31.3.18

Cansaço, ainda.

Foi-se o badanal, ficou o cansaço. Que arraial de porrada esta noite e esta manhã foram!

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-03-2018

Temporal outra vez e eu na extremidade do pontão, no lugar mais exposto do todo o porto.

Para completar o quadro fiquei sem corrente: nenhuma, nem 12 nem 220. Os gajos do porto não trabalham hoje - um funcionário público é um funcionário público aqui e em qualquer parte do mundo -; não consigo ver de onde vem a avaria. Daqui a uma hora ou duas peço ajuda ao P.

Resultado: cama. Isto não está de deixar o bote nem para ir ao café. Clube de Vela, porque me abandonaste?

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É o terceiro ou quarto desde que cheguei, há três semanas e meia. Não sei onde foi o Mediterrâneo buscar esta imagem de mar calmo. Talvez ao cinema. À realidade não foi de certeza.

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Esperemos que isto acalme e Abril não nos traga surpresas.

Certezas incertas

O vento, que era suposto cair cresceu. Já pouco falta para badanal. O P. dança como se não houvesse amanhã, abana-se, agita-se.

Comigo lá dentro, claro: agita-me sentimentos e pensamentos, palavras e exclamações, certezas e dúvidas. Aquilo de que sou feito, como se estivesse num shaker e o barman sofresse de Parkinson. Palavras encurraladas, sentimentos escondidos, certezas desabafadas. É Lua Cheia e eu, selenita encartado não sabia: os sintomas falam por si.

Das fragilidades fazer forças e não deixar nunca que estas se transformem em certezas; é esta a cama que um marinheiro faz e nela se deita, todos os dias. "São os capitães muito seguros de si que perdem os seus navios", disse um dos maiores de entre eles.

Não vou perder o meu próximo navio.

30.3.18

Incorrecções automáticas

E se o corrector automático transformasse todas as palavras que escrevo em "Amo-te"?

Verbo

Ia na rua, caiu-lhe um verbo em cima e ressuscitou.

Ortografia, sentimento

Entra e beija-me: retribuo. Rompe e sai: eu fecho a porta.

Sem simetria um sentimento não passa de um lamentável - mas simples - erro de ortografia. Com ela é uma vida que se multiplica.

Mistura

O vinho é biológico mas é excelente; acompanha - ou melhor, compensa - o jantar rápido, frugal, de pé na cozinha. Está vento forte, quase zangado, e o P. agita-se todo. É uma rameira, não há sopro de ar que não o ponha a dançar. E agora está sem retranca.

Não foi o cansaço que pacificou a noite. Foi esta mistura toda: desde uma conversa com a pessoa de quem mais gosto de discordar até à música tudo é uma imagem da perfeição. 

Cansaço

Cansaço: é a única palavra que me vem ao espírito. Estou cansado e o meu cansaço não tem nada de metafísico. É físico, pura e simplesmente físico, nada mais do que físico. Uma embarcação - seja ela de vela ou a motor - é uma bolha da qual não se sai nem quando se está a dormir. Um gajo não pára e não faz duas horas seguidas a mesma coisa - excepto quando se trata de esgotar e limpar fundos, tarefa que elegi para depois de tirar as medidas para uma capação nova e me levou quase três. Antes, as medições foram férias, apesar de ter entrado vento - de manhã estavam mais de vinte nós no porto - o meu metro ter cinco metros e ter sido preciso trabalhar a dobrar para cada medida.

Ou seja: estou cansado, tão cansado que não chego sequer a chatear-me com mais nada. O cansaço é invasivo, tem horror ao vazio, preenche os interstícios todos.

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PS - Bebendo Ricards tiram-se espaços ao cansaço.

29.3.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-03-2018

Está uma noite tão calma, tão bonita. Fui jantar ao Romeo e depois beber um copo ao Acal. No meio fiz as compras para estes últimos dias. A noite está parada como uma alma saciada, um corpo depois do amor, um caçador antes da presa lhe chegar ao alcance da arma. O P. tem o convés arrumado pela primeira vez em muito tempo. Não há ponta de vento.

Port d'Andratx esteve cheio a abarrotar. Agora se calhar ainda está, não sei. Vim para bordo com a Segunda sinfonia de Mahler na cabeça. Queria ouvi-la, mataria para a ouvir, apesar de ainda faltarem dois dias para a Páscoa.

É Quinta-feira Santa, mas as pessoas nas esplanadas parecem felizes, riem-se e gozam o sol e a temperatura clemente. Não sou crente, longe disso, mas gosto mais da Páscoa do que do Natal (não é difícil, eu sei. Assim que de repente me ocorra não há período do ano que mais abomine do que o Natal).

A versão da Ressurreição que tenho gravada é de Bernstein, que a dá demasiado evidente, demasiado clara. Tinha outra, mas não me lembro de qual. Seja de quem for é boa. Nas tintas para saber se é de fulano ou beltrano. É isto que eu procuro: esta mistura de certeza e gratidão, como se afinal a certeza tivesse sido um risco.

Uma noite assim calma depois de um dia de trabalho - tirei a retranca e fiz meia dúzia de merdices; não sei se conta como dia. De trabalho conta de certeza, porque com a excepção do almoço e da sesta não parei, das oito da manhã às quase oito da noite - uma noite assim vence gratidão e vasta.

Só tenho a primeira metade da peça. A falta que uma boa loja de discos faz é indecente, obscena.

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A senhora da casa Vera, um dos dois shipchandlers de Port d'Andratx disse-me que detestava este ritmo de trabalho: dois meses durante os quais não tem tempo para atender os clientes com a atenção que lhes gosta de dar e dez sem fazer nada. Os restaurantes não podem dizer a mesma coisa. Hoje quase me senti mal no Romeo, de tanta gente. Tive de me vir embora a correr.

Nunca conseguirei perceber quem vai de férias para sítios onde há tanta ou mais gente do que naqueles de onde vêm.

Alemães na sua maioria; seguidos de franceses e ingleses. Os preços são exorbitantes. Dois copos de vinho medidos ao mililitro e uma tapa quinze euros. Puta que os pariu mai-los alemães.

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Domingo gostava de ir passear para a montanha, ir até Deia ou Valldemossa, mas sem transporte vou acabar na Mola. Pode ser que lá esteja a veterinária, tão linda e tão doce. Isso sim, seria uma ressurreição digna da Páscoa. 

28.3.18

Por cima da pele

Eu sei. Não olhes assim para mim. Estou nu no meio do pátio, rodeado de livros que não lerei nem na terceira reencarnação a partir desta. Não me olhes assim. Gosto da música e deste calor tão recente mas não gosto que me olhes dessa maneira.

Ou melhor: que não me olhes dessa maneira. Por ti despi-me, vim para este pátio expor-me. Todos me vêem menos tu.

Não sei quem é todos. Tanto me faz. Massa de olhos indiferenciados, enquanto não fizeres parte deles.

Não olhes assim para mim; olha para mim, vestido só de ti por cima da pele.

Refiro-me a ser marinheiro, gostar do mar e de barcos

É preciso ser flexível, gingão, adaptável. Não é complicado mas não se aprende: ou se é ou não. 

Diário de Bordos - Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 28-03-2018

Toda a gente sabe que os marinheiros não morrem. Retiram-se primeiro e dissolvem-se depois (a menos que seja ao contrário).

Há dois sítios no mundo (na parte dele que eu conheço) que foram inventados por Deus para acolher marinheiros em retirada: Bequia e Palma de Mallorca.

É muito difícil explicar porquê. Muitos foram os que tentaram mas ninguém -que eu saiba - conseguiu até hoje explicar o que faz dessas duas "cidades" (entre aspas porque Bequia não é uma cidade; fica algures entre um lugar e uma aldeia) um lugar de retiro para marinheiros cansados.

Impus-me uma missão: incluir Mértola nessa lista de lugares mágicos, lugares de transição para marinheiros desviados.

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Tem a ver - parcialmente - com a qualidade da melancolia. Em Bequia como em Palma a melancolia é mais densa, mais atractiva, bonita. Mértola também tem essa qualidade: transforma melancolias.

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Conversa apaixonante na Sifoneria. O presidente da Câmara de Palma acedeu a uma reunião com estrangeiros residentes e locais para que todos possam expor o seu ponto de vista (os preços do imobiliário em Palma dispararam para níveis estratosféricos).

Alguém consegue fazer chegar uma mensagem a Fernando Medina? 

Galerias cruzadas

Ideia: um galeria de retratos de todas as mulheres que poderiam ter sido e não foram, cruzada por uma outra galeria: a dos gajos que poderiam ter sido e não foram (que só tem uma fotografia, a minha).

Magma

A ideia geral é a de uma rede, um filtro com malhas muito largas através da qual passam personalidades.

Não sabemos de onde vêm, de onde caem. Sabemos que caem, simplesmente, porque a tudo isto subjaz a ideia de culpa, falta, inferno.

Tão pouco sabemos quais os critérios de filtragem. O que é que a rede retém?
O que deixa passar?

Estamos porém no campo do divino, vaga e englobante forma que uma rede não chega para definir. As personalidades caem e nós não sabemos porquê. Não sabemos sequer se vêm com corpos. Sabemos que a rede está lá e todos os dias é lavada, limpa do magma do dia.

Cidade, vida

De largas avenidas és feita; e de ruas escuras, becos esconsos, cruzamentos mal assinalados, sinais invisíveis.

És uma cidade só por ti. Planeada pela e para a vida.

27.3.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-03-2018

Está noite de Lua cheia. Refiro-me à minha Lua interior; a outra terá de esperar alguns dias. Foi um dia bom e cheio como a Lua e fui celebrar ao Rustico, onde nunca antes tinha entrado e provavelmente não voltarei a entrar. Foi o melhor jantar desde que aqui cheguei (um tártaro absolutamente sublime de justo) e o mais caro (meio dia de trabalho por um jantar é de mais, dêem-se-lhe as voltas que se lhe derem).

Mas lá que foi bom foi, muito. Acabei com um tiramisu doce de mais, um limoncello idem e duas grappas mais do que decentes para equilibrar.

Trabalhei muito nesse meio dia...

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Isto dito, o Rústico tem um tártaro notável. Diz-me o dono que a carne no espeto tão pouco é má, mas vai ter de esperar até à próxima Lua cheia para me ver. E não será daqui a vinte e oito dias.

(Um dos problemas desta mudança de marina é que agora estou perto dos bares todos).

Pelo menos fico a conhecê-los, vá lá.

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De quinta a segunda Mallorca vai parar, diz-me Pepe. Por causa da Páscoa. Detesto feriados, mas aos religiosos dedico um ódio mais afiado, mais preciso ainda do que aos políticos. Por que raio de carga de água tenho de celebrar a morte de um gajo em quem não acredito e uma ressurreição na qual ainda creio menos? Na história toda a única personagem que me é simpática é Madalena e essa não tem celebrações.

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Aviso aos navegantes que partilham o meu (obviamente bom e indiscutível) gosto: o bar Mitj & Mitj (?) é execrável. Como sou boa alma e generosa vou explorar o que lhe fica à frente, leal escuteiro que sou, desejoso de partilhar as minhas descobertas.

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Chama-se Romeo, foi onde no outro dia vim comer umas tapas assim assim. A jovem mulher começa por não falar espanhol, coisa abominável entre todas; depois pergunta-me se quero gelo no meu cava. Perante a minha expressão de horror diz-me "I'm just asking" assim mesmo em inglês no original, como se "só perguntar" a exonerasse das chicotadas e do fogo do inferno.

Quando penso que há imbecis que gastam fortunas para vir aqui passar férias caem-me duas dúzias de cabelos.

Pelo menos ao contrário do outro tem uma mesa onde pousar o computador, apesar de não ter luz para ver as teclas.

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Com a aproximação da Páscoa a cidade encheu-se de alemães (é a raça mais representada, se tanto é que são uma raça. De todas as pragas de turistas são a menos má, de longe).

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-03-2018

Um dia alguém me perguntou como é que eu curava as minhas depressões, que remédios tomava ou que terapeutas via (no pretérito porque felizmente são coisa do passado. Não voltarão a acontecer).

- Farto-me delas, simplesmente - respondi. - E elas vão-se embora.

Hoje pensava nisto: estava farto deste desalento, da sensação da andar às voltas e não sair do mesmo sítio.

O remédio funcionou e naturalmente mais depressa do que com as depressões.

O que não impede que estando quase a ir para Lisboa o mastro continue de pé, eu sem saber que motor escolher e os problemas em vez de desaparecerem como melões num piquenique se sucedam como cerejas à sobremesa de um jantar de bons amigos.

E trabalho. Se ao menos não fizesse nada... Mas um gajo olha para um dia como o de hoje e percebe o porquê do porque não e o do porque sim.

Depois entra aquela velha expressão: as coisas são o que são e não o que nós queremos que elas sejam (e aquela velha e frágil linha que divide a aceitação da revolta); e tudo volta ao normal. Se o vento está de Norte e eu vou para Norte de pouco ou nada serve desanimar. Antes caçar, sentar-me bem a barlavento e bolinar até chegar ou o vento rondar, o que acontecer primeiro.

E é isso mesmo que faço - figuradamente, claro -: caço a beijo, encosto-me a barla até mais não e ala que se faz tarde.

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Mudei de Marina. Vim para o porto público. Tenho de lhe aprender os ruídos. É quase como aprender uma língua nova.

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Reencontro a solidão entrecortada por diálogos no Facebook, contactos profissionais ou com o senhor do restaurante Acal, que elegi como sala de fim de dia, com a senhora do Ship chandler Vera ou com a R. da Mercanautic em Palma como se mergulhasse nas águas tépidas das praias de Antigua, um mergulho entre dois runs.

Que trabalho tão estranho o meu. É impossível não gostar - ninguém o pode fazer se não gostar desta vida, não é daqueles empregos em que um gajo chega a casa e dez minutos de conversa com a mulher o fazem esquecer o dia - e igualmente impossível não pensar em tudo o que se perde, se adia, se faz esperar.

Há muito que deixei de pensar nisto; remeto-me ao velho aforismo segundo o qual um dia bom vale por nove maus. Mas de vez em quando - seja por causa de um diálogo, seja por causa de um dia tão variado, tão cheio de altos e baixos como o de hoje lá me volta a irrequietação. Como não gostar do que faço? Gostando de outra coisa, talvez, não?

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Os pontões fazem um barulhão. Ainda  bem que tenho um sono à prova de bala.

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Hierbas secas. Qual era a pergunta?

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O Livro das Vidas é um bom título para um livro sobre as minhas quase-mortes, não é? Todas as vezes que estive quase quase lá mas ela comportou-se como tantas outras: deu uma dentada e deitou-me fora.

Rússia (Nakhodka), África do Sul (mais exactamente Namíbia: Luderitz), Portugal (Aveiro), Brasil (Parnaíba), o ciclone a setecentas milhas da Martinique...  (Não sei se devo incluir o Burundi e a história do hipopótamo). Creio que ainda falta uma. Pelo me os podia ter morrido em muitos sítios, vá lá. Livro das Vidas e dos Lugares. Que tal? Bonito, não é?

Não.

26.3.18

Meio dia

Compreendo e aceito que a sequência de boas notícias dos últimos dias tenha de ser paga. Mas para um dia como o de hoje (e ainda só vai a meio) seria preciso pelo menos ter ganho uma raspadinha decente, porra.

Se - uma vez o P. arrumado - alguém me vir entrar voluntariamente em Port d'Andratx outra vez: por favor interne-me. Sem dó nem piedade. Mais implacavelmente ainda do que se me vir a entrar num gastrobar.

Além dos deuses, aquém dos outros?

Vou saltar dois ou três capítulos das Núpcias. Estou farto de raptos, violações, incestos e sangue derramado. Como se os deuses fossem incapazes de amar normalmente.

Talvez seja tarefa sobre-divina, quem sabe?

T, Silêncio

Tremor, terror, temor, trevas. O dicionário abriu-se na letra T.

Alguém partilhou um tema de Satie no Facebook. Oiço um bocado, enquanto folheio os poemas de Alejandra Pizarnik. T, S, P. O dicionário abre-se, povoa-se. A noite está cheia de coisas que não compreendo, chegam-me do passado, do tempo ou com o tempo.

São muitas, mais do que as que percebo claramente. Os terrenos da incompreensão são vastos. A memória escamoteia e o tempo traz.

A cacofonia reifica-se em silêncio. É nele que vivemos, aprendemos e vencemos.

25.3.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-03-2018 / II

O domingo escoou-se, finalmente. A chuva e o vento também. Ficaram o frio e esta impaciente vontade de ver este barco pronto. Há dias o H. disse-me que tinha deixado de fazer refits. Demasiada confusão, ou coisa que o valha. Eu continuo a gostar, mas é verdade que por vezes estas crises de desalento são um horror. É como se um gajo estivesse a cavar um túnel e a pôr a terra no mesmo tunel:  cavar cava, mas avançar mais valia estar quieto.

Hoje decidi não desarvorar na terça-feira. Tenho medo de não ter tudo pronto a tempo e não quero pagar uma grua para ficar a olhar para ela.

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Os postais estão escritos e endereçados. É reconfortante saber que ninguém os conseguirá ler.

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Já comecei a pagar o inverno. Cada vez que penso que o SNS levou cinco meses a marcar-me as consultas e que tive de me vir embora sem elas tenho vontade de trabalhar só para poder ir a médicos privados. É pouco como ambição, claro. Ser realista é um bocadinho deprimente.

Pata que os pôs mai-lo SNS. 

Inabitável

Resumindo: o domingo está inabitável.

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Há várias maneiras de resolver um domingo inabitável. Uma delas está fora de questão, infelizmente. Ficam outras: hierbas secas, música barroca e Calasso, por exemplo.

Corelli não foi a primeira escolha. Voltei para bordo a tentar resolver um magno dilema: Hildegarde ou Rachmaninov? Os Cânticos do Êxtase ou as Vésperas? Tinha optado pela senhora, esquecendo-me de que não a tenho gravada e que a bordo não há net.

Vai Corelli, junte-se uma sesta e ecco, presto.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-03-2018

Cinquenta nós, diz-me o marinheiro hoje de manhã. Deve ter sido a rajada mais alta, mas mesmo assim é vento. Felizmente não havia vagas, de maneira lá consegui dormir.

O P. está encharcado por dentro. Um barco molhado é uma seca; uma das piores que conheço, jogos com palavras postos de lado.

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Chove e a merda do tinnitus não me larga. Malditas pragas.

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E assim entre chuva, tinnitus, um bote inabitável e um estado de espírito idem o domingo arrasta-se. Promete ser longo e chato, pelo menos até encontrar um canto confortável onde possa comer, ler Pizarnik mai-los jornais e acabar de escrever os postais, de que ontem comprei vasta cópia. Esqueci-me das canetas em Lisboa, vão de esferográfica. A diferença na caligrafia não se vê, continua ilegível. Ainda bem que têm fotografias: são foleiras a olho, mas pelo menos percebem-se.

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Não me lembro de quem o quê me levou a Pizarnik. Tenha sido quem ou o que for estou-lhe imensamente grato. A mulher escrevia como se a cada verso mergulhasse num poço dentro dela e não conseguisse sair se não escrevendo. Cada verso é um degrau para fora do poço.

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"Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há aqui alguém que treme".

(A tradução é minha. Ando a treinar).

24.3.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-02-2018

Cheguei a bordo uma hora depois do que queria  - perdi-me à procura da Praça de Espanha, equivalente a perder-me à procura do Rossio ou do Terreiro do Paço - e vinte minutos antes de o badanal começar. Agora está aí. O P. adorna só com o mastro, geme e queixa-se. Nas rajadas o vento chega aos quarenta nós, talvez um pouco mais.

Verifiquei cabos, afastei uma adriça do mastro e por agora fica assim. Se isto não acalmar dentro de uma hora dobro o cabo de barla, ver se durmo um bocadinho.

O barco está todo molhado por dentro só com a chuva. Imagino o que seria no mar.

Merda para o tempo.

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Pelo menos estou no porto, vá lá. Quando havia temporal a minha Mãe fazia-nos rezar pelos marinheiros que estavam no mar. Não sou crente e não rezo, mas parece-me uma boa ideia. Se alguém quiser seguir a sugestão, aqui fica (não me lembro do texto da oração, mas que não seja por isso. Eu não rezo mas penso bastante nos desgraçados que estão lá fora).

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Espero que isto acalme em Abril.

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Merda para o tempo. Porra, isto é um disparate! Está cada vez pior.

Vou dobrar o cabo.

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Dobrei o cabo de ré e cacei o morto de barlavento - sem motor não foi muito - e pus mais uma defensa a sota.

É o pior momento: já não há mais nada a fazer se não esperar, nos dois sentidos do verbo.

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Tenho a impressão de que isto não vai ser noite de grandes sonos.

Dia mundial de ti

Há dias mundiais de tudo e mais alguma coisa, mas não há do mais importante: tu.

Fraude

A Babel é uma pequena livraria. Vejo os títulos das traduções espanholas e apercebo-me uma vez mais: Portugal é uma fraude.

Se me dessem a escolher entre esquecer o português ou curarem-me o tinnitus escolheria esquecer o português.

Um homem não é de ferro

O objectivo era vir à Babel ouvir música  (é sempre boa) enquanto escrevia disparates e postais, por esta ordem. Encontrei uma edição das obras completas de Alejandra Pizarnik.

Um homem não é de ferro.

"explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me"

"abraçando a tua sombra num sonho
os meus ossos arqueavam-se como flores"

"Acredito nos espelhos"

"Trabalho o silêncio
faço-o chama"

"Escreves poemas
porque precisas de
um lugar
onde seja o que não é"

(As traduções foram feitas por mim).

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-03-2018

Se eu tivesse juízo poderia talvez esperar um pouco, até chegar à Babel; não tenho e não posso. O dia está horrível e vim fazer compras - a coisa mais perto da tortura que conheço a seguir a um dia sem vento no mar -. Preciso de dois pares de calças e o P. de trapos, destino que há muito espera as minhas calças actuais (é uma promoção).

Não há nada no processo das compras que me agrade, desde a entrada naquelas lojas horríveis de grande e sem um vendedor à vista (não tenho dinheiro para ir às pequenas com dois vendedores chatos, insistentes e snobs para cada cliente) até à saída entre grades anti-roubo e seguranças com cara de idiota (é a única, eu sei).

Aproveito os dias de tristeza, chatice, melancolia ou mesmo depressão para me aventurar por esses corredores - na pior das hipóteses apenas pioram um estado pré-existente; na melhor mantém-no -.

Não foi sempre assim. Já gostei de comprar roupa (especialmente gravatas; tinha bom olho para elas). Hoje relembro esses dias e pergunto-me o que se terá passado.

Não sei. Não me interessa.

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O plano do dia está traçado: depois de um copo na Babel e ou na Sifoneria como um pintxo na Quinta Puñeta e volto para bordo. Hoje à noite entra badanal, ainda pior do que o que está. Não consigo ficar longe do bote, apesar de desta vez ter vindo preparado para isso.

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No P. chove como na rua (é mentira. Exagero grosseiro). Nada me deprime mais do que um barco molhado, nem mesmo uma mulher frígida - de que não tenho (talvez seja por isso) grande experiência, ao contrário de barcos molhados -. Lembro-me de quando navegava no SOLENA, uma folha de plástico por cima do saco-cama; dos chaços todos que levei de um lado para o outro no Norte da Europa; de uma viagem que fiz para Vigo num Mumm 36. Lembro-me demasiado e se calhar é por isso que agora a simples vista de uma gota de água a pingar de uma escotilha me faz ir às compras.

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Em baixo da Costa de Sa Pols, a rua na qual vivi aqui em Palma abriu um café chamado Ovelha Negra. O vinho é excelente, o empregado brasileiro e o frango frito quase bom.

Ainda bem que o tempo não volta para trás. Que pena o tempo não voltar para trás. 

Variação sobre tema alheio

"Não confundas as palavras com as coisas que elas designam", diz Leonard Cohen num texto bonito que acabo de ler. "Não levantes os pés do chão quando falares de voar".

Penso na borboleta que ele usa como fio condutor e vejo-a perante mim. Não a tento agarrar: as palavras são frágeis e morrem se as aprisionas, como a borboleta espetada com alfinetes na página do caderno de um lepidopterologista. Vejo a borboleta levar a mó de um moinho de vento. Mó real, não a fingir, grande, pesada e redonda: são poderosas, as palavras. Levam a mó para onde querem, deixam-na cair no poço.

Atrás de cada borboleta há um silêncio: cai no poço com a mó. São inúmeros, tantos quanto as palavras: cada uma tem o seu.

As mós são pesadas, toda a gente sabe. A borboleta que não é uma borboleta mas uma palavra leva-a de onde estava para um poço. Essa mó é na verdade um silêncio, de que o poço está cheio.

Para isto servem as palavras: carregar silêncios e deitá-los num poço.

Esse poço és tu.

23.3.18

Projecto

"[Orestes] aproximava-se dos setenta anos e algo o instigava a regressar aos locais onde a sua loucura fora mais intensa."

Calasso, Núpcias de Cadmo e Harmonia 

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-03-2018

Dia bom, longo, produtivo, árduo. Ou seja: feliz. Trabalhar e ver as coisas avançar... É sempre assim, neste trabalho: um gajo tem impressão que passa os dias a fazer trezentos e sessentas e de repente dá por ele na bóia de barlavento, pronto a içar o balão ou a vir por aí abaixo a um largo fresco, arejado, leve.

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Se tudo correr bem terça desarvoro e vou para o porto público, que custa um quarto do que custa este (admitidamente tem muito menos condições, mas por agora chega). As grandes mazelas do bote estão a ser tratadas; as pequenas lá virão.

Aprendi a viver em Andratx, apesar de continuar a detestar o sítio; mas verdade seja dita: encontrei fornecedores competentes e sérios; quanto às hierbas secas decentes: comprei uma garrafa e bebo-as a bordo. Tem inúmeras vantagens e uma desvantagem: o beliche está mesmo ao lado.

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Que se lixe. Está o beliche e nele o Calasso e neles o sono, bendito sono.

22.3.18

Sapadoras

As palavras ateiam mais incêndios do que os que apagam.

Pergunto-me se não se poderia inventar palavras-sapadoras, à imagem das cabras que limpam florestas para prevenir os fogos. 

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-03-2018

As boas notícias sucediam-se tão depressa... pareciam um comboio. A tal ponto que me atropelaram e dos restos saiu um capitão de porto com quem me zanguei bastante. Foi uma discussão e peras.

O homem acabou por me pedir desculpa e deixou uma porta aberta â possibilidade de o P. continuar na marina do Clube. Não passa de uma pequena frincha, mas dado o ponto de partida é apreciável.

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Uma vez tive uma discussão com um Capitão do Porto (com maiúscula porque é militar, capitão de porto à portuguesa e não mero gerente de uma marina como este). Foi em Ponta Delgada. O homem era completamente idiota, detestado por todos os subordinados e não-subordinados. A nossa discussão começou porque ele queria que o INDOMÁVEL - um Sun Fizz, ou seja: 42 pés e três camarotes - tivesse três tripulantes. O argumento era imbatível: "a embarcação tem três camarotes, portanto deve ter três tripulantes". À minha pergunta "E onde quer o Sr. Comandante que eu ponha os clientes?" ele respondia com a mesma lengalenga.

Não nos pegámos à pancada por uma unha negra, mas houve gritos e murros na mesa e. Quando saí tinha o pessoal todo alinhado, quase a bater-me pala, alguns a aplaudir silenciosamente, só o gesto das mãos a baterem uma na outra.

Não me impediu de ter de vir a Lisboa resolver o assunto, mas foi uma boa vitória (que depois me valeu uma multa monstruosa absolutamente incontestável por outra coisa qualquer, mas isso é outra história).

A de hoje não foi assim tão dura. Quando o fui ver, no segundo round, estava muito mais calmo e pediu-me desculpa e lá está: uma frincha aberta. Pode ser que a minha mojo hand amanhã funcione.

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Os dias têm sido de trabalho árduo. Penso que é daí que vêm as boas notícias: a sorte tem uma certa tendência moralista: prefere quem trabalha a quem não faz nada ou faz mal o que faz.

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O transporte que era de Marselha passou para Zug. É possível, mas longe de garantido, que vá pela primeira vez fazer uma coisa que quero fazer há muito tempo: descer o Rhône desde lá de cima, desde o Saône. Saberei em breve.

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Amanhã entra badanal de novo. Que raio de tempo! Isto só acontece quando tenho de preparar barcos.

Antes assim. No mar estaria pior. Não quero comparar o que não tem comparação, mas por vezes penso que um médico a reanimar alguém em muito mau estado deve sentir-se mais ou menos como eu quando recupero uma embarcação. 

21.3.18

Analogia

Tão impossível como encontrar um gato grato.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-03-2018

As boas notícias sucedem-se, umas atrás das outras como meninos de escola em fila para atravessar a rua, mãos dadas sob o olhar atento do professor.

Bem podiam era ter andado um bocadinho mais depressa, mas enfim. Agora que chegam ao outro lado da rua não vou chatear-me. Antes pelo contrário: recebo-as de braços abertos e venho festejá-las ao Tim's.

Erro fatal: foi deste bar que fugi no outro dia porque era um antro de hooligans de televisão. Hoje obrigou as minhas criancinhas a dar um passo atrás. É o pior Mai Tai da minha vida. Se alguma vez voltar a pôr aqui os pés seja porque razão for, por favor ciliciem-me com força, sem piedade, com avidez e ganância.

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Enfim, não passa de um pormenor insignificante. Que se lixe o Mai Tai. Um dia voltarei a Oakland e ao Trader Vic e voltarei a bebê-lo na casa mãe; no berço por assim dizer.

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Penso em alguém que espera alguém "de mãos ávidas e vazias". Vazias pode ter vários sentidos, claro. Uma declaração polissémica, que bonito.

Vazias porque não têm mais ninguém, claro. Vazias porque começam do zero, porque cada pele apaga as anteriores, vazias porque um dia aquela pele será a última.

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Hoje descobri que o P., um IOR Two Tonner de 1983 (encomendado, nunca é de mais lembrá-lo pelo Aga Khan para a Admiral's Cup) é em sandwich de Kevlar / carbono e foam (em português: espuma?). Vai durar para sempre. Tomar boa conta daquele bote é uma obrigação moral, já não tem nada que ver com o amor e essas tretas.

Por isso festejo (agora com um cava bem menos enjoativo do que a porcaria do Mai Tai, que ainda por cima é estupidamente caro). Tive uma visão à la Hildegarde e vi o barco como novo suspenso de uma grua a ser posto na água, brilhante e grato.

20.3.18

Diário de Bordos - Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 20-03-2018

Isto tudo é demasiado complexo para a minha cabeça simplex. Não conto os pormenores, excepto ter finalmente ido jantar ao Ca Na Chinchila. Retenham este nome se estão a pensar vir a Palma um dia.

(A culpa não foi minha, claro. Nós portugueses não fomos feitos para alombar com culpas.)

Seja como for. Durmo num hotel de merda num quarto merdoso até dizer chega. Encontrei o D.S., um puto que toca baixo tão bem quão vazia tem a cabeça. Mas no seu patamar ele é bom, sem dúvida.

(Encontrei-o na Bodega Belver. Outro nome a reter).

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A cama é mais pequena do que eu. E tenho de escolher entre carregar o telefone ou ler. Só há uma tomada.
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Ser nómada é uma condição. Gostar de ser nómada doença incurável. 

Miscelânea de fim de jornada, abençoada

O badanal continua e o pobre P. dá esticões nas amarras que me doem como se estivesse a levar murros do Mike Tyson. Pelo menos numa, a de estibordo. A bombordo passei um cabo decente, elástico e com uma mola, ainda por cima. Devia ter posto a mola no outro, mas agora é tarde. Amanhã vejo se encontro uma dúzia de metros de cabo de amarração.

E agora vou fechar a escotilha e ler as aventuras de Zeus e companhia. Cada vez gosto mais dos deuses imorais. Fazem tudo o que os gregos (e não só os gregos) queriam fazer e acham mal. Como se delegassem nos deuses a tarefa ingrata ou pesada ou insustentável de fazer asneiras.

(E penso naquela frase de um outro livro de Calasso: "se um deus não faz qualquer coisa inconveniente então não é um deus").

19.3.18

Des/prender

Não se trata da palavra do dia, mas sim do prefixo. Des. Descrever o dia, desdizer, desconstruir esta porra deste tempo. Desviar. Desvairar, desaustinar (sugestão de A. P.)

Está frio no camarote apesar do aquecimento no máximo: tenho a escotilha aberta, mas não a vou fechar já. Desfriar não existe. Resfriar é suficientemente parecido, pelo menos ao nível da prosódia, como se prosódia e pronúncia fossem a mesma coisa.

Descaso. Descoisa. O meu telefone aprende uma série de palavras novas. Um dia desaprendê-las-á.

Desprender. Talvez seja isso. Chegámos: desprender este dia, esta noite, este frio, a escotilha, o aquecimento, o camarote, o badanal lá fora. Desprende-te. Desaparece-te. Desaparece-nos.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-03-2018

Apresso-me a esclarecer: apaixono-me facilmente por uma embarcação; mas não sem razão. Nunca gostei, por exemplo, do  W., um chaço de cimento que era suposto trazer do Panamá para Portugal. O mais longe que fui foi a Isla de San Andrés, onde passei um mês antes de regressar a Bocas del Toro (e ter uma discussão com o armador para ser pago).

Foi um dos piores barcos onde jamais pus o pé, era um chaço, um nojo abjecto, à imagem do armador. As embarções são como os animais de estimação: parecem-se com os donos (se bem o outro extremo também seja verdade: há muitos armadores que não merecem as embarcações que têm).

Já o P. é o contrário: galgo fino. Tem uma qualidade infinita, insondável: é um barco.

Eu explico: as embarcações de recreio deixaram de ser embarcações; são residências secundárias que flutuam. Têm espaço, casas de banho onde caibo de pé, bombas de esgoto em tudo quanto é sítio, botões eléctricos, geradores, frigoríficos e congeladores, água quente, fria e morna em todos os cantos, forras nos costados e nos tectos, arrumações até dizer chega, tanques infindos de água e combustível, são bonitas (por dentro; por fora parecem o nome que têm: tupperwares). O P. não é nada disso. Tem, é verdade, água quente na cozinha e na casa de banho e tem um frigorífico (sem congelador). Mas a parte do conforto fica-se por aí. É, como disse um dos senhores que hoje foi a bordo, "rústico". (Estamos em Mallorca: há que dar-lhe um desconto. Há muitos anos que ele não entra num bote assim e deve ter-se esquecido que um barco não é rústico. É náutico. É barco. É verdade).

É um barco de regata e os barcos de regata têm essa característica: são simples, desnudados, são como eu: como são se dão. Os paneiros são fáceis de levantar porque ninguém durante uma regata se preocupa se fazem barulho ou não; e não têm forras, primeiro por causa do peso e depois porque queremos chegar depressa a qualquer ponto onde seja preciso fazer uma reparação.

(Os barcos de regata tendem a ser puxados para lá de alguns limites, facto que provavelmente explica as mazelas do P. Um exemplo: uma vez numa das etapas de um dos Tours que fiz - foram dois - íamos a uma bolina folgada em sétimo lugar, popa com proa, todos em fila, juntinhos a terra porque tínhamos a corrente contra. De repente vimos o primeiro bater numa rocha e virar de bordo. Pensam que alguém virou antes do mesmo sítio? Enganam-se. Fomos todos até à mesma rocha e só virámos quando batemos, com o argumento sólido de que se o primeiro tinha passado nós também passaríamos. Tentámos foi não nos desviar muito da rota, porque não sabíamos se a rocha era mais alta para um lado ou para outro... No OPTIMISTA acontecia uma coisa semelhante quando subíamos o rio contra a maré, mas aí o fundo era de areia - e já nos  devia conhecer a quilha, de tantas vezes que lá tocámos antes de virar de bordo -).

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Envolvi-me estupidamente numa discussão de comentários por causa de um post no FB. A culpa foi minha, claro: ninguém me obrigou a botar faladura.

Fiquei todavia impressionadíssimo com a quantidade de malta que - citando uma das minhas expressões favoritas da ENIDH - "estava a falar porque  queria". Significa "dizer asneiras, dizer disparates, não saber do que se está a falar". Mais preocupado ainda fiquei quando vi pessoas com responsabilidades na "formação" em náutica de recreio reproduzir ou apoiar esses disparates. Prometi várias vezes que me retirava e não cumpri a minha palavra. Tinha coisas a dizer, não as dizia por querer, mas agora chega. De qualquer foma nunca achei as "escolas de navegação" (entre aspas porque é uma ironia) grandes tiros de espingarda. Que o dono de uma delas confirme o meu achismo não me enche particularmente de alegria, mas enche-me de um sentimento que à falta de melhor designo por "estar-me nas tintas".

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(Termino reconhecendo que por vezes cedo aos confortos  das embarcações actuais. A carne é fraca).

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Hoje fez anos a minha primeira namorada. É um dos raros aniversários que nunca esqueci. Curioso, não é? A plasticidade do nosso cérebro na adolescência é admirável.

Da beleza, da persistência e da beleza da persistência

"Mas Artemisa queria proteger o caçador. Não podia dar-lhe o seu corpo e, por isso, escolheu para sua ajudante uma Ninfa, Aretusa. E Alfeu iniciou uma nova perseguição amorosa. Na fúria da fuga, Aretusa atravessou o mar e, perto de Siracusa, transformou-se em nascente. Alfeu não podia desistir. O caçador transformou-se no rio Alfeu, desembocou no mar um pouco antes de Pyrgos e viveu durante centenas de quilómetros, através de todo o mar Jónio, como corrente submarina. Quando reemergiu com a sua coroa de espuma, estava na Sicília, perto de Aretusa. E misturou as suas águas com as águas da Ninfa".

Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia. 

18.3.18

Amanhã

Amanhã é uma palavra muito gasta. Usa-se muito e pronto!, ela gasta-se. Está quase transparente e já lhe falta uma sílaba.

Se calhar mais até: a palavra amanhã que vemos por aí não passa de uma miserável imitação, cujo único ponto comum com o original é ser no futuro.

Cyrano, Cyranos

Não se pode sentir se não se puder exprimir correctamente o que se sente. Isto é: sem um razoável controlo da expressão - oral ou escrita - não há sentimentos válidos. Um sentimento mal exprimido deixa de ser sentimento e passa a objecto ridículo, sujeito de troça, doença infantil, sarampo do sentimento.

De certa forma todos temos um Cyrano.

Diário de Bordos - Porto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-03-2018

No que toca a senhoras não sou um pinga-amor – passo perfeitamente duas semanas sem me apaixonar pela vizinha -; já o mesmo é impossível dizer dos barcos, infelizmente. Apaixono-me à primeira vista sempre, por todos e cada um que me acolhe no seu generoso seio (não tem nada a ver com a gratidão. Não é porque me acolhem que gosto deles. Ao contrário: gosto deles porque os deixei acolher-me).

Tudo isto para dizer que estou perdidamente apaixonado pelo meu galgo velho e maltratado, P. de sua graça, ferido e doente mas lindo e um dia, se Deus quiser, ressuscitado. O barco é bonito, claro: um IOR dos anos oitenta, mandado construir pelo Aga Khan para a Admiral’s Cup. Tem pedigree, como me diz C. quando lhe conto da última mazela (que é um pouco mais do que uma mazela, mas isso é outra história).
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Começo finalmente a desenhar-lhe a geografia; é um dos meus momentos favoritos a cada barco. Trata-se de nos habituarmos ao espaço do bicho e de o fazermos ver que também nós temos as nossas exigências. Uma espécie de compromisso, fazer percursos num relvado, adaptação mútua de dois seres fundamentalmente independentes. Designa-se um lugar para cada coisa, estabelece-se um protocolo rígido de utilização do espaço e dos recursos, explica-se ao bote que quer ele queira quer não vai ter de arranjar espaço para as nossas manias, ritos e ritmos.

Ao fim de pouco tempo a harmonia está feita – uso o verbo propositadamente: nao se trata de encontrar um modus vivendi, mas de o construir, a dois -.

O P. é um bocadinho especial porque nasceu para regatas, não para ser confortável ou acomodante; mais uma carambola para os tempos em que eu regateava e fazia transportes de barcos de regata. Faz-me pensar os gloriosos dias de Dunkerque, a tratar da frota de Rush do Tour de France: não há mazela que não me tenha passado por baixo, por assim dizer; e que não tenha sido reparada – não graças a mim, mas aos talentos da equipa técnica de que eu era minúscula parte -.
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Malditos ponteiros do relógio, andam com mais areia do que podem carregar. Que será feito da minha D., tão linda, tão doce? Olhos azuis cor do mar e cabelos loiros como a cerveja...

Unidos pelo mar

Há alguns anos tive uma história de amor com uma senhora que vivia longe de mim. Só a podia ir ver quando vinha do mar; ao fim de meia dúzia de semanas em terra esvaía-se-me o dinheiro e a senhora com ele. Depois voltava a terra e lá ia ver a senhora. Foi assim durante muito tempo.

Um amor nascido do mar nada desfaz; muito menos o mar.

Descobertas post-emptiones (ou: Caveat emptor)

Comprei recentemente uns headphones para poder escapar ao ruído ambiente dos cafés onde tenho de ir porque as marinas espanholas ainda não descobriram a internet.

Duas coisas: a) headphones baratos não são uma solução; b) vou levar uma quantidade ilimitada de séculos até refazer a minha discoteca, que se foi numa embarcação primeiro e num disco duro depois e não voltará de nenhum deles.

17.3.18

Falar de pontes

Entre coisa e coisa nenhuma; entre ontem e amanhã; entre - finalmente - tu e eu. Unidos por uma ponte de silêncio, como se precisássemos de esperar para a passar. Ontem, hoje ou amanhã.

Uma questão de bom senso

Fui ao El Corte Inglés comprar calças, calções, t-shirts e esse género de bens. Saí de lá com um livro, três discos, uma carteira, altofalantes e auscultadores para o computador.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-03-2018

"Por que palavra começar, por que desordem?"

Deve ser por causa de dias assim que um gajo é incapaz de "assentar" (como dizia a minha Mãe. Eu prefiro "sedentarizar". É mais chic, menos maternal). Isto é, não se iludam: esta tarde entrou badanal outra vez, descobri mais uma ferida grave no meu bem-amado galgo, S/Y P. que bem as dispensa, coitado e ainda não defini o meu espaço a bordo: mal o último tripulante se foi embora mergulhei (literalmente) nos fundos do coiso e mal saí deles. 

Mas vejam: hoje pus os paneiros, restabeleci a água, fiz as primeiras limpezas e cozinhei a primeira refeição a bordo; posso finalmente ouvir música no computador; reflecti sobre as feridas do bicho, fiz alguns telefonemas, segunda-feira vou ter respostas. 

Há alguma profissão que ofereça dias assim? Se há, por favor digam-me qual. Ainda vou a tempo de mudar.

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O jantar foi simples: carne picada marinada em cerveja, refogada com cebola, inundada de tomate frito (em itálico porque é assim que vem escrito no frasco, é espanhol), com malaguetas e pepino, a cozer durante quase uma hora. Por inacreditável que pareça ficou bem, culpa do tomate e das malaguetas.

Depois apareceu o velho dilema: saio ou fico? O barco estava sobreaquecido, não tenho net a bordo (nem licor de hierbas) e ganhou o bom senso: vim ao meu bar da noite, o melhor lugar de Port d'Andratx, com um nome de filme: Maria Maria. É grande e a esta hora está vazio, as doses de hierbas são mais do que decentes (não posso dizer que são grandes, ainda vai um deles ler isto e diminuí-las).

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Estou sozinho a bordo. O trabalho foi um bocado chato, vencia bem mais um par de mãos. Mas a verdade é que hoje foi um dia do caraças, uma vez tudo montado e a funcionar.

Tenho uma relação ambígua com a solidão, essa é que é essa. Gosto demasiado de estar sozinho para suportar companhia o tempo todo; e de partilhar para gostar de estar sozinho. Mas os marinheiros são os reis da ambivalência, não é? Só um esquizofrénico sabe que nada é e ao mesmo tempo que se safará, aconteça o que acontecer. E que só os imbecis não têm medo, mas ele medo não tem, apesar de não ser imbecil. Só um marinheiro é capaz de se apaixonar perdidamente na Rússia e chegar às Filipinas uma semana depois e apaixonar-se outra vez (se bem não tanto como na Rússia); um marinheiro é um gajo que é tudo e nada é. "Há três espécies de seres: os vivos, os mortos e os marinheiros". Nunca me lembro do nome do grego que escreveu isto (era um pré-socrático, se por acaso) mas estava podre de razão. Com uma diferença: a nossa morte é mais viva do que muitas vidas.

Um marinheiro morto está mais vivo do que muita gente viva? Não sei. Talvez. Seja como for, acho que um dia conseguirei sedentarizar-me. Num cemitério qualquer, ou melhor ainda: embrulhado numa lona borda fora.

Infelizmente amo demasiado a vida para pensar muito tempo nisso.

16.3.18

Perguntas e respostas

Seja qual for a pergunta: hierbas seco com una pedra de hielo tem a resposta. É impressionante tudo o que cabe numa quantidade relativamente pequena de uma coisa feita à base de ervas.

Diário de Bordos - Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-03-2018

Em condições normais eu fugiria de um "Gastrobar" (aspas porque cito) mais depressa do que Maomé de um suculento pedaço de bacon. Nada é normal: vim a Andratx ver se é muito diferente do porto (não é); estou com uma dor de cabeça que vai daqui até à Lua; no dito "Gastrobar" uma mesa faz barulho como se quisesse ser ouvida em Marte; a minha energia para limpar fundos foi-se por um dos buracos negros do gajo que morreu há dias; as doses de vinho do "Gastrobar" são microscópicas; e para completar o quadro descobri - oh surpresa - que tenho os machos de fundo completa e irremediavelmente calcinados.

O pior é a dor de cabeça. Nada que um tubo de Zovirax não resolva, mas para já tenho de chegar a bordo.

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Hoje tive um senhor a inspeccionar-me os brandais. Fala muito baixinho e não ouvi nada do que me disse, quando fomos beber um copo depois do trabalho. É daqueles gajos nos quais me reconheço imediatamente - e sou em retorno reconhecido -. Pensei naquela piada dos anões, "têm uma espécie de sexto sentido que lhes permite reconhecerem-se à primeira vista". Comigo é outra raça, a que me reconhece e eu reconheço imediatamente.

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Nas escolas de vela devia ensinar-se que se um barco tem fugas de óleo no motor a primeira coisa a fazer é encher os fundos de detergente. Detergente de cozinha, Fairy ou seja o que for. E não seria má ideia, já agora, habituar as pessoas a ter Bilge Cleaner nos fundos (não dispensa o detergente em caso de óleo, mas ajuda muito para outras coisas).

Hoje até a face inferior doa paneiros tive de lavar. Tudo isto teria imensa piada se ainda se pudesse despejar a água suja para o porto. Agora não pode, tem de se ir ao tanque de óleos (que por sorte não está muito longe, vá lá).

Por acaso concordo, mas só por acaso. Fartei-me de deitar água para a água, desta vez. Mas ia com uma quantidade de detergente que... Enfim, que se foda. Os fundos estão limpos, amanhã tenho água a bordo e deixo de precisar de ir comer aos restaurantes de manhã à noite e o P. parecer-se-á de novo com uma embarcação de recreio a precisar de reparações (agora parece-se com o caos a tentar tomar a forma de uma embarcação de recreio, mas isso acontece sempre que é preciso tirar os paneiros).

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Gastrobar, gastrobar mas é só gajos (e barulhentos). Ao meu lado sentou-se uma senhora parecidíssima com uma amiga querida, mas infelizmente está com um gajo que não se parece nada comigo.

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Vi pouco de Andratx - saí do autocarro e entrei no "Gastrobar" após pouco menos de dez minutos de marcha -. O que vi parece-me a vila mais feia de Espanha. Algo me diz que é a única vila feia de Espanha, mas eu não emprenho pelos ouvidos. Só vendo.

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Forçoso é reconhecer que a experiência é útil: a próxima vez que entrarei num "gastrobar" será daqui a vinte anos. Se for antes é porque terei Alzheimer.

15.3.18

Definição - Porto de Andratx

O Porto de Andratx parece o fundo de um poço no qual alguém se tivesse esquecido de apagar todas as luzes.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-03-2018

Isto parece uma reedição do Ó tempo volta para trás, canção que ouvia na minha meninice e desde aí não se vai embora apesar de nunca mais a ter ouvido. Há definitivamente um tempo para tudo. O meu para me meter em aventuras passou. Mas é como a canção: não há maneira de acabar.

Hoje tive pelo menos o dúbio privilégio de ver fundos sujos como nunca tinha visto, que assim de repente me lembre (em barcos de recreio, claro). Até lodo aquilo tem. Preciso de comprar uma escova dura, só com a esponja não vai lá.

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Devia haver associações de defesa dos barcos maltratados, como as dos animais ou das mulheres batidas (e de caminho fazia-se outra para ajudar os velhos marinheiros cujo relógio não pára de dar voltas e não sai do mesmo sitio).

Pobre P., galgo fino a quem a idade não tirou a graça; parte-se me o coração e lá vai o relógio para trás.

Para o S/Y ISICHIA, mais precisamente, que em 1985 (ou lá à volta) levei de Cap d'Agde a Fort-de-France (nesse tempo o Marin não passava de um trou à cyclones e porto para meia dúzia de pescadores). Ciclone de que aliás  apanhei um magnífico exemplar uma semana antes de chegar, mal que não desejo a ninguém, nem ao meu pior inimigo, nem mesmo a quem deixa um barco chegar a este ponto (refiro-me aos fundos do P., não me saem da cabeça).

Mas não é a isso que o trabalho de limpar fundos me carambola. Éramos cinco a bordo, de maneira eu não fazia quartos (não faço, regra geral, desde que tenha três tripulantes e um piloto automático. Com quatro dispenso o piloto).

Mas todos os dias fazia uma inspecção aos fundos e limpava-os. A mania de que se deve poder comer ovos estrelados nos fundos de uma embarcação de recreio não nasceu ontem.

Isto apesar de não partilhar de todo a obsessão dos mega iates pelas limpezas. Partilho apenas o conceito geral: numa embarcação de recreio deve poder-se tocar seja o que for sem que as mãos venham sujas da experiência. É um mínimo e confesso desde já ser pouco provável que consiga pôr o P. nesse patamar amanhã.

Mas vai ficar melhor, isso vai. E eu sou uma espécie de S. Bernardo dos barcos, em vez de um barril ao pescoço ando com uma esponja nas mãos.

(Exagero parcialmente. Hoje comprei um aspirador Kärcher para secos e líquidos. Mas não dispensa a esponja, uma escova de pelo duro e um camião-tanque de paciência.)

"Associação de defesa das embarcações maltratadas" - ADEM. Soa bem, não soa?

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Encontrei um italiano simpático em Porto Andratx, onde vim jantar (e escrevo os disparates do dia). Não é sublime nem terrível: fica no meio, ligeiramente para cima. Faz-me lembrar os italianos de Verão passado.

O meu relógio não avança porque tem peso a mais nas agulhas.

(O italiano chama-se Made in Italy e é na Plaza del Patrón Cristino 10).

Teoria da co-respiração

Não é de certeza por acaso que sesta e festa partilham tudo menos uma letra. 

Beijos, faces

Se de repente daqui um beijo voasse e numa face pousasse, escolheria o beijo a face?

Sim, claro. Da face foi-se há muito o desejo de ser beijada por acaso e pouco caso faz de beijos avulsos.

A pulso o beijo aflora a face e assim a face fica, feita para receber beijos.

14.3.18

Diário de Bordos - Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 14-03-2018

A barmaid é gorda, feia e incompetente. Num bar como o Gibson's perdoa-se a última, mas não as duas primeiras. Infelizmente estou-me nas tintas, de modo nem ao trabalho de me chatear me dou. Quanto  mais perdoar. A mulher seja o que quiser e traga-me as hierbas secas quando lhe apetecer.

Tenho mais em que pensar: um montão de coisas que não são para aqui chamadas. Agora trata-se de concordar com B., em Antigua: o Gibson's foi-se abaixo das canetas e nem as mamas da barmaid o salvam do inferno.

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A gente quando voltamos para casa voltamos primeiro ao nosso quarto e depois vamos aos sítios da casa que nos eram mais - favoráveis -. É o que tenho feito aqui até hoje: Bar Dia, Antiquari, La Sifoneria, Gibson's, Molta Barra, 5ª Puñeta (o Lizarran desaperceu e o Ca Na Chinchilla está programado para amanhã). Mas hoje fui jantar a um lugar desconhecido e bom, digno de menção. Chama-se La Tortilleria e é algures na cidade velha. Não sei onde: cheguei lá perdido.

Fui também ao Corte Inglês onde comprei discos e uma série de merdas sem as quais não posso viver, apesar de viver sem elas há muito tempo. A verdade é que me estou nas tintas, como aquele cavalo que o comprador pensava ser cego: batia com a cabeça frontalmente em todas as árvores do prado. "Este cavalo é cego!", exclama ao vendedor. "Cego? Nada disso. Está-se nas tintas, é tudo."

Eu só não me estou nas tintas para os botes, sejam eles à vela, a motor e se calhar a remos, não sei. Fôssemos a ver e até por uma gaivota a pedais me apaixonaria. Espero que não: navegar por navegar prefiro o mar.

Mediterrâneo mais ainda. A humanidade nasceu em África, mas a civilização apareceu aqui, muito antes de os bifes saberem sequer soletrar a palavra, let alone play rugby.

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A barmaid tem umas mamas do caraças. Pergunto-me simultaneamente se a) foram elas que a contrataram e b) pode uma mulher  reduzir-se a mamas? À segunda respondo não; à primeira encolho os ombros: não há milagres que um bom soutien não faça.

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Enquanto espero palmeio. Perco-me nestas ruas nas quais - confirmei hoje - é um impossível um homem sensato não se perder; descubro tascas (enfim, isto é para declinar no futuro: descobrirei) porque já visitei as que conheço e bebo hierbas secas e vermute até aquilo me sair pelas orelhas (já que os olhos não têm ligação ao resto do corpo, pelo menos os meus).

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Cada vez vejo e oiço mais catalão. Nada a fazer: a cegueira é universal.

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Boa conversa com a U. da Sifoneria, em torno do tema "amar aquilo com que se trabalha". Ela diz-me que gosta de vinho, sem mais. Não está apaixonada por ele. Não posso dizer o mesmo. Há gajos que não podem ver uma burra de saias; eu não posso ver um barco de quilha.

É uma estupidez, eu sei. Um barco é um objecto como outro qualquer. Só tem a beleza das formas e a das funções a mais do que os outros objectos.
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B. diz-me que Antígua está chata esta  época.

Acho bem. De qualquer forma depois de se conhecer St. Martin tudo é chato, excepto Palma.

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Serviço público:
La Tortilleria - Plaça Quartera, 1

13.3.18

Pontos finais e vírgulas, como se

Subitamente: tudo se organizou em torno de uma paisagem rastejante. Como se. O mundo fosse um teatro e o palco de repente começasse a ondular. Como se os espectadores - na realidade são habitantes - tivessem tomado múltiplas doses de uma droga semelhante ao LSD.

O mundo - isto é, o espectáculo -organiza-se, cerra fileiras em defesa do statu quo ante.

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Acorre-se e vê-se que não é nada disso. O palco não rasteja, não ondula, não faz pensar numa cobra venenosa, língua de fora, silvante. É um lugar calmo, pacífico, de onde ao longe se vê um par de seios e ao perto se lhes pode tocar como se aqui estivessem.

O mundo é paradoxal para lá do xal: atente-se nas - por exemplo - vírgulas. Atente nestas palavras, tão sós mas nada ondulantes.

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Os seios bem feitos têm a forma de virgulas. Os outros de ponto final.

(Por exemplo: a uma frase entre duas vírgulas chama-se a palma da mão).

Pistas, desnorte e outros assuntos igualmente importantes

O sake vai bem com banana e o café com sake.

Mentira sim, mas qual delas: a banana ou o café? Pista: o café não tem cardamoma e o sake sabe a banana. Pista: hierbas secas con una piedra de hielo, porfa.

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Já alguma vez viram uma agulha demasiado compensada à procura do Norte (ia dizer descanso: ter um Norte é um descanso)?

Anda de um lado para o outro da linha, frenética, quase simetricamente (a cada vez vai um pouco menos longe, mas vê-se mal à desarmada vista).

Oscila por assim dizer em torno de um eixo que só ela vê, só ela sente. Como se, imagina, eu oscilasse em torno de uma senhora para quem alguém no interior da esfera tivesse decidido eu devia orientar-me. Como se amar e Norte se pudessem conjugar juntos, quando é do conhecimento geral que amar e desnorte são um par indestronável da por assim dizer vida.

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Sendo desnorte muito mais do que ausência de Norte, muito para lá, um francês diria au delà e um inglês beyond.

"Tu és o meu desnorte".

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Bom. Temos uma pista, um Norte e um desnorte. Temos um porto que é uma seca e um sono que faz birra e diz: "sozinho? Nem pensar" (eu digo-lhe "Não estás sozinho, idiota" mas ele é como os bancos, só com garantias reais, palpáveis e tangíveis).

Vou para o Sul do Norte. Antes isso que um desnorte sem Sul.

12.3.18

Teoria empírica

Bom, vamos lá então começar por acabar o dia, se é que se pode acabar uma coisa e ter começado outra, comecei o dia e acabei agora isto que me serve de noite ou de travesseiro ou até - vá lá saber-se - de ponte levadiça para o amanhã,  se conseguir apagar a luz que acendi ontem.

Basta de divagações. Vamos aos actos: uma das mulheres mais bonitas que conheço (sendo que bonitas contém todas as acepções do termo, incluindo as novas e ou nunca sonhadas) decidiu que o seu humor varia ao longo do dia.

Como se o da Lua - de onde a senhora de certa forma provém - não mudasse também ao longo do dia.

Bom.

Acontece que por mim (esta deve ser a expressão idiomática mais estúpida do português) - por mim, dizia eu na primeira pessoa do singular - a senhora está enganada de manhã e correcta  à tarde.

Acontece a muito boa gente, mas nem sempre por engano. Ela é demasiado bonita para ser burra e demasiado inteligente para ser feia. (A falta de inteligência e a de beleza são qualidades medianas; não são das margens).

Wittgenstein, hilfe

Há pessoas com quem falar tem o mesmo efeito do que dizer a um caracol que devia andar mais depressa.

Badanal - bis

De maneira fui lá fora. Dobrei o cabo de barla, enrolei outro à volta da retranca porque o lazy bag está fodido, ajustei as defensas de ré. Isto veio para ficar. Agora nem com a porra do motor a trabalhar sairia daqui.

Voa aos pares, a merda. Essa nunca sofre de solidão. Ainda bem que acordei. Agora posso continuar acordado mas pelo menos fico com a insónia descansada.

11.3.18

Silêncio, casa

De silêncio em silêncio fizeram uma casa comum. Nenhum deles lá morava: visitavam-na juntos, como se fossem a um cinema ver um filme mudo, a um museu ver peças de Hopper ou treinar uma sessão de linguagem gestual.

A saída despediam-se sem uma palavra, mas sabiam quando se voltariam a encontrar: a casa avisava-os de que precisava de silêncio.

Estética superficial

Badanal chateia-me: é uma palavra bonita de mais para designar o que designa.

Badanal interior

Difícil dormir com tantas histórias. Uma amálgama de histórias: ele é flores, paciência, esperança, solidão, bosques... Vamos ver e o badanal não é só lá fora, queres apostar?

E depois está porra deste barulho mesmo por cima de mim. Não consigo identificá-lo, dar-lhe cara e futuro.

Verdade seja dita o que me impede de dormir não é o barulho, é não saber de onde vem. Fui lá fora só com o casaco vestido, mas não vi nada e voltei para dentro. Pode levar horas.

Retornei às minhas amálgamas. Essas pelo menos sei de onde vêm e para onde vão, têm cara e nome. 

Uivos

Ou seja: vim para bordo, apesar de ter bebido um número ímpar de hierbas secas. Há uivos msis importantes. 

Badanal, solidão, histórias

Está um badanal do caraças. A noite uiva solidão como se fosse a minha; mas não é. É à dela que uiva.

A minha guardo-a tranquila num canto, não vá fugir com o vento.

Pus o aquecedor quase no máximo e abri o albói: oiço melhor quando não tenho frio. Os uivos cansam-me, é certo; mas tenho de ouvir o P. Têm sempre histórias para contar, os botes quando está vento.

Aquele onde estamos e os outros, que no mar não há cá "isso não é comigo".

É com quem está, seja quem for.

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-03-2018

O bote não está propriamente como novo, já ali abaixo o disse. Hoje entrou badanal e fiquei contente por estar em terra. Isto apesar de o porto de Andratx não ser, sejamos modestos, o meu porto favorito em Mallorca; nem mesmo em Espanha, vá; nem sequer na Península Ibérica; e por aí fora - não é o meu porto favorito em lado nenhum. Mas já estive noutros iguais e em muitos muito piores. Andratx é um local de férias; os restaurantes são chic, os cafés estão cheios de ingleses barulhentos, bêbedos e amadores de futebol - quem continua a ler na Inglaterra uma parangona com civilização lá no meio engana-se redondamente -: é um país de hooligans, alguns com coragem para o ser visivelmente e outros a esconderem-se debaixo da fina capa dessa tal "civilização". Ontem entrei num café por causa da chuva e tive de me vir embora de seguida apesar dela: havia um jogo de futebol e um grupo de ingleses, combinação mortal s'il en est. No preciso momento a equipa  da qual eles gostavam meteu um golo (suponho; espero) e a gritaria foi tal que preferi a chuva.

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Vá lá que o tempo está assim assim: ora faz sol e calor ora badanal e frio. Não dá para um gajo se aborrecer ou lamentar não ter trazido roupa de Verão, pensava que era chegar e arrancar.

Não é. Uma das coisas boas deste trabalho é que pensar não serve para nada. A única coisa que tem valor operacional é ver.

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Saí de Lisboa com os problemas todos na mesma e agora passo os dias a receber anúncios de consultas. O nosso SNS funciona devagar, coitado; é como os autocarros: horas sem vir nenhum e depois vêm às dezenas. Reverti aos antigos remédios. As dores que se aguentem, as vertigens que esperem. A verdade é que tudo isto está muito melhor e não deve ser só por causa da química. Deve haver alguma acção mecânica do mar e do barco e de estar a fazer uma coisa para a qual às vezes penso que fui feito e outras temo ter sido feito.

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Os restaurantes de Andratx são uma seca; vou para o bar nocturno, que é para onde devia ter ido logo no princípio. Aposto que teria escrito menos disparates.

Chatices? Nem pensar. Desafios, quando muito

O bote tem alguns problemas no casco, no velame, na mastreação, no motor, na electrónica e em mais dois ou três pequenos pormenores como o sistema de combustível e o circuito de água doce (e mais alguns, não cito todos para a lista não ficar muito grande).

Ainda há quem pense que um barco é uma fonte de problemas e chatices.

Ética, maçadora ética

E depois há sempre aquele velhíssimo conflito entre uma coisa que de um determinado ponto de vista se deve fazer e eticamente não se deve e claro que a ética ganha mas não deixa por isso de ser uma grande por assim dizer maçada, quase uma seca.

10.3.18

(Aquecido no) micro-ondas

Comprei a 1843. Custa o mesmo do que dois copos de vinho, mas vale muito mais, é obrigatório reconhecer: o primeiro artigo que leio ensina-me que tenho várias coisas em comum com Einstein: a ideia de que se deve ir ao barbeiro por razões práticas e não estéticas (corto o cabelo ligeiramente menos do que duas vezes por ano), o uso de meias e a atitude geral em relação à roupa (um francês chamar-lhe-ia méprisante na pior das hipóteses; indifférente na melhor). Infelizmente é á única coisa que temos em comum, o Albert e eu. Mas deixemo-nos de merdas: é bom estar assim acompanhado num tema tão importante.

(Aeroporto de Madrid, recentemente).

Nunca mais a vi

- Would you marry a nomade? Would you marry a nomade? - Rita repetiu a pergunta mas não para mim. Tinha visivelmente bebido muito.
- Sim, claro - os nossos diálogos eram quase sempre bilíngues. - É uma sorte casar com uma nómada: quem não tem uma casa tem mil casas. E quanto mais tempo estivermos separados mais tempo o nosso casamento durará. Será um casamento escrito, mas não ridículo porque as nossas cartas não serão de amor, mas de vida.
- Cartas do amor quotidiano. Cartas do amor no quotidiano. Cartas quotidianas do amor.  Which one would you prefer?
- Prefiro: casa comigo, Rita.
- Não posso. Se casar contigo deixo de ser nómada.
- Disparate. Se deixares de o ser eu não caso contigo.
- Too much drink. Can't decide now.
- Amanhã vais-te embora.
- Então caso. Tratamos dos papéis quando eu voltar.

Bares

Gosto de bares rascas e nocturnos. Não sei se isto tem remédio mas espero que não. É a esses que a vida vai beber.

Óculos

Os meus óculos estão muito desfasados da realidade, mas eu não me importo. Antes pelo contrário.

Vejo melhor por todo o meu corpo onde eles não estão. 

Paixões

Vai para cima de sessenta anos apaixonei-me por um monstro chamado Vida e ainda não me desapaixonei.

Não há paixões racionais. 

9.3.18

Respeito

A melhor resposta a uma idiotice é outra idiotice. Simples questão de respeito.

8.3.18

Vida, ailleurs

O filme é antigo. Chama-se "La vie est ailleurs" no original pré-românico.

Godofredo vivia portanto a vida alhures. Faziam um par curioso: ele num sítio e a vida noutra. Às vezes enganavam-se mutuamente: ele com uma miúda em Palma ela com a mesma miúda na mesma cidade. Cruzavam-se no corpo da miúda mas não se viam.

Uma vez a mulher decomposta nas suas várias - e inconsequentes - partes regressavam ao seu lugar respectivo: Godofredo de um lado a vida do outro e observavam-se sem se ver, como boxeurs cegos.

Cor, categoria

Um conjunto de degraus, cada um um sonho: escada onírica. Se chegar à lua: escada selenita. Misturados dá uma escada onírico-selenita. Vista de fora é igualzinha à que nos leva ao bar Procópio em Lisboa: uma escada curta que desagua numa nascente de sonhos.

(As escadas onírico-selenitas são como a Lua circulares.)

Dito de outra forma: um selenita exilado sonha com Alexanders, simplesmente porque regressa de uma recente viagem à Lua. Têm em comum a cor, já que perguntam.

As categorias são diferentes, claro.

Receita

Uma das mais bonitas misturas que conheço é a do pensamento com o silêncio. 

Sonhar, tocar

Onde estou? Onde estás? Porque vieste interromper-me a sesta, tão profunda? Deves decerto ter saído do abismo; talvez num raio de luz, vá saber-se.

Sei apenas que dormia e de repente te vi luminosa e bela, sorridente e leve. Não sei onde foi, mas pouco importa. Espero apenas que o encontro se repita, um sono e um sorriso ficam bem juntos, abrir os olhos e ver-te, sonhar-te e tocar-te.

(Para a I. com um beijo).

7.3.18

Diário de Bordos - Aeroporto de Barajas, Madrid, Espanha, 07-03-2018

Dois aeroportos são os piores do mundo - cada um deles, individual e separadamente, de per se: Madrid e Miami -. E neles um passageiro é o pior do Universo: eu. Conseguem transformar-me num aprendiz de viajante, perdido na galáxia, enganado na vida. Hoje vim para o aeroporto uma hora mais cedo do que teria sido necessário. Uma hora de tortura, pior ainda por ter sido provocada pela tonteria aeroportuária madrilenha.

E eu corcunda de saber que se deve olhar atentamente para o cartão de embarque. E que por cada hora que passo neste aeroporto regrido mil viagens. E a pagar uma fortuna por uma merda de um vinho quando em Barajas (a vila, onde estava) ele custa metade do preço e é duas vezes melhor.

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Enfim, chega de queixas. Fui a Barajas (a vila). Aquilo está a dez minutos de Barajas (aeroporto) e parece que fica a mil quilómetros da cidade mais próxima. É uma viagem no tempo, até tem camadas como se fosse um campo arqueológico: vêem-se as ruas originais e depois os prédios modernos, construídos posteriormente, por causa dos aviões. Como lugar tem o mérito único, fácil mas não despiciendo de ser mil vezes melhor do que o aeroporto.

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Esperam-me uns dias em Palma. É difícil explicar o prazer que tenho em estar de novo envolvido com os problemas de barcos. A viagem para Lisboa vai ser uma seca, tudo indica (bastante molhada, por sinal), mas estou ansioso por voltar para o mar.

É verdade que gosto muito de Lisboa e do que lá faço, mas não sei. Deve haver uma vacina, mas nunca ninguém me falou nela - com a possível excepção da história do remo... (Um marinheiro quando se quer reformar põe um remo ao ombro e vai avançando terra dentro até alguém lhe perguntar "o que é isso que tens ao ombro?" É aí que pousa o saco.)

Creio que o antídoto se chama Mértola. Se não for, tem outro nome: onde-não-estou.

Ditirambos sentidos

Fui ao (ou à?) Bela ouvir o André Gago ler poesia. O tema da noite era a Lua; para um selenita no exílio difícil resistir. Ademais havia a perspectiva de boa companhia. Três em um: o André, a Lua e companhia bonita.

Tudo se confirmou. A companhia era bela, a poesia avassaladora e o André mais tudo do que sempre; ele é por vezes cabotino (não necessariamente um defeito: vejam-se Fabrice Lucchini e Daniel Day-Lewis, actores com estilos de representação opostos mas que hoje me vieram à mente); por vezes demasiado histriónico; por vezes falha o tom do poema. Mas é sempre bom, genial, como uma enxurrada que leva tudo pela frente e deixa a paisagem mais limpa uma vez limpos os escombros.

Amanhã vou para Palma buscar um bote lindo, irmão do Smeralda Prima (para quem conhece). Estou em modo largada e voei até à Lua a cavalo na poesia, na companhia, no Bela e na voz tridimensional do André.

Não exagero: ele transforma poemas em esculturas, coisas sólidas que se podem agarrar e sentir entre as mãos, ávidas mas serenas.

6.3.18

Torno, palavras

As frases devem ser bem torneadas a cada ponto final. Uma frase que não vai ao torno ou dele sai imperfeita é uma agressão. 

Do uso correcto das palavras - Boa noite

Boa noite é uma expressão que deve ser usada para resumir o que foi e para desejar um bom período de sono à pessoa que a partilha connosco.

Usá-la apenas numa das acepções é insuficiente. 

Variações e fuga

A hipnótica luz do fim do inverno ilumina estes dias chuvosos.

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Chove mas ela não se molha, protegida pela hipnótica luz da Primavera que aí vem.

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Hipnóticos dias se anunciam: até a luz é silenciosa.

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A avassaladora hipnose do fim da escuridão, tão próxima.

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Não é o teu corpo que me hipnotiza, é a luz que dele irradia.

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Uma infinita capacidade de se deixar hipnotizar pela vida, pelo amor, pelo abismo; porém consciente: saltava de uns para outros como um hipnotizado consciente do seu estado.

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(Tudo tem um fim menos o amor, a morte e o abismo.)

5.3.18

Tiranias

O amor e a palavra são as únicas tiranias aceitáveis. 

Galo

É a história de uma galinha míope que se apaixonava à primeira vista por todos os galos com quem se cruzava. Um dia enganou-se e atirou-se a um peru. 

Superfície

Superfície e o que lhe fica por baixo... Imaginamos sempre a superfície por cima - super: sobre -; mas poderíamos também dizer "o que lhe está por trás". A superfície uma parede, vertical.

Nada disso. Superfície e o que lhe fica ao lado. Ao lado: a superfície está ao lado do que é suposto cobrir, esconder, tapar. A superficie do amor fica ao lado do amor, que agora entrevejo e vai um dia envolver-me.

Toca-a: é a superfície mais profunda que terás tocado e está ali ao lado, só. 

Decifra-me

Assim ficou a noite: uma superfície lisa, sem uma ruga, na qual se vem espraiar a lua cheia. A palma de uma mão acaricia aquela superfície, sorve-a, aparecem uma rugas pequenas, invisíveis a olho nu. Só pelo tacto sabemos que ali estão. No topo dessa vasta superfície há um rosto bonito, um sorriso franco, aberto, convidativo. Diz à mão: se me decifrares sou tua. Se me decifrares ler-te-ei nos olhos o desejo, escancar-te-ei a porta dos segredos, derramar-te-ei da Lua a luz na pele.

Precisas apenas de me decifrar.

Diário de Bordos - Lisboa, 05-03-2018

Se tivesse juízo leria mais umas páginas do Calasso. "Zeus passou metade de uma noite de amor com Leda, deixando a outra metade para o marido, Tíndaro."

Mas não tenho. Acabo de ler um conto de Flaubert que me deixou completamente de lado, submerso, vencido (chama-se Un Coeur Simple, caso estejam interessados. É uma viagem extremamente concisa pelas diversas formas da maldade e da infelicidade e acaba com uma imagem de uma beleza avassaladora. Num conto do O'Henry que li há meia dúzia de séculos um arrombador de cofres lima as unhas para ter mais sensibilidade nos dedos. No Coeur Simple temos as unhas limadas desde para aí o segundo parágrafo e a cada linha os cortes aumentam, a cada linha a lima avança.

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Entretanto o inverno continua, as dores no cotovelo também - mas tudo mudou. "Un seul être vous manque et tout est dépeuplé ", escreveu Lamartine porque a sua amante o trocara por uma pneumonia fatal; un seul espoir apparaît et le monde se peuple, poderia escrever eu, se tivesse jeito. Não tenho. Mas quem tem, depois de ler aquilo? Ninguém e isso não os impediu de escrever.

Há até quem tenha menos jeito ainda do que eu e não páre de escrever.

Que inveja!...

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A malta anti-caça ou anti-tourada não percebe um facto simples: não se caça para matar; não se toureia para fazer sofrer o bicho (que de resto devia ser morto logo, como em Espanha). É o contrário: o animal morre porque se caça.

Estou numa espécie de caça em várias frentes; mas uma caçada que faz viver e não morrer. Não caço para viver; vivo porque há uma pista à minha frente e no fim dessa pista uma luz e no fim dessa luz uma esperança e no fim dessa esperança... Nada. A esperança não acaba.

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Conversas do jantar: Cláudia Sampaio, uma das minhas poetisas favoritas na nova poesia portuguesa  (a outra sendo Miguel Martins, já que perguntam); Tournier; Flaubert; a tradução e o trabalho do tradutor e porque são em Portugal as traduções tão más; Heinrich Böll; Werther; e o jantar ele mesmo, trutas à Minhota pela primeira vez feitas no forno em vez da habitual fritura. E outros. Fica uma indelével vontade de reler algumas páginas de Böll, beber uma cerveja (ou um Schnapps, dada a hora), ir a Berlim beber um copo à Literaturhaus.

E sobretudo de recuperar o tempo que perdi longe de tudo isto, dos meus livros, de algumas coisas de que tanto gosto. De escrever.

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O inverno continua, mas tudo mudou. Não é preciso ver muito longe para me aperceber disso. Basta-me ser capaz de ver para dentro, ver no escuro.

4.3.18

Vento, deserto

Era do vento do deserto que falávamos. Já estive no deserto. Em muitos, até: alguns figurados e um real.

Refiro-me ao vento, não aos desertos reais ou metafóricos. Conheço-o: crescemos juntos, eu a ver navios e ele a impulsioná-los. Sei-lhe as manhas, quando finge que vai cair e ao contrário leva tudo pela frente; quando diz que vai entrar Norte e vem de Leste, sabe que é para ali que vamos; ou quando não vem de todo e nos deixa parados à espera de um par de olhos, um par de mãos, tudo liso e sem uma ruga, o fumo do cigarro a subir na vertical e o olhar perdido na falta de uma aragem que seja.

"Embaciado", diz Raúl Brandão. Fremente, digo eu: da imobilidade fazer uma fremência, um tremor, uma palpitação imperceptível e esperar que o vento volte como tu voltarás, como tudo voltará.

Imperceptivelmente: grão de areia no deserto, dia sem vento, noite sem Lua, solidão sem fim, desejo sem braços, mãos sem ventre, seios sem olhares, adubo sem terra.

Voltarás, vento.

3.3.18

Hipocrisias

Hipocrisia é um substantivo que tem graus como um adjectivo. Quando é pouca chama-se Boa educação;  média, mantém o nome: Hipocrisia; vasta, passa a Cobardia. Só suporto e sou adepto da primeira. 

Maldita sorte

O cúmulo do azar é ter-se um bocadinho de sorte. Não se poder maldizer a vida porque a desgraça não é total: um pouco de sorte é um cárcere maior do que o pior de Piranesi.

Asneiras certas

Simulacro, ersatz, ilusão: palavras que desapareceram do léxico corrente. Vivemos dias de verdades absolutas; perderam-se as dúvidas e ficaram as asneiras.

Inevitavelmente, claro: nada é mais asneirento do que uma certeza.

Preferências

Prefiro mulheres inteligentes a mulheres bonitas; se puderem ser as duas coisas ao mesmo tempo melhor ainda. 

2.3.18

Flores

"Para não dizerem que não falei de flores", diz uma canção da minha juventude. Eu falo de flores; sempre falei. Escondidas ou visíveis, a cheirar bem ou sem cheiro, amarelas brancas encarnadas ou tudo isto misturado: eu falo de flores.

É mesmo a única coisa de que sei falar, apesar de não lhes saber os nomes (tão pouco é preciso estudar medicina para apreciar um seio que se ergue, um ventre que se oferta, um olhar que agradece).

As minhas flores têm nome de mulher. Umas vivem ao sol outras à sombra, umas esperam que eu as colha outras que não; umas querem sentir-me a mão outras ver-me as costas, desanimadas curvadas vencidas.

As minhas flores têm corpos de mulher e é delas que falo, nelas que penso, por elas respiro. Sem elas não passaria de um canteiro de terra seca e fria, amarela a cair para o ocre infértil.

Com as minhas flores farei um dia uma coroa e com ela coroarei uma deusa, a que me espera.

Cinco, o drama

Tudo começou com duas coisas muito próximas: a ausência de adjetivos numa frase - os adjectivos são os novos proscritos - e o amor do vinho pela ânfora que o recebe.

Quanto aos adjectivos é fácil: basta deixá-los no armazém, não os ir buscar a menos que eles implorem, chorem, ameacem matar-se ou, claro, diluir-se no vinho.

Vinho esse que está em ânforas - esguias e pontiagudas, elegantes e generosas mas anacrónicas -. O problema do vinho e das ânforas é de tempo, como se sabe: o vinho chega e aconchega-se no confortável seio da anfitriã, que o recebe por assim dizer de braços e boca abertos (para não dizer escancarados, seria deselegante) mas não pensa senão em sair dali e ir para o muito mais inóspito sistema digestivo de um gajo qualquer.

Uma história de amor a cair para o drama quase tragédia, como a que agora se abateu sobre os adjectivos, coitados. Eram tão úteis.

Já a nossa tragédia - ou dela faremos antes um drama? - tem três personagens, quatro se incluirmos o tempo: o amor, o vinho, a ânfora, os adjectivos e o tempo. Cinco.

1.3.18

Vida, vidas

Quando estava ainda a Índia por descobrir eu era feliz. Já para lutar contra os mouros faltaram-me fé e energia. Fui feliz quando apareceram os primeiros hélices por baixo dos navios e triste quando, por cima deles, desapareceram as velas. Exultei com um alemão que inventou (ou trouxe para a Europa) uma forma barata de fazer livros, mas o entusiasmo esmoreceu quando a Santa Sé fez um Index e nos proibiu de ler o que quiséssemos. Creio vagamente lembrar-me de ter ido nas naus do Fernão à volta do mundo mas só  cheguei às Filipinas em 1977. Morri na Batalha do Lys e desembarquei na Normandia. Estive na China com Marco Polo e no Japão com Fernão Mendes Pinto. Dei a volta ao mundo com Joshua Slocum e voei com a Amelia Earhart.

Uma vida não são vidas, é a vida toda.