29.2.24
Farrapos
28.2.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 26-02-2024
Hoje fui, pela primeira vez, fazer compras com o bote. Entrei assim na categoria a que os americanos chamam "rabos molhados". No caso particular deste dinghy não molho o rabo mas ando com os pés molhados. Wet feet seria mais apropriado, portanto.
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O T. estava num apéro com os colegas e convidou-me a ir ter com ele. Acabámos por jantar juntos. O único momento em que um pai se sente mãe é quando ouve elogios ao filho, vindos de todos os lados - colegas, patrão, amigos.
Elogios unânimes, acompanhados por descontos na empresa aonde ele trabalha. A boca só vale quando o porta-moedas está ao lado e a confirma. Dito de outra forma: o que sai dos lábios é ar, o que sai da carteira é metal.
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Pequenos problemas para resolver no S. D. Não se pode dizer que eu seja grande apreciador de construtores franceses, salvo raras e honrosas excepções. Neste caso, estou eternamente grato à Jeanneau. Agora tenho com que ocupar-me, sem ser as malditas «plataformas».
Isto é meia mentira e necessitaria de meia-hora para a explicar. Resumindo, fica assim:
- Um filho porreiro e amado por toda a gente;
- Trabalho a valer no S. D.;
- Ida à Europa daqui a um mês;
Chega para fazer uma maionese decente.
25.2.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 24-02-2024
A rota directa seria de vinte e quatro milhas mas desde que saímos da baía de Fort-de-France viemos numa bolina cerrada até ao fim. Tivemos direito a um squall, o T. passou um dia horroroso, enjoado de não poder falar. Ou seja, fiz tudo sozinho até quase à chegada e estou morto. Qualquer ideia de navegação longa em solitário teria morrido agora, se não estivesse já morta e enterrada há muito tempo.
Restam-me, contudo, várias satisfações. Primo, claro, estar no mar. Foi um gozo do princípio ao fim. Secundo, ter encontrado rapidamente os gestos. Ao fim de três viragens de bordo saíam-me perfeitas. Tertio, ter conseguido fazer mais de metade do Cul-de-sac du Marin à bolina (e só não o fiz todo porque queria fazer batota com a marina (consegui). Quarto, ter ficado a conhecer o S. D. na sua função primeira, que é navegar (isto discute-se, mas isso é outra história. Ou então fica para depois).
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Martinique: um país em que as pessoas ou são de uma gentileza e simpatia extremas ou são agressivas, mal-educadas e desagradáveis. Os funcionários da marina que me foram buscar para me rebocar fazem parte deste segundo grupo. A senhora que me atende no restaurante Sous les manguiers também, em menor escala. Estou demasiado cansado - e feliz - para me chatear. Aproveito o Viognier a quinze euros a botelha (espero que não seja como no Zanzibar) e antecipo com prazer a proximidade do bote. Em menos de dez minutos estarei a bordo. E isto porque ando à velocidade de uma pata com dez crias atrás.
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Apanhei um escaldão. Estava tão precisado!
24.2.24
Diálogo, tempo
- Ainda tenho arrepios e um bocadinho de desconforto mas já não tenho dores. O tempo vai fazendo o seu trabalho. Em breve estarei como novo.
Como novo? Meu caro, o tempo vai fazendo o seu trabalho, sem duvida, mas como o mar vai erodindo a costa. Nunca mais estarás como novo. Pelo contrário: estás é cada vez mais como velho.
- Começo finalmente a corresponder à idade que tenho. Sempre andei atrás dela e agora o tempo resolveu apanhar-me.
- Ou esperar por ti. Tens finalmente as curvas do tempo e da idade alinhadas e em fase.
- Não posso dizer que seja desagradável. É só estranho.
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 23-02-2024
Em Fort-de-France há sítios (bares, cafés, restaurantes) maus e caros e sítios bons muito caros. Estou aqui há mês e meio, notoriamente insuficiente para se conhecer uma cidade e como amanhã vou para o Marin é pouco provável que a situação mude: permanecerá uma desconhecida. Não consegui substituir as velhas referências por outras novas. Da memória sobrevive apenas o L'Impératrice, aonde hoje regressei. A direcção do hotel enviou-me um pedido de desculpas que para mim fechou o assunto. Para o idiota do empregado creio que não mas esse problema é dele e infelizmente não o posso ajudar.
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Último dia nos Z'Abricots. A marina é porreira, o pessoal impecável, os vizinhos uma simpatia; mas está longe de tudo e com excepção de dois restaurantes (categoria muito caros) não tem nada. Relativamente perto há um pequeno Carrefour, duas lavandarias - uma das quais de auto-serviço - e mais duas ou três lojas aonde nunca entrei. É preciso um carro para tudo. A minha ideia de ir viver para o campo sofreu um forte abalo.
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Da outra lavandaria veio hoje a roupa da cama, lavada e a cheirar bem. O camarote ficou assim também: lavado e a cheirar bem. Chateei-me com as senhoras porque o preço foi outra vez diferente, mas desta vez não lhes escrevo. Amanhã vou-me embora. Que se lixem. A verdade é que a roupa veio limpíssima e isso chega-me.
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Fevereiro passou a galope. Amanhã é Março e depois de amanhã Abril. Amanhã ao fim do dia vou a Palma. Depois de amanhã atravesso para Lisboa. Se Deus existisse teria decerto a simpatia de me fazer os dias assim, todos curtos, todos a galope.
23.2.24
Sul, claro
Sal / Sel / Sil / Sol / Sul
Ou seja, em cinco fonemas dois são inúteis, dois bastante necessários e um essencial. Pergunt número um: qual é o essencial?
Pergunta número dois: há outro monossílabo português com tantas formas úteis como este?
Reminiscências
Vinha para bordo com uma daquelas vontades de cozinhar contra as quais não se pode lutar. No caminho para Fort-de-France lera um texto pequeno, daqueles que nos abalam. Falava de paisagens, passeios e de «reminiscências de nostalgias não vividas», uma sequência de palavras que poderia ter sido escrita para mim. Não foi, claro, mas a nostalgia que me tem acompanhado os dias encontrou ali um eco, uma reminiscência. Queria um jantar como um longo e lento passeio.
Chegado, pus uma cebola a refogar em manteiga, reli o texto, pus o Wazimbo - para mim o melhor músico moçambicano, ele e o Jimmy Dludlu, este num registo diferente - servi-me um ti'punch blanc (não os há de outra cor, de qualquer forma, excepto para turistas e néscios), reli o texto, cortei tomate em cubos pequenos, piquei a salsa, cortei metade da beringela em rodelas e pu-la a dégorger (? - Se alguém me ajudar a traduzir isto agradeço, a tradução do google é ridícula). o cheiro das cebolas a refogar em lume muito muito fraco enchia-me o barco, a música, o texto. Quando as cebolas estavam mais do que translúcidas e menos do que castanhas juntei-lhes o tomate e a salsa. Acrescentei as especiarias, mexi tudo muito bem e o gás acabou.
Mudar a garrafa é um projecto que exige tempo e que será melhor fazer à luz do dia (passo os pormenores). Da minha vontade inicial - escrever enquanto o jantar cozia, lentamente - ficou a reminiscência de um molho que será comido amanhã e a ideia de que sim, os lugares dão-se-nos, com generosidade e sem pedir nada em troca, enchem-nos de reminiscências de vidas que um dia teremos, de tudo o que um dia seremos. Há lugares que não são só lugares - são projecções de nós, são aquilo que nós seríamos se fôssemos uma paisagem. E há passeios assim, também, passeios nesses lugares que deixam de ser lugares e se transformam em nós, como se ao olhar para a paisagem estivéssemos a olhar para dentro.
22.2.24
Passaporte
21.2.24
De Passagem
De Passagem é um conjunto de fotografias e de textos feitos nos sítios por onde passo. É essa a única coisa que têm em comum: são feitos nos lugares por onde estou de passagem. As fotografias não ilustram os textos e estes não as explicam. São simplesmente duas formas diferentes de falar da mesma coisa. Poder-se-ia talvez comparar as fotografias e os textos a prosa e poesia. A analogia não seria perfeita mas tão pouco seria completamente desadequada. Talvez um triângulo isósceles seja uma boa ilustração: na base estão a fotografia e a prosa e a uni-los estão os lugares, os momentos, a luz, as formas, as palavras - enfim, aquilo de que uma fotografia e um texto são feitos.
Porém, ao contrário daquilo que se poderia pensar - ao contrário daquilo que eu próprio penso - De Passagem não é só uma colecção de lugares. É uma atitude. Ou melhor: uma maneira de ser. Um feitio. Um carácter, uma personalidade. Não estou de passagem. Sou de passagem. Até por mim estou de passagem.
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 20-02-2024
A maionese não me saiu muito boa. Quando muito, boa. Já fico contente: é sinal de que a minha menstruação está a passar. Ou no meu caso, como dizia uma piada da minha infância, monstruação. Deve estar a acabar. Para acelerar o processo procuro os Cânticos da Liturgia Eslava no Youtube pelo coro dos monges de Chevetogne, farto de saber que não há o disco da Musique d'Abord completo. Não faz mal: oiço o que há e penso no que falta, como na maionese penso no que falta - na verdade, no que está a mais - para ter ficado muito boa e não só boa. Penso também no clarete de Bordeaux com que acompanhei os fish fingers, nos runs com que os precedi, no prazer que me vai dar ir no sábado para o Marin sem motor mas com o T. para me ajudar e talvez um vizinho de pontão, vamos ver, dar-me-á uma resposta amanhã. E eu que sonhava com navegar por essas ilhas fora...
Não me queixo. Mais vale este Inverno do que muitos que tenho passado nos últimos anos. Pelo menos posso escrever frases infindas, com montes de vírgulas em tudo quanto é sítio, ao ritmo dos cânticos, não há melhor maneira de nos ligarmos à eternidade, digam o que disserem. Não é ligar. É entregar. Não há melhor maneira de nos entregarmos à eternidade, mesmo para um ateu como eu. Não tem nada a ver, não depende sequer do nome que se dá à eternidade, seja ele Deus seja outro qualquer, como amor, por exemplo, ou mar, ou vida ou seja lá o que for desde que seja profundo, infinito e azul. Sim, azul. É a cor do infinito, a cor infinita. As outras não passam de Pantones.
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Fiz queixa do puto do Impératrice. No sábado excedeu-se. Fi-lo não só por estar verdadeiramente chateado com ele mas também por curiosidade. É a segunda que faço aqui. A primeira foi contra uma empregada de uma agência de rent-a-car. Serviu para demonstrar que a rapariga tem as costas quentes e - sobretudo - que nestas latitudes há valores mais importantes do que o serviço ao cliente. Pergunto-me se desta vez o resultado vai ser o mesmo. Enviei uma queixa à direcção do hotel - duvido muito que chegue - e outra à direcção do turismo. A ver vamos, como dizia o ceguinho. Aceitar certas coisas porque são pretinhos ou porque não sabem é uma forma de racismo e de paternalismo que não suporto. Estou-me nas tintas para a cor da pele. Pode ser preto, amarelo, castanho ou encarnado - antes disso é empregado de mesa, ponto. Detesto esta espécie de racismo que consiste a desculpar pessoas por causa da cor da pele. Enfim, na verdade detesto todas as espécies de racismo. Como também, de resto, detesto os gritos de «racismo» quando o racismo não tem nada a ver com a causa dos gritos.
Na verdade falta-me uma enorme quantidade de paciência para o racismo, seja ele qual for. Sempre fui dermo-daltónico e não é agora que vou ficar sensível às dermo-cores.
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Afinal parece que o disco está todo no youtube. Há sempre um lugarzinho para o infinito, não é?
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Avanço no Labro, um nome que conheca muito mal quando andava por aqueles lados e agora lamento. O homem é brilhante. É uma espécie de faz-tudo: cinema, jornalismo, romances, rádio, televisão. Acho que o meu livro devia ter-se chamado Alheado, em vez de De Passagem.
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Hesito entre um rum e um copo de vinho e opto por lavar a loiça. Chama-se a isto pensar fora do copo.
20.2.24
Auto-disparates
Input, entropia e pensos (inclui um exercício)
A médica insiste em que eu arranje uma enfermeira para me fazer os pensos e eu insisto em fazê-los eu.
(Penso-me, logo existo.)
A verdade é que acredito na capacidade regenerativa da carcaça. Por velha que esteja, vai aguentando e vai-se reconstruindo. Com falhas, claro, a entropia faz o seu trabalho. Apesar de tudo o que ponho como entrada no sistema, ele consome mais e vai-se gastando. Andamos às voltas, o "meio de transporte" e eu, em simbiose. (Como se pudéssemos andar separados.)
Exercício: rearrume os pronomes reflexos na oração "Penso-me, como e gasto-me".
18.2.24
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM - TOM França, 17-02-2024
Posso estar enganado, claro. Estou muitas vezes. Mas o homem tem todo o aspecto de ser «artista» e está acompanhado por duas senhoras que têm todo o aspecto de ser «senhoras que acompanham artistas». Tudo isto entre aspas porque posso estar enganado.
O restaurante é caro. É o tipo de lugar de que os artistas gostam, sobretudo quando são de esquerda, passe o pleonasmo e aonde nós, mortais meros, vamos quando precisamos de alguém que nos acarinhe e só nos temos a nós próprios para isso.
O que é a qualidade? Ainda não sei. Em contrapartida, sei que preciso dela como um peixe de água e aqui estou, finalmente em França. Hallelujah! Finalement, la vraie France!
O problema sendo: aonde arrumam eles o passado?
Se este restaurante escrevesse à mão como seria a sua escrita?
Não sei. Sei que estava a precisar de um havre de qualité. Um abrigo de qualidade. Um porto de abrigo. Saio daqui com a camisa cheia de nódoas - culpa de um bocado de pão que me caiu na sopa - a cabeça cheia de bem-estar e a carteira bastante mais vazia, o que só prova que os contrários se equilibram.
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Num país em que até à mediocridade é cara, como poderia a excelência não o ser?
17.2.24
O resto é conversa
A minha geração (e muitas outras antes dela, verdade seja dita) atribuía qualidades mírificas ao coito. Ele era «encontro de almas», «descobrir o outro» e sei lá que mais. Tretas, claro. Como dizia uma namorada que um dia tive: conversas de iroku (a namorada do pai era japonesa e ela não gostava por aí além da senhora).
A verdade é que molhar o pincel é bom e não molhar é mau (ou pelo menos é uma ausência de bom, o que para certas idades são equivalentes). O resto é conversa de encher chouriços, versão portuguesa da tal senhora. A verdade foi muito bem expressa por Reiser numa série de cartoons: «On ne baise plus, on s'aime». Basta fazer uma pesquisa no Google e eles aparecem.
O resto é conversa.
Definição ( ceci n'est pas un cour de mathématiques)
O que é o luxo? É uma combinação de bom gosto e de ostentação nas proporções correctas. Noventa e nove porcento de bom gosto e zero vírgula zero um por cento de ostentação.
Do uso das coisas e outras histórias
Gosto de ver as coisas usadas (mas não negligenciadas, que é muito diferente). Uma das razões da minha aversão aos «iates», sejam super, mega ou o raio que os parta vem dessa necessidade que eles têm de ter tudo sempre como se tivesse acabado de sair do estaleiro. Tudo tem de estar como novo, como se não fosse usado. Tem nada a ver com valor de revenda nem com a estética. É uma simples manifestação de poder - coisa à qual sou mais ou menos alérgico, forçoso é reconhecer. Uma coisa usada e bem tratada é, para mim, mais bonita e tem mais histórias para contar do que uma que parece não ter vivido um dia que fosse.
Claro que este princípio (mutatis mutandis) pode aplicar-se a pessoas, sobretudo se forem do sexo feminino. Mas isso é outra história.
A maravilha das verdades simples
16.2.24
Um comboio para lado nenhum
Nada disto aconteceu, nada disto se passou como digo que aconteceu. Toumani Diabaté não está a tocar as Mandé Variations, um dos discos mais belos que a humanidade produziu e que se lixe a world music, com f grande se faz favor; a ventoinha do meu camarote não foi apagada agora mesmo e não estou tapado com o lençol; a médica não me disse nada àcerca de cuidados enfermeiros; não me encharquei em rum - nem sequer acabei o copo; nada disto aconteceu num dos planetas em que habito. Destapei-me. Parei a ventoinha. Não bebi o rum todo até ao fim. Nada disto é verdade, nem isto nem o seu contrário. Acabo de beber quase um decilitro de água. Disse à médica que sim, tinha bebido quase dois litros de água por dia, a seguir à operação. Também lhe disse que nem numa semana bebi essa água toda, mas ela não ouviu. Tenho de treinar o meu talento de ventríloquo. Tenho de beber mais água. Tenho de ouvir o Diabaté mais vezes. A vida passa por mim como aquele comboio das feiras, que apanhamos mas nos quais não acreditamos - de qualquer forma não nos levam a lado nenhum. Não sei sequer se estou sentado ao lado do condutor se no meu lugar favorito, ao fundo da última carruagem, a dos retardatários, a dos que apanharam o comboio com mais dúvidas do que certezas. "Nesta carruagem não há lugar para certezas", poderia um cartaz dizer. "Só dúvidas". Penso na quantidade de músicos que poderia incluir na viagem mas são muitos. E excluir, claro. É muito tarde para fazer listas, destapei-me, parei a ventoinha, Diabaté faz-me desviar do que escrevo para o ouvir, sei que vou ter de beber mais água porque estou com sede e sei que vou acabar o rum. Quer se queira quer não o universo é um gato que cai sempre de pé, venha de onde vier.
Amanhã terei de ver se consigo resolver o problema do motor. Amanhã terei de ver se consigo resolver o problema do comboio da feira. Tem uma carruagem que diz "Só para boçais" mas ninguém se reconhece como boçal e a carruagem vai vazia. Talvez se soubessem escrever uma frase completa, com sujeito, predicado e complemento directo. Talvez.
Talvez devesse haver uma carruagem para quem desliga a ventoinha do camarote porque não sabe se prefere ter frio ou ter calor, se prefere tapar-se com o lençol ou destapar-se, se prefere caras ou coroas. Talvez.
Ou uma carruagem para quem gosta de beber água, dois litros por dia "para limpar os circuitos" (aspas porque me cito). A mesma pessoa poderá ocupar várias carruagens simultaneamente? Do género "não tenho certezas, não bebo água, gosto de Toumani Diabaté, bebo rum e abro excepções a todas estas afirmações". Todas elas são verdade e o seu oposto é igualmente verdade. Cada uma delas mereceria uma carruagem, se a justiça funcionasse. (Não sei de que justiça se trata aqui.)
Não sei e sei que não sei, o que demonstra que sei. O comboio não leva a lado nenhum senão ao lado de onde saiu, chamado precisamente "nenhum".
Não há esforços inúteis
"II n'y a pas d'efforts inutiles. Sisyphe se faisait des muscles."
Roger Caillois, citado por Philippe Labro in J'irais nager dans plus de rivières.
15.2.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 14 e 15-02-2024
14-02-2024
Começo este diário de hoje por sugerir aos meus leitores um disco de Sonny Rollins chamado Way Out West. É do melhor que podem ouvir de Rollins. Ou seja: é do melhor que podem ouvir.
Está feito.
Continuo por sugerir a roulotte do Joel, quando por acaso estiverem nos Z'Abricots, for fim-de-semana ou equiparado e não quiserem gastar muito dinheiro em comida. Tem frango, costeletas de porco, às vezes lagostim. É sempre bom, barato, simpático e fica pertíssimo da marina.
(Além de que penso que duas semanas serão mais do que suficientes.)
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É isto um dia? É, é isto um dia. Pharoah Sanders, fish fingers, vinho tinto com limonada (noutras longitudes / latitudes designado por tinto de verano), confirmação de um velho dito francês segundo o qual «à quelque chose malheur est bon», que eu traduziria por «para qualquer coisa o azar é bom», se alguém me pedisse para traduzir, enfermeira contactada e decisão tomada: se não houver enfermeira faço eu o tratamento. Ninguém trata melhor de mim do que eu (isto é uma afirmação que a história desmente facilmente, mas eu quero que a história se foda). Ah, e pedido de amarração no Marin aceite.
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Vou fritar os fish fingers, encher a maionese de pimentos picantes, encher-me de rum Trois Rivières e de cerveja Lorraine (não tenho cigarros), ler Labro, dormir e pensar na sorte que tenho (tudo isto quase ao mesmo tempo, num intervalo temporal de para aí umas duas horas no máximo). Quantos milhões de pessoas quereriam estar agora a ouvir Pharoah Sanders enquanto bebiam um tinto de verano e esperavam por fish fingers? Milhões, meus caros. Milhões.
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Entretanto o meu harém imaginário vai-se desfazendo. A competição dos homens da terra é terível. Eles têm uma vantagem sobre nós, marinheiros: estão sempre lá.
Claro que isto é uma vantagem ilusória. Ao fim de algum tempo, transformar-se-á em «Eles têm uma desvantagem: estão sempre aqui». O problema é saber quanto tempo é «ao fim de algum tempo». Para mim, uma eternidade e meia.
13.2.24
Diário de Bordos - Saint-Pierre, Martinique, DOM-TOM França, 13-02-2024
Dia feriado aqui (e em todo o lado, imagino). Venho almoçar ao La Vague, em Saint-Pierre, que descobri recentemente.
Abençoo uma vez mais a minha intuição - para restaurantes. Fosse ela tão perspicaz para outras coisas e teria um harém ao lado de uma frota de embarcações de recreio (ou dentro da frota, não sei. Tenho de pensar nisso). Imaginem uma daquelas casas das margens do Léman mas noutro sítio, com um porto privativo, três ou quatro embarcações de vela e outras tantas de motor, um harém de senhoras seleccionadas a dedo, a olho e - igualmente importante - a ouvido (é possível que a ordem não seja esta)... Só me resta decidir aonde seria essa casa mas como é um trabalho árduo deixo-o para depois.
Por agora decido a composição da frota, penso na casa, nas ocupantes e usufruo a paz pós-prandial. Talvez seja fugaz, como paz, mas é a que hás.
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O restaurante chama-se La Vague, fica em Saint-Pierre (norte da Martinica) e qualquer sítio capaz de inspirar tão profundos pensamentos vai directamente para o respectivo céu.
A vista é linda de morrer - mar e meia dúzia de gajos fundeados - e a clientela maioritariamente franco-francesa traz-me inelutavelmente à memória uma velha piada:
- Qual é o cúmulo do pleonasmo?
- A expressão "um francês médio".
É difícil combinar o francês médio com o resto do que eu amo nesta cultura, mas a tarde não está para combinações difíceis. Está para olhar para o mar e para os gajos fundeados - o vento já rondou algumas três vezes desde que aqui cheguei -, para sonhar com mansões, frotas privadas e uma dúzia de poetisas, escritoras, músicas, artistas a acompanhar.
Ou mais seguramente a estruturar, mas isso fica para conversas sobre o tempo que passou e não sobre o que está a passar.
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O T. propôs-se fazer comigo a viagem para o Marin. Por muito que um gajo tente é impossível falhar tudo. Mais fácil me parece acertar tudo, mas isso faz parte das divagações pós-prandiais.
Fecho o dia com os madrigais do Gesualdo. Lembro-me de qualquer coisa dele que incluía Tenebras, coisa de que o homem tinha um conhecimento íntimo. Matou a mulher, o amante dela e provavelmente o filho. Daí parto para pensar que tanto gostaria de perceber mais de música, como de árvores.
11.2.24
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 11-02-2024
Da maneira como as coisas se encadeiam independentemente da nossa vontade. Ou: de quão impotente é a nossa vontade face às coisas. Vinha para bordo, cheio de boas intenções. Enfim, duas: a) Dormir uma sesta, necessariamente curta; b) Dar rédeas livres à minha veia artística. Acontece que entre mim e o bordo havia o Joel e os seus punch, a sua simpatia, o vento (já lá vamos). Ou seja: a sesta foi para o galheiro e aqui está a minha veia artística a esganar-se para produzir sangue que se veja.
A experiência leva-me a duvidar e como infelizmente não está só nessa dúvida vou mantê-la (a dúvida, não a experiência, que essa muda todos os dias).
Faço mais uma tentativa de comer qualquer coisa (isto tendo aqui o significado específico de boudin) e decido que é a última. Se não encontrar - ou se a Kaze Kréole continuar cheia, é o mais provável, ainda por cima, como se o Carnaval não chegasse, está um paquete no porto - volto para bordo.
Não voltei para bordo. Fui ao Djol Dou, que continuo a achar uma fraude mas estava aberto e tinha boudin. A nossa vontade vale bem pouco, face a essa fortaleza a que nós, os realistas, chamamos real e os estóicos chamam «fraca vontade».
(O povo deve ter uma vagina gigante, à vista da quantidade de gente que o quer comer.)
Cioran
"Une conversation avec quelqu'un qui n'a pas souffert est une perte de temps."
(Citado por Philippe Labro in J'irais nager dans plus de rivières.)
De que ausência?
A questão não está clara. Nada de resto está claro na minha mente, nem as questões nem as por assim dizer certezas. Sei que é dia porque posso ver a ausência de barcos e de mulheres, as únicas coisas que dantes via. Agora não há uma à vista. Se fosse noite talvez as visse, não sei. Imaginadas, claro. Uma mulher bonita. Uma embarcação bem desenhada, de linhas finas, daquelas que se olham e se vê imediatamente a água a escorrer-lhe pelo casco. Sei que estou longe do mar, mas não percebo se num deserto se numa pradaria. Não há árvores? Não. Há ervas e montanhas ao longe. Perdi a noção das cores ou perdi-lhes apenas os nomes? O meu léxico encolheu mortalmente: sem palavras morro. Ocorre-me que posso viver sem barcos e sem um corpo feminino, mas não sem palavras e ignoro se é verdade ou se estou simplesmente a inventar. Nada está claro, nem mesmo as certezas de antanho. Penso: que é feito dos meus amigos? Já tive uma família? Já tive um barco de linhas escorreitas, harmoniosas, daqueles que fazem parar os transeuntes num porto? Não sei. Não sei sequer o que nunca tive, quanto mais o que tive. Sei que é dia: posso ver as ausências. De noite é difícil distinguir o que se vê do que se imagina. Talvez porque sonhe em três dimensões. O casco de uma embarcação. O corpo de uma mulher, elegante, racée. Um prado delimitado ao longe por montanhas. Estará frio? Será Verão ou Inverno? Em que latitude estou? Se chover terei aonde me abrigar? O meu vocabulário não está assim tão reduzido: lembro-me das estações do ano. Lembro-me do frio, do calor e da chuva. Lembro-me de latitude e longitude. Sempre gostei de longitude porque tem longe em si e porque nunca acaba. As latitudes sim, têm fim. Acabam nos pólos. A pradaria acaba numa cadeia de montanhas cujo nome ignoro. Também ignoro o meu nome mas isso parece não me preocupar. Penso: enquanto tiver palavras estarei vivo. Como? Como surge-me simultaneamente advérbio e verbo. Sobressalto-me. De onde me saem estas palavras? De que ausência?
10.2.24
A beleza da linguagem e outros contos
Para traduzir, como para escrever, há que ter uma distância entre nós e o papel (ou o computador, ou o que seja): como vou traduzir aquilo que sinto? Como traduzir a força, a importância capital da linguagem? «Desejo chegar ao seu palato»? Por amor de Deus!
(O excerto vem de J'irais nager dans plus de riviéres, de Philippe Labro.)
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Não tenho a minha biblioteca ao alcance do braço e se me ponho a pensar «Qual é o melhor conto de todos os tempos?» foge-me logo a boca para a verdade: essa pergunta não faz sentido. Não há melhor conto nem todos os tempos. (O mesmo se aplica a livros, romances, discos, esculturas, fotografias, etc.)
Para responder a essa pergunta teria de reler os contos de Borges, as Nouvelles Orientales da Yourcenar, alguns contos do O'Henry (não todos, nem pouco mais ou menos), os contos do Nick Adams de Hemingway, Maupassant... Sei lá, um nunca mais acabar.
Há, porém, um conto que não me sai nunca da memória. Chama-se A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. Não sei se é o melhor conto de todos os tempos, mas é daqueles que me acompanham todo o tempo.
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 10-02-2024
Saber que se vai gastar trinta euros mais líquidos numa feijoada brasileira - mesmo sabendo que vai ser boa - exige balanço prévio; balanço esse que foi adquirido no Impératrice. Tive sorte, era a miúda simpática que estava de serviço, pelo que os punch foram baratos. O sítio é absolutamente magnífico, mas os preços variam em função do empregado. Ao início ainda resistia. Agora acho que faz parte do charme do local, rio-me, agradeço quando é esta senhora que me serve, a quem deixo uma gorja correspondente à diferença de preços entre ela e o colega que tem cara de parvo (não deve ser só a cara, mas não gosto de falar do que só intuo e não conheço).
A feijoada estava dez vezes melhor do que esperava. O Pain de Sucre é o restaurante brasileiro do qual já aqui tenho falado várias vezes. A cozinha é excelente, o restaurante é caro mas arranjei uma fórmula acessível, gosto da simpatia da dona e da cozinheira, etc. Hoje tudo isto foi elevado ao superlativo e o meu gosto pelo local transformou-se em amor para a vida. Quem faz feijoadas destas não pode ser má pessoa e vai para o céu de certeza. Só desejo que não seja amanhã.
Enfim, as saudades não são para amanhã. Isto são projectos de longo prazo.
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 09-02-2024
Parece-me importante informar a humanidade de que o meu álbum favorito de Lou Reed é Magic and Loss. Depois, Songs for Drella. Depois, os outros, quase todos. Coney Island Baby, por exemplo. New Sensations. E por aí fora, tenho pouca paciência para o Google. Ou os álbuns com a Nico, foi através dele que fiquei a conhecê-la. The Raven... lembro-me mal deste, mas o youtube recorda-mo. A ver.
Há aquela música com a Laurie Anderson que é uma maravilha. Call on me? Não sei, talvez. Coitada da humanidade, tão mal informada que fica sobre as minhas preferências reedianas.
Aliás: tenho pouca paciência para a maioria das coisas, o que é uma das vantagens da idade. Cada vez sou mais tolerante e menos paciente, como naqueles gráficos sobre o preço das coisas e a respectiva qualidade. Há um ponto em que se encontram, as curvas fazem um X. Não sei em que ponto estou de cada uma dessas linhas, mas sei que não me apetece nada ir percorrer o Google mais do que o que já o fiz. Em termos de qualidade não estou grande coisa, isso é seguro. Já de preço não sei.
Isto porque oiço Magic and Loss e penso nuns anos em que fui particularmente miserável e ouvia este disco em loop no Fiat que o meu Pai me dera, em casa, em todo o lado (se bem me lembro até cheguei a ter um Walkman da Sony).
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Horas mais tarde: oiço a Nico do álbum Desertshores e penso nas pessoas que são contra a imigração. Pior: que fazem disso uma agenda política. Viver aonde se quer viver não é só um direito básico. É o que está na base da hominização. O homem é hoje o que é porque sempre andou de um lado para o outro. Vejam os mapas das migrações pré-históricas. Migrar - seja antecedido por um e seja por um i - é muito anterior à invenção das fronteiras, passaportes, bilhetes de identidade e «papéis». «Sou de onde estou» não foi inventado por mim: é uma máxima da Idade Média (perdão, não encontro a fonte. Fica para outro dia. Devo dizer que a «inventei» muito antes de a ver escrita num sítio qualquer. Passo a vida a «inventar» coisas já inventadas).
Que seria o homem sem migrações? Duvido muito que tivesse inventado a roda, quanto mais os anticonceptivos orais ou o cálculo diferencial.
O problema não são as migrações. Essas são um direito e como todos os direitos vêm acompanhadas de deveres. Não há um sem outro. Nos anos sessenta, o Ocidente «esqueceu-se» da segunda parte da equação, por duas razões: interesse (era preciso mão-d'obra) e ideologia (o «fardo do homem branco»). A primeira era real - os «trinta gloriosos» precisavam de gente; a segunda era uma invenção. O homem branco não tem fardo nenhum a carregar. Antes pelo contrário. Fizemos mais bem do que mal, de longe.
Como sempre, resolver um problema que não se resolveu atempadamente cria problemas maiores do que o original.
Sabiam que a Nico morreu em Ibiza? Pouco importa. Já estou na Marianne Faithfull, a ouvir Broken English
Sugestão de leitura: Éloge du Cosmopolitisme, Guy Scarpetta.
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Fui à FNAC da Galleria e comprei três livros: Tahar Ben Jelloun, Philippe Labro e Le Clézio. Não tinham a Cidade de Deus - encomendado - nem a Política, de Aristóteles. Ter a sua biblioteca ao alcance da mão é, para um homem, a mesma coisa do que para um bebé ter uma mama cheia de leite ao alcance da boca. E não ter é como para um bebé não ter.
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Hoje tive luz verde do armador: antes do fim do mês vou para o Marin. Seja para uma bóia, um pontão ou fundeado.
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Vou ler.
9.2.24
Etimologia lógica
A "patia" de apatia sendo a mesma que o "pato" de patologia, pode concluir-se que apatia é saúde. Estar apático é estar saudável.
O jardim das pontes que se bifurcam
Podes sempre pegar numa palavra e deambular por ela ou com ela. Escolhe uma ao acaso: tempo, por exemplo. Esta tem a vantagem de te abrir vários sendeiros, o acaso escolheu bem. Podes falar do tempo que faz: uma merda. Nublado, abafado, ou demasiado ventoso ou completamente calmo. Este é um ano de El Niño, não vale a pena esperar grandes milagres. Podes pensar no tempo que te falta viver, mas esse é um tema que te interessa relativamente pouco porque te leva imediatamente à questão "define viver" e tu respondes "ser autónomo, física e mentalmente" e daí passas para corpo, outro grande coleccionador de veredas por onde te podes perder. Pode ser o tempo na música mas tu és amúsico e tão sensível aos tempi musicais como um elefante à beleza intrínseca da física quântica. Como era aquele conto de que tanto gostavas? O jardim dos sendeiros que se bifurcam? A ver. Não sei. Pouco importa. A verdade é que a ausência do livro te provoca uma punhalada que te rasga o corpo de alto a baixo, de um lado ao outro. Corpo, livros, ausência. As veredas bifurcam-se infinitamente. Precisas dos teus livros em estantes perto de ti, precisas de tempo para os ler, reler, folhear, acariciar e precisas de um corpo que te deixe fazer isso tudo. De vez em quando pões um disco a tocar, não muito alto e sem palavras, porque estas te distraem, mesmo as que não percebes. Se for de tarde, levantas-te para ir à cozinha buscar um copo de vinho (deixas propositadamente a garrafa longe de ti para te forçares a levantar-te). De manhã a bebida é café, de que gostas forte, morno, feito numa panela. Os livros - feitos de palavras - são como elas: bifurcam-te, levam-te de um para outro. Voltas às palavras, as tuas: as que levaste contigo e as que te levaram com elas.
Sonhas. A embarcação aonde vives tem uma conversa animada com o mar. O vento calou-se. Ouves o diálogo e tentas compreendê-lo. Lembras-te de algo que escreveste há anos: um barco não faz barulhos. Um barco fala, seja contigo seja com o mar, com o vento, com outros barcos. Esta sendo aquela de que menos gostas, claro. A que segues com mais atenção. Um barco fala com o tempo, também. Com os tempos, todos os tempos: há um ritmo nessas conversas ao qual tu és sensível e cujas mudanças te fazem intervir.
Voltamos ao tempo. Pensas "se eu avanço no tempo como uma embarcação de vela no mar, que me acontece quando o barco pára, amarrado a um pontão? Pára o tempo também?" Conversa fiada. Retórica, se preferires.
De retórica saltas para qualidade. Não percebes a relação. Talvez a ponte seja Santo Agostinho. É. Como o tempo, de resto. Tens - e leste - as Confissões mas não A Cidade de Deus. Precisas de tempo, dos livros e de um corpo que te permita usufruir deles. A ponte foi Pirsig, também. Zen e a Arte da Manutenção das Motocicletas. O jardim das pontes que se bifurcam.
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 08-02-2024
Mais um destes dias frustrantes, exasperantes, desesperantes e tudo o que acabe em antes. Hoje nem perguntas houve. Continuo confiante de que vou conseguir clientes mas não sei se confiante se integra bem naquele grupo de "antes". Amanhã faço mais um assalto às malditas plataformas.
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Ainda amanhã (isto parece um diário do que vai acontecer, não do que já aconteceu...) a Alice - a cozinheira do restaurante brasileiro de que já aqui falei, que viveu muito tempo em Portugal - diz que vai fazer bacalhau para o almoço. Tenho lá ido, porque têm uma fórmula de almoço que é a mais barata que conheço e porque a cozinha é soberba. Ou seja, amanhã... O pequeno-almoço de bacon com ovos estrelados fica para sábado.
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A biblioteca Schoelcher é linda, tanto por fora como por dentro. Vou começar a frequentar aquilo, parece-me.
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O próximo Inverno será passado em St. Martin e o resto da minha vida na Europa, muito provavelmente em Portugal, diga o que disser. A única coisa que me aborrece é ser um país tão tropical, tão africano (sem desprimor para África, claro). O espectáculo político dos últimos meses só confirma a certeza que há vinte anos me caiu em cima: isto não muda. Eça nunca deixará de ser um autor actual. E o que mudar será apenas o estritamente necessário para que tudo fique na mesma.
Digo "isto", como se estivesse em Portugal. Cioran, sempre ele, dizia "não se habita um país, habita-se uma língua. Um país não passa disso mesmo" (citação de memória).
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Fevereiro ainda agora começou e não tarda está a acabar. É o mês que antecede Março, mês do equinócio e tem a elegância de ser o mais curto do calendário. Daqui a uma semana tenho a consulta pós-operatória. Tudo indica que será uma formalidade simples (e uma excelente oportunidade de ver a jovem médica que me operou).
Só nesse dia tirarei este episódio da lista de bolas no ar, na qual de resto já está na última posição.
E só nesse dia saberei se ganho ou perco a aposta: até lá não receberei nenhuma informação do melhor SNS do mundo sobre a intervenção cirúrgica solicitada pelo médico do centro de saúde a 14 de Setembro.
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Lista essa que se reduz como a esperança de vida de um louva-a-deus que acabou de fazer amor: os dois botes, a exposição, a tradução para francês do Avenida, o olho direito (este muito lá no fim). Quando comparo isto com o que tinha há seis meses penso que devo ter reencarnado e não me apercebi.
8.2.24
Casa, música?
Tudo isto por causa da Pietra Montecorvino, que tem todos os defeitos: uma voz rouca, canções do Mediterrâneo, uma urgência de cantar como não há em muitas.
Casa é o país de onde vem a tua música?
Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 07-02-2024
As manhãs começam com os barcos: primeiro o P., depois o S. D. Parece um programa político, mas não é: simples ordem cronológica. Despacho o que posso, tomo um duche e vou para F-d-F. Quando não passeio pela cidade a pé passeio de carro, devagarinho, à procura de um sítio onde estacionar, esperando não o encontrar tão depressa. Tento ver cada edifício com olhos de hoje e de ontem (e alguns de amanhã também).
O meu corpo trai-me. Abandona-me, pouco a pouco. Se pensa que vou correr atrás dele está enganado.
7.2.24
Citar ou não citar
Acabo de descobrir um texto (enfim, uma linhas) de Saramago em que ele diz exactamente o mesmo que eu sobre as viagens. Isto é chocante. Não li nada, praticamente nada dele, bolas! Nem sequer há o risco do plágio involuntário, que tanto me atormenta.
Vou ter de começar a citá-lo, quando digo que as viagens não acabam? É melhor não.
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 06-02-2024
Pode pensar-se Fort-de-France à imagem das suas mulheres: metade é obesa e feia, metade é linda. Metade é negligente e desleixada, metade trata-se e veste-se lindamente (pelo menos aos olhos de um leigo na matéria). Fugiria com metade e fugiria da outra metade.
Não fujo. Passeio pela cidade - já consigo andar, com algum incómodo mas sem dores; os meus passeios acabam quase sempre no Impératrice aonde espero, confortavelmente sentado, que a cidade me retorne a visita.
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O S. D. continua a exasperar-me: uma quantidade razoável de pessoas à baterem à porta mas nenhuma entra. Bolas, só preciso de mais duas, por amor de Deus.
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Mais uma tentativa falhada de ver um debate. Primeiro a senhora do PAN com o do Chega, depois este com o da IL. Abandonei ao fim de dois minutos do primeiro e vinte segundos do segundo. Hoje um comentador que costumo ouvir dizia que os debates vão decidir as eleições. É possível: como não vou votar não os vejo, o que demonstra que o homem está cheio de razão. Se bem me pergunte qual a novidade desses diálogos? Os gajos dizem o que passaram o ano todo a dizer, urbi et orbi. Só lamento a IL, que tanto me fez sonhar. Pode ser que leve uma abada. Seria a única maneira de aquilo voltar ao lugar.
Ou então desaparece de vez, como aquele francês cujo nome nunca recordo. Era o único político liberal em França, um tipo decente. Foi trucidado numas eleições e desvaneceu-se da PAF (Paysage audiovisuel français, se por acaso). O liberalismo e os povos latinos não se dão bem. Ou então o problema está no Mediterrâneo, não sei. Somos individualistas numas coisas e noutras não?
Como Fort-de-France.
6.2.24
Cafés do mundo e o turismo sentado
Pode gostar-se ou não de Fort-de-France. É uma cidade sobre a qual tenho demasiados sentimentos misturados com demasiadas memórias e com (demasiada?) idade para ter certezas. O Abri Côtier foi-se, o Vieux Foyal idem... Mas de um coisa estou certo, estarei até ao fim: o Impératrice é um dos cafés mais bonitos que conheço no mundo. Venham, cafés bonitos. Encham-me o sótão, a cave, a vista, tudo. Cada vez que aqui venho - isto é, praticamente todos os dias - ponho em prática aquele velho princípio do meu turismo: não te canses a percorrer a cidade; senta-te num café e espera que ela venha a ti. A única dificuldade é escolher bem o café.
O teu passado muda, mas tu és o mesmo. Ou: o passado e a geografia vão dançar um tango, atrapalham-se, caem nos braços um do outro e descobrem que afinal são amantes desde sempre
"(Paris) It is the only city in the world to live in and I'd feel like hell and that a lot of life was gone if I thought I could never live there again."
Ernest Hemingway in a letter to Archibald Macleish, October, 1930
(Tirado de um post no FB.)
Em quantas cidades vivi (viver sendo passar mais de três meses) de que pudesse - ou devesse? - dizer a mesma coisa? A questão é escorregadia: o nosso passado altera-se à medida que o tempo avança. Transformando-se em presente o futuro modifica também o passado. Por nada deste mundo eu regressaria à Genebra dos meus trinta anos. Agora venderia a boa metade da família (ou o que dela resta) para voltar hoje a Genebra. (Mas forçoso é reconhecer: quanto tempo lá quereria ficar?)
E Dunkerque, aonde não voltei? E ao Rio, lugar de um desgosto amoroso que foi o primeiro (por ordem cronológica) e o segundo (por ordem de importância)?
Tenho previsto passar por Antigua, daqui a um par de meses - as ordens do lugar anterior invertem-se: segundo e maior, respectivamente.
Nakhodka, outra cidade aonde fui um jovem deus? Em Paris oscilei entre deus e miserável. Em Londres não fui uma coisa nem outra, tal como na cidade do Panamá, de resto. Tão diferentes que são... Em Palma não fiz nada senão trabalhar e viver, não tive muito tempo para deificações - nem idade, aliás. Os jovens deuses têm um prazo de validade muito curto. Ou deixam de ser jovens ou deixam de ser deuses - a maior parte das vezes acontece ao mesmo tempo. Em la Chaux-de-Fonds fui miserável. Não voltaria lá nem que me pagassem. À cidade do Cabo sim, voltaria, mas não para viver, já que não morri lá. Que resta de S. Luis, agora sem o C. B.? Tenho de ir ver, é promessa e maldito seja o demo se me levar antes de o poder fazer.
Que falta, nesta lista? As não-cidades? Le Marin, aonde agora estou? St. Martin? Restrinjo-me à regra dos três meses (em Paris nunca estive três meses seguidos, mas se juntar o tempo todo que lá passei o resultado é muito mais) e das cidades. Marigot e le Marin não são cidades. Falta Maputo. A memória obstina-se a apagá-la. Faltam Kindu, no então Zaire e Bujumbura, no Burundi. Memória selectiva, esta. Racista.
Como é aquele poema do Cavafy? Encontrei uma tradução para inglês:
«...You won't find a new country, won't find another shore.
The city will always pursue you.
You'll walk the same streets, grow old
in the same neighborhoods, turn gray in these same houses.
You'll always end up in this city. Don't hope for things elsewhere:
there's no ship for you, there's no road.
Now that you've wasted your life here, in this small corner,
you've destroyed it everywhere in the world.»
5.2.24
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 05-02-2024
Num acto de desespero ponho a roupa na máquina da lavandaria auto-serviço (à boa temperatura, R.) É a segunda vez que a levo à lavandaria-lavandaria e falta sempre qualquer coisa para encher o bac (uma caixa que define a quantidade de roupa que se pode pôr pelo preço de vinte euros (em Palma pago nove pela mesma coisa, espero que a minha bem-amada Erika não leia isto).
De maneira agora tenho uma hora de espera, mas pelo menos volto para bordo com roupa lavada e não no estado em que estava quando saí. Venho à padaria comer uma salada de fruta e beber um café. Já trabalhei para o P. - daquele barco jorram más notícias como sangue de uma artéria - para o S. D. (deste não jorram notícias nenhumas, não sei o que é pior) e agora trabalho para mim. É um ciclo, um círculo, uma espiral que não sai do mesmo plano, um labirinto que só parece simples porque olhamos para ele em duas dimensões e tem muitas.
Daqui vou à Galleria. Com a possível excepção de Bocas del Toro não há cidade nos trópicos por onde tenha vivido, passado ou andado aonde não esteja condenado a ir aos centros comerciais, coisa que na Europa posso não ver nem uma vez por ano. Critério interessante. (Em Bocas não havia centros comerciais.)
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À primeira vista poder-se-ia pensar que a lavandaria auto-serviço seria mais barata do que a outra. Nominalmente é: onze euros lavagem e secagem (a ser verificado. Talvez possa poupar uma secagem) contra vinte.
Porém, aos onze euros há que adicionar dois cafés (quatro), uma salada de frutas (quatro e meio) mai-lo tempo de espera, extremamente valioso como qualquer pessoa sabe.
Além disso, como se não fosse suficiente: seria injusto dizer que a roupa sai no mesmo estado de sujidade em que entrou. Mas também não sai limpa limpa. Qualquer coisa intermédia, como o pilar da ponte do outro.
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(Cont.)
4.2.24
Porque não!
As pessoas pensam muito «porque sim» e eu pergunto-me se pensar «porque não» será a mesma coisa, mas de sinal contrário. A resposta é um rotundo «Não!» Pensar «porque não» dá muito mais trabalho do que o seu oposto. E tem consequências piores.
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 04-02-2024
Como é que se descreve um dia vazio?
Fácil: começa-se por perguntar «a que chamas vazio?» Este de hoje foi vazio? Porquê? Comecemos por ordem cronológica, evitando as primeiras evidências do dia:
Isto conta como dia vazio? Conta. Tudo o que não seja duas semanas de charter amanhã é um dia vazio.
No Impé a senhora gorda com quem gosto de discutir esclarece-me que só têm cerveja em lata de cinquenta cl. porque «passaram em modo carnaval» (a tradução é minha). Fico esclarecido, peço uma Lorraine, provoco-a um bocadinho só para ela não se esquecer de mim e pergunto-me muitas coisas. Uma delas é: «quando raio de carga de água é que os últimos traços desta estúpida operação se desvanecerão?» A primeira resposta é: «teoricamente, daqui a duas semanas.» A segunda é mais simples e tem uma só palavra cuja inicial é um F maiúsculo. Os mais sensatos acrescentariam «Estou farto!» mas não sou sensato e não gosto de redundâncias.
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Vou perguntar à senhora gorda se tem pão, só para lhe dar o prazer de se vingar da pequena provocação de há bocadinho. E ainda há quem diga que não penso nos outros. PS - deixei-lhe uma boa gorja. Dizer «não» é insuficiente como vingança.
Actual?
Tenho pouca paciência para a maior parte de actual prosa portuguesa.
O problema é saber até onde vai "actual".
PS - na poesia esse problema é de mais fácil resolução.
Um pau, o futuro e uma pedra
Jovens deuses, acaso e idiotas
Há uma espécie de alterações climáticas em mim: são as alterações do gosto. Têm, devo desde já dizer, o mesmo impacto na carcaça do que as outras no planeta: diminuto. Mas têm uma capacidade influenciadora semelhante. Não perco tempo a analisar-lhes as profundezas, tal como ninguém (salvo raras e honrosas excepções) analisa com profundidade as alterações climáticas. As pessoas acreditam nelas porque «toda a gente» acredita. Eu acredito nas minhas alterações de gosto porque sim, porque me apetece, porque me espantam e Deus sabe o que eu gosto de ser espantado.
Eis um exemplo: estou em «França» vai para mais de um mês e meio e ainda não bebi um único pastis. Isto é, obviamente, devido ao clima. Outro exemplo: hoje o prato do dia no Kokoarum era Bavette d'Aloyau. Pois acreditem se quiserem, ainda hesitei dois segundos entre isto e um Colombo de frango. Felizmente desta vez as alterações climáticas não levaram a melhor e optei sensatamente. A bavette d'Aloyau é um daqueles cortes que têm uma finalidade na vida: demonstrar a quem não come carne que está enganado. Não há alteração de gosto que lhe valha. Claro que se pode argumentar que o onglet e tal e coisa e a araignée mas para isso deixo vir o diabo escolher. Sobretudo acompanhado por um Carmenère que - oh santa idissincracia - é o vinho mais barato da carta. Oh beleza. Oh santidade.
3.2.24
Que fazer disto tudo?
Deixas o calor escorrer por ti, espantas-te com as variações desta luz que ora parece feita de facas afiadas ora de leite diluído em água cinquenta / cinquenta, perguntas-te o que fizeste do teu tempo e respondes "Aprendi a observar as variações da luz, a apreciar o calor que me escorre corpo abaixo e - sobretudo - a perguntar ao tempo o que dele fiz."
Aprendi também a perguntar quem fez quem? Fiz eu o tempo ou fez-me ele a mim?
Que fazemos nós de tudo o que nos faz? Da luz, por exemplo. Da memória - somos feitos de memória. Duvidam? Perguntem a qualquer amnésico. Do corpo? Que fiz eu do meu? Que faz ele de mim?
Que faço eu disto tudo - a ilha, os trópicos, a luz, a memória (que não me larga), o mar, o mar? Que faz isto tudo de mim? A ilha, os trópicos, a luz, a memória que não me larga, o mar?
Groucho Marx, à recepção
Numa ilha em que o serviço está abaixo do muito mau, o Cayali consegue destacar-se por um serviço ainda pior do que a média.
É admirável. O restaurante está cheio, a música é óptima, o frango boucané, as accras e o boudin estavam excelentes. Não há mau serviço que consiga arruinar isto.
No outro dia estive aqui com um grupo e uma das senhoras conseguiu, por assim dizer, quebrar o gelo. Eu não consigo, nada a fazer.
Isto é digno de uma comédia dos irmãos Marx.
A escolha é sua
Vir jantar ao Cayali é como estar apaixonado por uma mulher feia. Um gajo sabe que não é bonita, mas pronto, é o que lhe saiu na rifa.
Alternativa: vir jantar ao Cayali é uma excelente forma de arranjar ideias para uma comédia a la Marx Brothers.
2.2.24
Emprenhar pelos olhos
É difícil fazer a destrinça entre aquilo que é e aquilo que nós queremos que seja. "Os nossos olhos vêem com o cérebro" como um dia disse Edgar Morin numa conferência que deu em Lisboa, na reitoria se não me engano.
Apesar disso, os nossos olhos são mais fiáveis do que os nossos ouvidos.
Já viram alguém emprenhar pelos olhos?
Palavras
Se não é assim, vejamos então como será. Ou como seria, mais correctamente. Um encontro de olhares? De mãos? Dois joelhos que se chocam no cinema ou no teatro?
Como fazem dois corpos para se encontrar? Eu explico-te: usam palavras. Deles ou de outros, o go between é sempre, sempre, sempre a palavra.
Verdade, alísios
O vento caiu completamente. Parece um daqueles dias de Verão (daqui), quentes, abafados e húmidos. No horizonte havia uma neblina que alguém me disse ser «areias do Sahara». Não sei se os alísios conseguem trazer as areias do Sahara até aqui ou se são devaneios de europeísmo. Não investiguei porque, na verdade, estou-me nas tintas. Seja o que for. Não tarda isto vai mudar, tal como agora mudei o Gould das Variações para as suites inglesas: de repente. A resposta à pergunta «há uma verdade?» é quântica, gatil: sim e não. Há uma verdade na qual acreditamos e há outra na qual outros acreditam mas que é menos verdade, pela razão simples que é diversa da nossa. Não se pode acreditar em tudo ao mesmo tempo e se acredito em qualquer coisa é obviamente porque a considero mais verdadeira do que a verdade do vizinho. Isto não significa que não se deva pensar que a verdade do vizinho é necessariamente uma palermice. Pode ser e pode não ser. Tal como a minha, de resto.
Bach, boutades
Conhecem aquela boutade «Não gosto deste livro e não o li»? É muito mais do que uma boutade e agora que oiço o Glenn Gould tocar Bach penso em pessoas que, ao contrário, não conheço e de quem gosto.
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 01-02-2024 / II
1.2.24
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 01-02-2024
As viagens nunca acabam, mas começam. Esse começo é muitas vezes imperceptível, parece não estar ligado à viagem. Frequentemente, não se consegue sequer discernir aonde está. O da viagem que estou a preparar, por exemplo, quando começou? No dia em que confirmei ao A. G. que sim, podia vir com ele? No dia em que o projecto do Mediterrâneo foi cancelado, abrindo assim a porta (a cancela?) para a viagem aos EUA? Na prévia tentativa, quando o transporte da Suécia se interpôs? Não sei. O mais fácil seria dizer «A viagem ainda não começou». Porém, isso não seria verdade. A minha cabeça já está no primeiro encontro com o A., no desembarque do avião, na chegada a S. Francisco, de que gostei tão pouco as duas primairas vezes que lá estive.
«Gostei tão pouco» não é inteiramente verdade. Digamos antes que a cidade não me entusiasmou tanto quanto a perspectiva desta viagem me entusiasma os dias, situação essa que espero se altere, desta vez.
Vai ser uma viagem cheia de novidades. Não tantas, contudo, quantas as que de repente me pareceu. Já fui turista bastantes vezes: basta contar quando deixava o trabalho na Suíça e ia para a Itália - uma vez fui até à jugoslávia, ainda se cahamava assim - gastar o dinheiro que ganhara a limpar a neve dos telhados, mochileiro avant la lettre, a dormir em tudo quanto era sítio, desde conventos de freiras até estações de caminho-de-ferro, passando por barcos squattés, cabines de camiões, eu sei lá. Que era então, se não um turista? E quado fui de Parnaíba para Cayenne por terra? Na Venezuela íamos muitas vezes visitar os F. à sua finca, uma coisinha pequena demais - só tinha três mil e quinhentos hectares e era difícil rentabilizar aquilo, dizia o P., p de nome e de pater familias. Turismo. Talvez já nessa altura fosse o nómada em que me tornaria mais tarde, mas o que fazia era turismo.
E também já andei por terra adentro, não como turista, é certo, numa viagem memorável que fiz por Moçambique com uma equipa de televisão inglesa. Negra, ¿endonde estás? Conheço bem a França - sobretudo o norte, se bem com a memória que me resta daquilo me pergunte se «conhecer» é o verbo adequado.
O zen e a arte de adormecer
Não sou grande especialista do sono (nem de mais nada, mas isso para agora é irrelevante). Raramente tenho grandes insónias; às vezes acontece-me não querer dormir, o que obviamente é diferente de uma insónia. Adormeço com facilidade, acordo quatro ou cinco horas depois e volto a adormecer, se for preciso.
Mas descobri algo faz agora anos que me ajuda a prever se a noite vai ser de insónia ou não. É um processo semelhante àquele de quando éramos miúdos e na hora de regressar da praia era preciso esvaziar os colchões. Abríamos o pipo e deixávamos o ar escoar-se, regularmente, sem fazer pressão no colchão porque ninguém tinha pressa (com a possível excepção dos pais ou da Conceição, a criada de que tanto gostava que foi convidada para o meu casamento). Os colchões esvaziavam-se. E eu também, exactamente da mesma forma (com a diferença de que o pipo é metafórico, claro. Nada de ideias sujas, credo).
Um gajo esvazia-se, ouve o ar a sair, sente-se cada vez mais vazio e só dá por ele quando acorda para ir à casa de banho. É um processo zen. É como respirar só para fora, mas o ar é substituído por um fluido qualquer que está nas células todas do corpo.