31.8.14

Ponte sobre o Tejo, Lisboa


Praia Grande, Sintra


Caos de A a Z

Por mim passa um rio. Vejo-lhe as margens. Uma é um A e outra um Z. No meio é o caos.

Dormir, pesadelos

A vantagem de dormir é saber  que os pesadelos são pesadelos, e nada mais.

O resto

A felicidade está demasiado valorizada. Não ser infeliz seria uma vitória. O resto é silêncio.

A assimetria do que foi

Do que foi ficara-lhe a curiosa mania de beber chá de gengibre aos hectolitros e de ser fiel. Não percebia porquê. De pouco lhe serviam agora as tisanas de gengibre e a fidelidade. Talvez a música - continuava a gostar de música -. Mas já antes gostava. Não é relevante.

Nada é relevante. Nem a fidelidade, nem o chá de gengibre, nem a música, nem a ideia de que a vida continua como se não existisse. É verdade que não existe. Nada existe, não é? Tudo é uma ilusão. Ele, o amor, a música.

Reais só a assimetria e o que foi. Ou a ilusão, vá saber-se.

Imperativos, imobilidades

Vamos começar por descrever a noite, como se a noite existisse. Isto é, como se fosse diferente do dia.

Não é, claro: lembro-me da noite como se fosse dia, do dia como se fosses tu a bater-me à porta, da porta que fechámos, abrimos, fechámos.

Pouco me importa do que me lembro: a memória é falsa na melhor das hipóteses. E verdadeira na pior. Que se foda a memória. Que se relembre o teu ventre, do qual tão mal me lembro. Que se relembre os dias de que não nos lembramos.

Que se pense no dia, na noite, no que entre eles ficou entalado, até hoje imóvel.

Pensemos nas imobilidades: não há melhor descrição dos dias.

Dollar Brand, seios

Está o Dollar Brand a tocar (ainda se chamava assim) e eu penso nos teus seios. Curioso, não é? Das tuas mamas lembro o teste do lápis, o toque, a curiosa maneira que tinham de se empinar quando fazíamos amor.

Nada a ver com um mercado africano, ou com uma canção de regresso a casa.

De qualquer maneira não tenho casa: tão pouco posso regressar-lhe como aos teus seios, empinados ou não.

Surdez, espírito

São quase duas da manhã e a ideia de fazer uma ode ao silêncio atravessa-me o espírito.

Mas o silêncio não existe e o espírito muito menos. O silêncio é ensurdecedor. Todos os dias, todas as horas minutos e segundos o oiço.

Espírito não tenho, felizmente: se tivesse seria surdo.

Cecile McLorin Salvant



Esta senhora devia ser ouvida por quem quer que seja que goste de música.

Alda

Tudo começou com uma folha. Caíu de uma árvore. As opiniões dividiram-se imediatamente: teria sido a folha que traíu a árvore ou esta que não lhe foi fiel? A árvore tinha milhares de folhas; a folha uma só árvore.

A polémica prosseguiu, feliz. Ninguém prestou atenção a algo que entretanto aconteceu: a folha foi comida por um gato que a confundiu com um pássaro em miniatura.

Nada aconteceu ao gato, é preciso dizer já: fez um salto lindo, felino, desses a que as miúdas sensíveis atribuem dons fora do comum e fotografam para o Facebook.

Comeu a folha, não gostou, caíu de pé. Os gatos caem de pé. Achou que não valia a pena vomitar por tão pouco e foi à vida.

A vida dos gatos é um coisa misteriosa, dizem as miúdas. A mim parece simples: dormem e deixam-se fotografar. Mas isso sou eu, que só medianamente gosto de gatos, muito superficialmente.

Quem gosta deles vê neles mistérios insondáveis, inigualáveis sabedorias, olhares profundos, sensualidades infinitas.

Não vejo nada disso. Vejo um animal que dorme tudo o que pode e por vezes se engana. Menos do que eu, verdade seja dita.

Enfim. Seja como for. O gato enganou-se, comeu a  folha e nada mudou no universo excepto a polémica que entretanto se instalou: qual, da folha ou da árvore seria culpada? A cidade inflamava-se com esta questão. A cidade inflama-se facilmente, é preciso reconhecer. Os argumentos jorram como mísseis.

Amizades desfaziam-se. A folha traíu a árvore. A árvore tinha milhares de outras folhas. Aquilo não era amor. A árvore amava aquela folha. A árvore não amava só aquela folha. A árvore devia crescer e deiar de pensar na folha.

A folha... A árvore... A folha... A árvore...

O facto de que a folha já não existia passou despercebido a toda a gente.

Menos a Alda, claro.

Era uma mulher grande, quase feia, mais atraente do que a maioria das mulheres quase bonitas que já conheci. Viam-na como insensível, assexuada e feia.

Não era nada disso. Era sensível - "mas não frágil" - sensual e céptica, o oposto de cínica. Os homens tinham medo dela. Eu não, porque não sou um homem. Sou um gato que come folhas pensando que são pássaros em miniatura.

Alda era grande, já aqui o disse. Fodia maravilhosamente com o homem certo e mal com o incerto. (Isto disse-mo ela. Não sei. Se for verdade eu era o homem certo e não um gato).

Não sou um homem. Na verdade deixava-me foder. Ela punha-se por cima de mim sentada como num daqueles bancos nórdicos nos quais nos ajoelhamos e pronto. A foda era dela. Não minha. Eu não fazia mais nada.

Foder sem pensar é bom desde que se tenha pensado antes e se pense depois. Se não, é como comer uma folha de árvore pensando que é um pássaro em miniatura.

30.8.14

Recursos humanos

Para temperar uma salada são precisas quatro pessoas (se alguém não sabe: um louco para a pimenta, um sábio para o sal, um generoso para o azeite e um forreta para o vinagre); para pedalar uma bicicleta três: o que somos, o que não queremos ser e o que queremos ser.

Desses três sou dois (o que sou e um dos outros alternadamente) e nunca chego para as encomendas.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 30-08-2014

Preparo-me para ocupar a cidade logo, com poesia (Ruy Belo, Eugénio de Andrade, Borges); e de bicicleta, agora. Penso na sorte que tenho: uma cidade que me ocupa como poucas no mundo. Uma cidade que se deixa viver e ocupar por um estrangeiro cansado de guerra, um marinheiro cansado de terra, um homem longe e de longe:

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.


(Eugénio de Andrade)

........
É uma rapariga de vinte e pouco anos; tem uma banca de café e bolos numa esquina à frente do mercado da Praia Grande. De vez em quando vou lá comprar um café. Nas redondezas são poucas as que o têm sem açúcar.

A banca é pequena, mas há umas poucas cadeiras e juntam-se ali tertúlias várias. De manhã fui lá e o tema da conversa era a Marina Silva, candidata à presidência. "Se for eleita ela não vai autorizar o casamento gay", diz a miúda da banca. "Eu voto Dilma".

Gosto de política, não posso impedir-me de ouvir e participar. Ou pelo menos pensar: o Brasil não terá assuntos mais importantes para resolver do que o casamento gay? Assim de repente ocorrem-me quatro ou cinco, mas tenho a certeza de que se pensar dois segundos me aparecem mais trinta.

As pessoas são fascinantes.

........
Quando marquei as datas da viagem a Lisboa não me lembrei das eleições. Agora sei que não estarei aqui durante a fase final, mas chegarei na véspera. Acho que vou ter de adiar o regresso dois ou três dias. A campanha eleitoral - enfim, a parte dela que eu vejo e sobretudo oiço - é insuportável. Imagino como serão as celebrações de vitória.

Parcialidades

Da minha janela tenho uma visão parcial da noite. Da minha vida tenho uma visão parcial de quê - da morte?

Pior que Pirro

Se houvesse justiça no mundo todas as vitórias seriam pírricas.

Luís, Borges

Estou como Borges: finjo que há uma data de coisas. Mas não há. Só há uma.


Lunas, marfiles, instrumentos, rosas,
lámparas y la línea de Durero,
las nueve cifras y el cambiante cero,
debo fingir que existen esas cosas.

Debo fingir que en el pasado fueron
Persépolis y Roma y que una arena
sutil midió la suerte de la almena
que los siglos de hierro deshicieron.

Debo fingir las armas y la pira
de la epopeya y los pesados mares
que roen de la tierra los pilares.

Debo fingir que hay otros. Es mentira.
Sólo tú eres. Tú, mi desventura
y mi ventura, inagotable y pura.

Jorge Luis Borges, El Enamorado

Palavras, pastilha elástica

As palavras não deviam ser como pastilha elástica, pegar-se a tudo e para sempre.

Mas infelizmente são.

Simetrias, seios

Cortazar fala num poema da azul simetria dos teus seios. A citação é de memória e portanto falível. Todas as citações deviam ser assim: alteradas pelo tempo e pelas circunstâncias. Olho para a noite que à frente da minha janela combate as luzes da cidade e as de duas velas malcheirosas que pus no parapeito para me lembrar que nem tudo é bom sempre, mesmo que pareça; e penso na negra simetria da noite.

Não há simetrias negras. Há-as azuis e brancas, como as do mar e das vagas e do céu. E dos seios, claro.

Tempo, vagas

Como as vagas se vão e vêm talvez o tempo volte.

Dor, silêncio

Que sabes do silêncio, tu que tanto de dor sabes?

Audição, beleza

É-me dolorosamente incompreensível o que uma mulher bela pode deixar de o ser quando abre a boca. Que alguém me tire a pouca audição que me resta e o mundo será muito mais belo.

Hino

Seria preciso - ouves-me? - escrever um hino à tenacidade, ao silêncio. Um hino à morte.

29.8.14

Sem noite

Que diriam os dias, se falassem? Que das noites contariam, se contassem? Que deste arrastar sem fim ficará, se acabar?

Quero um dia para sempre, e sem noite.

Incompreensões de cintura

Não percebo o que têm as pessoas contra apertar o cinto. Eu gosto.

Ruy Belo

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"


Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

28.8.14

Elogio da bicicleta

A bicicleta agrada ao cavalo e à cavalariça: tanto reduz a taxa de glicemia como a de melancolia.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 27-08-2014

As cervejas ao fim da tarde na Tia Amélia foram substituídas por longos passeios de bicicleta. Saio da Praia Grande pela marginal. A vista é de tirar o fôlego. (Não tenho, e isso falta-me, um sítio como tinha em Falmouth Harbour para me sentar e olhar: Mas pedalo e vejo esta enorme baía por vezes desperdiçada por vezes cheia, e penso na beleza que isto é, no que poderia ser).

Vou à Igreja da Sé (hoje até entrei) e vagueio pelo Largo dos Amores, a praça mais bem nomeada de todas quantas conheço (alguém decida acrescentar  "e do skateboard". Aí ficaria a designação completa). A vista da praça é linda ela também, com o horizonte cortado verticalmente pelas palmeiras e acompanhado pela ponte S. Francisco, um xadrez de rio céu e terra do qual não me canso, ninguém se cansa.

Depois depende. Ou vou ao Shopping S. Luís, se preciso de alguma coisa; ou volto para trás, perdendo-me pelas ruas que por enquanto são todas iguais.

Que os deuses te protejam do silêncio - ou te permitam pedalar através dele.

........
É preciso começar por dizer que H. se deszangou. Logo no dia seguinte pediu-me desculpa. Tinha bebido muito, ou coisa que o valha. Estou-me nas tintas: os erros nada são quando há capacidade de os reconhecer. E foi ela quem comprou e preparou os legumes para a ratatouille.

O jantar foi soberbo. Magnífico. Éramos quase vinte, na longa tradição dos jantares que crescem ao sabor dos encontros. Fiz um porco com mostarda e a dita ratatouille.

O Celso diz-me que transformei porco e vinho em poesia e eu acho que não: tudo é poesia, quando olhamos para tudo com olhos de poeta e queremos que tudo se transforme.

Há encontros mágicos, afinidades que eclodem vulcanicamente, inevitáveis, profundas antes de o serem. Este é um deles.

26.8.14

Mentiras, tempo

Conheci em tempos um gajo que mentia sobre a idade que tinha. Dizia às raparigas que era quatro ou cinco anos mais novo do que na realidade era.

Confesso que não vejo o interesse. Uma mulher que não sabe que um gajo melhora com o tempo não merece uma mentira.

Mulheres, sabedoria

"What is better than wisdom? Woman. And what is better than a good woman? Nothing."

Geoffrey Chaucer, um senhor cujo nome conhecia, mas não esta verdade absoluta.

E para terminar, uma citação de uma senhora cuja música aprecio mais do que quase todas as outras:

"When the words come, they are merely empty shells without the music. They live as they are sung, for the words are the body and the music the spirit."

Hildegarde von Bingen.

Sobre a generosidade

"The nourishment of body is food, while the nourishment of the soul is feeding others."

`Alī ibn Abī Ṭālib, Caliph (ditto)

A dependência e a sombra

"Don’t depend too much on anyone in this world because even your own shadow leaves you when you are in darkness."

Taqî ad-Dîn Aḥmad ibn Taymiyyah, um senhor de quem nunca tinha ouvido falar até hoje, coisa que lamento imenso e demonstra, uma vez mais, que o tempo é a coisa menos interessante do universo: vamos sempre a tempo de lhe corrigir as imperfeições.

Bases para uma taxonomia da insónia

Uma insónia que sucede a uma sesta tardia deve ser desclassificada. Não merece ser tratada de insónia.

Tempo, inquietação

O tempo interessa-me pouco. Não passa da parte da eternidade que se atrasa ("Le temps n'est que la partie de l'éternité qui retarde", Milorad Pavic, Dictionnaire Khazar, ed. Belfond 1988, trad. Marija Béjanovska).

O problema não é bem esse. É esse desinteresse não ser de todo uma fonte de inquietação. De desassossego. Devia ser.

Fora do tempo não somos nada se não nós mesmos, mas algumas solidões não são inquietantes.

Abstracções, marés

Não acredito no amor. Já me pregou demasiadas partidas. Acredito em amar e ser amado, no mar e no vento, na lua e na harmonia, na simetria das marés: enchem o que vazam, vazam o que enchem.

Se não hoje, daqui a duas semanas.

Talhos, retalhos (ou: retalhos da vida de um retalhado)

A médica escarafuncha energicamente em mim. Regularmente pergunta-me se dói e eu respondo-lhe que não. Inúteis, claro, tanto a pergunta como a resposta: para alguma coisa me injectou um anestésico.

Mostra-me o que vai tirando, e eu digo-lhe que podíamos abrir um talho para canibais. Não se riu. Provavelmente acha que não sou comestível.

Gostos

Gosto daqueles quadros do Magritte que mostram um dia radioso por trás de uma parede, ou de uma porta entreaberta. Gosto mais de ver o nascer do sol do que o pôr. De amanhã do que de ontem, de entrar do que de sair, de começar do que de acabar, de acordar do que de adormecer, de ti do que de mim.

25.8.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil 25-08-2014

Quatro pequenas cirurgias, das quais três levaram anestesia e duas pontos. A cavalariça anda chata. E ainda não acabou: vai ser preciso voltar para tirar as costuras. Reconheço que é melhor estar no Brasil do que noutro sítio qualquer para fazer isto: teria custado o dobro ou o triplo.

Ou então teria feito metade ou um terço.

O meu fornecedor de cuidados médicos é a Superclínica, um policlínica barata (a auto-designação é "popular") que me foi sugerida pelo Maciel. Penso - posso estar enganado, claro - que a diferença de preços com outra clínica, a prmeira que contactei (a qual custava mais do dobro) se deve sobretudo às instalações e não à qualidade dos médicos. E ao tempo que estes dedicam aos pacientes. A senhora que hoje me cortou os bocados é adorável e rápida. Muito rápida.

Vou e venho de bicicleta e enquanto espero a minha vez (as consultas são por ordem de chegada) leio os livros que tenho no telefone.

........
Daqui a um mês e pouco são as eleições e as campanhas eleitorais invadem o espaço. Para além do som automotivo há os agrupamentos de pessoas empunhando bandeiras dos candidatos e, claro, o tempo de antena.

Enquanto esperava na clínica assiti a uma grande parte do de hoje (enfim, não sei quantas vezes por dia. Imagino que haja à noite também).

As eleições são simultâneas, já aqui o mencionei: autárquicas, legislativas e presidenciais. O tempo de antena dura uma eternidade. O profissionalismo das grandes campanhas é impressionante; a falta dele nas pequenas também.

Como tenho sérias dúvidas - enfim, mais do que dúvidas - sobre a qualidade da classe política brasileira olho para aquilo como se fosse um espectáculo de circo. É o que é. Mas infelizmente só tem palhaços, o que o torna ligeiramente cansativo.

O Partido Comunista ainda concorre com o seu nome e com a foice e o martelo; o candidato (a governador do Estado) da situação e muito provável vencedor faz um video cheio de sorrisos beatos, como se a situação fosse brilhante; o candidato da oposição que tem possibilidades de lhe ganhar - poucas, parece-me; mas ainda a procissão vai no adro - promete água em todas as casas (aparentemente metade dos fogos não tem água corrente. Isto num país que fabrica aviões e é o quarto exportador de armas do mundo).

A campanha é extremamente personalizada. Com excepção do PCB o nome dos partidos pouco aparece.

O voto é obrigatório e percebe-se porquê.

Classificados

Vende-se dor. Usada, mas em bom estado. Pouco visível.

Ou troca-se por meia dúzia de palavras.

Telefotos - Eleições



Dores, pele

Já nada me magoa ou alegra. Quase nada. A quem não tem pele pouco interessa que o dia seja de chuva ou sol.

("I am told that a blindfolded man cannot distinguish severe burning from severe freezing") - Iris Murdoch, in The Sea, The Sea

Jorge Luis Borges

Sou pouco dado a dias disto e daquilo, mas hoje é dia de Borges. Faria cento e quinze anos. Não tenho as minhas queridas Obras Completas da Emecé à mão. O DV está, claro, cheio de poemas dele; e de labirintos, carreiros que se bifurcam e não levam a lado algum.


El Amenazado

Es el amor. Tendré que ocultarme o que huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz.
La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única.
¿De qué me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras,
la vaga erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus mares y sus espadas,
la serena amistad, las galerías de la biblioteca, las cosas comunes,
los hábitos, el joven amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, la noche intemporal, el sabor del sueño?
Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se
levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan, las hordas.
(Esta habitación es irreal; ella no la ha visto.)
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.


24.8.14

Patriotismos de pé e mão

O meu patriotismo sapatal leva um golpe todos os dias, coitado: os sapatos Victoria que comprei em Sitges em Novembro têm-se aguentado bastante bem. E só vão em breve ter companhia porque precisam de ser lavados. É uma compra que ando a planear há meses e que qualquer dia, em breve, se concretizará.

Mas hoje não este o patriotismo que me desassossega. É o fiscal. Sou grande adepto de livros em segunda mão (ou terceira, quarta, quinta e mesmo sexta, a julgar pelo estado de alguns).

Os pobres autores não recebem os respectivos direitos e eu não sei como pode Portugal alinhar em tal desvario. Eu gostaria muito que o meu país, dignamente representado pelo seu Primeiro Ministro e pelo Secretário de Estado da Cultura e dos óculos redondos encontrasse maneira (se possível fiscal) de corrigir esta medonha injustiça.

Sono, amor

A distância entre ter sono e dormir é a mesma do que entre amar e ser amado.

Ou entre estar vivo e viver.

Convivências, vizinhanças

Como fazem a tristeza e o bem-estar para conviver tão facilmente, sem conflitos? Como se fôssemos um desses grandes prédios modernos nos quais as pessoas vivem lado a lado e nunca se vêem.

Taxas de câmbios

Qual a taxa de câmbio das palavras contra outras moedas como solidão, álcool, desejo, música, sono e por aí adiante?

Sorte e algumas palavras

Em três palavras (gaja, despropositada e chateada): convidei uma gaja para jantar; ela fez-me esperar de uma maneira que me pareceu despropositada; fui jantar sozinho; está chateada comigo.

Há dias em que me pergunto de onde me vem tanta boa sorte.

Sem ironia.


Lutas, escadas

Comecei uma luta que quero, todos os dias, perder. Pergunto-me se a teria começado querendo ganhá-la. A resposta é sim, claro. Teria.

A questão não é essa. É saber porque é uma luta, ainda. Se temos uma escada pela frente a única maneira de a resolver é subir degraus, não descê-los.

Misturas

Por vezes pergunto-me: S. Luís não será uma mistura de todos os sítios onde já vivi até hoje?

Tudo e o seu contrário

O difícil não é escrever, é começar a escrever. Uma vez começado, é fácil. Basta esperar que os tubarões cheguem, as galinhas fujam, o sol desapareça, a lua brilhe, o mar se altere, a terra queime, o vento entre, a música toque, alta de mais ou demasiado baixa. Tudo aparece e o seu contrário.

Com a excepção de ti, que não tens contrário.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 23-08-2014

Novo jantar no Oak, solitário (mais ou menos imprevistamente). Não me incomoda particularmente estar sozinho. Não é estar sozinho que me chateia.

Mas não me apetece muito tecer bordados sobre a diferença entre estar sozinho e solidão, de maneira fico por aqui: um excelente jantar, bom vinho (espumante argentino cujo nome infelizmente não retive) e por fim uma breve passagem na festa da Guest House.

Tirando a cor das peles e a algumas roupas podia estar na Suíça, em Portugal ou em França. Não tenho nada contra a globalização, antes bastante pelo contrário. Mas lamento esta uniformização. Estas cópias que ainda por cima nem fiéis são.

Uma pedra de crack custa dois reais. Eu comprei uma tequilla, três cigarrilhas (das quais fumei uma e guardo duas) e um pau de incenso. Quatorze reais. Com a entrada na festa, vinte e nove reais. Quatorze pedras e meia de crack. Não digo que vi quatorze pessoas a fumar crack nos cinco minutos que andei entre a festa e a pousada; mas não estive muito longe.

........
H. parece estar zangada comigo. Não sei, não lhe perguntei. Tenho imensa pena. O meu stock de paciência está cada vez mais pequeno, e contra isso pouco posso fazer.

Além de que tive a impressão - estaria enganado? - de que ir jantar comigo não era a sua principal prioridade. Infelizmente, para mim ir jantar com ela tão pouco era uma prioridade. Há vezes em que um desencontro é um encontro.

Isto dito, H. é gira. Lamento a minha falta de paciência.

Cedi-lhe o meu quarto e vim dormir para a sala. Tenho que começar a trabalhar o excesso de generosidade, agora que o de paciência está resolvido.

........
Estou em S. Luís há pouco mais de dois meses. Vou cá ficar - em princípio - mais dois ou três. Começo a estar em casa.

Casa sendo o sítio do qual se sabe porque não se gosta e não se sabe porque se gosta.

23.8.14

Maude - III

Um gajo pode ser bom naturalmente, por obra e graça da natureza, por ser anjinho; ou porque já foi mau: fez demasiadas asneiras, demasiados erros, maldades e aprendeu com eles.

Estou longe de ser o gajo decente que todos pensam que sou. No qual me transformei depois de ter feito muita merda. Não posso dizer que tenha sido difícil. Não foi. Comecei simplesmente a empatizar com os outros, a perceber que as minhas acções tinham consequências, a sofrer demasiadas vezes as maldades de que era vítima. Pouco a pouco - o processo foi gradual, lento, por vezes imperceptível - transformei-me num "homem bom"  (aspas porque repito o que milhares de vezes me disseram. Tu és um homem bom. You are a good man. Eres un hombre bueno. Tu es un chic tipe. Disseram-mo em todo o lado, em todas as línguas).

Ando há cinco anos com Isabel. Ao princípio era suposto ser uma dessas relações "picada de mosca", insensível, rápida, sem consequências, um banal affaire entre um piloto e uma hospedeiraqueca em Nova Iorque, passeio no Rio, compras em S. Francisco. Mas um dia pedi para voar de chave com ela (significa fazer sistematicamente voos em conjunto com outro tripulante) e desde aí perdi o controle. Passo mais tempo com Isabel do que com Maude. Penso nela mais vezes, toco-lhe e falo-lhe e rio-me com ela mais do que o faço com Maude. Se alguém me convida para um jantar e diz "Traga a sua mulher" é em Isabel que penso, não em Maude.

Maude... Quando penso no que este nome me fez sonhar e no pesadelo que hoje se tornou. Odeio tudo o que ele evoca para mim, a começar na minha cobardia, a continuar pela minha duplicidade, a acabar nas memórias que dela tenho, dos tempos em que a amava.

Como cheguei aqui? Como posso não amar a pessoa que tanto amei? Como posso mentir-lhe?

Não é como. É porque. Como eu sei. Porque não.



[Com um obrigado ao Hugo Mastbaum pela ajuda]

Venham mais cem

Mais uma centena de mortos no mar.

É lamentável que o dispositivo da indignação, que tanto se preocupa com os terroristas do Hamas não se preocupe com esta gente, pessoas que só querem uma vida melhor para elas e para as famílias e preferem trabalhar a matar ou matar-se com bombas. Acabam por morrer no mar.

Entretanto, a "Europa"  dá subvenções aos seus agricultores para os "compensar" das sanções russas.

Se a Europa abrisse as suas portas aos produtos africanos não resolveria, claro, o problema da imigração; mas diminuí-lo-ia bastante. Mas isso não faz, claro. Há meia dúzia de agricultores a manter calmos. Os pretos que morram e nós paguemos a dobrar os produtos alimentares.

TED Talks - Vulnerabilidade

Mais daqueles TED Talks que deve ser visto e revisto.

22.8.14

Alejandra Pizarnik

Hoje, graças a um artigo na revista Piauí, descobri esta autora argentina.

Descobrir não é o termo. De momento ainda estou só subjugado. Descobrir fica para depois.




Esta lúgubre manía de vivir,
esta recóndita humorada de vivir
te arrastra Alejandra no lo niegues.

Hoy te miraste en el espejo
y te fue triste estabas sola
la luz rugía el aire cantaba
pero tu amado no volvió.

Enviarás mensajes, sonreirás,
tremolarás tus manos así volverá
tu amado tan amado.

Oyes la demente sirena que lo robó
el barco con barbas de espuma
donde murieron las risas
recuerdas el último abrazo
oh nada de angustias
ríe en el pañuelo llora a carcajadas
pero cierra las puertas de tu rostro
para que no digan luego
que aquella mujer enamorada fuiste tú
te remuerden los días
te culpan las noches
te duele la vida tanto tanto
desesperada ¿adónde vas?
desesperada ¡nada más!







PIEDRA FUNDAMENTAL

No puedo hablar con mi voz sino con mis voces.

Sus ojos eran la entrada del templo, para mí, que soy errante, que amo y muero. Y hubiese cantado hasta hacerme una con la noche, hasta deshacerme desnuda en la entrada del tiempo.

Un canto que atravieso como un túnel.

Presencias inquietantes,
gestos de figuras que se aparecen vivientes por obra de un lenguaje que las alude,
signos que insinúan terrores insolubles.

Una vibración de los cimientos, un trepidar de los fundamentos, drenan y barrenan,
y he sabido dónde se aposenta aquello tan otro que es yo, que espera que me calle para tomar posesión de mí y drenar y barrenar los cimientos, los fundamentos,
aquello me es adverso desde mí, conspira, toma posesión de mi terreno baldío,

no, he de hacer algo,
no, no he de hacer nada,

algo en mi no se abandona a la cascada de cenizas que me arrasa dentro de mí con ella que es yo, conmigo que soy ella y que soy yo, indeciblemente distinta de ella.

En el silencio mismo (no en el mismo silencio) tragar noche, una noche inmensa inmersa en el sigilo de los pasos perdidos.

No puedo hablar para nada decir. Por eso nos perdemos, yo y el poema, en la tentativa inútil de trancribir relaciones ardientes.

¿A dónde la conduce esta escritura? A lo negro, a lo estéril, a lo fragmentado.

las muñecas desventradas por mis antiguas manos de muñeca, la desilusión al encontrar pura estopa (pura estepa tu memoria): el padre, que tuvo que ser Tiresias, flota en el río. Pero tú, ¿por qué te dejaste asesinar escuchando cuentos de álamos nevados?

Yo quería que mis dedos de muñeca penetraran en las teclas. Yo no quería rozar, como una araña, el teclado. Yo quería entrar en el teclado para entrar adentro de la música para tener una patria. Pero la música se movía, se apresuraba. Solo cuando un refrán reincidía, alentaba en mi la esperanza de que se abasteciera algo parecido a una estación de trenes, quiero decir: un punto de partida firme y seguro; un lugar desde el cual partir, desde el lugar, hacia el lugar, en unión y fusión con el lugar. Pero el refrán era demasiado breve, de modo que yo no podía fundar una estación pues no contaba más que con un tren salido de los rieles que se contorsionaba y se distorsionaba. Entonces abandoné la música y sus traiciones porque la música estaba más arriba o más abajo, pero no en el centro, en el lugar de la fusión y del encuentro. (Tú que fuiste mi única patria ¿en dónde buscarte? Tal vez en este poema que voy escribiendo).

Una noche en el circo recobré un lenguaje perdido en el momento que los jinetes con antorchas en la mano galopaban en ronda feroz sobre corceles negros. Ni en mis sueños de dicha existirá un coro de ángeles que suministre algo semejante a los sonidos calientes para mi corazón de los cascos contra las arenas.

(Y me dijo: Escribe; porque estas palabras son fieles y verdaderas).

(Es un hombre o una piedra o un árbol el que va a comenzar e canto...)

Y era un estremecimiento suavemente trepidante (lo digo para aleccionar a la que extravió en mí su musicalidad y trepida con más disonancia que un caballo azuzado por una antorcha en las arenas de un país extranjero).

Estaba abrazada al suelo, diciendo un nombre. Creí que me había muerto y que la muerte era decir un nombre sin cesar.

No es esto, tal vez, lo que quiero decir. Este decir y decirse no es grato. No puedo hablar con mi voz sino con mis voces. También este poema es posible que sea una trampa, un escenario más.

Cuando el barco alternó su ritmo y vaciló en el agua violenta, me erguí como la amazona que domina solamente con sus ojos azules al caballo que se encabrita (¿o fue con sus ojos azules?). El agua verde en mi cara, he de beber de ti hasta que la noche se abra. Nadie puede salvarme pues soy invisible aún para mí que me llamo con tu voz. ¿En dónde estoy? Estoy en un jardín.

Hay un jardín.

20.8.14

Diário de bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 20-08-2014

A filosofia na farmácia:

Um gajo passa a noite - com a inestimável e imprescindível ajuda de uma garrafa de Carmenère e umas caipirinhas do Raimundo - a pensar nas relações entre o cavalo, a cavalariça, os outros e o resto e no dia seguinte vai à farmácia comprar creme protector solar em spray. A primeira coisa que nota é o preço - duzentos mililitros de Nivea Sun Protect & Fresh Spray Transparente e Refrescante FPS 50 (omito noventa por cento das informações do recipiente) custam mais do que duas garrafas - ou seja, mil e quinhentos mililitros - de vinho tinto. Resta esperar que durem mais tempo, e sobretudo que façam tão bem.

E depois não noto mais nada porque ainda não usei a coisa. Espero que não seja sebenta, é tudo. E que a cavalariça aprecie e retribua.

........
Hoje foi um dia bom no trabalho. Melhor do que bom. Mudei em muitas coisas mas não mudei numa: nunca conseguirei tirar o trabalho de mim, separar a vida profissional da vida tout court.

Universo, inferno

Deito-me sobre Miles,  sobre o cansaço, num elevador que ficará parado no momento errado.

Miles é um tapete voador. Tudo, todos estão em hemisférios diferentes e graças a ele comungamos.

Não é verdade.

Comungo. A primeira pessoa do singular é o universo. Atrás vem o inferno.

Sol, lua

Devíamos aprender a conciliar solidão e felicidade: por vezes o sol e a lua encontram-se.

Dizer, calar

Não ligues às coisas que digo. São tantas, não é? Mais valia estar calado.

Não te preocupes. Eu sei calar-me. Basta querer, ou poder.

O Mar, o Mar

Ainda não disse a (quase) ninguém, mas estou a ler um livro chamado The Sea, The Sea, de Iris Murdoch. É a história de um director de teatro que se retira para uma casa perto do mar e começa a ser assombrado pelo seu passado - as suas amantes, a sua vida, etc. -.

É extraordinário. Ganhou o Booker de 1978, ou coisa que  valha.

Gostar de ler é uma bênção. Ler livros bons é uma sorte.

Miles

Miles toca e de repente tudo - até a morte -  parece fútil.

Vida

Devo confessar uma coisa: hoje saí. Acabei de jantar - um jantar assim assim,  salvo pela garrafa de Carmenère - e vim ao Raimundo beber caipirinhas (sem açúcar) e fumar cigarros que compro avulso, como se fossem charutos -. O Raimundo (Senzala Bar) é o meu bar favorito da Praia Grande, a seguir ao Bar do Porto. Mas hoje é terça-feira e o Porto está fechado. Além disso tinha que vir ao Raimundo. Gestão de presenças, ausências e conteúdos. A caipirinha do Senzala não só é boa como é a maior da Praia. Já lá não vou há muito tempo, o que torna embaraçosos (para mim) os nossos encontros quotidianos na rua.

A música - resultado de um acordo entre o Raimundo e a Tia Dica - é uma merda inqualificável.

A vulgaridade desce (ou sobe) a níveis tais que deixa de ser vulgaridade.  É uma espécie de vulgaridade destilada,  vulgaridade pura, invulgaridade.

Bebo caipirinhas,  fumo cigarros e penso na morte.  Curioso, não é? Isto é a vida.

Se te queres matar...

"Se te queres matar porque não te queres matar? " pergunta Álvaro de Campos, lúcido, cínico e brutal como sempre.

Há várias razões. Matar-se é complicado,  a menos que se disponha de uma arma de fogo (cerca de dois terços das tentativas de suicídio falham, e não é por serem fingidas).

Deixar-se morrer é mais fácil.  Ou matar-se com prazer, como fazem os toxicómanos.

E depois há uma pergunta importante: que farei da morte, se nada fiz da vida?

O cancro e a lotaria

Descubro agora - porque mo disseram clara, explícita e frontalmente - que corro sérios riscos de desenvolver um cancro da pele. Assim para começar eu queria que o cancro fosse apanhar onde apanham as galinhas e não me chateasse nem me obrigasse a usar creme anti-UV e o raio que o parta.

Mas a verdadeira questão não é essa. É: há alguma parte do corpo que não esteja sujeita a cancro? De que me serve proteger-me a pele do cancro se ele amanhã aparece nos joelhos, por exemplo? Ou no baço? Ou no céu da boca,  particularmente chato para quem gosta tanto de falar?

Isto do cancro é como sermos amados pela mulher que amamos; ou a lotaria: perdemos cada vez que amamos, ou jogamos.

19.8.14

Homofonias

Cozinha todos os dias como se amasses pela primeira vez; ou pela milésima a mulher que amas realmente. Cozinha devagar, muito devagar; excepto quando é urgente que seja rápido. Toca em todos os ingredientes e mistura-os se for preciso. Mas só se for preciso. Se não for mantêm-os separados até que o momento chegue de uni-los.

Aquece-os todos - uns primeiro e outros depois - junta-lhes um bocadinho de amargo, muito pouco; ou de picante, se tu e a comida preferirem.

Não sigas receitas: inventa-as todos os dias, porque nada mata uma cozinha mais do que a repetição. Olha para o que estás a fazer, mexe e remexe, cheira e prova. E ouve: é importante ouvir o que a panela te diz. Pensa; como o amor, a cozinha é uma actividade intelectual.

Acompanha sempre que puderes com um copo de bom vinho, uma boa música (Miles Davis, Keith Jarrett, Sonny Rollins, Ben Webster, Hildegarde von Bingen às vezes, Coltrane, sempre, Glenn Gould, ou God Bless the Child na versão do Eric Dolphy, o melhor solo do mundo e arredores).

E ama. Como paradizia o outro, Põe amor em tudo quanto fazes; nada de teu desama ou ama em demasia.

Não sirvas quando estiver pronto, mas quando tu estiveres pronto.

Cicatrizes


São precisos e preciosos os labirintos, como as cicatrizes.

Mais coisas, continuação e fim

Não podemos contudo esquecer-nos de que as coisas passam, ainda que as contemos até ao infinito. O infinito é um labirinto no qual as coisas se perdem, se não formos nós a perdê-las. São precisos mais infinitos, mais labirintos.

Mais coisas. Mais palavras. Mais emoções.

Telefoto - Raposa, MA, Brasil


Mais coisas

Imaginemos uma nuvem que ora parece uma cafeteira ora um cavalo pronto a saltar ora uma praia cheia de conchas; pensemos num rio que corta em dois uma planície. Digamos um louva-a-deus, para dizer qualquer coisa.

Ou dois. Assim dizemos mais coisas.

Telefoto - Em geral


Telefotos





Naïvetés

É injusto - mais uma injustiça, oh horror - que se aceite com condescedência e ou deleite a pintura naïve mas não a poesia.

Diálogos impossíveis

Há pessoas com quem falar é como pôr um cego a conversar com um mudo.

17.8.14

Descobertas tardias

Nada a fazer. O verbo foder vem com um pronome reflexo amarrado por um hífen.

O fundo das palavras

Brinco com as palavras como com os teus seios. Não. Brinco com as palavras como com as tuas mamas.  Não. Brinco com as palavras como contigo. Enchem-me seios e palavras e tu, uma pele como a página na qual te escrevo e escrevendo me escrevo, escravo de corpos e livre de alma, fundeado no futuro e atracado ao passado.

És uma baía e nela fundeei um dia, uma vida. O ferro são as palavras todas que juntos encontramos, e o que delas fazemos cada dia.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 17-08-2014

Ontem foi dia de a poesia ocupar a cidade, de novo. São os meus momentos favoritos em S. Luís. Pensava como replicar isto noutros sítios? É replicável? Como seria, ler poesia no Rossio às seis da tarde de um sábado? Ou no Castelo? ou no Cais das Colunas?

E noutros países? Em Panamá seria impossível; ditto em St. John (Antigua), ou qualquer outra cidade das Caraíbas. Hummm... Não, em Fort-de-France (Martinique) funcionaria. Em St. George's Town (Grenada) também. Em Bequia não haveria ninguém, mas seria lindo.

Poesia,  Celso, vamos ocupar o Mundo?

Enfim, não é só poesia. Li o começo da Peregrinação, houve quem tocasse música, cantasse rap. E saio de cada sessão com livros oferecidos.

E com uma maravilhosa sensação de pertença. Qualquer dia sou ludovicense (já gosto tanto da palavra que gostar da coisa é um passo).

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Ao contrário do que muita gente pensa sempre tratei bem de mim. Comi bem (enfim, nem sempre, mas isso é outra história); bebi bem (no sentido de muito; no outro, aplica-se o proviso anterior). Não tomei demasiadas drogas (e quando tomava parei cedo). Não fumei durante muito tempo. Numa palavra, uma vida regrada, sem excessos se a tomarmos no seu conjunto.

Mas o raio da cavalariça agora quer outro tipo de cuidados. Em vez de ouvir os meus amigos donos de bares (não consigo lembrar-me de um dono de bar que não seja meu amigo. E de restaurantes também, de passagem se diga) ouve os médicos nos quais gasto o dinheiro que devia ser gasto em coisas melhores, como as cachaças do Xico ou da tia Dica, as cervejas da tia Rosa ou os maravilhosos nacos de carne do Oak.

A última com que me veio é que preciso de começar a usar creme solar, daqueles com que as pessoas se besuntam quando vão à praia ou mal entram num barco. Nunca usei até agora e confesso que me foi mais fácil deixar de ir tomar as minhas cervejas ao mercado da Praia Grande do que é imaginar-me coberto daquela coisa branca, pegajosa, mal-cheirosa e em geral desagradável.

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A minha integração linguísta também faz alguns progressos. Continuo a falar português com o meu sotaque. Não há razão para mudar. Faço apenas - mas raramente - algumas concessões lexicais. Tirei rapariga do meu vocabulário. Pelo menos daquela parte dele que exprimo oralmente. Há pessoas a quem sei que se disser casa de banho acabarei a dizer banheiro; ou café da manhã em vez de pequeno almoço. A essas vou directamente à forma local.

No fundo estou contente: quando por exemplo penso em rapariga tenho muito mais com que me entreter. Mesmo que não o diga. E tenho bastantes palavras novas com as quais brincar.

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Em Outubro há eleições. Uma das formas favoritas de publicidade eleitoral é o "som automotivo": automóveis (e bicicletas e motas e camiões. A única coisa que ainda não vi foi carroças) equipadas com altifalantes capazes de acordar quem dorme em coma alcoólico nos antípodas.

É mais uma fonte de ruído a juntar-se às já existentes, tantas. Tenho pena de não poder votar: votaria no único candidato - deve haver um, pelo menos, no meio destes milhares de candidatos (todas as eleições são simultâneas, desde as autárquicas às presidenciais) - que não tenha dinheiro para fazer barulho. Um só.

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De entre as boas decisões do últimos decénios está a de me mudar das Portas da Amazónia para a casa do Frank. Para além de poder cozinhar - não imaginava que me fizesse tanta falta e tanto bem - passo horas a falar com Frank de barcos. Teve uma quantidade impressionante deles, cada um mais bonito do que o outro.

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Mar, cozinha e livros. Podia ser pior.

Receita improvisada - Frango com beringelas

Comecei por começar: marinar o frango em limão, sal, alho e louro. Ficou uma hora ou duas. (Infelizmente o barulho é de mais e demasiado mau e não me permite grandes rasgos). E continuei pelo começo: cortar a beringela às fatias e pô-las num passador com sal grosso para perderem a água. Meia hora.

Refoguei uma cebola, dois pimentos pequenos daqueles deliciosos (mas não tão bons como os do Panamá) e alho com casca, juntei-lhe a beringela passada por água abundante e cortada aos bocados.

Depois foi o frango com um bocadinho de vinho tinto, não muito que era bom.

Quando aquilo estava tudo mais ou menos misturado e a cheirar bem pus um frasco grande de azeitonas cortadas às rodelas e o sumo da marinada (era muito, os limões são sumarentos. E deliciosos).

Depois foi cobrir de água, pôr a paprika, os cominhos, um bocadinho de cravo, orégãos e pimenta.

Isto tudo ontem. Da panela foi para o frigorífico e de lá só hoje saiu.

Estava delicioso, modéstia às malvas. A refazer até ao fim das beringelas, dos tempos ou de outra coisa qualquer.

14.8.14

The opposite of depression is not happiness, but vitality



13.8.14

Peça no deserto

As cortinas fecharam-se, as luzes apagaram-se, o palco ficou vazio. A ponte ruíu. Sem palavras, um esqueleto avança no deserto. Ninguém o vê,  ninguém o ouve.

Gosto do deserto. O calor,  a areia escaldante,  a solidão. Todas as mortes deviam ser no deserto,  para lá das pontes caídas, das vidas vazias, ao sol e ao vento.

A areia cobre as cadeiras de onde assistimos às últimas cenas, as mais cómicas. Ou ridículas. Ou patéticas. As linhas que as separam são ténues,  quase invisíveis de tão finas.

O esqueleto ri-se e cai. Nunca mais se levantará. Na plateia ouvem-se solitárias palmas. Alguém ficara para trás.

O vento, a areia, o sol e um riso meio triste meio trocista. A peça acaba como começou. Um esqueleto que ninguém vê, um incêndio,  pontes de palavras a cair aos bocados.

Ninguém fala. Nas ruínas o sol ilumina as frinchas pelas quais sai a mentira e entra o silêncio.

O vento, de novo.

Um murmúrio.  A morte. A distância amplia o que não se vê: o invisível aparece mais nítido.

No deserto há calor e frio. Há luz mas não há sombras. Há fogo mas não há água. Há solidão e silêncio e dor e verdade. Mas não há mentira.

Miscelânea de temas

Por uma razão qualquer que desconheço mas acho injusta, é-me mais fácil falar com um comunista ou nazi (passe a redundância) inteligentes do que com um, sei lá, liberal idiota. É uma pena - tem-me custado toneladas de maravilhosos amigos - mas é sobretudo injusto.

É injusto porque - como quem me conhece bem sabe - eu não sou um gajo particularmente inteligente (no que respeita à inteligência imagino-me na faixa baixa da mediania) nem muito culto (idem, mutatis mutandi).

Talvez seja por isso, na verdade: se fosse inteligente conseguiria decerto marimbar-me mais facilmente na patetice, na tolice et al. de outrém. Ser-me-ia tão fácil suportar um idiota útil como um inútil (prefiro estes últimos, naturalmente. É pior a energia aliada à estupidez do que o abulismo).

Isto dito, há uma coisa que suporto ainda menos do que a estupidez, que em grande parte partilho (a cacofonia é voluntária. Esta e as seguintes. São apenas para que quem não concorda comigo possa dizer que nem escrever sei): é a falta de respeito pelas palavras.

As palavras têm uma conotação e uma denotação. Que evoluem, naturalmente - quando eu digo maricas em vez de gay ou homossexual estou simplesmente de má-fé, direito que me assiste como a qualquer outro desde que dele esteja consciente -.

Dizer por exemplo que os israelitas fizeram um genocídio em Gaza - e dizê-lo no primeiro grau - não é simplesmente uma idiotice já de si difícil de suportar. Em Gaza vivem um milhão e oitocentas mil pessoas. Mil e duzentos mortos, dos quais metade pelo menos são combatentes é um horror, é o que se quiser. Mas não é um genocídio (isto ficando pelos números; não vale a pena entrar em pormenores sobre as causas e os métodos de luta de cada uma das partes. Se bem se devesse. Genocídio tem uma definição jurídica, que deve igualmente ser respeitada).

Porque se se pensar - ou, o mais da vezes, disser sem pensar - que em Gaza houve um genocídio, como chamar, por exemplo, ao que se passou no Rwanda em 1994 (oitocentas mil pessoas, incluindo crianças e mulheres, mortas à machetada em três meses. Três meses)? Como chamar ao que se passou na Arménia entre 1915 e 1917 (um milhão e meio de mortos)? Como chamar ao que se passou na Ucrânia em 1932 (quatro milhões de mortos à fome)? O Cambodja (dois milhões)?

É uma imperdoável, intolerável, insuportável falta de respeito. Pelas palavras e pelos mortos. E pela inteligênca, mas isso é outro debate. Do qual, infelizmente, não posso ser parte por falta da dita.

Adenda: além de que seria forçoso reconhecer a absoluta incompetência dos israelitas, se eles quisessem realmente praticar um genocídio. Bolas, os Hutus mataram quase trinta mil Tutsis por dia e com machetes. Nem armas de fogo tinham. Por que raio de carga de água os israelitas mataram tão poucos palestinianos apesar da desproporção de forças? Só pode ser incompetência. Ou então falta de genica, coitados.

12.8.14

TED Talks - Helen Fisher

Este é um daqueles TED Talks de que não me canso.




Amar, tempo

Ainda te amo. Não. Espera. Já te amo. Como posso ainda amar-te se não te conheço? Posso amar-te porque já te conheço. Sei que não precisas de mim para viver, foder, passear, ler, ir ao cinema. Não precisas, mas preferes, não é? Sei duas ou três coisas de ti. Sempe soube. E vou aprender outras, porque todos nós somos o que somos e o que seremos (e o que fomos, mas isso interessa pouco).

Não te conheço mas sei como és e por isso já te amo. Ainda te amo. Já não te amo. Já te amo. Não sei. O verbo amar não tem tempos. Só tem tempo.

Por que portos (quinquagésima milésima trigésima quarta versão)

Por que portos navegaste,
por que corpos?
Por que praias encalhaste,
por que ventres?

Em quantas línguas mentiste,
contra quantos ventos bolinaste,
a quantas tempestade aproaste,
de quantas fugiste?

Quantas mãos te acariciaram,
quantas vagas?
Quanto olhos te guiaram,
quantos faróis?

Quantos sóis observaste,
quantos seios?
Quantas rectas te situaram,
quantas pernas, braços...

Em quantas cartas traçaste rumos,
quantas peles?

Que nortes te esperam,
mortes, solidões?

11.8.14

Reedição - Pedro Tamen

"O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar."

"Não durmas, que há uma escada
Para uma noite maior.
Não morras, que há uma espada
Que mata com mais amor.

Pássaro de todos os ramos,
Ó minha esquina tão esquiva,
A verdade é que afirmamos
Pela dupla negativa.

Querer-te: não querer e não querer.
Não fugir: ouvir o vento.
Amar-te é nao me esquecer
Da minha casa e assento."

"Um filho como um verso: neste branco
do mundo, o universo. Nos cinco dedos
da mão todos os ventos, e a rosa
que os respira e dá, vertiginosos."

E, a terminar esta série de poemas, dedicados ao raio, um raio benigno, note-se, que também os há:

"Hoje trago-te o vento; eu sei
que mais não pode ser o que te der.
E calo-me; o resto já to dei,
ao teu sereno pasmo de mulher.

Hoje trago-te o vento, vento,
o que ele tem mudado para nós.
(O nosso passo antigo que era lento
juntou-nos de repente numa voz.)

Hoje trago-te o vento renovado,
o vento que de longe chegou cá:
em cada monte e esquina foi lavado

para chegar ao fundo do que há
nesta pobreza de hoje, e, cá chegado,
entrar na mão da carne que to dá."

"Nada a fazer, amor: tu és nascida
e eu também, por graça ou majestade;
de lados longe e de que portos parte
esta morte insolente e assumida
que se nos dá nos dando a maior parte
do pão que se mastiga e bruxo há-de,
além de miga, ser de vida a vida?"

"Só dos monstros devemos ter ciúmes ..."

Nuno Júdice - Para escrever o poema

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Nuno Júdice

Nuno Júdice - Braile

Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.

Nuno Júdice

Nuno Júdice - A tua ausência dói-me

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refração de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice


Desabafo

O nível ao qual estes gajos ouvem música releva da doença mental, da idiotice patológica mais do que da falta de respeito, educação ou bom senso.

Maude - II

Já alguma se apaixonaram por alguém que à partida não tem nada em comum convosco? Nada em comum com vocês ou aquilo que procuram no outro? Foi isso que me aconteceu com ele.

Eu sempre gostei de artistas, de uma vida desorganizada, sem outras expectativas que não fossem criar, gozar, aprender, conhecer "pessoas interessantes" (as aspas são consequência destes dezasseis anos com ele, claro. O seu cepticismo contaminou-me. Pessoas interessantes só existem nas cabeças de pessoas que as têm vazias). Queria um homem ao meu lado sempre; pensava que as minhas ideias se transformariam milagrosamente em livros, contos, letras de canções, pinturas, fotografias.

Conheci-o num jantar. Era um jovem piloto com um sentido de humor demolidor, que defendia sozinho as suas ideias contra todos os presentes, educadamente, com um sorriso e uma resposta lapidar àquilo que visivelmente lhe parecia uma antologia de tonterias.

Não me lembro qual o tema de discussão desse primeiro jantar. A cena repetiu-se várias vezes, até ele se cansar e não falar se não do tempo e de aviões - duas coisas que, dizia, o apaixonavam. "Principalmente o tempo, a sua constante mudança, a sua imprevisibilidade" -.

Foi contra vontade que me apaixonei por ele. Era um homem decente, provavelmente o mais decente que jamais conheci. "Decente? Pior do que isso só ser cornudo", disse-me um dia. "Pensava que não te importavas com isso de ser cornudo". "Verdade. Nesse caso não há nada pior do que ser decente".

Mas sim, era um homem decente. Oferecia-me flores, trazia-me constantemente prendas - joalharia, roupa - das suas viagens, amava-me maravilhosamente e, sobretudo, nunca me fazia perguntas. Um dia fiz-lho notar, e respondeu "O que quiseres que eu saiba dizes; o que não queres, inventas".

Demorei muito tempo a habituar-me a essa liberdade. Nos primeiros anos da nossa vida comum - vivemos três anos juntos, antes de nos casarmos - só pensava em deixá-lo. E casei-me cheia de dúvidas. Nunca o tinha enganado - se bem enganar não seja o termo adequado -.

Um dia falámos no tema. Oh, muito por alto e indirectamente, de raspão, como se não fosse nada com ele, ou comigo. Nessa altura estávamos casados havia dois anos, se tanto. Mas tínhamos passado por muitas coisas juntos: uma separação curta e dolorosa para os dois, uma gravidez falhada para mim - que de resto me fez saber que nunca poderia vir a ter filhos e podia deixar a pílula - a morte da minha mãe, um acidente em que ele esteve envolvido e no qual poderia ter morrido.

É demasiado, para cinco anos de vida comum. Não precisava de um marido a dizer-me que podia fazer o que quisesse, desde que ele não soubesse. Um marido que naquele dia eu amava um pouco mais do que alguns anos antes; um marido ao qual pouco a pouco, devagar, me tinha habituado; que eu nunca tinha enganado. Porque viria ele agora com essa conversa, a propósito de um filme, ou de um livro, ou de uma coscuvilhice, não me lembro?

Mas aquilo não foi bem uma conversa. Foi mais uma informação, como se estivéssemos numa estação de comboios, ou de metro e um altifalante dissesse que o próximo comboio ia chegar atrasado, ou havia perturbações na linha.

Não me lembro do que lhe respondi.

A primeira vez que tive um caso foi uns largos meses depois. O meu marido - já conseguia usar esta expressão sem sentir um arrepio - estava fora, num voo para o Brasil. Encontrei António numa festa. Escrevia, tinha muita graça, não tinha um chavo, e era péssimo na cama.

Repararam que disse "tive um caso". Com António descobri duas coisas: a) não estava a enganar o homem que b) amava. Informações só superficialmente contraditórias. E com as quais vivo desde então.

Aprendera, finalmente, aquilo que o meu marido me dizia havia anos: não se deve misturar o amor com mais nada. Nem com o sexo, o casamento, a amizade, a vida quotidiana, o desejo, o que for. Amor é amor, e o resto é conversa, formalidades, prazer ou cumplicidade. Como a água, que se pode misturar com tudo mas só é boa quando é pura.

António é brusco na cama, vem-se depressa, parece que está a fazer amor sozinho. Pouco me importa: não é por falta de bom sexo que estou com ele.

É por não me faltar nada que estou com ele.

10.8.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 10-08-2014

S. Luís ocupa-me, ocupa e é ocupada. Ontem, como todos os sábados foi dia de Cidade Ocupada: leituras públicas de poesia em locais relevantes da cidade. Relevantes de um ponto de vista da história, ou da literatura, ou do que seja. A minha primeira participação foi na praça onde viveu o Padre António Vieira. A melhor sessão inaugural possível.

Confesso que fiquei surpreendido tanto pela quantidade como pela qualidade das participações. A começar na jovem Clarisse, a filha de Celso, nove anos de idade e a acabar em qualquer dos outros, tive direito a quase duas horas de prazer puro.

Eu disse dois ou três poemas (humm... quatro!): um do Reinaldo Ferreira, dois de Fernando Pessoa e um haiku de Issa (e não Bashô, como erradamente indiquei). Dois "cordelistas" - um tipo de poesia narrativa, popular, rimada, com temas como a promessa não cumprida de um emprego, a compra de um computador ou conselhos para os políticos ganharem eleições (são em Outubro) - debitaram de memória uma quantidade prodigiosa de versos.

Lúcia Santos disse poemas deliciosos, sensuais e curtos, como "Por falar em futebol / venha jogar / sob meu lençol" ou "Tua língua em meu ouvido / Babel / onde tudo faz sentido"; ou menos sensuais, mas divertidos na mesma: "Cabeça de um homem / numa bandeja / toda mulher deseja". O Celso leu poemas dele e um excerto de um sermão de Vieira.

Para a próxima preparo-me melhor. Não é sequer uma promessa. É um privilégio.

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Ontem fui fazer compras ao mercado primeiro; e depois ao supermercado. Algumas pessoas poderiam pensar que fui excessivo nas compras. Mas como não sei o que excessivo quer dizer não ligo muito.

O prazer de beber leite, por exemplo - é excessivo? E beber um bom café (enfim, sejamos honestos: menos mau)? Allah uAqbar. Excessivas são as mentes que sabem o que excesso é.

9.8.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 09-08-2014

Tenho andado a tratar muito da cavalariça e pouco do cavalo. Ontem achei que era altura de mudança. Mandei o açúcar às urtigas e com ele a barriga, o peso, o cinto e tudo e fui jantar a um restaurante chamado Oak, do qual me tinham gabado a qualidade e os vinhos. Também me tinham prevenido que é caro, mas essa preocupação foi junto com as outras dar um passeio pelos campos.

Foi caro, foi bom, foi delicioso, foi excessivo, foi uma viagem de duas horas à Europa.

Tão bom foi que até a cavalariça agradeceu e hoje brindou-me com uma taxa de coiso baixíssima.

Infelizmente parece que o fígado se habituou ao novo regime com uma velocidade estonteante e a ressaca, coisa que em geral desconheço está severa.

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Outra mudança: deixei a Pousada Portas da Amazónia e vim para a Frank's House.

Frank é um marinheiro dinamarquês - marinheiro de vela, não da marinha mercante - que abriu esta pousada há meia dúzia de anos. Tem algumas desvantagens em relação à Portas da Amazónia e uma vantagem: posso cozinhar.

Hoje já fui ao mercado fazer as primeiras compras. Que bom é poder escolher a fruta que se vai comer, cheirá-la, antecipar quando estará madura. O mesmo com os legumes.

O mercado de S. Luís é grande e bonito. Vai ser bom lá ir regularmente.

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O primeiro jantar com leitura de excertos da Peregrinação vai ser em S. Luís. Não podia haver melhor teste.


8.8.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 07-08-2014

À minha frente a lua, não muito alta, dois ou três dias depois do quarto crescente;  atrás,  o trompete de Davis. As ruas do Centro vazias, e uma cidade que com cenas destas se vai apoderando de mim.

Regressava do Chicodiscos, designação improvável do melhor bar onde até hoje estive em S. Luís. Não é bem um bar. É mais um clube só para amigos do Chico e - felizmente - amigos dos amigos. Fui lá pela mão amiga e generosa do Celso e da Andréa, abençoados sejam.

É o primeiro andar de um prédio do Centro: a primeira coisa que impressiona é o pé direito, altíssimo. A segunda,  imediatamente a seguir,  é que acabamos de entrar no quarto que gostaríamos de ter tido há uns anos: fotografias de filmes, actores,  músicos. Todas a preto e branco,  todas de filmes,  actores ou músicos que não só conhecemos como apreciamos. La Strada; Kubrik; Woody Allen; Morrison. Candeeiros daqueles de corda, esféricos. Música alta mas não aos berros, pode falar-se. E boa. Uma vasta escolha de cachaças. Pouca gente e toda conhecida - o bar é para amigos não é uma fórmula -.

Eu sabia que havia sítios assim em S. Luís.  Não há cidade no mundo que os não tenha. É preciso é encontrá-los.

Aqui há uns tempos contabilizei todas as cidades onde já vivi - viver sendo passar mais de três meses. Estão quase todas na Europa, em África, nas Américas Central e do Sul (e Nakhodka, claro, no Extremo-Oriente Russo, mas essa não conta inteiramente, apesar de lá ter passado quatro meses, porque vivia a bordo).

Vivi em muitos sítios em circunstâncias bastante diferentes, mas os mecanismos de apropriação são sempre os mesmos: não somos nós que nos apoderamos de uma cidade, é ela que se apodera de nós.

Sábado vou a uma leitura de poesia, organizada pelo Celso e pelo Bruno. Todos os sábados há uma, num local público e diferente. A próxima vai ser no local onde vivia António Vieira quando viveu em S. Luís. As cidades entram por nós assim: ínvias, sorrateiras.

E nós rendemo-nos a elas porque as cidades não existem. O que existe são as amizades que nelas fazemos. E os bares que os amigos nos fazem descobrir. E os amigos que os bares nos permitem conhecer.

6.8.14

Reedição - Sono

Fazes-me perder o sono, mulher; procuro-o na tua pele, no teu olhar, no interior das tuas coxas, no lado de trás dos teus joelhos, nas raízes dos teus cabelos, nas circunvalações das tuas orelhas, na regular sucessão de pequenas colinas do teu dorso, naquela planície sem fim que é o teu ventre. Procuro-o nos dedos dos teus pés, na coivara dos teus dedos, na superfície - tão leve, tão alegre - dos teus lábios.

Procuro-o na leveza, que é o teu verdadeiro nome. E quando o sono chega é leve, finalmente.

PS - a expressão "coivara dos dedos" é de um poema brasileiro cujo autor não recordo e que li há muitos anos na revista Nova, da qual só saiu um exemplar, infelizmente. "Coivara" quer dizer incêndio. É uma palavra bonita. Como um incêndio, ou alguns dedos. Nem todos os dicionários a registam.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 06-08-2014

Um gajo sabe que algo está errado quando um centro comercial lhe aparece como o sítio ideal para passear e descontrair. Verdade que à hora que lá vou tem pouquíssima gente; mas isso não explica tudo.

E muito menos quando penso que comprei duas ou três coisas das quais tinha mediana necessidade. Bem sei que mediana necessidade para mim é uma urgência para muitos. Mas costumo dirigir-me mais pelo que eu penso do que pelo que os outros fazem. E hoje apanhei-me em plena retail therapy no Shopping São Luís, com a frágil e instável desculpa de que queria comprar uma peça de fruta e não me apetecia voltar para a Praia Grande (designação que um amigo querido me diz preferível a Reviver. A política local interessa-me medianamente - sou de onde estou, com a notória excepção de Antigua, país por cuja política nunca me consegui interessar, nem pouco nem muito - mas a amizade é um valor, e faço como me dizem).

São Luís não é muito agradável para passar tanto tempo. Mas aos poucos vou-me habituando, e fazendo amigos e apreendendo a cidade.

Ontem fui ao teatro. Uma peça sobre Jean Genet. Fiquei admirado com duas coisas: a qualidade técnica da dramaturgia (não foi uma surpresa, mas é sempre agradável) e o quão datado Genet me apareceu. a sua qualidade poética mantém-se; as militâncias - tanto a homossexual como a da abjecção - perderam o sentido.

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Mudei drasticamente o meu regime alimentar, e hoje descobri que já quase posso apertar o cinto mais um buraco. Não fico muito surpreendido por conseguir apertar o cinto, mas sim pela facilidade com que mudei de dieta - basicamente comer metade do que comia, cortar completamente os hidratos de carbono e beber exponencialmente menos -. E já lá vão duas semanas.

O pior é que depois vou precisar de comprar roupa.

Maude - I

Ontem fui almoçar com Maude e o seu namorado. Maude é a minha mulher. Somos casados há dezasseis anos. O rapaz é bastante mais novo do que nós. Ela tem quarenta e três e eu mais dois. Ele deve ter vinte e poucos. É pintor e expõe as obras no metro. Aparentemente foi assim que se conheceram. Maude sempre gostou de arte e de artistas. Ignoro o que a levou a casar-se com um piloto de aviões.

Gostei do rapaz. Tem o olhar mortiço e profundo dos criadores que criam e fala igualmente devagar, como se cada frase fosse um marco na sabedoria da humanidade e devesse ficar registada. Chama-se Jules, ou Julien, não me lembro bem. Tenho uma péssima memória para nomes. Talvez seja desinteresse, no fundo. Não sei.

Fomos almoçar a uma daquelas esplanadas do Campo Pequeno. Maude levava os seus óculos escuros redondos, que lhe cobrem metade da face e a tornam parecida com Janis Joplin. O rapaz ia com o uniforme de artista. Falou pouco. Eu estava com a farda de voo - tinha acabado de chegar e  achei pena trocar de roupa. Assim sempre dei ao moço mais uma razão para se rir de mim. Os artistas não gostam de fardas. Excepto as deles, claro, mas este ainda é demasiado jovem para saber que está fardado. Pensa que está vestido -.

Ele não sabe que eu sei. Maude sabe, mas apenas porque Maude sabe tudo o que eu sei. Nunca falamos nos seus amantes. Nem nas minhas, mas são muito menos do que os dela. Enfim, imagino. Não os conheço todos. Desta vez aceitei ir almoçar porque Maude comprou uma ou duas telas ao rapaz e queria que eu o conhecesse. Também conheci o músico e o actor. Imagino que tenha havido mais, mas não os encontrei. O músico era simpático. Tocava bem - no metro, claro -. Talvez tivesse sido melhor comprar um carro à Maude antes de me aparecer com a fauna completa em casa.

Há muito tempo que o amor entre Maude e mim foi substituído por uma amizade profunda, sexuada, cheia de prazer e vazia de paixão. A única condição é eu não saber. É-me indiferente que toda a gente saiba desde que eu seja mantido na ignorância.

O almoço foi agradável. O rapaz é frugal, Maude estava radiante e eu aproveitei para falar de aviões, um tema que me aborrece mais do que as horas de sono da minha primeira empregada. Jules - ou Julien? - é culto, tem conversa (se bem um pouco lenta para o meu gosto) e não estava nem demasiado à vontade nem encavacado. Enquanto falávamos, pensava que o rapaz me devia estar grato: dava-lhe uma mulher soberba e montes de razões para pensar que fazia bem em enganar-me com ela.

Sabe estar, não achas? resumiu Maude depois do almoço, já a caminho de casa.

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Maude está sentada na borda da cama, pernas encolhidas, mamas esmagadas contra os joelhos. Pinta as unhas dos pés.

Quando acabar, vai deitar-se de costas, pernas entreabertas, pés em leque perfeito, simétricos, a arejar. Com a mão direita vai começar a masturbar-se. A mão esquerda ficará pousada no lençol, entre nós. Pouco a pouco começará a suspirar; os suspiros aumentarão de intensidade; eu deixarei o livro que estou a ler e voltar-me-ei. Ela pegar-me-á na mão direita, pô-la-á no seu ventre e dir-me-á Põe a foice em seara alheia... Ou coisa que o valha. Maude consegue erotizar a mais anódina das expressões.

Em breve as nossas mãos estarão juntas; a sua mão esquerda estará algures no meu ventre. Eu continuarei deitado de costas; Maude esmagará a minha mão contra o seu monte-de-vénus, redondo e proeminente, de pentelheira farta. Começarei a entesar-me.

... Ele está deitado de costas, pau feito a apontar para o tecto, quase vertical. Sento-me em cima dele, puxo-lhe a pila para a frente e enterro-a em mim. Aponto para o meu umbigo e digo-lhe Até aqui. Até aqui. Até aqui. Ponho as pernas por cima do peito dele. Gosto quando ele me mordisca os dedos dos pés enquanto o sinto no meu ventre. Até aqui. Já me vim uma vez. Vir-me-ei uma segunda e outra e outra.

Ele pega-me nos tornozelos,  afasta-me ligeiramente as pernas, puxa-me para a frente e para trás. Sinto-lhe os tomates nas nádegas. Sei que isso o magoa um pouco e que ele conta com essa dor para atrasar o orgasmo.

Gosto de saber que ele me olha para a pentelheira, que vê o membro enterrado em mim até aos copos, que me vê feliz como se fosse a primeira vez. Não é.  É melhor.

Diz-me "Ajuda o senhor Bispo" e eu obedeço. Com a mão direita masturbo-me de novo. Com a esquerda acaricio-me os seios. Viramo-nos de lado.

Ele gosta de acabar assim, os meus tornozelos nas mãos fechadas, para trás e para a frente e para trás e para a frente não cada vez mais depressa mas cada vez mais fundo, cada vez mais fundo, cada vez mais até aqui.

Sai depressa de mim. Não é como Jules, que gosta de se deixar ficar e de o tirar quando já está mole.

Amo-o, mas ele não sabe. Pensa que sinto por ele o que ele sente por mim: amizade.

Não é verdade. Amo-o.

(Cont.)

4.8.14

Espantalho

Tenso como uma linha recta que o vento faz vibrar tremes. Conseguirás unir os dois pontos da linha? A metafísica do amor tudo transforma. Da pulhice faz lustres e de lustres sol e de sol vidas do passado futuro e do futuro presente. Do presente pedras. Seixos em revoadas sobre as águas paradas de um lago negro, denso como alcatrão. Vibras. Temes. Tremes. Vives. Denso e tenso vives como uma pedra à superfície de um lago. Revoadas de pedras lançadas por um deus bêbedo fazem-te ver o que vê o espantalho. Tu és o espantalho.

Espantalho nauseado. Sentado à beira do passeio vomitas. Temes. Tremes. Vibras. Vertigens. És um espantalho que a vida habita por engano.

Jornalismo

Um soberbo artigo sobre James Brown, aqui.

3.8.14

Vozes

São vozes que vêm de debaixo da mesa e se misturam com os copos de whisky, caipirinhas, rum punch, vinho de toda uma vida cheia de mesas e copos e perguntas. Vozes que não trazem respostas, só perguntas, mais perguntas como se não chegassem as que arrastamos connosco desde a merda do berço. Vozes que nos dizem estás errado - como se não o soubéssemos há séculos -; vozes que nos gritam ou nos sussuram mas nunca nos falam num tom normal, como se fôssemos selectivamente surdos - só ouvimos o que nos vem de debaixo da mesa - como se não soubéssemos há tempos sem fim que o tempo não tem fim, que nada nunca acaba, nada recomeça, tudo não faz mais do que continuar - da vulgar ingratidão mais rasteira às estrelas há uma estrada que não se interrompe não se parte não se dobra não volta atrás nem salta torrentes -. Da vulgaridade às estrelas não vire à esquerda nem à direita, vá em frente, sempre em frente. É sempre a descer se subir está enganado.

Vozes que saem do tempo da noite da luz de um navio que sai do porto um avião que aterra um automóvel na estrada um copo vazio numa mesa cheia de copos vazios, mais um. Vozes. Da noite da névoa das nuvens da mesa cheia de copos vazios. Vozes roucas de gritar o fim do tempo. Vozes roucas de gritar ao vento. Vozes que do abismo sabem mais do que qualquer espeleólogo, sentadas que estão no abismo desde que o abismo foi inventado.

Vozes de beber e chorar por mais, vozes de ouvir e calar por menos, vozes que não se cheiram, vozes. E um surdo.

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 02-08-2014

O Bar do Porto faz-me lembrar o Bar du Nord em Carouge: ambos de longe os melhores nos respectivos bairros, ambos afastados da confusão. Infelizmente são as únicas coisas que têm em comum: é comparar um par de patins com um Ferrari.

Quando lá cheguei, depois de jantar, passava Chick Corea, um pianista de quem aprecio as melodias e um disco antigo chamado My Spanish Heart. 

É o único sítio em todo o Reviver onde se pode beber um copo em paz. Espero que se aguente.

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Dois dias inteiros sem febre. Acho que posso dizer que estou bom e não preciso de mais nenhum especialista. Falta-me acabar com o que aí vem - é já terça-feira - e pôr um fim a este capítulo penoso das relações da cavalariça com o cavalo. Estas merdas vêm e vão-se sem que um gajo perceba muito bem porquê. Talvez seja por isso que detesto a doença. Prefiro um acidente: ao menos sei de onde vem.

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Passei o dia a descobrir Lucinda Williams. Cada vez que tentava ouvir outra coisa falhava. A mulher tem letras fabulosas, uma voz de se morrer por ela e canções encantadoras. Não é Leonard Cohen nem Nick Cave nem Bonnie Prince Billy. É Lucinda Williams, e acho injusto só a ter descoberto hoje.

2.8.14

É BEStial

Ainda é muito cedo para se falar nesta história do BES, claro. A procissão vai no adro. Mas uma coisa ela confirma: a péssima qualidade do jornalismo português, a sua deferência, o respeitinho, a dependência de quem tem poder.

A imprensa em Portugal não é o quarto poder, é o quarto do poder.

Reedição recente - Princípio, meio e fim

Que o princípio se enrede no fim, o meio comece onde tudo acaba, tudo acabe onde nada começou, que por baixo seja por cima e pelo lado seja à frente e que à frente seja ontem e hoje seja amanhã e que de tarde seja como de manhã e de noite como de dia e no mar como em terra e na missa como no café e na biblioteca como no cinema e no jardim como à mesa ou na cozinha ou nas estrelas ou ali, subitamente, agora, já.

Que tudo acabe onde começou; antes do fim que tudo comece onde acabou antes do princípio, que tudo no meio seja como o todo é.

Que o todo sejas tu.

Analogia. Pergunta

Como escrever sobre o mar quando se está a nadar?

Feito no inferno

Perda / déchirure.

1.8.14

Religiões

Os pacifistas partilham a superioridade moral com os religiosos e com a esquerda. Alguma coisa hão-de todos eles ter em comum.