o plano, quase abandonado, de partilhar o meu tempo entre Lisboa, Genebra e Palma deixa de estar abandonado pela mesma razão que leva as árvores a desenvolver raízes aonde as plantamos e não só aonde elas apareceram e, finalmente, que nos vinte anos que me restam de vida tenho de aprender a fazer carne picada como a minha Mãe fazia porque as beringelas recheadas de Mallorca não têm nada a ver com as da tia Blá - Blazinha sem tia para o meu Pai - apesar de serem muito boas. (Não há prato que leve beringelas e seja mau, mas isso são contas de outro rosário.)
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A retranca está a bordo e só não está no sítio porque quero pôr uma porca no cachimbo, aquilo está demasiado frágil (o J. W. diz que está no limite). Os passos podem ser milimétricos mas pelo menos são dados, todos os dias, um após outro. Já não sei quem me recomendou a Rigging Point quando cá cheguei vai para quase seis anos mas sabe Deus que foi uma divina recomendação.
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O objectivo para a semana é pôr a cozinha do P. a funcionar. Vamos ver quanto tempo leva? Já falta muito pouco. O principal problema é que ainda há trabalho a fazer no interior e eu não quero encher aquela porcaria toda de pó de kevlar / carbono...
Às vezes - raramente, verdade seja dita - penso no que era o P. quando aqui cheguei, no dia dez de Março de 2018 - e no que é hoje. É uma homenagem àquele dito segundo o qual «as aparências iludem»; e outra à minha convicção de que o essencial não é o que se vê; e uma ferida aberta: eu queria muito que o exterior reflectisse todo o esforço que foi feito no que não se vê. Tenho de começar a jogar no totomilhões...
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Tenho, sobretudo, de começar a pensar no que será a minha vida quando a começar a vivê-la do interior. De passagem, até em mim...
(Bom, mas quem não está?)
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Comprei mais uma tartaruga ao gajo das madeiras, no Paseig. Não é que queira viver tanto como elas - não quero - mas quero viver à velocidade a que elas envelhecem.
A beleza dos números pares
Deslizo silenciosamente pela noite e encosto-me a ti. Chegámos, querida, à idade em que acordar um ao lado do outro é mais importante do que adormecer. Um dia adormeceremos e não acordaremos. Já acordar não há sem adormecer.
6.10.23
Mamas, redundâncias
- Uma mulher inteligente e com sentido de humor...
- Estás a dar-lhe nos pleonasmos?
- ... vale uma com um bom par de mamas.
- E continuas!
Duas ou três coisas que sei dele; ou: auto-retrato de um homem simples
- Anda de bicicleta não para salvar o planeta - este desenrasca-se muito bem se o deixarem em paz - mas por causa da liberdade que a burra lhe dá;
- Usa canetas de tinta permanente que transporta em estojos de duas. Assim perde-as aos pares, que acha muito melhor do que perdê-las uma a uma;
- Está-se completamente nas tintas para a aristocracia, para as ascendências, descendências e outras linhagens, não por causa da igualdade - da qual não é grande apóstolo - mas simplesmente porque pensa que cada um vale e responde por si e não pelo que os seus tetravós fizeram ou deixaram de fazer;
- É ateu por cepticismo mas aprecia os mitos das religiões. Destas, prefere a católica, porque é a que conhece melhor e porque acha mais interessante espetar pregos em pessoas do que alfinetes em bonecos;
- Acredita no amor como valor basilar, fundacional e essencial: de todos os desequilíbrios é o que traz mais alegria - e dor, sua irmã siamesa;
- Recusa terminantemente o zeitgeist, quaisquer que sejam o zeit ou o geist: não acredita em bandos, clubes, grupos e pensa que os erros de julgamento de qualquer agrupamento de mais de duas pessoas têm forçosamente ou podem ter piores consequências do que os mesmos erros vindos de uma pessoa só;
- Não é ferozmente independente porque isso seria como dizer que respira com ferocidade ou que é dextro por escolha. É independente e livre como uma baleia-azul é grande: sem saber porquê ou para quê;
- Pensa que a função de uma teoria é simplificar o que é complexo e provar que toda a simplicidade é ilusória: não acredita em maniqueísmos, bipolaridades ou causas. Tal como ser livre é poder escolher as suas prisões, acreditar numa ideia é abraçar as outras, as que se lhe opõem; dar-lhes, por assim dizer, direito de cidadania;
- Acredita na Razão: é a outra face da moeda do Amor. Uma vida guiada por estes dois valores terá talvez muitos ziguezagues, mas não será vã;
- Acredita no mar, mas disso não sabe falar. Questão de pudor, sem dúvida.
5.10.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-10-2023
Lórien vem do nome de um livro cujo nome já não recordo - ouvi-o há mais de cinco minutos - e vou ter de googlar porque me lembro do autor mas não do título (Tolkien e Senhor dos Anéis, respectivamente. Tenho de ler isto um dia).
Amanhã encontro-me com a P. à tarde na Rambla e com a U. depois, no bar Rita. Ver se reato com a vida social, que já tive e pouco a pouco fui abandonando. Não sei porquê mas tão pouco tempo perco a perguntar-mo. Basta usar o telefone para telefonar e não só para ler artigos e facebooks.
A noite acabou (acabou?) da maneira mais palmitana possível: apetecia-me fumar um cigarro, fui ao 7 Machos porque sei que o Alex os tem, bebi um mezcal e uma margarita, aprendi uma série de coisas - incluindo a receita de um spaghetti com ouriços do mar que juro, juro jurado vou experimentar - e vim para bordo saciado: viver é saber que estamos de passagem, qualquer que seja o nível da passagem.
Programa para amanhã: Radu, retranca e registo. A minha vida parece uma música do Philipp Glass.
Trabalho, respeito e geografia
Envio um e-mail a uma empresa em Inglaterra, Suíça ou Alemanha e tenho uma resposta uma hora depois. Envio um e-mail a uma empresa ou organismo portugueses e das duas uma: ou não tenho resposta ou tenho-a uma semana depois. Quando reclamo, a explicação é quase sempre a mesma: demasiado trabalho. De onde se conclui que naqueles países ninguém faz nada. Só em Portugal é que se trabalha.
4.10.23
Dispersas de hoje - Palma, 04-10-2023
A que chamas
Deixa-me que a mão entre nessa cavidade a que chamas solidão. Deixa que o meu olhar te entre por essa planície a que chamas pele. Deixa-me entrar por essa esfera a que chamo tu.
Pasmo, Chevetogne, eternidade
Oiço os Chants de la Liturgie Slavonne cantados pelo Coro dos Monges de Chevetogne. A música é um tapete pelo qual deslizo e que desliza ele próprio sobre uma vasta planície. Faltam-me os termos para nomear tudo isto: eu no tapete, o tapete no mundo, o mundo.
Tento eternidade. Funciona. Divindade. Também. Tento pasmo. É isso. Encontrei. Sublime pasmo. Esquece a eternidade, a divindade e tudo o que não seja isto: pasmo, divino e eterno espanto.
3.10.23
Digestão, hierbas secas
A insónia é voluntária. Não me apetece dormir, nem sair, nem fazer outra coisa do que a que faço: ler posts antigos (mais de dez anos e de Outubro) do DV. Apercebo-me - uma vez mais - de que o que escrevo precisa de envelhecer para ser potável. A "blogosfera" desapareceu e a Facebookosfera não a substituíu. Publicar o resto do blogue não é uma ideia nascida da vanidade ou da estultícia, sua irmã quase gémea. Apetece-me voltar a pôr política no DV. E ficção. Vou beber umas hierbas secas para digerir e esquecer tudo isto.
ADENDA: Acabo a ouvir as Vésperas de Rachmaninov enquanto bebo as hierbas e penso em tudo o que precisa de envelhecer para ser potável. Eu, por exemplo.
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«Quando o amor morrer
Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços,
A Deus e aos sonhos que gelaram.»
Ruy Cinatti
(08-10-2013)
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-10-23
Chegada a Palma num estilo que um dia virá a ser conhecido por Estilo Luisinho. O avião aterra, o telefone é ligado e o meu pandemónio da minha vida anuncia-se: mensagem do Nikki, que está na lancha quase (piada íntima) ao lado. "Tens um alarme a tocar há dois dias". Peço-lhe para ir a bordo apagar o interruptor da Navegação, aquilo vem dali. Primeiro acto. Segundo: apanho um taxista de esquerda e apreciador de história. Dei-lhe um bocadinho de corda e o homem não parou. Estava nitidamente a gostar da conversa: fizemos o último quilómetro a dez à hora, enquanto me falava da "catastrófica colonização europeia em África", de que a prova, segundo ele, era o milhão de moçambicanos brancos (nisto não se enganou) que teve de regressar a Portugal. Chegámos ao clube no momento em que eu lhe disse que sou um desses. Terceiro acto: saio do táxi, vou para a bicicleta e apercebo-me de que o telefone tinha ficado na viatura do taxista-historiador.
Safou-me o Nikki, outra vez. Estava a bordo da lancha de que trata e deu-me acesso à rede dele.
Tout est bien qui fini bien: vim jantar ao Sa Ronda, a morcela de Burgos e a salada russa ("especialidade da casa") estavam óptimas e só me revoltou ter deixado metade, maldita injecção que não me deixa honrar o trabalho dos bons cozinheiros. Bebo um americano e um Cacique e penso na sorte: amanhã às nove da manhã tenho o pessoal da Dinatec (ámen) a bordo.
Esta coisa entre mim e o P. está a tornar-se quase pessoal (ditto). O motto agora é: "não és homem não és nada". Segue-se a condição - se esta porra não estiver pronta em Novembro; se aparecer mais merda maior; se se e se. Não és homem não és nada. Se.
P., garanto-te que sou homem para ti.
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Vinte e três graus centígrados em Palma agora (dez da noite). A quem se queixa do aquecimento global sugiro um inferno de gelo.
Palhaçadas...
...há muitas, seu palerma. Os gajos que inventaram as vacinas anti-coisa recebem o Nobel. As palhaçadas são para levar até ao fim, sejam globais ou locais, como os da cachopa que veio agora anunciar ao planeta - ou à sua parte lusa - que ter sorte dá trabalho. Novidade essa que nós, cachopos de uma certa idade, sabíamos há pelo menos meia dúzia de décadas. Os suíços debatem-se com um problema que eles mesmos criaram: há quarenta anos tornaram obrigatórios os seguros de saúde e hey, ecco, o sistema torna-se ingovernável. (Isto não é de agora.) Os jornais insistem em chamar "activistas" (corrijo-lhes a grafia) a palhaços que insistem em mostrar a toda a gente que não têm cérebro. Têm cerebelo e já é um pau por uma pedra. A publicidade a um "fitness club" (aspas porque cito) de Genebra tenta persuadir os potenciais clientes a fazer já não sei o quê ao seu (deles) summer body. Corps d'été não tem a mesma capacidade de persuasão, deduz-se. No meio disto tudo preparo-me para aprofundar a minha pegada carbónica (não me lembro do nome exacto, se é que "exacto" se pode usar neste contexto) e deixo o tempo passar por mim no aeroporto de Genebra, a caminho de Palma. O tempo que passe à velocidade que lhe apetecer. As palhaçadas aligeiram-no.
Omnipotência, limites
Os deuses carregam o pesado grilhão da omnipotência. Por isso fazem tantos disparates: revoltam-se contra a ausência de limites. É impossível viver sem eles.
Mesmo quando se quer.
2.10.23
Paradoxos helvéticos
Quanto mais se envelhece mais se gosta da Suíça e quanto mais se gosta da Suíça menos se envelhece.
1.10.23
Morte às pragas
Tal como não há liberdade - há liberdades - não há fascismo. Há fascismos e os dias de hoje são-lhes terreno fértil. Florescem como as mil flores do assassino chinês. Ele é o fascismo da segurança, o fascismo verde, o feminista, o fascismo dos indignados e ofendidos, o da "inclusão" (aspas porque separar as pessoas em grupos cada vez mais pequenos é tudo menos incluí-las).
Se o antigo testamento fosse escrito hoje as pragas não seriam sete.